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Ações afirmativas no sistema da Organização das Nações Unidas.

Obrigação ou faculdade?

31/05/2007 às 00:00
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No plano do direito internacional, a questão da discriminação e mais especificamente das ações afirmativas é tratada, dentre outras comunidades internacionais, pelo sistema da Organização das Nações Unidas [1]. Perante esse organismo internacional, o tema é abordado no âmbito dos órgãos de vigilância de cumprimento dos tratados internacionais, bem como pela Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. [2]

O artigo 1.º, item 4, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada em nosso país pelo Decreto n.º65.810, de 08 de dezembro de 1969, estabelece que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. [3]

Decorre do teor dessa convenção que todos os Estados Parte que a assinaram reconhecem que o combate à discriminação racial não se eliminará pela sua simples proibição, em regra pelo uso de leis penais. Para que esse objetivo seja alcançado, é imprescindível a institucionalização das ações afirmativas, mediante as quais será possível produzir alterações no sistema legal, nas políticas públicas e nas práticas sociais dos países que se deparam com a problemática da discriminação.

Com efeito, em vários artigos dessa Convenção Internacional, os Estados comprometem-se a adotar medidas estruturais para erradicar a discriminação racial. O seu artigo 2.º, item 1, prevê uma multiplicidade de obrigações para promover a igualdade de todas as pessoas e a eliminação da discriminação racial, enquanto o item 2 desse mesmo artigo impõe o dever dos Estados Partes de tomarem as medidas necessárias, nos campos social, econômico e cultural, dentre outros, para promover o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. [4] Outros artigos que contêm obrigações positivas são os artigos 3.º [5] e 7.º. [6]

Embora em sua Recomendação Geral sobre o artigo 1.º, 4 [7], o Comitê para a eliminação da Discriminação Racial não tenha interpretado o alcance das medidas permitidas e nem tenha deixado claro em que medida os Estados Partes teriam uma obrigação de adotar medidas de ação afirmativa para erradicar a discriminação racial de fato, em suas orientações posteriores foram afastadas todas as dúvidas de que a Convenção impõe aos Estados signatários o dever de adotar medidas positivas.

Em muitas de suas observações finais, o Comitê tem orientado os Estados a adotarem medidas de ação afirmativa, em particular para promover a tolerância e prevenir prejuízos e estereótipos negativos. Nas observações feitas aos Estados Unidos, em 18 de agosto de 2001, por exemplo, o Comitê recomendou expressamente esse país a adotar todas as medidas apropriadas, inclusive ações afirmativas, para garantir a todos o gozo dos direitos enunciados no artigo 5.º, da Convenção, deixando claro o seguinte:

Em relação à ação afirmativa, o Comitê toma nota com preocupação da posição adotada pelo Estado Parte de que as disposições da Convenção permitem, porém não exige que os Estados Partes adotem medidas de ação afirmativa para garantir o desenvolvimento e a proteção adequados de certos grupos raciais, étnicos ou nacionais. O Comitê reafirma que a adoção de medidas especiais pelos Estados Partes quando as circunstâncias assim o aconselhem, como o caso de disparidades persistentes, é uma obrigação originária do parágrafo 2 do artigo II da Convenção. [8]

A partir desse momento, não restaram mais dúvidas de que o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial interpreta a Convenção no sentido de que a mesma não só recomenda aos Estados Partes a adoção de medidas afirmativas, mas, ao contrário, impõe-lhes a obrigação de as instituírem, caso sejam necessárias para combater a discriminação de fato existente contra os membros de certos grupos em desvantagens.

A natureza impositiva da adoção de ações afirmativas, e não simplesmente indicativa, também é evidenciada pelo órgão de fiscalização do cumprimento, pelos países signatários, das disposições do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Em sua Observação Geral de n.º18, por exemplo, esse Comitê assinala que o princípio da igualdade algumas vezes exige, e não simplesmente autoriza, a adoção de ações afirmativas para coibir situações que originam ou que facilitam perpetuação de discriminações atentatórias aos direitos civis e políticos do homem. Há de observar-se que o próprio Comitê de Direitos Humanos afirma, no plano internacional e para os fins desse pacto, a legitimidade das medidas que estabelecem tratamento diferenciado a uma parcela da população de um país que necessite de proteção especial:

El comitê desea también se señalar que el principio de la igualdade exige algunas veces a los Estados Partes adoptar disposiciones positivas para reducir o eliminar las condiciones que originan o facilitan que se perpetue la discriminación prohibida por el Pacto. Por ejemplo, en un Estado en el que la situación general de un cierto sector de su población impide u obstaculiza el disfrute de los derechos humanos por parte de esa poblacion, el Estado debería adoptar dispociones especiales para poner remédio a esa situación. Las medidas de ese caráter pueden llegar hasta otorgar, durante un tiempo, al sector de la población de que se trate un cierto trato preferencial en cuestiones concretas en comparación con el resto de la población. Sin embargo, en cuanto son necesarias para corregir la discriminación de hecho, esas medidas son una diferenciación legítima con arreglo al Pacto. [9]

De maneira semelhante, também em sua Observação Geral de n.º3, agora sobre o alcance do artigo 2.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [10], esse mesmo Comitê considerou ser obrigação dos Estados signatários não somente respeitar, mas também garantir o gozo dos direitos pelos seus cidadãos, devendo, se necessário for, implementar medidas afirmativas para atingir esse fim. Em diversas outras oportunidades, o Comitê tem destacado o dever de implementação de ações positivas. Exemplo disso foi a observação feita à Letônia para que promovesse ações afirmativas a fim de integrar os estrangeiros à vida pública daquele país [11], bem como a orientação exarada no caso Stalla Costa contra o Uruguai, de que a preferência de pessoas demitidas durante a ditadura para o preenchimento dos cargos públicos constituía uma maneira de reparar os danos sofridos por essas pessoas e, portanto, não caracterizava a discriminação ilegítima tratada no artigo 26 do Pacto [12]. Assim, o que se tem é que também para o Comitê de Direitos Humanos os Estados signatários do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos têm a obrigação, e não mera faculdade, de adotar medidas positivas.

Por outro lado, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher [13], à semelhança da Convenção Contra a Discriminação Racial, traz, em seu artigo 4.º, uma previsão expressa de medidas afirmativas, com a finalidade de acelerar, nos Estados Partes, a igualdade de fato entre homens e mulheres, as quais deverão ser temporárias e não poderão implicar a manutenção de normas separadas para elas:

A adoção, pelos Estados Parte de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de tratamento e de oportunidades forem alcançados.

Essa previsão, entretanto, diversamente do que ocorreu com a interpretação dada pelo Comitê responsável pelo cumprimento da Convenção Contra a Discriminação Racial, tem natureza apenas permissiva, e não vinculatória, não impondo aos Estados signatários a obrigação de adotá-las, embora o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher tenha, por diversas vezes, alertado aos países para que façam uso das medidas de ação afirmativa. [14]

Em 1998, no marco dos trinta anos da luta contra o Racismo e a Discriminação Racial, bem como em virtude da convocação da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e outras Formas Conexas de Intolerância, a Subcomissão de Direitos Humanos da ONU incumbiu ao seu Delegado Especial Marc Bossuyt a tarefa de preparar um estudo sobre o conceito e a prática de ações afirmativas. Em seu informe preliminar, apresentado à Subcomissão no ano de 2000, Marc Bossuyt relatou os diferentes conceitos e limites de ações afirmativas encontrados em vários instrumentos internacionais e pouco tempo depois, na segunda vez que apresentou suas informações, aquele delegado especial apresentou o seguinte conceito de ação afirmativa: "a ação afirmativa é um conjunto coerente de medidas de caráter temporário dirigidas a corrigir a situação de membros do grupo a que estão destinadas em um ou vários aspectos de sua vida social para alcançar a igualdade efetiva". [15]

O informe noticia também que diversas são as fundamentações utilizadas para a adoção das ações afirmativas. As principais são as reparações de injustiças históricas, a reparação de discriminação social e estrutural, a criação da diversidade ou uma representação proporcional dos grupos, a de evitarem distúrbios sociais, proporcionar uma maior eficácia do sistema socioeconômico e constituir um meio de construir uma nação. Quanto à forma que pode revestir as ações afirmativas, foram destacadas a mobilização afirmativa, a equidade afirmativa ou a preferência afirmativa. É Importante destacar que o aludido Relator Especial, em seu estudo apresentado à Subcomissão, posicionou-se contrário à obrigatoriedade da implantação de ações afirmativas, por considerá-la exagerada, e considerou inadequada a adoção de cotas, reservas e objetivos, porque representariam uma violação à proibição de discriminação. [16] Em sua conclusão final, apresentada em 2002, Marc Bossuyt afirmou que, de maneira geral, "en matéria de derechos humanos, una preferencia o diferencia de trato solo puede justificarse si se basa en un motivo que es pertinente al derecho en cuestión" [17] e considera que em certos casos, outros critérios, como a representação proporcional de diferentes grupos, podem ser válidos. Segundo ele "no es posible hacer declaraciones generales tajantes sobre la medida en que puede aplicarse tales critérios" [18], reiterando também que as medidas positivas devem possuir o caráter de temporárias e deve perseguir o objetivo de proibição de discriminação.

A conclusão, portanto, é que no âmbito do Sistema das Nações Unidas não há uniformidade de entendimento sobre a obrigatoriedade ou não da implantação, pelos países signatários, das denominadas ações afirmativas. Ao que parece, é por ocasião das discussões e negociações sobre a natureza e alcance da matéria a ser tratada no instrumento internacional é que se definirá se a implantação de ações afirmativas no âmbito dos respectivos será obrigatória ou se será meramente facultativa.


Notas

  1. Além da ONU, a discriminação positiva, como são chamadas as ações afirmativas na Europa, foi inserida, no ano de 1982, no primeiro Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades da Comunidade Econômica Européia (Centro Feminista de Estudos e Asessoria, 1995. Estudos Feministas, 1996).

  2. Destaca-se o relevante papel outorgado às ações afirmativas na Conferência Mundial contra o Racismo e pela Declaração e Programa de Ação de Durban. Os objetivos estabelecidos em Durban compõem um conjunto de medidas cujos olhos estão voltados para a frente, para o longo prazo. Será necessário esperar o avanço do tempo e a alteração gradativa das práticas sociais para se poder verificar como se desenvolverão as ações afirmativas.

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  3. Lindgren Alves assevera que esse dispositivo abriu caminho para a ação afirmativa em defesa de grupos ou indivíduos que se encontrem em situação de vulnerabilidade dentro das sociedades nacionais (ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD, 1997. p.91).

  4. 2. Os Estados Partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, as medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.

  5. Art. 3.º Os Estados Partes especialmente condenam a segregação racial e o apartheid e comprometem-se a proibir e a eliminar nos territórios sob sua jurisdição todas as práticas dessa natureza.

  6. Art. 7.º Os Estados Partes comprometem-se a tomar medidas imediatas e eficazes, principalmente no campo do ensino, educação, da cultura e da informação, para lutas contra preconceitos que levem à discriminação racial e para promover o entendimento, a tolerância e a amizade entre nações e grupos raciais e étnicos, assim como para propagar o objetivo e princípios da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e da presente Convenção.

  7. Recomendação Geral VII, relativa à interpretação e aplicação dos parágrafos 1 e 4 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação.

  8. COMISIÓN INTERNACIONAL DE JURISTAS. International Commission of Jurists. Comission internationale de jurists. Medidas de Accion Afirmativa, 15 Mar. 2004. Disponível em: <https://www.icj.org/wp-content/uploads/2012/05/affirmativeaction-advocacy-2004-spa.pdf>. Acesso em: 09 ago.2005. Tradução livre. No original: "En relación con la acción afirmativa, el Comitê toma nota con preocupación de la posición adoptada por el Estado Parte de que las disposiciones da Convención permiten, pero no exigen que los Estados Partes adopten medidas de acción afirmativa para garantizar el desarrollo y la protección adecuados de ciertos grupos racialies, étnicos o nacionales. El Comitê recalca que la adopción de medidas especiales por los Estados Partes cuando las circunstancias así lo aconsejen, como en el caso de disparidades persistentes, es una obligación dimanante del párrafo 2 del artículo 2 de la Convención."

  9. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit.

  10. Artigo 2.º - 1. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados-partes comprometem-se a tomar as providências necessárias, com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto.

  11. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit., p.6.

  12. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit., p.7. O Artigo 26 está assim redigido: "Artigo 26 - Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".

  13. Promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 4.377, de 13 de setembro de 2002.

  14. Consta do Relatório da Comissão Internacional de Juristas da ONU (op. cit., p.7): "En una de sus primeras recomendaciones, el Comitê recordó que era importante que los Estados intruzan medidas para eliminar a discriminação de fato. El Comitê recomendo que los Estados ´´hagan mayor uso de medidas especiales de caráter temporal como la acción positiva, el trato preferencial o los sistemas especiales de cupos para que la mujer se integre en la educación, la economia, la política y el empleo´´. Posteriormente el Comitê reiteró em sus observaciones a los Estados la necesidad de adoptar medidas para promover la participación de las mujeres en la vida pública y para cambiar las percepciones y actitudes de las sociedades frente a la posición de las mujeres".

  15. Tradução livre. No Relatório da Comissão Internacional de Juristas (op. cit., p.8), o conceito trazido por Marc Bossuyt é o seguinte: "La acción afirmativa es un conjunto coherente de medidas de caráter temporário dirigidas a corrigir la situación de los miembros del grupo a que estan destinadas en un aspecto o varios aspectos de su vida social para alcanzar la igualdad efectiva".

  16. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit., p.9.

  17. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit., p.9.

  18. COMISIÓN INTERNACIONAL..., op. cit., p.9.

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Sobre o autor
Oziel Francisco de Sousa

juiz federal substituto em Joinville (SC), mestre em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Oziel Francisco. Ações afirmativas no sistema da Organização das Nações Unidas.: Obrigação ou faculdade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1429, 31 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9956. Acesso em: 22 nov. 2024.

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