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Responsabilidade civil do Estado por omissão em razão das enchentes na cidade:

o exemplo de Fortaleza no ano de 2004

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Finquemos os lindes das mazelas oriundas da chuva sob o prima jurídico da responsabilidade do Estado. Força maior ou caso fortuito? Omissão estatal indenizável?

Sumário:1-Fortaleza Expugnável: a questão urbana. 2-Responsabilidade do Estado em virtude das Enchentes - a conduta omissiva 3-Necessidade de Formas Alternativas de Percepção da Indenização/Ressarcimento: processo administrativo. 4-Conclusões. 5-Referências.


São as águas de março fechando o verão (...)

(Águas de Março, Tom Jobim)

Dai-nos chuva em abundância, Glorioso São José!

(cantiga do folclore nordestino)


1-Fortaleza Expugnável: uma questão urbana

Fortaleza agonizou debaixo d´água. A fragilidade da quinta maior cidade do País veio novamente à tona, durante e após o temporal de 207,8 milímetros que caiu no último final de semana. No total, 23 trechos de ruas e avenidas ficaram alagadas, escolas não funcionaram por causa da enxurrada, jogos foram cancelados e o estádio Castelão virou abrigo para as famílias sem casa. E o mais grave: oficialmente, quatro pessoas morreram por causa das chuvas e outros três óbitos estão sendo investigados, de acordo com os dados do órgão da Defesa Civil do Estado e município. O resultado da falta de estrutura física da cidade está nos números oficiais. Até ontem, 59.508 pessoas sofreram danos com as chuvas, sendo 2.310 que estão em 22 abrigos improvisados. [01]

A cidade alcançou relevância indizível na organização dos espaços da vida em sociedade. Onde quer que se resida, salvo exceções ínfimas, encontra-se o indivíduo inserido em uma determinada municipalidade. Em termos coloquiais: mora-se na cidade.

Em Fortaleza, capital cearense, fatores se somam, fazendo das chuvas sazonais um problema de proporções sociais dantescas. De efeito, a realidade se observa em inúmeras outras cidades brasileiras. Contudo, urge citar Fortaleza – aqui erigida como o empirismo do "laboratório habitado". O enredo e arremedo se repetem ano a ano... Solução não veio ainda. A população sofre, como se o evento fosse "vontade de Deus". Sabe-se que não.

As chuvas que caem em Fortaleza trazem à tona um dilema que se insere na lógica perversa de exclusão social e de falta de políticas urbanas dignas, que dêem aos cidadãos condições de moradia, de saneamento básico e de ocupação do solo de forma ordenada e justa. Os problemas que ocorrem em Fortaleza são decorrentes da falta de uma política que não tenha apenas a visão econômica, mas que leve em conta a justiça social e a concretização de uma cidade que seja realmente de seus habitantes. A lógica perversa do lucro a todo custo tem obstruído canais, destruído nascentes de rios, provocado assoreamento de lagoas e empurrado pessoas para áreas denominadas de risco, a única alternativa dos que são excluídos e despossuídos. [02]

As chuvas levam à calamidade pública. O ano de 2004, em seu primeiro trimestre, foi a ilustração perfeita do que vem acontecendo na municipalidade, sem as reflexões jurídicas necessárias – no sentido de diagnosticar os problemas, implementar as soluções e assegurar os direitos das partes lesionadas. O Estado-Administração admite sua omissão no cuidado do caso.

O prefeito Juraci Magalhães (PMDB) decretou estado de calamidade pública em Fortaleza. Segundo a chefia de gabinete do prefeito, a enxurrada do último dia 7 e a demora no escoamento das águas, que invadiram ruas e avenidas, danificando residências, comércios e veículos, aceleraram a decisão de Juraci de baixar o decreto.

Assinado pelo prefeito no último dia 12, o documento foi publicado no Diário Oficial do Município de ontem, que só deve circular na próxima terça-feira. O decreto tem duração de 90 dias, a contar da data de sua publicação, mas pode ser prorrogado por igual período.

Esta é a segunda vez, em pouco mais de dois meses, que a prefeitura decreta estado de calamidade pública. A primeira ocorreu em 6 de janeiro por causa do acúmulo de lixo na cidade. [03]

A Constituição de 1988 conferiu aos Municípios enorme desafio em termos de organização política, administrativa, normativa, etc (arts. 29 e 30, CF/88). Grandes são as possibilidades e diretamente proporcionais as responsabilidades oriundas dessa inovadora forma de federalismo. As questões urbanísticas, bem como as responsabilidades advindas da condução de tais processos, são apenas um exemplo. Nesse esteio, temos o art.182, da Magna Carta, a Lei nº 10.257/2001 (vulgo Estatuto da Cidade) e as legislações municipais de Plano Diretor – quando for este o caso.

No Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – para os fins ora propostos, destaquemos o art. 2º, incisos I (a garantia do direito a cidades sustentáveis, direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços urbanos, ao trabalho e ao lazer) e IX (justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização).

De mãos dadas ao direito administrativo, o direito urbanístico caminha a passos firmes, com indubitável índole publicística, conforme realça Eduardo Garcia de Enterría, em suas lições:

As decisões básicas sobre urbanismo ficaram dissociadas do direito de propriedade privada do solo, atribuídas a um centro que já não se legitima como proprietário, senão como titular do poder público e responsável pela ordem coletiva, a Administração. [04].

O direito urbanístico tenta firmar a noção de função social da cidade, como garantia do bem-estar de seus habitantes, com a imposição de uma política de desenvolvimento urbano e a assunção de responsabilidades no processo de condução das referidas políticas. Finquemos os lindes da questão aposta – in casu, as mazelas oriundas da chuva - sob o prima jurídico da responsabilidade do Estado – art. 37, §6º, do Texto Fundamental. Força maior ou caso fortuito? Omissão estatal indenizável? Uma visão embrionária do tema, mais polêmica que conclusiva, por certo.


2-Responsabilidade do Estado em virtude das Enchentes - a conduta omissiva

De matrizes na própria teoria geral do Direito, a responsabilidade civil alçou contornos máximos desenvolvendo-se no âmbito do Direito Civil, espraiando-se por vários campos do conhecimento jurídico, adjetivando-se de especificidades.

No bojo do pensamento intuitivo, a idéia de responsabilidade civil assumiria a abordagem simplificada de que não se pode causar prejuízo a outrem sem que se proceda à devida reparação indenizatória.

(...) o instituto da responsabilidade civil traduz a realização jurídica de um dos aspectos do personalismo ético, segundo o qual ter responsabilidade, ser responsável, é assumir as conseqüências do próprio agir, em contrapartida ao poder de ação consubstanciado na autonomia privada. Não mais a concepção egoística do indivíduo em si, mas o indivíduo como pessoa, comprometido com o social. A responsabilidade civil traduz, portanto, o dever ético-jurídico de cumprir uma prestação de ressarcimento. [05]

Pousando no direito positivo nacional, o Código Civil de 1916, em seu art. 159, asseverava que: "Todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código (arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553)."

No ainda dito "novo" Código Civil a regra foi explorada em vários artigos, exemplifica-se: "art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." E, mais adiante, o art. 927: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

Notório o avançar dos aspectos atinentes à teoria objetiva no âmbito da responsabilidade civil, de um modo geral, no franco reconhecimento de facilitação da ação do lesionado in concretu na obtenção da reparação do dano, em detrimento da clássica teoria subjetiva, para a qual é indispensável salientar a culpa de conduta. O avançar de hipóteses de responsabilidade objetiva – mesmo no âmbito das relações meramente privatísticas – demonstra a preocupação com a efetividade do direito ressarcitório na medida em que a condição menos favorável do vitimado, impõe uma inversão no ônus probandi, sob pena de ser infactível o exercício do direito de reparação.

Com contornos emancipados, a Responsabilidade do Estado [06] detém regime próprio. Cumpre reconhecer. Eis a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, in verbis:

Na órbita pública, também o Estado, ao administrar direta ou indiretamente os interesses públicos, está obrigado a respeitar o patrimônio dos administrados e sua incolumidade pessoal.

Uma atuação que os prejudique de fato é objetivamente ilegal, e o torna, e a seus delegatários de serviços públicos, responsáveis pelas perdas e danos causados, mas de responsabilidade pública, que tem assento próprio e originário na Constituição (art.37, §6º) e bases doutrinárias específicas. [07] (Grifos do original)

Sem maiores compromissos com as referências históricas, cabe lembrar o momento primevo no qual a irresponsabilidade do Estado (absolutista) era a regra. Famosas ficaram as máximas: The King can not do wrong; Le roi ne peut mal faire. Posteriormente, houve o surgimento da teoria da culpa civilística, que aplicava à responsabilidade do Estado a mesma regra do direito privado, ou seja, deveria haver culpa do agente estatal para que se configurasse a responsabilização do ente público. Com isso, em um primeiro momento apenas o funcionário responderia perante o lesado e, somente em segundo momento, também o Estado responderia.

O aprumo na ordem constitucional e, por via de conseqüência, na organização administrativa, dos Estados fez evoluir a noção de responsabilização em torno de seu agir perante os administrados. O traumático caso Blanco [08] foi um estopim, levando o direito francês a oferecer ao mundo um leading case, citado até hoje nas abordagens doutrinárias do tema. Era a teoria da faute du service, trazendo a idéia de que a culpa seria do serviço público e não mais do agente estatal, ou seja, haveria a responsabilidade do Estado ainda que o servidor culpado não fosse identificado, pois a responsabilidade daquele viria da falha do serviço de per si, porque não funcionara ou funcionara mal ou tardiamente. A culpa não era presumida, pois o prejudicado deveria provar o inadequado funcionamento do serviço público.

Houve o surgimento da teoria do risco administrativo, na qual o Estado deveria indenizar o dano não somente quando este resultasse de culpa do agente estatal ou de falha do serviço, que seriam os atos ilícitos, mas também os resultantes de atos lícitos, visto que não era mais a culpa do serviço ou do servidor que gerava essa responsabilidade, mas sim o risco que toda atividade estatal implicaria para os administrados.

Desta forma, o Estado seria responsabilizado sempre que sua atividade configurasse um risco para o administrado, independentemente da existência ou não de culpa e desde que do risco adviesse um dano. A responsabilidade, portanto, passou a ser objetiva. O administrado somente precisava provar a conduta do agente estatal, o dano e o nexo de causalidade entre ambos. [09]

Chegando em terras nossas, observa-se que o ordenamento jurídico acompanhou a evolução. Foi a partir da Constituição Federal de 1937, em seu art. 158, que o Estado passou a responder objetivamente pelos atos de seus funcionários, independentemente da existência ou não da culpa, fundamentada esta responsabilidade na teoria do risco. Hoje, a regra delineada no art.37, §6º, da CF/88, é, por demais conhecida:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Vê-se, portanto, a priori, inexistirem na redação do texto constitucional diferenciações de tratamento entre a conduta comissiva ou omissiva para efeitos de responsabilização estatal. Por logicidade, a responsabilidade patrimonial dos poderes públicos será elidida quando inexistente o nexo causal entre a conduta do Estado e o dano causado ao particular – exemplifique-se: força maior, caso fortuito, estado de necessidade, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, etc.

A força maior e o caso fortuito estão previstos no art. 393 do Código Civil. O estado de necessidade é causa de exclusão de responsabilidade, pois traduz situação em que prevalece interesse geral sobre o individual - princípio da supremacia do interesse público, caracterizado pela prevalência da necessidade pública sobre o interesse particular. Ocorre quando há situações de perigo iminente, não provocadas pelo agente, em que se faz necessário um sacrifício do interesse particular em favor da Supremacia do Interesse Público. A culpa exclusiva da vítima ou de terceiro é também considerada causa excludente da responsabilidade estatal, porquanto se destrói o nexo de causalidade. Ora, como ser patrimonialmente responsável por ato para o qual o Estado-Administração em nada concorreu?

Nos casos em que se verifica a existência de concausas, isto é, mais de uma causa ensejadora do resultado danoso, praticadas simultaneamente pelo Estado e pela vítima, não haverá excludente de responsabilidade. Haverá, sim, atenuação do quantum indenizatório na medida da participação no evento, a ser aferida in concretu.

A responsabilidade civil do Estado pode ser didaticamente resumida em duas hipóteses: a) conduta comissiva (ação), sendo o poder público o causador imediato do dano; b) omissão, em que o Estado não atua diretamente na produção do evento danoso, mas tinha o dever de evitá-lo, como é o caso da falta do serviço nas modalidades em que o serviço não funcionou ou funcionou tardiamente, ou ainda, pela atividade que se cria a situação propiciatória do dano porque expôs alguém a risco.

O Estado responde, objetivamente, sempre que demonstrado o nexo de causalidade entre o dano e a atividade funcional do agente estatal, somente havendo discussão sobre culpa ou dolo na ação regressiva do Estado contra o agente causador do dano: não é somente a ação, como também a omissão, que pode causar dano suscetível de reparação estatal.

O Estado poderá causar danos aos administrados por ação ou omissão. Nas hipóteses de conduta omissiva, verificamos celeumas doutrinárias quanto ao tratamento da responsabilidade civil do Estado, visto que nem toda conduta omissiva retrata uma desídia do Estado em cumprir um dever legal. Seria o Estado responsável civilmente quando este somente se omitir diante do dever legal de obstar a ocorrência do dano, ou seja, sempre quando o comportamento do órgão estatal ficar abaixo do padrão normal que se costuma exigir. Desta forma, pode-se afirmar que a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre decorrente de ato ilícito, porque havia um dever de agir imposto pela norma (legalidade, eficiência, etc.) ao Estado que, em decorrência da omissão, foi violado.

A responsabilidade do Estado por conduta omissiva indaga qual dos fatos foi decisivo para configurar o evento danoso, ou seja, qual fato gerou decisivamente o dano e quem estava obrigado a evitá-lo. Desta forma, o Estado responderá não pelo fato que diretamente gerou o dano, outrossim por não ter ele praticado conduta suficientemente adequada para evitar o dano ou mitigar seu resultado, quando o fato for notório ou perfeitamente previsível.

Surgiu na doutrina e jurisprudência brasileiras uma polêmica discussão a respeito de seu cabimento, nos casos de responsabilização decorrente de conduta omissiva estatal.A respeito, temos duas posições, uma que segue os argumentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, que defende a teoria da responsabilidade subjetiva, com supedâneo no art. 15 do antigo Código Civil; e outra, sustentada por vários autores, que defende a teoria da responsabilidade objetiva, aplicando-se, por conseguinte, o art. 37, §6º, da Constituição Federal. [10]

Para melhor entender a polêmica, adotemos o conceito de causa do magistério de Toshio Mukai para quem as obrigações, em direito, comportam causas, podendo estas ser a lei, o contrato ou o ato ilícito. Causa, em termos de responsabilidade civil, é todo o fenômeno capaz de produzir um poder jurídico pelo qual alguém tem o direito de exigir de outrem uma prestação (de dar, de fazer, ou de não fazer). [11]

José de Aguiar Dias, adepto da responsabilidade ensina que é causa aquele fato a que o dano se liga necessariamente. Se numa sucessão de fatos, mesmo culposos, apenas um, podendo evitar a conseqüência danosa, interveio e correspondeu ao resultado, ele é causa. Outrossim, se todos, ou alguns, contribuíram para o evento, que não ocorreria, se não houvesse a conjugação deles, esses devem ser considerados causas concorrentes ou concausas [12]. Portanto, a inércia do Estado empenha responsabilidade civil e a conseqüente obrigação de reparar integralmente o dano causado, na forma do art. 37, §6.º, CF/88, aplicando-se a responsabilidade objetiva.

Odete Medauar entende que a responsabilidade do Estado, fundamentada na Teoria do Risco Administrativo, apresenta-se, hoje, na maioria dos ordenamentos jurídicos, regida pela Responsabilidade Objetiva, argumentando, em preciosa síntese:

Alguns princípios respaldam a concepção da responsabilidade objetiva do Estado. Em primeiro lugar, o próprio sentido de justiça (eqüidade), o neminen laedere, o alterum non laedere, que permeia o Direito e a própria vida, em virtude do qual o causador de prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano. No caso da Administração, a multiplicidade e amplitude de suas atividades e as suas prerrogativas de poder, ensejam risco maior de danos a terceiros. Por outro lado, nem sempre é possível identificar o agente causador, nem sempre é possível demonstrar seu dolo ou culpa. Melhor se assegura os direitos da vítima ante o tratamento objetivo da responsabilidade da Administração.

Em segundo lugar, o preceito da igualdade de todos ante os ônus e encargos da Administração, também denominado "solidariedade social". Se, em tese, todos se beneficiam das atividades da Administração, todos (representados pela Estado) devem compartilhar do ressarcimento dos danos que essas atividades causam a alguns. (Grifos e aspas do original). [13]

Porém, a teoria da responsabilidade subjetiva remanesce na relação Estado-agente público, quanto ao direito de regresso, pois condicionada está à culpabilidade do sujeito.

Se o Estado-Administração deixar de realizar ato ou obra considerada indispensável e sobrevier fenômeno natural que cause danos a particulares pela falta daquele ato ou obra, portanto conduta omissiva, o Poder Público será o responsável pela reparação de tais prejuízos, visto que neste caso estará presente o nexo de causalidade entre o ato omissivo e o dano. Desta forma, a causa do dano não é o fato de força maior, mas a inércia na função administrativa, sendo possível prever tal fenômeno e suas conseqüências.

Não se pode, entretanto, cogitar na existência de força maior quando, por exemplo, ocorram inundações na cidade previsíveis e que demandariam obras de infra-estrutura não realizadas. [14]

Exatamente nessa situação enquadram-se os danos experimentados pelas populações citadinas em virtude das chuvas periódicas. Assume-se que, a esses casos, os danos causados devem ser ressarcidos sob a justificativa da responsabilidade objetiva, sobremodo ante a percepção de que a Constituição Federal não diferenciou as duas condutas (omissiva e comissiva), quando poderia fazê-lo.

Note-se que no que concerne ao agente estatal causador do dano o constituinte avançou substituindo a expressão "funcionário" por "agente", muito mais abrangente. Estendeu a responsabilidade também para os particulares prestadores de serviço público [a chamada desestatização apenas engatinhava]. Ora, por que, então, no que tange à conduta do agente, aquele teria recuado quase um século, para, a par da responsabilidade objetiva, fixada para a conduta comissiva, estatuir a responsabilidade subjetiva em caso de conduta omissiva?

O que se pretendeu com toda a evolução da responsabilidade do Estado foi exatamente evitar que o lesado tivesse de provar a culpa do agente, nem sempre – e quase nunca – um exercício fácil. Por que o legislador, cônscio dessa evolução, teria marchado em ré? Especialmente quando ele mesmo, legislador constitucional, previu a responsabilidade objetiva, com o mesmo desiderato, para questões relacionadas com o meio ambiente e com os direitos do consumidor? Implica, tal conclusão, num contra-senso!!! Até porque, na omissão, em regra, é muito mais difícil a prova da culpa. [15]

Derradeiramente, há de ser analisada a afirmação, também feita por Celso Antonio Bandeira de Mello, de que se nos danos decorrentes de conduta estatal omissiva o Estado for chamado a responder objetivamente este estará sendo erigido à condição de segurador universal. [16]

O Estado-Administração, ao ser demandado para ressarcir danos oriundos de condutas omissivas ou comissivas, tem estrutura e oportunidade para defesa, bastando demonstrar a presença de quaisquer circunstâncias excludentes de sua responsabilidade. Pode ainda não ser o dano especial nem anormal, inexistindo um dever de agir. Por óbvio, não se está a postular extremismos; outrossim, o depuramento de um senso de justiça material na relação Administração-administrados.

Da mesma forma que ocorreu com a doutrina, a jurisprudência vem gradativamente avançando no sentido de considerar a responsabilidade objetiva do Estado em condutas omissivas.

A priori, vejamos que o guardião da constitucionalidade em nosso ordenamento jurídico - o Supremo Tribunal Federal-STF – pronunciou-se, em percuciente voto do Ministro Celso de Mello:

A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem a) a alteridade do dano, b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo [ação] ou negativo [omissão] do agente público, c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional [RTJ 140/636] e d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal [RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417]. O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima" [RDA 137/233 – RTJ 55/50 - STF – RE 109.615 – RJ – 1ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 02.08.1996].

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Eis julgados de diversos tribunais – estaduais e federais – ao enfrentarem a questão específica ora abordada. Elencamos os melhores exemplos.

INDENIZAÇÃO - Municipalidade de São José do Rio Preto - Responsabilidade Civil - Veiculo arrastado por enxurrada formada por águas de chuva de grande intensidade pluviométrica - Responsabilidade objetiva da administração, consubstanciada no fato que tais chuvas sempre foram previsíveis no local, ante a comprovação de que obras contra enchentes estavam sendo realizadas e ainda, ante a comprovação de que chuva de intensidade pluviométrica maior havia ocorrido no ano anterior, mesma época - Procedência da ação - sentença reformada - Valor da indenização a ser apurada em liquidação de sentença por arbitramento, tendo em conta que o valor pedido é bem maior que o valor do mercado do veículo envolvido, devendo prevalecer, portanto, este último - Recurso provido. (Apelação Cível n. 94.906-5 - São José do Rio Preto - 4ª Câmara de Direito Público - Relator: Eduardo Braga - 27.04.00 - V.U.)

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL - PODER PÚBLICO - AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANO - REDE PLUVIAL - OBRA - INUNDAÇÃO DE RESIDÊNCIA - PREJUÍZO MATERIAL - COMPROVADO NEXO DE CAUSALIDADE - PROCEDÊNCIA - É da administração pública municipal a responsabilidade pela manutenção e conservação das redes de água e esgoto e de captação de águas pluviais, sendo-lhe imputada a responsabilidade pelos danos que, por sua negligência em conservá-las, venham a ocorrer. INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA- PODER PÚBLICO - RISCO ADMINISTRATIVO - PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO - DANO - INUNDAÇÃO DE RESIDÊNCIA - COMPROVADO PREJUÍZO MATERIAL. A pessoa jurídica de direito público é responsável pela reparação do prejuízo material causado em inundação de residência e destruição de bens de particulares, se ficou demonstrado ""salienter tantum"" o nexo causal entre sua omissão (dela, pessoa jurídica) e o resultado danoso. A responsabilidade do Poder Público é objetiva e funda-se na teoria do risco administrativo, decorrendo da ação ou omissão lesiva de seus agentes. (Número do processo: 1.0000.00.291181-6/000(1) - Relator: HYPARCO IMMESI - Data do acordão: 07/08/2003 - Data da publicação: 19/09/2003 )

Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO - INUNDAÇÃO DE MORADIA CAUSADA POR FORTES CHUVAS - DANOS NO IMÓVEL E EM BENS MÓVEIS NELE EXISTENTES - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - INDENIZAÇÃO DEVIDA - APLICAÇÃO DA TEORIA DA CULPA DO SERVIÇO - VALORES ARBITRADOS DE ACORDO COM LAUDO PERICIAL - SENTENÇA MANTIDA. (Número do processo: 1.0000.00.322773-3/000(1) -Relator: AUDEBERT DELAGE -Data do acordão: 04/06/2003 - Data da publicação: 29/08/2003)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ALAGAMENTO EM RESIDÊNCIA. CHUVAS. DEFICIÊNCIA DA REDE PLUVIAL. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. RESPONDE O MUNÍCIPIO PELOS DANOS CAUSADOS EM RESIDÊNCIA FRENTE A ALAGAMENTO DECORRENTE DE PRECIPITAÇÃO PLUVIOMÉTRICA. LAUDO PERICIAL QUE DEMONSTROU QUE AS CHUVAS OCORRIDAS NA DATA DO EVENTO NÃO PODERIAM SER CONSIDERADAS EXCESSIVAS, BEM COMO INEFICIENTE E INSUFICIENTE A REDE PLUVIAL NA LOCALIDADE. DANOS MATERIAIS. CORREÇÃO MONETÁRIA A PARTIR DA DATA DOS ORÇAMENTOS. DANOS MORAIS CONFIGURADOS, FACE AO DESCONFORTO E TRANSTORNOS DECORRENTES DO ALAGAMENTO, ASSIM COMO DA INÉRCIA DO PODER PÚBLICO QUE, NAO OBSTANTE RECONHECER A NECESSIDADE DE OBRAS, PERMANECEU INDIFERENTE. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. SENTENCA PARCIALMENTE REFORMADA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO.(10 FLS. D) (APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO Nº 70004193876, NONA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ROSA TEREZINHA SILVA RODRIGUES, JULGADO EM 04/12/2002). (PROCESSO NÚMERO: 70004193876 - RELATOR: ROSA TEREZINHA SILVA RODRIGUES TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS - DATA DE JULGAMENTO: 04/12/2002.)

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – DESLIZAMENTO DE ATERRO CONSTRUÍDO À MARGEM DE ESTRADA, PROVOCANDO MORTE DE MENOR –INDENIZAÇÃO PLEITEADA POR SEUS PAIS – DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO, COM BASE NA RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PELOS RISCOS CRIADOS POR SUAS OBRAS E SERVIÇOS.

1 – A responsabilidade da administração por danos decorrentes de suas obras ou serviços é objetiva, bastando a prova da respectiva relação de causalidade. Não se exclui a responsabilidade sob alegação de que o deslizamento decorreu do excesso de chuvas que provocaram infiltrações no solo, porque esse é um risco previsível que deve ser prevenido através de técnicas adeqüadas e, se não existem, o próprio risco de construir sem segurança torna ainda mais evidente a responsabilidade da administração.

2 – A indenizabilidade dos danos morais tornou-se indiscutível após a vigência da Constituição de 1988, e sua cumulabilidade com os danos patrimoniais está pacificada pela Súmula nº37 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça.

3 – Danos morais fixados com parcimônia e danos materiais arbitrados de conformidade com a orientação da 4ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, perdurando até a data em que a vítima completaria 25 anos e, a partir de então, sendo devidos pela metade até quando completaria 65 anos.

4 – Apelo e remessa oficial desprovidos. (Data Publicação 13/12/2000)

Percebe-se, por conseguinte, um claro avançar da teoria da responsabilidade objetiva do Estado em virtude da conduta omissiva que causa prejuízos aos direitos dos administrados.

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Sobre a autora
Luziânia Carla Pinheiro Braga

advogada da União, professora de Direito Administrativo da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luziânia Carla Pinheiro. Responsabilidade civil do Estado por omissão em razão das enchentes na cidade:: o exemplo de Fortaleza no ano de 2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1436, 7 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9963. Acesso em: 19 abr. 2024.

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