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Fato superveniente e a ação de revisão

17/07/2022 às 12:35
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O Ministério Público deve demonstrar lastro probatório mínimo do dolo específico, sob pena de indeferimento da denúncia de improbidade.

Com o advento da Lei Federal n° 14.230/21, em que houve relevantes alterações na Lei de Improbidade Administrativa, o que ocorreu com funcionários públicos, concursados, acusados de participação em fraude num concurso público, leva-nos a uma séria reflexão, porque mexeu com a vida dessas pessoas e continua mexendo, porque há processos ainda em andamento.

Alteração havida na Lei de Improbidade trouxe a exigência expressa de comprovação de dolo específico para condenação de agentes públicos por crimes de improbidade e sua prática. Advogados que atuam em processos como esses sempre argumentaram aos julgadores a necessidade do elemento subjetivo dolo para que houvesse condenação. Quase sempre juízes aceitam a abertura de processo por improbidade sob a alegação de que in dubio, pro societate. E geralmente os processos terminam com sentenças condenatórias, boa parte por presunção e não comprovação do dolo.

Não se tem dúvida de que a Lei de Improbidade Administrativa, extremamente salutar, veio a fim de punir os maus administradores, ou seja, aqueles que, cientes do ilícito, levam em frente o ato e se beneficiam dele ou beneficiam a terceiros. Rafael Oliveira e Daniel Neves, in Manual de Improbidade Administrativa: direito material e processual, ed. Forense, já pregavam: "a improbidade administrativa não se confunde com a mera irregularidade ou ilegalidade, destituída de gravidade e do elemento subjetivo do respectivo infrator. A improbidade é uma espécie de ilegalidade qualificada pela intenção (dolo ou, excepcionalmente, culpa grave) de violar a legislação e pela gravidade da lesão à ordem jurídica. Vale dizer: a tipificação da improbidade depende da demonstração da má-fé ou da desonestidade, não se limitando à mera ilegalidade, bem como da grave lesão aos bens tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa" -

A alteração que focamos foi um avanço para adequar-se ao que já era consolidado, até certo ponto, na doutrina e na jurisprudência do STJ, quando tomávamos conhecimento de decisões como: "para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é imprescindível, além da subsunção do fato à norma, caracterizar a presença do elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé" (Precedentes: AgRg no REsp 1.500.812/SE , relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28.5.2015; REsp 1.512.047/PE , relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30.6.2015; AgRg no REsp 1.397.590/CE , relatora ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 5.3.2015; AgRg no AREsp 532.421/PE , relator ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 28.8.2014.)

Não nos olvidemos do que prevê o art. 22, caput, e § 2°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que deixa claro que na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§2º. Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente".

Ora, a alteração na Lei de Improbidade que motiva este artigo, por ser benéfica ao agente em comparação com a disciplina legal anterior, precisa ser aplicada retroativamente. Não se tem dúvida de que a LIA, como corolário do poder punitivo estatal, integra o denominado Direito Administrativo Sancionador e, dessa forma, a nosso ver, deve compor-se com o mesmo núcleo básico de direitos individuais constantes na nossa Lei Maior e que fundamenta o Direito Penal (art. 5°, XL, da Constituição Federal/88). Há um artigo acerca deste tema, escrito pelo Dr Gutemberg Jr, no ano passado, no qual afirma:

Assim, não há maiores diferenças substanciais entre as normas penais e normas administrativas sancionadoras, uma vez que ambas constituem expressão do poder punitivo do Estado, tendo, inclusive, a nova legislação inserido entendimento expresso no sentido de que os princípios do Direito Administrativo sancionador devem ser aplicados nos casos de improbidade administrativa (artigo 1º, §4º, da LIA). Ademais, com a novel legislação, para que o agente seja responsabilizado com base nos tipos descritos na legislação, é exigida agora a demonstração de intenção dolosa, não podendo os atos causados por imprudência, negligência ou imperícia serem configurados como ímprobos (artigo 1º, §1º, da LIA). Ademais, não restam dúvidas que o dolo agora exigido é o específico (artigo 1º, §2º, da LIA), uma vez que, conforme aduz expressamente o novo dispositivo legal, "deve estar devidamente demonstrado a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente".

Pois bem, a Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa a que nos referimos, dividida por sinal em 10 processos, já teve alguns sentenciados em primeira instância, com condenação de pretensos envolvidos, e decisão chancelada em segunda instância. Contudo, estranhamente, o processo principal, em que se encontra a empresa que realizou o concurso e o Prefeito acusado, está ainda em andamento. E a acusação, basicamente, é a de que a empresa e o Prefeito, em conluio, se predispuseram a fraudar o concurso, para beneficiar apaniguados. Porém, as pretensas provas que serviram para condenação foram anotações constando nome de pessoas em papéis colhidos no escritório da empresa. Nomes de pessoas que não constavam, mas haviam prestado o concurso, essas foram absolvidas. Até poderia, de fato, haver nomes que tiveram participação na fraude, se houve, mas não significa que todos que ali estavam anotados a tiveram! Ter-se-ia que haver provas eficazes, robustas, contundentes. Deveria ter havido dilação probatória, ouvir os apontados pelo Ministério Público, testemunhas... Não houve. A condenação baseou-se nas anotações em papéis da empresa com nomes de pessoas que, supostamente, tivessem participado da hipotética fraude. Afinal, um julgamento desse naipe mexe com a vida profissional de pessoas que já exerciam o cargo. E o simples afirmar do Ministério Público de que houve conluio entre empresa e Prefeito, sem que o processo principal tenha sido julgado, para se provar que houve o tal conluio, joga por terra a credibilidade dessas sentenças e decisões. Não há comprovação de que houve dolo específico, como determina a lei, com intenção de fraudar o concurso, e que esses condenados, todos eles, realmente se teriam beneficiado de tal ato ilícito. E até que se prove o contrário, não há ilicitude. E se o Ministério Público, no processo principal, não provar o dolo específico? A alteração na LIA está em vigência! Se, ao final, estacionar apenas em presunção, em indícios? E os que já foram condenados e perderam o cargo público, como ficam? E não acreditamos que a Justiça cometa a injustiça de condenar a todos para manter a condenação dos que já o foram!

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Inexiste qualquer dúvida de que o Ministério Público DEVE demonstrar (aliás, já deveria ter demonstrado) lastro probatório mínimo do dolo específico, até mesmo sob pena de indeferimento da denúncia. E, no transcorrer da instrução processual, provar a existência do dolo específico. Porém, como o fazer, se não houve sequer instrução processual, réus não foram ouvidos, testemunhas muito menos! Houve mesmo argumentos de cerceamento de defesa, mas inútil. Como dissemos, simples papéis com nomes anotados como pretensos participantes não deveriam servir de provas. Haveria, em honra da busca da verdade, que se comprovar que tais nomes tiveram participação efetiva naquilo de que estão sendo acusados e se a culpa recairia sobre a afirmativa de conluio entre Prefeito e empresa realizadora do concurso.

O § 6º, artigo 17, da LIA prevê:

"Artigo 17  A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021).

[...]

§ 6º A petição inicial observará o seguinte: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021).

 deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada; (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021). NÃO HOUVE INDIVIDUALIZAÇÃO NOS PROCESSOS JÁ JULGADOS COM A CONSEQUENTE CONDENAÇÃO DOS RÉUS À PERDA DO CARGO. CONDENAÇÃO COM BASE APENAS NOS PAPÉIS COLHIDOS NO ESCRITÓRIO DA EMPRESA, EM QUE CONSTAVAM NOMES. QUEM, MESMO ESTANDO COMO RÉU, SE O NOME NÃO ESTIVESSE INSCRITO NOS PAPÉIS DA EMPRESA, OBTEVE ABSOLVIÇÃO.

II  será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições constantes dos artigos 77 e 80 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021). DOCUMENTOS JUNTADOS FORAM APENAS OS ACIMA REFERIDOS. E REITERE-SE NÃO HOUVE INSTRUÇÃO PROCESSUAL PARA QUE OS ACUSADOS PUDESSEM SE DEFENDER.

Houve, nessa carga material da prova, a pretensa comprovação apenas do Ministério Público, visto que a parte contrária não teve oportunidade de defesa, fato esse que prejudicou sobremaneira os réus já condenados. Até se poderia admitir que tais papéis seriam indícios de fraude, mas não deram aos réus o direito de defesa integalmente. E incrivelmente, mesmo com tal alegação argumentada numa Corte superior; fizeram ouvidos moucos e mantiveram a sentença de primeira instância. Verdadeiro sacrilégio ao direito de defesa tão propalado em nossa Constituição.

A nosso ver, a alteração ora enfocada veio para fazer justiça e punir apenas aqueles que, de fato, conspiram contra as leis e contra o erário. O poder punitivo deve recair pesadamente sobre eles, mas não em funcionários, agentes que agiram sem dolo, muitas por vezes simples erros administrativos e condenados foram cassados. É o caso de os advogados desses processos já julgados protocolarem ação revisional nesses processos, por fato superveniente, motivo mais que apto para uma revisão.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGANELLI, Wilson. Fato superveniente e a ação de revisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6955, 17 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98954. Acesso em: 2 nov. 2024.

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