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Violência psicológica contra a mulher (art. 147-B, CP)

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05/05/2022 às 14:33

Resumo:


  • A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) define violência psicológica contra a mulher, mas não estabelece um tipo penal específico para isso, tratando a violência de gênero com um enfoque mais rigoroso no âmbito penal, processual e de execução.

  • A Lei 14.188/21 introduziu o artigo 147-B no Código Penal, criminalizando especificamente a violência psicológica contra a mulher, o que foi considerado uma abordagem assistemática e potencialmente geradora de insegurança jurídica.

  • O tipo penal criado é considerado aberto e indeterminado, o que pode levar a conflitos com outras normas penais já existentes e criar mais problemas do que soluções na proteção da mulher.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4-TIPO OBJETIVO

O verbo do tipo é causar. Causar o quê? Dano emocional à mulher. Qualquer dano? Não, aquele que prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

A lei também estabelece os meios pelos quais esse dano emocional poderá ser causado pelo autor: mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.

Embora sejam apresentados meios específicos para a causação de dano emocional à mulher, não se pode afirmar que se trate de um chamado crime de forma vinculada, mas sim de um crime de forma livre. [15] Isso porque o verbo causar empresta à conduta toda uma amplitude praticamente inabarcável. Poderia ser que os meios dispostos na lei para essa causação viessem a conferir alguma determinação à conduta, mas fato é que em todos os casos não há determinação alguma. Por exemplo, pode-se ameaçar alguém de muitas formas, chantagear também, ridicularizar, isolar, humilhar etc.

É bem verdade que o legislador tenta utilizar a chamada interpretação analógica, expondo exemplos de condutas e fechando a redação com a fórmula genérica qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Acontece que fracassa miseravelmente porque as casuísticas pretendidas são tão indeterminadas quanto a fórmula genérica que as sucede. Ou seja, há um grave problema de indeterminação semântica, violador, como já se disse, do Princípio da Legalidade Estrita.

O mesmo fenômeno corre com o resultado previsto para a conduta, qual seja, a causação de dano emocional à mulher. O que seria um dano emocional? A expressão é completamente indeterminada e indeterminável. Tanto é fato que quando o legislador tenta empreender alguma determinação, estabelecendo que se trataria do dano que prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, apenas continua sua saga de emprego de expressões equívocas, sem qualquer conteúdo semântico seguro.

De tudo isso, a única coisa que se pode concluir, mesmo assim apenas pela aplicação de um bom senso (bom - senso este que não se pode jamais confiar estar presente no Judiciário, no Ministério Público e nem na Polícia em suas atuações concretas) é que esse dano emocional causado à mulher não poderá ser uma bagatela qualquer, até mesmo pela aplicação do Princípio da Insignificância. Se há exigência de que o dano prejudique o desenvolvimento, degrade, controle as ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher, então esse dano deve ser de monta, não se adequando a, por exemplo, um simples contratempo, um mal estar emocional passageiro, um mero aborrecimento. Talvez uma saída seja utilizar para essa aferição, na tentativa de minimizar a inépcia ou anemia semântica do tipo penal, as orientações jurisprudenciais já firmadas sobre temas como dano moral na área cível ou assédio moral no âmbito trabalhista. Decisões existem nos seguintes termos:

Não configura dano moral o mero aborrecimento decorrente de lesão patrimonial, já abrangido pelo dano material. (TJMG. Apelação Cível n. 1.0702.01.008229-6/001. Relator: Des. Maurício Barros, julgada em 23 de novembro de 2005). [16]

Porém, é evidente que mesmo essa cautela de bom senso e o apelo a diretrizes encontráveis na justiça civil e trabalhista jamais podem ser suficientes para salvar o dispositivo em destaque de sua inconstitucionalidade patente face à sua insuperável equivocidade semântica. Além do mais, não se podem fazer passagens artificiais de diretrizes aplicáveis nos âmbitos civil e trabalhista para a seara penal. [17] Isso é uma confusão extremamente perigosa, já que tais áreas jurídicas não podem ser equiparadas, estando submetidas a regras gerais e princípios totalmente diversos. Uma civilização do Direito Penal, não no bom sentido de torná-lo civilizado ou humanizado, mas no de promover uma verdadeira colonização do ramo penal, tornando-o uma espécie de parente pobre ou miserável do Cível, pode ser altamente deletéria. Na área cível, por exemplo, não há necessidade de estrita legalidade. É possível que um dispositivo que apenas diga genericamente que aquele que causar dano a outrem está obrigado a indenizar seja aceitável (vide artigos 186 e 927, CC). Isso, por exemplo, seria inviável na área criminal. Seria o correspondente a um tipo penal genérico que estabelecesse uma pena para qualquer ato prejudicial ao bom convívio e à paz social. O Direito Penal não se coaduna com tal abertura, exige a descrição exata e segura de condutas incriminadas, a não ser que nos contentemos com exemplos históricos do Direito Penal Nazista ou Soviético. Zaffaroni demonstra que no pensamento jurídico que marcou o nazismo, a legalidade perde sua força e a argumentação judicial ativista ganha campo. Parte-se para um intuicionismo jurídico redutor da função da lei. A lei passa a ser apenas um facilitador do magistrado para encontrar o Direito. O juiz é servidor do direito, não da lei, deve dizer o direito, não interpretar a lei, e se o fio da lei der lugar a uma injustiça, deverá evitá-la e decidir segundo o bem, baseando-se de forma independente. [18] Essa espécie de retórica pode até ser sedutora, mas na verdade é manifestação pura de uma insegurança jurídica programada típica de regimes totalitários. [19]

Eis a importância de procurar sempre saber a origem das concepções e ideias, não se atendo somente ao seu conteúdo racional, argumentativo e até mesmo estético. A História nos mostra frequentemente que as ideias têm consequências e o que os homens podem fazer com elas. Como bem aduz Collingwood:

Conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como ninguém sabe o que pode antes de tentar, a única indicação para aquilo que o homem pode fazer é aquilo que já fez. O valor da história está então em ensinar-nos o que o homem tem feito e, deste modo, o que o homem é. [20]

A verdade é que esse tipo penal criado pela Lei 14.188/21 tem o potencial altamente indesejável de ampliar-se indevidamente e abranger situações de recalque pessoal, suscetibilidade exagerada e das chamadas microagressões. Essas reações exageradas são um perigo concreto num mundo em que, conforme destacam Haidt e Lukianoff, o conceito de trauma se deslocou até o ponto de admitir a inclusão de qualquer coisa, tomada por uma pessoa (subjetivamente) como emocionalmente danosa. Na atualidade é comum a ideia de que a experiência subjetiva do dano se torne definitiva para valorar o trauma. Trata-se do chamado giro para o padrão ou modelo subjetivo. [21] Nem mesmo o intento do agente passa a importar, de modo que no corrente conceito de microagressões opera-se uma mudança moral fundamental que se refere ao giro da intenção para o efeito. Já não importa mais que o agente queira ou sequer saiba que tal ou qual atitude, gesto ou palavra atinge a suscetibilidade alheia, basta o atingimento para que a pessoa seja execrada. [22] O manejo de um tipo penal aberto como o artigo 147 B, CP nesse caldo cultural tumultuoso e até insano torna-se altamente arriscado. Além disso, é bom lembrar que quando acima se acenou com o Princípio da Insignificância como solução para alguns casos absurdos, isso pode ser contestado porque tanto STJ como STF apontam para o bloqueio do reconhecimento das infrações bagatelares nos casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (vide Súmula 589, STJ e RHC 133.043, STF). Essa conjuntura pode afetar até mesmo o correto destaque dado à intenção do agente, para além da mera relação de causalidade de sua conduta com o resultado, preconizada pela chamada Teoria Finalista da Ação, majoritariamente adotada em nosso país. Como bem expõe Cunha:

Criada por Hans Welzel em meados do século XX (1930 1960), a teoria finalista concebe a conduta como comportamento humano voluntário psiquicamente dirigido a um fim. A finalidade, portanto, é a nota distintiva entre esta teoria e as que lhe antecedem. É ela que transformará a ação num ato de vontade, com conteúdo, ao partir da premissa de que toda conduta é orientada por um querer. Supera-se, com essa noção a cegueira do causalismo, já que o finalismo é nitidamente vidente. [23]

Digamos que um namorado simplesmente termine o relacionamento com uma mensagem de texto e não se dê ao trabalho sequer de procurar pessoalmente a ex namorada. É claro que isso pode causar um abalo emocional que mobilizará vários sentimentos conforme a situação e a pessoa envolvida (tristeza, raiva, revolta, indignação etc.). No entanto, é evidente que essa espécie de interação intersubjetiva não deve ser objeto do Direito Penal. No máximo se trata de uma falta de sensibilidade, de educação, cortesia, a qual pode perfeitamente ser considerada como reprovável sob o prisma moral. Mas, nada mais que isso. Acontece que a redação do tipo penal permitiria que um agente público e a própria envolvida concluísse que se trata de um crime!

Simplesmente anunciar um cônjuge ao outro que não pretende mais a vida em comum, tem o potencial de ensejar a incidência do tipo penal dada a sua abertura. É claro que com bom senso isso não ocorreria, mas quem pode garantir o bom senso das pessoas em geral e dos aplicadores da lei em particular?

Há muito tempo São Tomás de Aquino já ensinou que perfeito é aquilo que, para ser o que é, não lhe falta nada, bem como que a perfeição dos efeitos é proporcional à perfeição da causa de que provêm. [24] Muito bem, o tipo penal em estudo de forma alguma contém tudo que precisa conter para ser um verdadeiro tipo penal obediente à estrita legalidade. Em razão disso, sua imperfeição nata somente poderá gerar efeitos nefastos. Ainda que se considere haver alguma boa intenção na elaboração desse tipo penal, abstraindo a demagogia legislativa, trata-se tipicamente de mais um desses casos em que a sabedoria popular nos diz que de boas intenções o inferno está cheio. Note-se que, ainda que não intencionalmente, o legislador, com esse tipo penal indeterminado, facilita o abuso de direito por sedizentes vítimas movidas por caprichos, suscetibilidades e motivos mais variados possíveis. Há um enorme perigo de que esse dispositivo legal acabe por criminalizar as relações humanas, imiscuindo-se em questões intersubjetivas corriqueiras que devem ser resolvidas e superadas pelos próprios envolvidos e não pelo Estado, muito menos pelo seu aparato penal.

Não é que se deva desconsiderar a efetiva lesão emocional ou psicológica que ocasione, por exemplo, um distúrbio mental à mulher. Porém, é necessário que se faça uma adequada incriminação de acordo com as garantias ínsitas ao Direito Penal Moderno, o que é um ingente desafio não somente no Brasil, mas na generalidade dos países. [25]

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Uma proposta plausível seria, por exemplo, uma redação que fizesse menção e descrição do fenômeno da chamada Síndrome da Mulher Maltratada, tornando a conduta incriminada devidamente identificável e determinável. Como aduz Zapatero:

La esencia y signo diferencial de la violência de los hombres sobre sus parejas no es outra que la necesidad deseo de domínio sobre la mujer. (...).

Las violências contra la mujer por parte del marido no son tanto un hecho como un proceso y lo más grave en ello no es tanto la lesión misma como la permanente exposición al peligro de repetida lesión física y el permanente dolor del sometimiento al maltrato y a humillación, que es la esencia del atentado a la integridade moral. Los golpes y el dolor duran más o menos, pero el miedo, en no pocos casos verdadeiro terror, la humillación, la impotência, la destrucción de la personalidade, la quebra de la integridade moral hacen que estas violencias y malos tratos sean continuados y permanentes. El processo y la dinâmica de la violencia de género en la pareja están hoy perfectamente identificadas en el ciclo de la violencia del síndrome de la mujer maltratada: voluntad de dominación o manipulación afectiva, escalada y reanudación del ciclo. [26]

Semelhante é a descrição levada a efeito por Hirigoyen a qual expõe o fato de que normalmente as violências de gênero são progressivas, iniciando pela coação psicológica até atingir a agressão física que pode chegar não tão raramente na prática de homicídio (Feminicídio). [27]

Em estando diante de um quadro como o acima descrito pelo autor espanhol e por Hirigoyen, quem poderia, em sã consciência, negar a necessidade de um tipo penal específico para essa espécie de conduta crudelíssima e bem determinada, assim como reconhecer um elemento de distinção para uma discriminação positiva da mulher? Certamente nem mesmo somente para a mulher, mas para outras pessoas em situação similar de vulnerabilidade como crianças, adolescentes, idosos, doentes, não importando o sexo. O problema é que na legislação brasileira nada disso está claramente estabelecido, possibilitando interpretações e aplicações as mais variadas e tresloucadas.

De qualquer forma, o crime previsto no artigo 147-B, CP é subsidiário, sendo a sua subsidiariedade expressa, pois que consta do seu preceito secundário que as penas ali previstas se aplicam somente se a conduta não constitui crime mais grave. Significa dizer que no chamado conflito aparente de normas o crime do artigo 147 B, CP será afastado em prol de outro crime que tenha pena mais gravosa e que se amolde às circunstâncias.

Essa foi a escolha do legislador brasileiro. No Direito Comparado, Zapatero dá conta de que na Espanha essa espécie de incriminação foi modelada para ser compatível com as penas dos delitos que tenham sido cometidos no curso de maus - tratos, estabelecendo expressamente, não a subsidiariedade ou a consunção, mas o concurso de delitos. [28]

Embora dotado apenas de um verbo (causar) pode-se dizer que o crime de Violência Psicológica contra a Mulher é um delito de ação múltipla, de conteúdo variado, tipo misto alternativo ou plurinuclear. Ocorre que a causação do dano psicológico à mulher pode dar-se por vários meios descritos no tipo penal, sendo fato que se mais de um desses meios for utilizado pelo agente nas mesmas circunstâncias e contra a mesma vítima, não haverá pluralidade de crimes. Vale dizer que o crime em estudo é submetido ao chamado Princípio da Alternatividade, ou seja, pode ser perpetrado com uso dos diversos meios de conduta descritos em seu bojo, integrando, em caso de invariância de circunstâncias, apenas um ilícito penal e não vários, considerando o magistrado a pluralidade de núcleos usados na dosimetria da pena. [29]

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Violência psicológica contra a mulher (art. 147-B, CP). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6882, 5 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97639. Acesso em: 23 dez. 2024.

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