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Avisem ao IML, chegou o grande dia

22/07/2022 às 14:00
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A ineficiência do Estado em julgar o particular não pode, sob nenhuma hipótese, tolher-lhe o direito constitucional à presunção de inocência.

Quando dei início à penosa, porém gratificante carreira na mais bela das áreas, a seara criminal, aprendi com grandes mestres, aos quais devo todos os conhecimentos partilhados, que deveria deixar para trás todos os preconceitos e estigmas enraizados por Datenas do mundo afora, pois estava ingressando naquela que deveria ser a mais garantista das áreas. Estávamos tratando do segundo maior bem que o ser humano possui, ficando atrás apenas de sua própria vida, a liberdade!

Confesso que nunca consegui compreender plenamente como um ser humano pode aprisionar a outro, sem dar-lhe uma segunda chance ou submetê-lo a uma boa conversa, como nossos pais faziam quando éramos crianças. Ficava, isso sim, impressionado na forma como tantos profissionais se dedicavam a missão de prender seu semelhante.

Deve ser por isso que a carreira da Magistratura nunca me atraiu.

Tenho para mim que a tarefa de julgar deve ser vista mais como divina do que propriamente humana, assim como preconizado nas Escrituras Sagradas: Assim como julgares, serás julgado.

Daí, fica evidenciada a indiscutível importância das decisões criminais exaradas por uma Autoridade Judiciária. Perguntava-me: A quais princípios norteadores os Julgadores eram submetidos para que não chancelassem uma injustiça?

Como poderiam dormir o sono dos justos sabendo que, mesmo hipoteticamente, poderiam retirar arbitrariamente um semelhante do seu seio familiar e submetê-lo a um verdadeiro depósito de seres humanos, administrado pelas Secretarias de Administração Penitenciária?

Eis que sobreveio a resposta para meu desassossego: A Constituição Federal, especialmente em seu artigo 5º, LVII:  Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Esta mesma Constituição Federal que fora promulgada a ferro e fogo, a mesma Constituição que meus antepassados aos quais me orgulho, e muito! lutaram de forma incansável para que fosse colocada em vigor, trazendo um pouco de alívio aos que não se calarem e tanto sofreram durante os Anos de Chumbo.

Com o passar dos anos fui percebendo que sim, algumas pessoas devem ser levadas a cadeia quando consideradas culpadas, seja pelo caráter ligado a ressocialização do indivíduo, seja unicamente para retirá-lo do convívio social, caso contrário estaríamos colocando em risco a nós mesmos, aos nossos afetos e demais integrantes de uma sociedade em geral.

Para que esse encarceramento fosse feito de maneira legal e justa, o Legislador houve por bem instituir uma série de recursos no que tange ao julgamento processual penal, quais sejam: o Recurso em Sentido Estrito, a Apelação, além dos Recursos Especiais e Extraordinários nas Instâncias Superiores e outros.

Dentre os principais podemos destacar a Apelação e os Recursos as Instâncias Superiores, ora, como já deixei bem claro, submeter uma pessoa ao encarceramento não é uma brincadeira, como aquelas que fazíamos nas saudosas Festas Juninas. Levar alguém a cadeia é causar-lhe intenso sofrimento, medo e retrocesso em sua vida pessoal, além, é claro, do estigma social ao qual será submetido.

Com isso, até 17 de fevereiro de 2016, uma pessoa só poderia ser considerada culpada e submetida ao cumprimento de pena privativa de liberdade após o trânsito em julgado definitivo da sentença penal condenatória tudo conforme a Constituição Federal, as Legislações infraconstitucionais e, porque não, o bom senso.

Pois bem, intimamente ligado a isso, constatou-se que o País vinha passando por um aumento significativo dos índices de criminalidade, gerando, naturalmente, uma total insegurança social e um assustador desprezo por aqueles que são acusados de serem criminosos (isso mesmo, muitas vezes apenas arvorados em uma única acusação).

Atrelado a isso, temos a influência midiática causada por Datenas, que criaram junto a sociedade o sentimento de que aquele que combate o crime vigorosamente (mesmo que de forma arbitrária e injusta) é merecedor de todos as felicitações e holofotes, já aquele que crê em um sistema penal justo e defende o chamado direito dos manos deve ser hostilizado, submetido a algo parecido com o que merecem os verdadeiros criminosos.

É com vergonha, que acredito no dia em que boa parcela da Sociedade irá juntar-se e anunciar: Avisem ao IML, chegou o grande dia!; resolvendo, de maneira homicida, todos os problemas causados por uma Administração deficiente.

Afinal, aos olhos daqueles, é cristalino que o cidadão em algum momento da sua vida se perguntou: Devo estudar, trabalhar, construir meu patrimônio e seguir uma vida honesta ou me tornar ladrão? Tendo optado pela segunda.

Nessa esteira, sob pressão da opinião pública e holofotes, o Supremo Tribunal Federal nos golpeou com a denegação da Ordem de Habeas Corpus nº 126.292/SP ao, por maioria dos votos, permitir que o Paciente fosse levado ao cárcere sem a ocorrência do trânsito em julgado definitivo da sentença penal condenatória (lembra-se da Constituição Federal? Pois é...).

Em outras palavras, a partir de 17.02.16, um processo criminal que já tenha sido submetido ao crivo da 2ª Instância já poderá ter sua própria execução de pena provisória, ocasionando a imediata prisão do réu.

Nada mais absurdo! Ora, a ineficiência do Estado em julgar o particular não pode sob nenhuma hipótese tolher-lhe o direito constitucional à presunção de inocência.

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Não há maneira melhor para exemplificar a importância desta presunção, senão o fato de aproximadamente 25% dos recursos interpostos aos tribunais superiores desaguarem na anulação das decisões proferidas pelo Juízo a quo.

Ou seja, a cada 100 pessoas, 25 seriam levadas a prisão por uma decisão nula.

O que faremos? Pediremos desculpas aos inocentes?

Devolveremos de forma mágica o período de vida que lhe foi retirado?

Compensaremos esse sofrimento em espécie?

Sinceramente, nenhuma das hipóteses me apetece.

Desta feita, enquanto vivemos esse momento de pura incerteza, devemos voltar os olhos à Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 43[1], proposta perante o Excelso Supremo Tribunal Federal, na qual o Partido Ecológico Nacional PEN (requerente); o IDDD, o IBCCRIM, a DPE-RJ, a DPU, o IADP, IASP, AASP e a ABACRIM (os últimos na qualidade de amicus curiae[2]) requerem seja assentada à harmonia do artigo 283 do Código de Processo Penal[3].

Em exordial, fundamentam que o mencionado artigo dispõe razoável interpretação do princípio constitucional da não culpabilidade, consubstanciada no fato de haver a Suprema Corte reconhecido a plausibilidade da tese positivada pelo preceito, quando seu Pleno analisou a Ordem de habeas corpus nº 84.078, de relatoria do festejado e saudoso Ministro Eros Grau, verbis:

EMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.

1. O art. 637 do CPP estabelece que [o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.

3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.

4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.

5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos crimes hediondos exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente.

6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que ninguém mais será preso. Eis o que poderia ser apontado como incitação à jurisprudência defensiva, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço.

7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas.

8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.

Ordem concedida. (HC 84.078, Pleno, rel. Min. Eros Grau, 05.02.2009 grifo nosso).

Desta forma, a fim de garantir o status libertatis, pretendem o PEN e seus Amicus Curiae afirmar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, bem como demonstrar sua precedência sobre o disposto no art. 637[4] do mesmo Codex.

Explicamos, enquanto o previsto pelo art. 637 do CPP autoriza aos Juízos a execução provisória da pena durante o curso de Recurso Extraordinário (e, consequentemente, a prisão do acusado), temos a vigência de norma específica (art. 283) que veda expressamente tal possibilidade.

Portanto, em boa hora, vem esta articulação em defesa dos mais comezinhos direitos e garantias no processo penal.

Nessa esteira, cabe esclarecer que, nada obstante, seria inadequada a propositura de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade ADI, porquanto o teor do texto preconizado pelo art. 637 (o qual não garante efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário), apesar de possibilitar a execução da pena, não deve se sobrepor ao art. 283 do CPP[5], ante a novel dada ao último pela Lei nº 12.403/2011.

Portanto, não bastasse o critério cronológico de resolução de antinomias[6], faz-se mister que seja valorado o princípio da especificidade, vez que, conforme se extrai do próprio texto legal, o artigo 283 cuida especificamente do tema prisão, sendo que, por outro lado, o tema abordado pelo art. 637 trata pressupostos processuais em sua forma geral.

Evidente, portanto, a anteposição do artigo 283 do CPP em detrimento do outro.

Sem prejuízo de tantas outras vertentes do Direito, que podem e devem ser balizadas para a análise constitucional do mencionado dispositivo legal, resta cristalina a necessidade do Excelso Tribunal em analisar, com o alto critério que sempre lhe acompanhou, a constitucionalidade da norma positivada pelo Código Processual.

Ressalte-se, ainda, que de forma extremamente infeliz e na contramão dos ditames constitucionais que norteiam o Supremo Tribunal, por maioria de votos, o pedido liminar[7] formulado na exordial fora indeferido. Restaram vencidos os Exmos. Mins. Marco Aurélio (relator), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e, em parte, Dias Toffoli, aos quais deixamos nossa reverência por terem de forma destemida enfrentado tão conturbada questão.

Ainda há Juízes em Berlim.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELMANTO, Pedro Lopes. Avisem ao IML, chegou o grande dia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6960, 22 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99257. Acesso em: 26 dez. 2024.

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