Resumo: No Brasil, as vítimas dos crimes classificados como clandestinos sofrem, quase sempre, com o processo de revitimização, em particular os crimes contra a dignidade sexual. O prolongamento do trauma e dos danos são causados, principalmente, pelo desrespeito às leis sobre privacidade dos dados e da intimidade da vítima e exploração midiática e sensacionalistas dos fatos criminosos ocorridos. A correta compreensão é o primeiro passo para o desenvolvimento de políticas públicas para o combate ao processo de revitimização.
Palavras-chave: Revitimização, proteção de dados, dignidade sexual, crime clandestino, sensacionalismo midiático.
Introdução
No Brasil, as vítimas dos crimes classificados como clandestinos sofrem, quase sempre, com o processo de revitimização, em particular nos crimes contra a dignidade sexual. O prolongamento do trauma e dos danos são causados, principalmente, pelo desrespeito às leis sobre privacidade dos dados e da intimidade da vítima e exploração midiática e sensacionalistas dos fatos criminosos ocorridos.
Por isso, embora os danos físicos muitas vezes sejam sanados, as agruras emocionais e psicológicas permanecem por longos períodos, algumas vezes por décadas.
Estudam-se, portanto, três formas comumente responsáveis por novos processos de vitimização em ocorrências dos crimes clandestinos: a insegurança dos dados sigilosos em atendimentos médico-hospitalares, o compartilhamento de informação pré-conceitualizada no meio social e a exploração sensacionalista da mídia.
O desenvolvimento argumentativo foi concebido, principalmente, através de pesquisa bibliográfica e textual, assim como artigos digitais, matérias publicadas em periódicos de circulação nacional e entrevistas pessoais.
Elencar possibilidades para combater a revitimização é o objetivo central do estudo que permaneceu sempre em foco.
O que é um crime clandestino?
Pode-se entender como crime clandestino aqueles que ocorrem às escondidas, em silêncio e sigilo (NUCCI, 2014, p. 38). Ou seja, os crimes em que apenas autor(es) e vítima(s) estão presentes, os fatos ocorrem longe da observação de qualquer outra pessoa.
Sendo assim, o relato da vítima tem um valor diferenciado nesses tipos de crimes. Entretanto, ainda se faz necessário indícios de autoria e materialidade para que o acusado seja processado.
A produção dessas provas, muitas vezes, já é a primeira revitimização. Além do relato pessoal da vítima, a obtenção da prova se dará com exames médicos, laboratoriais e psicológicos. Isto é, a vítima será submersa em todo o contexto do crime, revivendo a situação, lembrando-se de detalhes para os relatos, descobrindo possíveis sequelas (como uma gravidez), etc.
A privacidade e o sigilo dos profissionais de saúde
Inicialmente, por se tratar de questão de ética profissional, há tempos existiam regulamentações e instruções dos Conselhos Profissionais quanto ao sigilo e discrição com relação às informações do paciente.
Independente de qualquer previsão legal, a moral e os bons costumes indicam que compartilhar informações sobre a saúde e, especificamente, a vida sexual dos pacientes é uma falta grave.
Nesse sentido, reforçando o que os Conselhos Profissionais já instruíam aos seus associados, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Federal 13.709/2018) positivou em texto legal a obrigação de proteção dessas informações.
O código de ética médica, resolução n° 2217/18 do Conselho Federal de Medicina, em seus princípios fundamentais, define que:
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativas contra sua dignidade e integridade.
Especificamente em textos legais, o art. 2º, inciso I, da LGPD, ensina que o respeito à privacidade é um dos fundamentos que regem essa Lei. De forma mais específica, o art. 5º, inciso II, especifica que as informações referentes à vida sexual (entre outras) é considerado um dado pessoal sensível.
Dentro da LGPD os dados pessoais sensíveis gozam de proteção ainda maior que os dados em geral, exatamente por se tratar de informação que pode causar sofrimento moral, emocional ou ambos.
No caso de crimes contra a dignidade sexual, os dados sensíveis das vítimas surgem quando recebem atendimento de urgência ou emergência, tratamento para reduzir as lesões causadas durante o crime, realizam exames para obtenção de provas ou, ainda, outras situações. Em todas elas, qualquer tipo de compartilhamento dessas informações, sem o dever legal de fazê-lo, é indevido ou ilícito.
Caso essas informações sejam indevidamente expostas, fica evidente a revitimização, pois quase sempre a comunidade, colegas de trabalho e familiares, ao tomarem ciência do crime, realizam verdadeiros interrogatórios à vítima. Mesmo que sem a intenção de ferir, até mesmo por mera curiosidade, cada pergunta ou mensagem recebida é uma nova visita aos fatos criminosos vivenciados.
Vizinhança, boatos e comentários
Um fenômeno social que muitas vezes ocorre, embora se trate de crime contra a dignidade social, é um pré-julgamento da vítima. Conhecido como julgamento social, existem situações que mesmo demonstradas e julgadas judicialmente de forma contrária, a sociedade já tem uma opinião formada antecipadamente.
Uma breve análise da teoria do julgamento social demonstra que as pessoas fazem julgamentos formados da percepção de uma ideia, embasada no aqui e agora. Com isso, a ideia nem sempre é real, mas forma na mente da pessoa com toda sua subjetividade. Ou seja, uma posição é assumida com relação a um assunto com toda a subjetividade e opinião pessoal de alguém, não com os fatos e a lei.
Nesse sentido, muitas vezes a vítima fica mal falada e, em alguns casos, responsabilizada pelo crime cometido. Um exemplo disso são as frases como se não usasse roupa tão curta, não teria sido atacada ou mulher de bem não fica sozinha na rua essas horas da noite, referindo-se à uma vítima do crime de estupro.
Nesse sentido, afirma a autora COSTA:
Especificamente falando em crime de estupro sofrido por mulheres, observa-se que a mulher acaba sempre submetida a novo processo de vitimização, considerando a forma como é tratada pelo aparato estatal, bem como pelo olhar crítico e julgador da família ou da sociedade como um todo. (2021)
Logo, não se importando com os fatos e os envolvidos, muitas vezes, esses comentários são ouvidos pela vítima em locais públicos, no trabalho e até mesmo entre familiares.
Cada pré-julgamento exposto pode ser uma revitimização, trazendo à tona memórias, sentimentos e toda e experiência nefasta de ter sido vítima de um crime contra a dignidade sexual.
Sensacionalismo midiático
Atualmente, a internet é um local de grande quantidade de informação e a luta pela atenção do público é atroz. A situação fica ainda mais crítica quando o sensacionalismo midiático explora fatos delicados da vida alheia em busca de atenção.
Recente é o caso envolvendo uma famosa atriz e um comunicador em que informações extremamente sensíveis foram expostas. Independente do desfecho do caso, o teor da notícia publicada é sensível, por isso, esperava-se tratamento mais humanizado ao ser divulgado na rede mundial de computadores.
Situações semelhantes ocorrem já há muitos anos com a publicação dos famigerados vídeos flagrantes, sex tapes, câmeras escondidas, etc. E a jornada da vítima para que o conteúdo seja removido, conforme notado na jurisprudência, costuma ser árdua.
Versa o Marco Civil da Internet (Lei Federal 12.965/2014) em seu art. 21, que o provedor será responsabilizado junto com o autor pela publicação e não remoção de cena de nudez ou atos sexuais de caráter privado quando requerido pelo participante.
Existe, ainda, o tipo penal conhecido como revenge porn (pornografia de vingança), incluído no Código Penal em 2018. Criminaliza-se várias ações referindo-se a divulgação de nudez ou pornografia da vítima sem seu consentimento ou cenas de estupro (crime contra a dignidade sexual), no art. 218-C. O §1º do artigo ainda aplica aumento de pena se os atos foram motivados por vingança.
Contudo, o §2º institui que as publicações de caráter jornalístico estão sob o manto de excludente de ilicitude. Nesse ponto, a imprensa sensacionalista e apelativa sustenta, na maioria das vezes, suas publicações.
De qualquer forma, esses conteúdos também imputam à vítima dos nefastos crimes contra a dignidade sexual a revitimização. Dão margem aos pré-julgamentos pela comunidade e ferem, diretamente, o direito ao esquecimento da vítima. Cria-se, então, o conflito entre a liberdade de imprensa e a privacidade da vítima.
A dignidade humana das vítimas
O princípio constitucional fundamental da dignidade humana, que norteia todo o texto constitucional, no aspecto da revitimização estudado também é de suma importância. O respeito à pessoa e ao seu bem-estar físico, emocional e espiritual - fruir uma vida completa e feliz - jamais deve ser perdido de foco.
Atentar-se ao tratamento humanitário, sempre com extremo respeito, sem perder jamais de vista o cuidado com os traumas das vítimas de crimes contra a dignidade sexual é, de todas as formas, respeitar-lhes a dignidade na condição de ser humano.
Afirma BARROSO, Ministro do Supremo Tribunal Federal:
Em uma concepção minimalista, dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada indivíduo, (3) limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário). Portanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade, na sistematização aqui proposta, são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia individual e valor comunitário. (BARROSO, 2021, p. 245)
E, nesse sentido, surgem novas leis ou alterações nas que já existem, para tutelar esse tipo de situação. É o caso da recente inovação quanto a violência psicológica contra a mulher, sem dúvida concebida em busca de altruístas conforme os preceitos internacionais dos direitos humanos.
O mesmo raciocínio, por analogia, pode ser aplicado nos casos de revitimização, por se tratar também de violência psicológica e emocional. Em ambos os casos, ultrapassar a barreira do respeito tem enorme potencial para imputar males cujas consequências não serão facilmente reparadas.
Conclusão
Desse modo, de acordo com o exposto, é possível perceber que o problema da revitimização de situações envolvendo crimes contra a dignidade sexual é uma realidade no Brasil. A sociedade vive um período de adaptação às recentes e atuais legislações sobre privacidade de dados e informação - como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados - por isso, hábitos antigos permanecem.
Inserido nesses hábitos culturais viciosos está a imprensa sensacionalista, que há tempos explora fatos criminosos. A publicação dessas matérias contribuem para lutar contra a ameaça social objetiva desses crimes, mas fazem a vítima reviver a todo momento os traumas vividos.
E, assim, seja por velhos hábitos atualmente, atualmente considerados muito mais agressivos, ou por mera extrapolação do direito de informação, as pessoas que sofreram com crimes contra sua dignidade sexual passam por um processo de revitimização que pode perdurar por anos.
Há de se pensar, portanto, em estratégias mais eficientes e possíveis regulamentações para lidar com a situação de revitimização e, assim, zelar pela ordem social e a dignidade humana das inúmeras vítimas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei Federal 13.709 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Publicada em 14 de agosto de 2018.
BRASIL. Lei Federal 14.188/21 - Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica. Publicada em 28 de julho de 2021.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 , modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. Conselho Federal de Medicina, Brasília, 2019.
COSTA, Maria Eunice de Oliveira. A revitimização da mulher vítima do crime de estupro: uma questão de gênero. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/95552/a-revitimizacao-da-mulher-vitima-do-crime-de-estupro>. Acesso em: 04/07/2022.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.