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Considerações sobre o processo legislativo das leis ordinárias e complementares

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10/07/2022 às 11:00
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Examina-se o regramento que deve ser observado na elaboração de espécies normativas. O tema revela profunda relação com o controle de constitucionalidade.

Resumo: A noção primária do Poder Legislativo nasceu na Inglaterra, na Idade Média, antes mesmo da concepção da separação de Poderes, quando se ensaiaram os primeiros passos no sentido de limitar a autoridade absoluta dos reis. Contemporaneamente, o Poder Legislativo representa o órgão fundamental imbuído da missão de elaborar, revogar e alterar as leis e também, por expressa autorização constitucional, de desempenhar a função de Poder Constituinte de 2o Grau. A Constituição de 1988 alude ao processo legislativo, elencando um rol de espécies normativas a serem elaboradas segundo o rito básico nela contido: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções (art. 59, I a VII, da CF). Assim, o presente texto tece breves considerações sobre o processo legislativo pertinente às leis ordinárias e complementares.

Palavras-chave: fontes do Direito; processo legislativo; lei.


1. Introdução

A noção primária do Poder Legislativo nasceu na Inglaterra, na Idade Média, antes mesmo, portanto, da concepção da separação de Poderes, quando se ensaiaram, ainda sob a denominação de Parlamento, os primeiros passos, por iniciativa de representantes da nobreza e do próprio povo, no sentido de limitar a autoridade absoluta dos reis. Sob o ponto de vista estritamente acadêmico, a concepção básica do Poder Legislativo surgiu com a teoria de JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778) sobre o tema soberania, quando o grande filósofo defendeu a tese segundo a qual a expressão soberania popular, titularizada pelo povo, seria retratada, em última análise, através da lei.

Contemporaneamente, o Poder Legislativo representa o órgão fundamental imbuído da missão básica de elaborar, revogar, alterar e emendar as leis (criação do Direito Positivo infraconstitucional) e também, por expressa autorização constitucional, de desempenhar a função de Poder Constituinte de 2o Grau (ou, em termos mais específicos, Poder Reformador), além de outras funções (secundárias ou não) expressamente estabelecidas pela própria Constituição.

O Poder Legislativo encontra-se organizado em todos os níveis estatais (federal, estadual, distrital e municipal), sendo certo que, no âmbito federal, a atividade legislativa é exercida pelo Congresso Nacional, de forma bicameral (Câmara dos Deputados e Senado Federal), conforme prevê o art. 44, caput, da Lei Maior.


2. Processo Legislativo

Exatamente como fizeram todas as Constituições brasileiras, a Constituição de 1988 expressamente alude ao denominado processo legislativo, elencando um rol de espécies normativas a serem elaboradas segundo o rito básico nela contido: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções (art. 59, I a VII). Tal regramento, conforme será visto, deve ser fielmente observado. Afinal, como bem pontuou o Min. JOAQUIM BARBOSA, a Constituição Federal, ao dispor regras sobre processo legislativo, permite o controle judicial da regularidade do processo (STF, Plenário, ADI n° 3.146/DF, julgamento em 11.05.2006).

2.1. Definição

Por definição, processo legislativo é o conjunto de fases estabelecidas na Constituição Federal (arts. 59 a 69), a serem fielmente percorridas pelas espécies normativas primárias. Conforme consignado pelo Min. CELSO DE MELLO, a disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente consti­tucional, pois residem, no texto da Constituição e nele somente , os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis (STF, Plenário, Mandado de Segurança nº 22.690/CE, julgamento em 17.04.1997). No plano infraconstitucional, a Lei Complementar nº 95/98, com as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 107/2001, dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis e outros atos normativos, configurando, pois, um importante documento destinando à técnica legislativa.

LENZA (2012, p. 545) assevera que a importância fundamental de estudarmos o processo legislativo de formação das espécies normativas é sabermos o correto trâmite a ser observado, sob pena de ser inconstitucional a futura espécie normativa, do que se extrai a profunda relação que há entre o tema em exame e o chamado controle de constitucionalidade.

2.2. Espécies Normativas Primárias

Nos termos do art. 59, incisos I a VII, da Constituição, as espécies normativas primárias que integram o ordenamento jurídico brasileiro são: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções, figuras detalhadas a seguir.

2.2.1. Emenda à Constituição

Trata-se de espécie normativa através da qual são promovidas alterações no Texto Constitucional. As emendas constitucionais, embora integrantes do processo legislativo, inserem-se no âmbito de atuação do Poder Constituinte Reformador (Derivado ou de 2o Grau), que é exercido, por expressa autorização constitucional, pelo legislador ordinário, ainda que sujeito a um conjunto de limitações de natureza formal, circunstancial e material. Como exemplo das primeiras, cumpre citar o disposto no art. 60, I, II e III, da Carta Federal, que versa sobre a iniciativa do processo legislativo destinado a promover alterações no Texto Constitucional. Em relação às limitações circunstanciais, cite-se o art. 60, § 1º, da Lei Magna, segundo o qual a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. As limitações materiais, por sua vez, traduzem vedações materiais estabelecidas pelo próprio Poder Constituinte Originário, a configurar um autêntico núcleo intangível, reconhecido pela expressão cláusulas pétreas, temas que não poderão ser objeto de proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais, na exata dicção do art. 60, § 4º, I a IV, da CF.

Não obstante a existência de alguma controvérsia doutrinária, SILVA NETO (2009, p. 22) esclarece que as limitações temporais já eram historicamente encontradas no art. 174 da Constituição Imperial (1824), cujo teor preceituava: se passados quatro anos, depois de jurada a Constituição do Brasil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escrito, a qual deve ter origem na Câmara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte deles.

Além das referidas limitações, todas de natureza expressa, parte da doutrina constitucionalista admite a existência de limites implícitos ao Poder Reformador, tal como entende TEMER (1998, p. 145), para quem as limitações implícitas dizem respeito à forma de criação de norma constitucional, bem como as que impedem a pura e simples supressão dos dispositivos atinentes à intocabilidade dos temas já elencados, isto é, das cláusulas pétreas elencadas no art. 60, § 4º, da Lei Fundamental.

Com efeito, a tramitação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) deverá seguir fielmente os procedimentos elencados no art. 60 da Carta da República: no tocante ao quorum, precisará se discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 60, § 2º, da CF); uma vez promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 60, § 3º, da CF), a emenda constitucional insere-se no contexto amplo das normas constitucionais, constituindo-se, pois, em uma clássica exceção ao nível infraconstitucional (nível legal) das demais espécies normativas integrantes do processo legislativo. Ressalte-se, por fim, que a PEC rejeitada ou havida por prejudicada não poderá ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa, consoante dispõe o art. 60, § 5º, da Lei Maior.

2.2.2. Lei Complementar

Cumpre registrar, de início, que a doutrina diverge a respeito da existência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. Um segmento doutrinário (ALEXANDRE DE MORAES, GERALDO DE ATALIBA e MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, por exemplo) acena positivamente, concebendo a primeira como uma espécie de tertium genus, posto que estaria inserida entre o Texto Magno e a lei ordinária, notadamente diante da previsão contida no art. 69 da Lei Maior, regra que exige um quorum qualificado (maioria absoluta) para a aprovação de uma lei complementar, além de se tratar de espécie normativa cuja elaboração somente ocorre nas hipóteses taxativamente previstas na Constituição.

Uma segunda perspectiva teórica inadmite possa haver hierarquia entre as figuras em questão, sob o principal argumento de que ambas encontram o seu fundamento de validade na Constituição, existindo apenas, conforme observa TEMER, citado por LENZA (2012, p. 587), âmbitos materiais diversos atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas. Como se vê, os adeptos deste entendimento apoiam-se em dois argumentos centrais: a) ambas (leis complementares e ordinárias) constituem-se em espécies normativas primárias, extraindo da própria Lei Maior o respectivo fundamento de validade; b) não há que se falar em hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, mas somente em campos de atuação distintos, sobretudo diante do quadro normativo estabelecido pela Lei Maior para cada uma delas.

A jurisprudência do STF inclina-se no sentido da inexistência de hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária (Primeira Turma, Recurso Extraordinário nº 419.629/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgamento em 23.06.2006). Ademais, conforme anotou o Min. JOAQUIM BARBOSA, nem toda contraposição entre lei ordinária e lei complementar se resolve no plano constitucional, ou seja, a discussão será de alçada constitucional se o ponto a ser resolvido, direta ou incidentalmente, referir-se à existência ou inexistência de reserva de lei complementar para instituir o tributo ou estabelecer normas gerais em matéria tributária, pois é a Constituição que estabelece os campos materiais para o rito de processo legislativo adequado (STF, Segunda Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 228.339, julgamento em 20.04.2010).

Desta feita, nos termos da posição predominante na doutrina e na jurisprudência, a lei complementar traduz-se em espécie normativa primária caracterizada por dois atributos relevantes, vale dizer, pelo campo de atuação expressamente determinado na Constituição (reserva de lei complementar) e pelo quorum qualificado (maioria absoluta) demandado para efeito de sua aprovação. Significa dizer que as matérias a serem disciplinadas por meio de lei complementar estão expressa e taxativamente consignadas no Texto Magno, seja por obra do Poder Constituinte Originário, seja por interferência do Poder Reformador, tais como exigem os seguintes dispositivos constitucionais: arts. 7º, inciso I; 14, § 9º; 18, §§ 2º, 3º e 4º; 21, inciso IV; 22, § único; 23, parágrafo único; 25, § 3º; 45, § 1º; 59, parágrafo único; 62, § 1º, inciso III; 84, inciso XXII; 93, caput; 99, § 15; 121, caput; 128, § 4º; 129, caput, incisos VI e VII; 131, caput; 134, § 1º; 142, § 1º; 146, caput, e parágrafo único; 146-A; 153, caput, inciso VII; 154, inciso I; 155, § 1º, inciso III, e § 2º, inciso XII; 156, caput, inciso III; 156, § 3º; 161; 163; 165, § 9º; 166, § 6º, entre outros, todos da Constituição Federal.

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Cumpre registrar, ainda, que as leis complementares, a exemplo de outras espécies normativas infraconstitucionais (as leis ordinárias), também estão sujeitas à sanção presidencial, como genérico instrumento de controle político, e inconteste mecanismo de checks and balances. Por fim, quanto às leis complementares, decidiu a Suprema Corte que tal espécie normativa, de acordo com o Direito Positivo pátrio, só se afigura cabível quando formalmente reclamada a sua edição por norma constitucional explícita (STF, Plenário, ADI nº 789/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 26.05.1994).

2.2.3. Lei Ordinária

As leis ordinárias são consideradas atos legislativos típicos, com elevado âmbito de amplitude material e com quorum de aprovação por maioria simples (ou seja, maioria dos presentes, desde que existam, no plenário da Casa, metade mais um do total de seus membros). Em síntese, a lei ordinária possui um campo material caracterizado por sua natureza residual. Por conseguinte, a matéria que não for objeto de disciplina por meio de lei complementar, decreto legislativo e resolução será regulamentada através daquela espécie normativa.

2.2.4. Lei Delegada

Lei delegada é aquela em que o Poder Legislativo delega ao Chefe do Executivo a tarefa de elaborar o texto legal, configurando verdadeira exceção ao princípio da indelegabilidade (delegação externa corporis). Com efeito, a lei delegada, em termos objetivos, é elaborada, em situações especiais, pelo Presidente da República, que solicita tal delegação ao Congresso Nacional (fase da iniciativa solicitadora), indicando expressamente a matéria a ser por ele legislada. Nos termos do art. 68, § 2º, do Texto Fundamental, caso o Parlamento aquiesça quanto ao pedido presidencial, a delegação temporária concedida terá a forma de resolução, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício. De qualquer modo, mesmo tendo recebido a delegação pleiteada, o Presidente da República, segundo o melhor entendimento, não pode ser compelido a produzir o respectivo texto legal.

Cumpre advertir, entretanto, que nem todas as matérias poderão ser objeto de delegação. O art. 68, § 1º, da Carta Federal consagra casos de indelegabilidade de atribuições. Por conseguinte, não poderão ser objeto de delegação: atos de competência exclusiva do Congresso Nacional; atos de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; matéria reservada à lei complementar; legislação sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; legislação sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; legislação sobre planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. Segundo doutrina praticamente unânime, as leis delegadas possuem idêntica força hierárquica das leis ordinárias (BASTOS, 1997, p. 362).

Ademais, caso o Presidente extrapole os limites da delegação recebida, o Congresso Nacional, através de decreto legislativo, poderá sustar o ato normativo exorbitante, na forma do art. 49, inciso V, da Constituição.

Tendo em vista o disposto no art. 68, § 3º, da Lei Magna, o qual prescreve que se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda, LENZA (2012, p. 588-589) classifica a presente delegação em típica (não haverá apreciação pelo Congresso Nacional) e atípica (haverá apreciação pelo Congresso Nacional, em votação única e vedada qualquer emenda), conforme o caso.

2.2.5. Medida Provisória

As medidas provisórias, originárias do sistema legislativo italiano, foram introduzidas no País a partir da promulgação da Constituição de 1988, objetivando, sobretudo, prover o Chefe do Executivo Federal de um instrumento legal apto a substituir o antigo decreto-lei, com a redação determinada pela EC nº 1/69), no que, por lamentável equívoco, acabou estigmatizado como instrumento da ditadura. Conforme demonstra o art. 62, caput, da CF, com a redação estabelecida pela EC nº 32/01, trata-se a medida provisória de um instrumento jurídico (dotado de força de lei) posto à decisão exclusiva do Presidente da República, que poderá editá-la e, em seguida, submetê-la imediatamente ao crivo do Poder Legislativo.

A despeito dos requisitos exigidos pela Constituição, notadamente a relevância e a urgência, fato é que houve, antes do advento da EC nº 32/01, um inconteste desvirtuamento da mens constituinte no que se refere ao manejo de medidas provisórias por parte do Chefe do Executivo. Tal problema acarretou a edição de cerca de 6.000 MPs durante o período compreendido entre 5 de outubro de 1988 (promulgação da Constituição) e 11 de setembro de 2001 (promulgação da EC nº 32/01), muitas das quais flagrantemente desprovidas daquelas condições requeridas pelo Lei Fundamental, realidade que nos aproximou, naquela quadra, de uma verdadeira inflação legislativa promovida pelo Executivo, consentida pelo Legislativo e sufragada pelo Judiciário, em uma indisfarçada apropriação do poder de legislar, a repercutir sobremaneira na própria essência do princípio da separação dos Poderes, problema muito bem retratado pelo Min. CELSO DE MELLO (STF, Plenário, Medida Cautelar na ADI nº 2.213/DF, julgamento em 04.04.2002).

Não obstante tal crescente apropriação institucional do poder de legislar, a jurisprudência dominante na Corte Magna era no sentido da constitucionalidade da reedição de medidas provisórias, entendimento que, antes do advento da EC nº 32/2001, consolidou-se em diversos julgados proferidos pelo STF (Tribunal Pleno, ADI nº 2.150/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, julgamento em 11.09.2002; Tribunal Pleno, Medida Cautelar na ADI nº 295/DF, Redator para o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, julgamento em 22.06.1990; Tribunal Pleno, Medida Cautelar na ADI nº 295/DF, Redator para o acórdão o Min. MARCO AURÉLIO, voto do Min. NÉRI DA SILVEIRA, julgamento em 22.06.1990). Como se vê, de acordo com a antiga exegese do Supremo a respeito do tema, a medida provisória não apreciada pelo Congresso Nacional podia, até a EC 32/01, ser reeditada dentro de seu prazo de eficácia de 30 dias, mantidos os efeitos de lei desde a primeira edição, entendimento que, inclusive, restou consubstanciado na Súmula nº 651, aprovada pela Corte Excelsa em Sessão Plenária de 24 de setembro de 2003, a qual foram conferidos, em 2016, efeitos vinculantes.

Enquanto efetiva espécie normativa primária, a edição de medida provisória gera dois efeitos imediatos, com bem assinalou o Min. CELSO DE MELLO (STF, Plenário, Medida Cautelar na ADI nº 293/DF, julgamento em 06.06.1990): o primeiro efeito é de ordem normativa, eis que a medida provisória, que possui vigência e eficácia imediatas, inova, em caráter inaugural, a ordem jurídica; o segundo é de natureza ritual, eis que a publicação da medida provisória atua como verdadeira provocatio ad agendum, estimulando o Congresso Nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei. No que se refere ao rito a ser seguido por uma MP, e diante do que dispõe o art. 62 (com a redação estabelecida pela EC nº 32/01) da CF, é possível delinear a seguinte sistemática a respeito do processo de elaboração das medidas provisórias:

a) Em primeiro lugar, a edição de uma medida provisória constitui-se em atribuição indelegável do Presidente da República, nos moldes do art. 84, inciso XXVI, da CF. Uma vez editada, a MP será imediatamente submetida ao Parlamento. Tendo em vista o decidido pelo STF na ADI nº 4.029/AM, as medidas provisórias, antes de serem apreciadas em sessão dos plenários das duas Casas, devem ser examinadas por uma comissão mista de Deputados e Senadores (e não apenas pelo Relator, conforme previa o art. 6º da Resolução nº 1, de 2002, do Congresso Nacional, texto declarado inconstitucional no âmbito da citada ADI), o que avulta a importância analítica da referida comissão mista. Emitido o parecer pela comissão mista, o texto será apreciado pelo plenário de cada uma das Casas, cujo processo de votação terá início na Câmara dos Deputados (funcionando o Senado Federal, em seguida, como Casa Revisora), conforme estabelece o art. 62, § 8º, da Constituição.

Outrossim, preceitua o art. 62, § 6º, que se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.

Ademais, a deliberação da Câmara e do Senado sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais (art. 62, § 5º, da CF). Significa dizer, portanto, que se o plenário de uma das Casas entender (preliminarmente) pela não observância dos pressupostos constitucionais (relevância e urgência), e de adequação financeira e orçamentária, será o texto arquivado, sem análise de mérito, exatamente o ocorreu com a MP nº 704, de 23.12.2015.

b) Relevância e urgência são os pressupostos constitucionais exigidos pelo art. 62, caput, da CF, em relação aos quais o STF tem posição firmada no sentido de somente admitir o exame jurisdicional de seu mérito em casos excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos seja evidente (STF, Plenário, Medida Cautelar na ADI nº 2.527/DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE, julgamento em 16.08.2007).

c) No que se refere ao prazo (e respectiva possibilidade de prorrogação), preceitua o art. 62, § 7º, da CF: prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional. Donde se conclui que a MP, uma vez editada e submetida de imediato ao crivo do Parlamento, produzirá efeitos por 60 dias, contados da data de sua publicação. Todavia, encerrado tal período exordial, e uma vez não concluída a votação na Câmara e no Senado, o aludido prazo inicial será prorrogado (uma única vez) por igual período (60 dias), ensejando, pois, um lapso temporal total de 120 dias, cuja expiração, caso a medida provisória não seja convertida em lei, acarretará a perda de sua eficácia desde o momento de sua edição.

d) Quanto à perda de eficácia (denominada de rejeição tácita), dispõe o art. 62, § 3º, da CF, que as medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12, perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

Desta feita, diferentemente da sistemática adotada quanto ao antigo decreto-lei, a nova ordem constitucional não admite a chamada aprovação por decurso de prazo, de modo que, transcorrido o prazo legal, o silêncio do Parlamento implicará em rejeição tácita da medida provisória, que perderá a eficácia desde a sua edição.

e) O art. 62, § 10, da CF, incluído pela EC nº 32/01, dispõe que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada (rejeição expressa) ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo (rejeição tácita). Por sessão legislativa, entende-se o período definido no art. 57, caput, da CF: o Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro.

f) A aprovação (por maioria simples) de uma medida provisória pelo Congresso Nacional pode ocorrer de dois modos: sem ou com alteração. No primeiro caso, aprovado sem alteração de mérito, o texto será promulgado pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional, conforme prevê o art. 12 da Resolução nº 1, de 2002-CN. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a MP nº 763/16 (adotada pelo Presidente da República), e convertida sem alteração na Lei nº 13.446/17.

Entretanto, caso o Congresso Nacional aprove a MP com alteração de mérito, o projeto de lei de conversão será enviado, pela Casa onde houver sido concluída a votação, à sanção do Presidente da República (art. 13 da Resolução nº 1, de 2002-CN). Foi exatamente o que aconteceu com a MP nº 752/16, convertida na Lei nº 13.448/17.

Por oportuno, cumpre ressaltar que, segundo o STF, viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, da CF), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória (STF, Tribunal Pleno, ADI nº 5.127/DF, Rel. Min. ROSA WEBER, Redator para o acórdão o Min. EDSON FACHIN, julgamento em 15.10.2015).

Por fim, cumpre observar que a MP não poderá ser editada nos seguintes casos (art. 62, § 1º, da CF): nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e Direito Eleitoral; Direito Penal, Processual Penal e Processual Civil; organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º, da CF; matéria que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; matéria reservada a lei complementar; matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.

Não obstante a existência de controvérsia, o STF, em decisão anterior à edição da EC nº 32/01, entendeu que a inadmissibilidade de edição de medida provisória em matéria penal não compreende a de normas penais benéficas, tais como as que abolem crimes ou lhes restringem o alcance, extingam ou abrandem penas ou ampliam os casos de isenção de pena ou de extinção de punibilidade (STF, Pleno, Recurso Extraordinário nº 254.818, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgamento em 08.11.2000). Todavia, atualmente, tendo em vista o disposto no art. 62, § 1º, alínea b, da CF, combinado com o art. 22, inciso I, da mesma Carta, a vedação constitucional, a nosso ver, abarca o Direito Penal como um todo, não podendo o Presidente da República editar medida provisória para criar (novatio legis incriminadora) ou abolir (abolitio criminis) infrações penais (crime ou contravenção penal).

2.2.6. Decreto Legislativo

Cuida-se de espécie normativa através da qual o Congresso Nacional trata das matérias elencadas no rol de sua competência exclusiva (art. 49, I a XVII), bem como daquela prevista no art. 62, § 3º, da CF.

Consoante adverte BASTOS (1997, p. 362), o decreto legislativo é da competência exclusiva do Congresso Nacional, por isso não está sujeito à sanção [ou veto] presidencial, versando, basicamente, sobre as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, cuja promulgação compete ao Presidente do Senado Federal, dispensando-se, pois, qualquer concordância por parte do Presidente da República.

Assim, a título de exemplo, através do Decreto Legislativo nº 186/08, o Congresso Nacional, nos termos do art. 49, I, da CF, aprovou o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30.03.2007.

Do mesmo modo, segundo prescreve o art. 62, § 3º, da CF, as medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12, perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

Ademais, combinando-se o art. 68, caput (as leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional), e § 2º, (a delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício), com o art. 49, V (compete ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa), todos da CF, nota-se perfeitamente a relação existente entre as espécies normativas primárias previstas no art. 59, IV (lei delegada), VI (decreto legislativo) e VII (resolução).

2.2.7. Resolução

Resolução é a espécie normativa através da qual a Câmara dos Deputados (art. 51 da CF) e o Senado Federal (art. 52 da CF) regulamentam os assuntos de sua competência privativa, entre outros casos previstos na CF (art. 155, § 1º, inciso IV; art. 155, § 2º, inciso IV; art. 155, § 2º, inciso V, alíneas a e b) e nos respectivos regimentos internos. Conforme consignado anteriormente, é através de resolução que o Congresso Nacional confere competência ao Presidente da República para elaborar a lei delegada (art. 68, §§ 2º e 3º, da CF).

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Considerações sobre o processo legislativo das leis ordinárias e complementares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6948, 10 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98780. Acesso em: 24 abr. 2024.

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