Artigo Destaque dos editores

A disciplina penal dos silvícolas

19/04/2007 às 00:00
Leia nesta página:

1. Introdução.

            A redação do art. 26 do Código Penal estabelece claramente que existem três espécies distintas de condições psicológicas capazes de redundar na incapacidade de entendimento ou determinação do sujeito.

            A lei penal claramente as divide em três categorias, a saber:

            (1) doença (ou enfermidade) mental;

            (2) desenvolvimento mental incompleto;

            (3) desenvolvimento mental retardado.


2. Desenvolvimento Mental Incompleto ou Retardado.

            O que se indaga, neste ponto, é o seguinte: quais as hipóteses compreendidas na fórmula estipulada pelo legislador penal como "desenvolvimento mental incompleto e retardado"? A doutrina, com certas divergências em alguns pontos, dedica-se a responder esse questionamento, como veremos abaixo.

            É unânime o posicionamento doutrinário segundo o qual estão compreendidos na expressão desenvolvimento mental retardado os casos de oligofrenias, quais sejam, idiotia, imbecilidade e debilidade mental. [01] Além da oligofrenia, Aníbal Bruno, Capez, Hungria e Zarzuela entendem que também se encontram incluídos nessa categoria os surdos-mudos. [02]

            Igualmente unânime é o entendimento de que os menores de idade estariam inseridos na categoria do desenvolvimento mental incompleto. [03] Juntamente com a menoridade, estariam no rol do desenvolvimento mental incompleto, conforme as lições de Capez, Damásio, Mirabete e Zarzuela, os silvícolas inadaptados. [04]

            Há, no entanto, aqueles que, como Costa e Silva e Basileu Garcia, não fazem uma análise diferenciadora e classificatória, incluindo tanto os menores, quanto os oligofrênicos, silvícolas e surdos-mudos na fórmula do desenvolvimento mental incompleto ou retardado. [05]

            Entendemos, na esteira da maioria da doutrina penalista, que entre os casos de desenvolvimento mental incompleto ou insuficiente encontram-se os silvícolas inadaptados e os menores de dezoito anos, ao passo que a categoria do desenvolvimento mental retardado compreende os oligofrênicos e os surdos-mudos.

            Simples, porém brilhante, foi Nélson Hungria, ao ensinar que desenvolvimento mental incompleto é o que ainda não se concluiu, enquanto que desenvolvimento mental retardado é o que não pode chegar à maturidade psíquica. [06]


3. Os Silvícolas.

            Definida a classificação jurídica da inimputabilidade dos silvícolas, enquanto espécie de desenvolvimento mental incompleto, ao lado dos menores de idade, cabe-nos, agora, estudá-la em separado.

            Por silvícolas, conforme nos ensina a ilustre Maria Helena Diniz, devemos entender o índio, considerado no direito civil, como relativamente incapaz (art. 4º do CC 2002 / art. 6º do CC 1916), sujeito a regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos especiais, [07] o qual cessará à medida que se adaptar à civilização do País. [08] Ainda valendo-se do auxílio da nossa doutrina civilista, destaquem-se os ensinamentos do mestre Sílvio de Salvo Venosa, o qual, embora estivesse se dirigindo diretamente ao âmbito civil, alcança também a ciência penal, ao ensinar que os nossos índios, enquanto afastados da civilização, não possuem habitualmente a experiência necessária para o trato diário da vida civil do chamado "homem civilizado". Assim, tanto no que diz respeito ao direito civil quanto ao direito penal, sua incapacidade perdura até o momento em que se adaptem à civilização. Esclarece-nos, por fim, esse notável mestre, que nosso legislador preferiu o termo silvícola, que significa "o que é da selva", exatamente para tornar claro que se refere aos habitantes da floresta e não àqueles indígenas já absorvidos pela civilização. [09]

            A própria psicologia forense nos ensina que "os silvícolas são os habitantes das matas brasileiras, cujo passo de aculturação é incipiente". [10] Outro ilustre representante dessa distinta disciplina, professor Hélio Gomes, acrescenta que "TARDE foi quem apresentou, com muita felicidade, as razões por que os indivíduos estranhos a uma comunhão civilizada não podem participar das responsabilidades e capacidades prescritas em lei: falta-lhes a identidade social, como os alienados falta a identidade pessoal, também necessária àquelas prerrogativas". Avança no pensamento, afirmando, com muita propriedade, que "o selvagem não é idêntico ao civilizado. Suas idéias, seus instintos, sua concepção de vida, sua norma habitual de conduta, diferem substancialmente dos mesmos processos do civilizado", [11] por isso que, pelo menos em princípio, os silvícolas não poderão receber o mesmo tratamento destinado ao homem civilizado comum.

            Entre os penalistas, oportunas são as lições de Nélson Hungria, o qual já afirmava que "não há dúvida que entre os deficientes mentais é de se incluir também o homo sylvester". Contudo, como faz questão de afirmar esse brilhante mestre, somente aqueles "inteiramente desprovidos das aquisições éticas do civilizado homo medius" é que a lei penal declara como inimputável. [12]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            Cumpre-nos desfazer qualquer mal entendido que possa ter surgido diante das afirmações supra realizadas. Vale ressaltar que o fato de se considerar o silvícola inadaptado inserido no grupo daqueles que gozam de um desenvolvimento mental incompleto não se trata, em momento algum, de patologia.

            Nessa esteira, leciona Aníbal Bruno, in verbis: "Não há nada aí de patológico ou teratológico, é claro, mas a ausência de adaptação à vida social do nosso nível, às normas complexas que a regulam e aos critérios de valor dos nossos julgamentos, além da existência de certas tonalidades dos processos psíquicos desses indivíduos e de certos complexos afetivos, que os dirigem e os põem em condição de incapacidade de entendimento e orientação volitiva na qualidade e grau exigidos pelo Código". [13]

            Portanto, posto isso, nossa razão jurídica nos leva a concluir que, em nossos dias, tempos em que os centros urbanos se expandem, invadindo os territórios ditos "interioranos", os meios de comunicação avançam e se espalham por toda a sociedade, obrigando-nos que nos curvemos diante de seu império, como súditos diante de sua realeza, fazendo com que muitos propaguem dos programas públicos de "inclusão digital"; não nos resta outra inferência lógico-jurídica senão a de considerarmos que a inimputabilidade do silvícola deve ser interpretada restritivamente.

            Com isso, não queremos negar-lhe o espaço devido; pelo contrário, defendemos a sua preservação, contudo uma preservação dentro da verdadeira ratio juris do art. 26, caput, CP.

            Nesse sentido, sustentamos que essa excludente de imputabilidade deve dirigir-se somente àqueles que verdadeiramente são da selva. Insistimos que não se pode fazer da imputabilidade do silvícola inadaptado (medida extremamente salutar de nossa legislação penal), subterfúgio a ser utilizado sagazmente por aqueles que desejam esquivar-se da justa condenação legal. Entendemos que para que um índio seja considerado inimputável penalmente, este deverá provar da sua alienação à vida civilizada, demonstrando que seus hábitos e valores não se confundem ou assemelham-se com os do homem da cidade, mas que ainda preserva a sua cultura histórica e o modo de vida indígena. Portanto, "se já é aculturado e tem desenvolvimento mental completo e não retardado, que lhe permite compreender a ilicitude de seus atos, será plenamente inimputável". [14]

            Aliás, é assim que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem decidido, conforme pode se ver do julgado abaixo transcrito:

            "CRIMINAL. HC. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PORTE ILEGAL DE ARMA. ÍNDIO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. FALTA DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. DISPENSABILIDADE. RÉU INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE. PLEITO DE CONCESSÃO DO REGIME DE SEMILIBERDADE. ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI N.º 6.001/73. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO. ORDEM DENEGADA.

            I. Hipótese em que o paciente, índio Guajajara, foi condenado, juntamente com outros três co-réus, pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes, em associação, e porte ilegal de arma de fogo, pois mantinha plantio de maconha na reserva indígena Piçarra Preta, do qual era morador.

            II. Não é indispensável a realização de perícia antropológica, se evidenciado que o paciente, não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da civilização.

            III. Se os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de laudo antropológico.

            IV. Precedentes do STJ e do STF.

            V. Para a aplicação do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/76, o qual se destina à proteção dos silvícolas, é necessária a verificação do grau de integração do índio à comunhão nacional.

            VI. Evidenciado, no caso dos autos, que paciente encontra-se integrado à sociedade, não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade previsto no Estatuto do Índio, o qual é inaplicável, inclusive, aos condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, como ocorrido in casu. Precedentes.

            VII. Ordem denegada" (grifo nosso).

            (STJ, 5ª Turma, HC 30113/MA, Relator Ministro Gilson Dipp, j. em 05/10/2004. DJ de 16.11.2004 p. 305).


Notas

            01

Nesse sentido: BRUNO, Aníbal. op. cit., p. 135; CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 277; HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 271; JESUS, Damásio E. de. op. cit., p. 501; MIRABETE, Júlio Fabbrini. op. cit., p. 211; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. op. cit., p. 630; ZARZUELA, José Lopes. op. cit., p. 106.

            02

BRUNO, Aníbal. op. cit., p. 136; CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 278; HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 271; JESUS, Damásio E. de. op. cit., p. 501; ZARZUELA, José Lopes. op. cit., p. 106.

            03

Nesse sentido: BRUNO, Aníbal. op. cit., p. 163; CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 277; HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 271; JESUS, Damásio E. de. op. cit., p. 501; MIRABETE, Júlio Fabbrini. op. cit., p. 211; ZARZUELA, José Lopes. op. cit., p. 106.

            04

CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 277; JESUS, Damásio E. de. op. cit., p. 501; MIRABETE, Júlio Fabbrini. op. cit., pp. 211, 212; ZARZUELA, José Lopes. op. cit., p. 106.

            05

GARCIA, Basileu. op. cit., p. 330; COSTA E SILVA, A. J. da. op. cit., p. 314 apud TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit., p. 314.

            06

HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 271.

            07

A principal lei brasileira que vem regulando a vida do índio em nosso país é a Lei nº 6.001, de 19/12/73, mais conhecida como o "Estatuto do Índio". Faz-se mister destacar a primeira parte do art. 8º desse estatuto, o qual preceitua que "os índios, enquanto não absorvidos pelos costumes da civilização, submetem-se ao regime tutelar da União" (grifo nosso). Veja, portanto, que a própria lei restringe essa tutela aos silvícolas inadaptados à civilização.

            08

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. v. 4. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 341.

            09

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil:parte geral. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 171, 172.

            10

CROCE, Delton. Manual de Medicina Legal. Delton Croce, Delton Croce Júnior. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 559.

            11

GOMES, Hélio. Medicina Legal. 32 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997, p. 786.

            12

HUNGRIA, Nélson. op. cit., pp. 270, 271.

            13

BRUNO, Aníbal. op. cit., pp. 137, 138.

            14

CROCE, Delton. op. cit., p. 560.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Leonardo Marcondes Machado

Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2007). Especialista em Ciências Penais pela UNISUL/IPAN (2008). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/ULCA/UNINTER (2013). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2014-2016). Professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina e no Centro Universitário Católica de Santa Catarina. Professor na Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), de Ciências Criminais do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC) e de Ciências Penais e Segurança Pública da Associação Catarinense de Ensino (ACE-FGG). Professor convidado da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Porta-Voz da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP-Brasil). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Examinador Titular do Concurso para Delegado de Polícia Civil/SC (2014-2015). Colunista da Revista Eletrônica Consultor Jurídico (ConJur). Coautor da obra: "Investigação Criminal pela Polícia Judiciária" (Editora Lumen Juris - 2016) e "Polícia Judiciária no Estado de Direito" (Editora Lumen Juris - 2017). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal, além de Criminologia. Site: www.leonardomarcondesmachado.com.br Rede Social: https://www.facebook.com/leonardomarcondesmachado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Leonardo Marcondes. A disciplina penal dos silvícolas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1387, 19 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9728. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos