Resumo: O presente ensaio objetiva refletir sobre a aplicação do conceito de antropologia de gabinete para o campo jurídico, a fim de demonstrar o predomínio de determinada interpretação dos fatos jurídicos, que vicia o campo do conhecimento e reduz sua credibilidade científica, pois, ao padecer de parâmetros metodológicos, serve como instrumento ao sistema de poder dominante. O Direito, nesse sentido, não teria experimentado os desenvolvimentos científico-metodológicos da área antropológica, o que o torna muito suscetível aos interesses do poder. Para demonstrar essa relação, analisamos a obra de Bourdieu, como sustentação teórica ao sistema e aos símbolos do poder jurídico, e também a reflexão de Orlando Gomes, que tece crítica específica aos intérpretes do direito, cujas interpretações convergem com os interesses do poder dominante, restringindo o espaço para interpretações jurídicas arrojadas e consentâneas com a realidade social.
Palavras-chave: antropologia de gabinete; poder simbólico; metodologia jurídica.
1. Introdução
A antropologia de gabinete consistiu em prática constante dos antropólogos do século XIX. Naquele período, a pesquisa antropológica sobre povos nativos era desenvolvida sem que o antropólogo deixasse seu gabinete. O acesso a documentos com relatos de terceiros que estiveram em contato com a cultura nativa era, na verdade, o objeto de estudo dos antropólogos. Esses terceiros tinham pouco ou nenhum compromisso científico-metodológico, de modo que a reprodução de suas observações pelos pesquisadores minguava a credibilidade da área do conhecimento, que servia de instrumento para legitimação e predominância do colonialismo e do etnocentrismo.
Com o desenvolvimento da antropologia enquanto campo do saber, o termo antropologia de gabinete passou a ser referenciado em seu sentido negativo, denotando que o pesquisador optava por fonte secundária, viciada, em vez de empreender esforços para desenvolver suas pesquisas em contato direto com a cultura e comunidade a ser estudada.
O novo paradigma da antropologia enunciava que estavam ultrapassadas as pesquisas etnográficas baseadas essencialmente em documentos elaborados por um terceiro, para, então, privilegiar pesquisas realizadas in loco. O principal expoente do campo, que estabeleceu métodos e definições mais claras para desenvolvê-lo, foi Malinowski. Gradualmente, o campo do conhecimento ganhou maior envergadura, no sentido de atenuar a predominância do etnocentrismo, ao reconhecer suas falhas e incongruências metodológicas.
A mudança de paradigma pela qual passou a antropologia não necessariamente afetou outras áreas do conhecimento que também tivessem estreita relação com o poder dominante. Nesse sentido, tem-se que o campo do conhecimento jurídico ainda é marcado pelo predomínio de uma análise de gabinete, marcado por obras doutrinárias que pouco contribuem para aclarar e/ou oferecer nortes e interpretação ao julgador e ao operador do direito. Na verdade, as obras jurídicas são pouco lastreadas em análises empíricas e desconsideram a complexidade das relações sociais contemporâneas. Assim, as obras doutrinárias são marcadas pela dinâmica do poder, que resulta em maior prestígio aos autores de tais obras, que integram a elite jurídica[1].
Pretendemos tratar, neste artigo, sobre a aplicação do conceito de antropologia de gabinete para o campo jurídico, a fim de identificar se há o predomínio de determinada visão e/ou interpretação do mundo, viciando o campo do conhecimento, e, assim, sugerir mecanismos para seu fortalecimento, por meio do reconhecimento de suas falhas metodológicas.
Há que se considerar as críticas sobre o campo do conhecimento jurídico, especialmente a de que há um abismo entre normas, interpretação doutrinária e a realidade social (BOURDIEU, 2011; GOMES, 1955). Ao atar-se para a inovação e para interpretações mais arrojadas e contemporâneas, o direito reproduz lógica do poder dominante, não contribuindo para a emancipação da sociedade, ou, ao menos, para torná-la menos desigual.
Para alcançar o objetivo disposto neste artigo, será examinado o conceito de antropologia de gabinete, e o papel do direito enquanto estrutura de poder e suas formas de dominação por meio da doutrina e materiais destinados a orientar a interpretação normativa. Com isso, será possível identificar, com base na literatura analisada, quais os impasses para o desenvolvimento da epistemologia jurídica, bem como as ferramentas que podem ser introduzidas para promover maior credibilidade e aceitação social à produção do conhecimento jurídico.
2. Antropologia de gabinete: delimitando seu conceito
Especialmente durante o século XIX, as pesquisas antropológicas eram realizadas com base em relatos de terceiros que participavam de expedições colonizadoras. A chegada a um outro território, com população e costumes bastantes diversos, suscitava a elaboração de detalhados relatórios, a fim de demonstrar como viviam os nativos e estudar a melhor forma de colonizá-los.
Embora não tenham sido feitos por antropólogos de formação, os relatórios consistiam no objeto de pesquisa dos pesquisadores da área, que sustentavam seus posicionamentos a partir da visão de um terceiro.
Essa forma de enxergar as culturas diversas colocaria em questão o grau de cientificidade da antropologia. Malinoswki criticou a forma de produção de conhecimento, e elaborou obras nas quais sugeriu parâmetros metodológicos para a realização de análises com maior credibilidade. O objetivo consistia em fazer um contraponto à denominada antropologia de gabinete, termo cunhado para designar a pesquisa antropológica baseada em relatos de terceiros, que descreviam sobre comunidades longínquas, ignorando a complexidade inerente a elas e a pesquisa in loco.
Na verdade, o questionamento sobre ponto crucial da antropologia revelava seu caráter colonizador, eurocentrista, que culminava em análises normativas sobre a comunidade nativa. A antropologia era a faceta de um conjunto mais amplo, de dominação territorial e cultural, que estava na agenda das grandes potências da época[2]. Ou seja, sua interface estava inserida no poder e na política. Consistia, sob esta ótica, de maneira para revestir de cientificidade os atos de colonização, demonstrando que a cultura europeia era superior às culturas nativas. Os termos utilizados para designar essas culturas como, por exemplo, sociedades pré-modernas denotavam que havia prejulgamento sobre suas relações sociais e forma de vida em comunidade.
Assim, para Malinowski, a antropologia deveria dar um passo adiante, e estabelecer suas bases metodológicas a fim de se firmar como campo do conhecimento, cujas pesquisas alcançariam maior grau de cientificidade. Seus escritos têm tom propositivo, no sentido de abandonar certa concepção, para seguir outro modelo, mais arrojado e condizente com parâmetros de maior credibilidade. Construía-se teoria fundada no contato real com os nativos, em vez de os antropólogos ficarem trancados em seus confortáveis gabinetes.
Ao redigir seus resultados, o antropólogo moderno é naturalmente tentado a acrescentar suas experiências mais amplas, um tanto difusas e intangíveis, a suas descrições de fatos definidos; a apresentar detalhes de costume, crença e organização contra o pano de fundo de uma teoria geral da cultura primitiva. Este livrinho é o resultado da entrega de alguém que faz o trabalho de campo sob essa tentação. Para atenuar esse deslize -- se algum houver --, eu gostaria de frisar a grande necessidade de mais teoria na jurisprudência antropológica, especialmente da teoria nascida do contrato real com os selvagens. Eu também faria notar que neste trabalho as reflexões e as generalizações sobressaem claramente nos parágrafos descritivos. Por último, gostaria de afirmar que minha teoria não é feita de conjecturas ou reconstruções hipotéticas, mas é simplesmente uma tentativa de formular o problema, introduzindo na questão conceitos precisos e definições claras. (MALINOWSKI, 2003, p. 7).
Evidente que sob esta nova forma de construir o conhecimento baseando-se em contatos reais com os nativos, cujos relatos dos antropólogos deveriam ser menos normativos e mais descritivos, pode-se assim simplificar , não há como afirmar que o eurocentrismo deixaria de estar presente nas análises antropológicas. Ao vigiar-se, o antropólogo reconheceria seus pontos cegos que até então não tinham sido considerados e elaboraria estudo mais consistente e robusto sob o ponto de vista científico-metodológico.
Portanto, a antropologia de gabinete resultou num processo de amadurecimento do campo de conhecimento, que deixou de servir de sustentação pseudocientífica a políticas colonialistas para adquirir maior cientificidade e credibilidade. O desenvolvimento de estudos e métodos específicos alçaram a antropologia a lugar de destaque na área social, o que somente foi possível após análise crítica sobre seu papel naquele momento.
3. Direito enquanto estrutura de poder e suas formas de dominação
O Direito tem sido objeto de análises sociológicas, que demonstram sua íntima relação com as esferas de poder. Assim como a antropologia, a política é um elemento que também circunda o Direito e influencia a criação das normas e a forma de interpretação e implementação de seus preceitos.
Para este breve artigo, nos ateremos à análise empreendida por Bourdieu, que insere o campo jurídico em seus estudos sobre o poder simbólico. A partir deste conceito, o poder estaria em toda a parte, motivo pelo qual os símbolos aqui compreendidos como elementos de construção e conhecimento, como a arte, a religião e a língua (BOURDIEU, 2011, p. 10) exercem relevante papel de legitimação das estruturas de poder.
O Direito, sob esta concepção, também se afigura como uma espécie de sistema simbólico, impondo seus próprios meios de organização, criando atos sob a forma de denominações técnico-jurídicas, que são cumpridos sem necessariamente utilizar a força física. Para Bourdieu (2011), o poder simbólico é quase mágico, porque permite obter aquilo que, de outra forma, seria ignorado e taxado como arbitrário. Assim, as formas jurídicas e a linguagem técnica desenvolvida seriam os símbolos do poder do Direito, que prevalecem mesmo que o destinatário discorde de seus objetivos, uma vez que equivale à imposição de um desígnio do poder.
Nesse sentido, o Direito apresenta-se como um campo do conhecimento autônomo, supostamente descolado do poder político dominante. Essa aparência o blinda de pressões sociais, de modo que suas decisões devem ser aplicadas de forma cogente. A linguagem jurídica contribui para o adensamento da pretensa autonomia, posto que confere neutralidade e universalização dos preceitos jurídicos a todos os jurisdicionados. As decisões emanadas pelo meio jurídico aqui compreendidas a decisão judicial e até mesmo a orientação de um procurador revelam o poder normativo e a incapacidade de colocar-se contra seus fundamentos, uma vez que são supostamente aplicados a todos de forma indistinta.
Destacamos, por isso, o papel dos intérpretes do Direito. É sabido que a norma não alcança todas as situações capazes de gerar conflitos, que exigem, muitas vezes, a tutela jurisdicional. Nesse sentido, a norma guarda em si um potencial interpretativo, que caberá a vários atores do meio jurídico, dos procuradores, juízes, àqueles encarregados de interpretar o jurídico que costumam ser denominados doutrinadores. A tarefa de definir o objetivo normativo e seu alcance interpretativo consiste, também, numa interface do poder simbólico, posto que consiste num poder que coloca limites e estabelece parâmetros, sob a pecha da tecnicidade jurídica, à interpretação normativa.
A própria forma do corpus jurídico, sobretudo, o seu grau de formalização e de normalização, depende sem dúvida muito estreitamente da força relativa dos teóricos e dos práticos, dos professores e dos juízes, dos exegetas e dos peritos, nas relações de força características de um estado do campo (em dado momento numa tradição determinada) e da capacidade respectiva de imporem a sua visão do direito e da sua interpretação. (BOURDIEU, 2011, p. 218)
Este poder simbólico é complexo, marcado pela dinâmica própria do campo jurídico. Ou seja, ainda que os intérpretes do Direito tenham a prerrogativa de determinar o alcance interpretativo das normas, há divergências entre eles, o que contribui para a criação de distintas correntes de pensamento. Assim, o Direito não se apresenta como um campo cujos intérpretes convergem para uma posição predominante, mas sim pela pluralidade de entendimentos, que contribuem para reforçar sua ligação com a liberdade de expressão, ainda que seja sob a aparência dos símbolos de poder. Sob esta concepção, será privilegiada a corrente de pensamento que tiver maior proximidade com os interesses do poder dominante da sociedade.
As lutas internas, entre os privatistas e os publicistas sobretudo, devem a sua ambiguidade ao facto de ser como guardiães do direito de propriedade e do respeito pela liberdade das convenções que os primeiros se tornam os defensores da sua autonomia do direito e dos juristas contra todas as intrusões do político e dos grupos de pressão econômicos e sociais e, em particular, contra o desenvolvimento do direito administrativo, contra as reformas penais e contra todas as inovações em matéria social, comercial ou na legislação do trabalho. Essas lutas, nas quais estão frequentemente em jogo coisas bem definidas nos próprios limites do campo jurídico e universitário -, como a definição dos programas, a abertura de títulos nas revistas especializadas ou a criação de cadeiras e, deste modo, o poder sobre o corpo de especialistas e sobre a sua reprodução, respeitantes a todos os aspectos da prática jurídica, são ao mesmo tempo sobredeterminadas e ambíguas na medida em que os defensores da autonomia e da lei como entidade abstrata e transcendente são, de facto, os defensores de uma ortodoxia: o culto ao texto, o primado da doutrina e da exegese, quer dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado, caminham a par da recusa em reconhecer à jurisprudência o menor valor criador, portanto, a par de uma denegação prática da realidade econômica e social e de uma recusa de toda a apreensão científica desta realidade. (BOURDIEU, 2011, p. 252)
Além disso, apenas uma parcela dos juristas torna-se, de fato, intérpretes reconhecidos, cujas obras adquirem prestígio nacional, revelando a estrutura de poder que os cerca. Para tanto, os relacionamentos sociais e políticos desenvolvidos ao longo da carreira são fatores decisivos para o sucesso. A qualidade técnica dos escritos, no sentido de apresentar, com fundamentos consistentes, o alcance da norma e possíveis conflitos normativos, não é necessariamente um fator determinante para o sucesso da obra do jurista-intérprete.
A respeito das obras jurídicas consagradas no Brasil, tem-se o predomínio de textos que reproduzem o conteúdo da norma e omitem informações relevantes sobre sua origem, debates legislativos e conflitos sociais relacionados à sua aplicação. A ausência de elementos empíricos também é uma constante, motivo pelo qual as doutrinas possuem conteúdo opinativo, calcado exclusivamente no prestígio adquirido pelo jurista ao longo de sua carreira[3].
Nesse sentido, questionamos: considerando a evolução do campo de conhecimento da antropologia, a partir da identificação das falhas da antropologia de gabinete e da proposição de parâmetros metodológicos, qual o papel que a doutrina jurídica deve ter, no sentido de contribuir para uma evolução metodológica do campo jurídico?
Para responder a esta questão, iremos recorrer ao artigo de Orlando Gomes (1955), famoso doutrinador civilista, que, em tom crítico, relaciona os escritos doutrinários à estrutura de poder dominante, sugerindo seu aperfeiçoamento de acordo com a realidade social, o que influenciará sobremaneira na interpretação normativa e mesmo na emancipação social de classes menos favorecidas. Esta sugestão estaria de acordo com o desenvolvimento de sociedade mais igualitária, com reduzidas disparidades regionais e sociais.
A crítica de Gomes também diz respeito à baixa qualidade da interpretação normativa e das figuras jurídicas. Nesse sentido, notamos[4] que há enorme reverência a juristas, mesmo àqueles que já faleceram, cujas obras são constantemente editadas por profissionais dedicados a atualizá-las, sem, contudo, alterar conceitos originários.
Importa determinar, porém, o modo pelo qual deve proceder. Segundo Gaston Morin, cumpre-lhe, primeiramente, depreender, com precisão, as soluções positivas da lei e da jurisprudência e, depois, confrontar essas soluções com as exigências econômicas do momento, as necessidades sociais e as reclamações da consciência coletiva.
Êsse é o papel da doutrina. Nesta fase da história, reconhecendo que os conceitos extraídos do Direito positivo do século XIX não coincidem com a realidade social dos dias hodiernos, não atendem às atuais exigências econômicas, não respondem às novas necessidades sociais e não satisfazem aos reclamos da consciência coletiva, a missão do juristas é substituí-los corajosamente. Adaptar o novo ao velho, tomando as suas idéias e os seus preconceitos como a medida das cousas, é processo de frustração. (GOMES, 1955, p. 132)
Nesse sentido, a doutrina se desenvolve e aqui enfatizamos propriamente o campo jurídico doutrinário nacional sem ater-se a aspectos mais detidos sobre as experiências profissionais dos juristas renomados. Ou seja, pouco importa o cargo que o doutrinador exerceu em determinado órgão de governo e as ações empreendidas, mesmo que, em sua obra, disponha exatamente o contrário.
Os esforços que têm sido empregados, tanto para a sistematização como para a construção, não revelam rendimento apreciável. Possivelmente o atraso da técnica do Direito, a pobreza do novo conceitualismo jurídico, se deve em grande parte às hesitações e tergiversações que fervem no caldeirão da política jurídica. Mas os juristas, dedicando-se à construção sistemática, podem favorecer e estimular a construção criadora, porquanto a expansão das fôrças sociais jurígenas, longo tempo reprimidas e comprimidas, tem determinado a formação desordenada de regras, de cunho aparentemente circunstancial ou isolado, nas quais se concentram, todavia, tendências gerais.
A reconstrução sistemática do Direito se apresenta, dêsse modo, como o mais instante cometimento que clama e reclama pela dedicação dos juristas que não traem, dos teóricos que não empregam a inteligência e o saber para deformar a realidade social no propósito de arrefecer o calor de suas sugestões. (idem, p. 134)
Por essa razão, a doutrina jurídica, enquanto instrumento para auxiliar a interpretação normativa, possui estreita ligação com o poder dominante, de modo que cria obstáculos para teorias inovadoras e mais consentâneas com as exigências da sociedade contemporânea. Ao passo que a antropologia conseguiu construir bases teóricas e metodológicas mais sustentáveis, ao abandonar a chamada antropologia de gabinete, podemos afirmar que o Direito não experimentou avanços de cientificidade.
Ao reconhecer-se como estrutura de poder, cujos símbolos forjam sua legitimidade e conferem credibilidade ao poder dominante que representa, há a necessidade de o campo jurídico se autoavaliar e formular críticas sobre a forma que é realizada a produção e reprodução do conhecimento jurídico. O Direito, por sua natureza, está profundamente ligado à política; de modo que a mudança de postura apenas o tornaria mais democrático, posto que a criação de métodos e ferramentas próprias de análise seriam capazes de problematizar as figuras jurídicas predominantes, ampliando sua atuação para além da proteção do poder dominante.
Avaliamos que uma das formas de se proceder à esta mudança de postura consiste no estímulo à produção de pesquisas jurídicas, destinadas a avaliar o grau de implementação normativa e mesmo realizar análises sobre o potencial de uma norma que ainda não foi sancionada. O exame de documentos jurídicos, como acórdãos, conjunto de normas e decisões judiciais e administrativas, pode expandir esses estudos, capazes de trazer subsídios mais consistentes a respeito da relação entre Direito e sociedade ao intérprete da norma.
4. Considerações finais
Este artigo teve como objetivo a análise da antropologia de gabinete ao meio jurídico. A expressão marcou um determinado período da antropologia, cujos estudos eram formulados a partir de relatórios produzidos por membros de expedições civilizatórias, sem a presença do pesquisador no local. Esta forma de fazer pesquisa colocou em xeque o grau de cientificidade da área do conhecimento, posto que os estudos antropológicos se destinavam a fundamentar ações eurocentristas.
A antropologia superou tal fase a partir de profunda autocrítica, ocasião em que desenvolveu seus próprios parâmetros metodológicos, e se firmou enquanto área do conhecimento. Os estudos antropológicos, por sua vez, teriam menor probabilidade de servir de sustentação política à estrutura de poder predominante.
Questionamos neste artigo se o Direito, enquanto área do conhecimento, também se encontra, guardadas as devidas proporções, em espécie de antropologia ou direito de gabinete. Isso porque as obras jurídicas, destinadas a auxiliar a interpretação normativa, não se atêm à complexidade das relações sociais. O Direito produzido pelos intérpretes do direito os doutrinadores também é, de certa forma, produzido em gabinetes, a partir de informações exteriores e/ou do senso comum, de modo que o contato com a realidade e seus inerentes desafios não se apresenta como um critério para elaboração dos escritos jurídicos.
A partir da análise da obra de Bourdieu, foi possível inserir o Direito na estrutura de poder, cujas figuras jurídicas e as interpretações atribuídas às normas sustentam e conferem legitimidade ao poder dominante. A estrutura jurídica brasileira, especificamente o nicho dos intérpretes do direito, é restrita, cujos membros adquirem certo status social ao longo de suas carreiras, ascendendo como personalidades de uma elite (ALMEIDA, 2010).
O distanciamento entre realidade social e interpretação normativa gera disparidades em nossa sociedade. Essa disparidade tem razão de ser no aspecto conservador do Direito, cujos meios para interpretação jurídica oferecem restrito ou nulo espaço para firmar entendimentos que levem em consideração fenômenos empíricos e a inovação de figuras jurídicas.
Para superar tal obstáculo epistemológico e ampliar seu grau de cientificidade, entendemos que o Direito, assim como a antropologia, precisa desenvolver seus próprios parâmetros metodológicos e estar em contato com o objeto de estudo, bem como compreender suas complexidades. É preciso reflexão crítica para abandonar a forma de construção do conhecimento calcada em escritos de conteúdo majoritariamente opinativo, sustentado pelo prestígio do autor , para elaborar conteúdos capazes de identificar problemas e apresentar soluções, tendo como parâmetro o próprio direito a ser tutelado, e não o prestígio alcançado por seu autor.
Nesse sentido, sugerimos que a superação deste paradigma passa pelo estímulo à pesquisa jurídica de qualidade, que abandone figuras jurídicas que não mais encontram correspondência na realidade, e que se utilize de dados empíricos para robustecer a análise e vislumbrar soluções adequadas aos desafios da contemporaneidade. Ou seja, os estudos doutrinários pouco servem para apresentar soluções, mas sim para corroborar determinado posicionamento, restringindo o grau de cientificidade e de credibilidade do Direito enquanto campo do conhecimento.
Além disso, também sugerimos que a superação deste paradigma deve considerar a formação jurídica, que se baseia essencialmente em obras doutrinárias de autores renomados, contribuindo para a manutenção do poder. Por essa razão, é necessária a mobilização dos atores do campo jurídico, para que, em conjunto, desenvolvam metodologias específicas e técnicas para fortalecimento do campo do conhecimento, essenciais para superar a antropologia de gabinete do Direito.
5. Referências
ALMEIDA, Frederico. A nobreza togada As elites jurídicas e a política da justiça no Brasil. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.
BENTO, Juliane SantAna, et al. Doutrinadores, políticos e Direito Administrativo no Brasil. In Política e Sociedade, Florianópolis, vol. 16, n. 37, set./dez. 2017.
BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: _____. O Poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 209-254.
GOMES, Orlando. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica (1955). In Revista Direito Gv, v. 1, n. 1, 2005, p. 121-134.
MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Trad. Maria Clara Corrêa Dias. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003.
TERRAY, Emmanuel. Proposta sobre a violência simbólica. In ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (Coords.). Trabalhar com Bordieu. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 303-308.
[1] Sobre elites jurídicas, cf. Almeida, 2010.
[2] Nesse sentido, cf. as obras de Theodor de Bry, alemão, que apesar de nunca ter pisado na América, baseou nos relatórios de colonizadores para desenvolver suas pinturas.
[3] Ver Bento et al (2017) sobre a relação entre doutrinadores, políticos e a construção do Direito Administrativo nacional.
[4] Nesse sentido, cf. a atualização de obras clássicas de autores já falecidos, como Aliomar Baleeiro (Direito Tributário), Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo) e o próprio Orlando Gomes (Direito Civil).