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Responsabilidade civil do Estado por omissão em razão das enchentes na cidade:

o exemplo de Fortaleza no ano de 2004

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3-Necessidade de Formas Alternativas de Percepção da Indenização/Ressarcimento: processo administrativo.

Dos mais graves problemas experimentados nas tensões da relação Administração-administrados, é a constante necessidade de invocar a função jurisdicional para dirimir conflitos. A hipossuficiência dos administrados em tal situação é lapidar. [17]

Quer-se afirmar: é um esforço hercúleo demandar o Estado-Administração em juízo e obter o ressarcimento por danos, quando devidos. A duração patológica de determinado processo deixa o administrado desvalido, ante a urgência no restabelecimento de determinadas situações jurídicas que atingem o próprio princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Cumpre rumar para uma postura mais proativa e menos belicosa por parte da Administração Pública, buscando formas alternativas para inserir as coletividades prejudicadas por graves omissões estatais (v.g. o caso das enchentes, desabamentos, etc.) em uma situação de justiça material, ou seja, de efetividade da pretensão dirimida.

Segundo Toshio Mukai, textualmente:

A reparação do dano pode dar-se, no âmbito administrativo, quando reconhecido o direito à indenização pelo estado, exista, ainda, um consenso sobre o valor a ser indenizado. Nessa hipótese, a reparação dar-se-á através de um processo administrativo.

Caso contrário, hipótese mais comum, a indenização será obtida por meio de uma ação ordinária de indenização movida pelo lesado contra a Fazenda Pública. [18]

Odete Medauar suspende o véu da teoria e deslinda o que realmente ocorre no mundo dos fatos. São suas palavras:

Embora se pudesse cogitar de reparação de dano pela via administrativa, mediante requerimento formulado pela vítima, cônjuge, parentes ou herdeiros, trata-se de forma rara de ressarcimento; ainda que evidente sua responsabilidade, a Administração em geral propõe ressarcimento vil ou rejeita o pedido, para que a vítima se dirija à via jurisdicional. [19]

Lamentavelmente, essa é a realidade com a qual o Estado Democrático de Direito e uma Administração Pública pautada nos princípios administrativos do art. 37 da CF/88 não poderia se conformar. Ir a Juízo é algo extraordinário para a maciça parcela dos necessitários das prestações oriundas do agir administrativo. [20]

Merece aplauso a Lei do Processo Administrativo do Estado de São Paulo, Lei nº 10.177, de 30 de dezembro de 1998 - Diário Oficial v.108, n.248, 31/12/98, a qual na Seção IV, Do Procedimento de Reparação de Danos, preceituam os arts.65 e 67:

Artigo 65 - Aquele que pretender, da Fazenda Pública, ressarcimento por danos causados por agente público, agindo nessa qualidade, poderá requerê-lo administrativamente, observadas as seguintes regras:

I - o requerimento será protocolado na Procuradoria Geral do Estado, até 5 (cinco) anos contados do ato ou fato que houver dado causa ao dano;

II - o protocolo do requerimento suspende, nos termos da legislação pertinente, a prescrição da ação de responsabilidade contra o Estado, pelo período que durar sua tramitação;

III - o requerimento conterá os requisitos do artigo 54, devendo trazer indicação precisa do montante atualizado da indenização pretendida, e declaração de que o interessado concorda com as condições contidas neste artigo e no subseqüente;

IV - o procedimento, dirigido por Procurador do Estado, observará as regras do artigo 55;

V - a decisão do requerimento caberá ao Procurador Geral do Estado ou ao dirigente da entidade descentralizada, que recorrerão de ofício ao Governador, nas hipóteses previstas em regulamento;

VI - acolhido em definitivo o pedido, total ou parcialmente, será feita, em 15 (quinze) dias, a inscrição, em registro cronológico, do valor atualizado do débito, intimando-se o interessado;

VII - a ausência de manifestação expressa do interessado, em 10 (dez) dias, contados da intimação, implicará em concordância com o valor inscrito; caso não concorde com esse valor, o interessado poderá, no mesmo prazo, apresentar desistência, cancelando-se a inscrição e arquivando-se os autos;

VIII - os débitos inscritos at 1º de julho serão pagos at o último dia útil do exercício seguinte, à conta de dotação orçamentária específica;

IX - o depósito, em conta aberta em favor do interessado, do valor inscrito, atualizado monetariamente at o mês do pagamento, importará em quitação do débito;

X - o interessado, mediante prévia notificação à Administração, poderá considerar indeferido seu requerimento caso o pagamento não se realize na forma e no prazo previstos nos incisos VIII e IX.

§ 1º - Quando o interessado utilizar-se da faculdade prevista nos incisos VII, parte final, e X, perderá qualquer efeito o ato que tiver acolhido o pedido, não se podendo invocá-lo como reconhecimento da responsabilidade administrativa.

§ 2º - Devidamente autorizado pelo Governador, o Procurador Geral do Estado poderá delegar, no âmbito da Administração centralizada, a competência prevista no inciso V, hipótese em que o delegante tornar-se-á a instância máxima de recurso.

Artigo 67 - Na hipótese de condenação definitiva do Estado ao ressarcimento de danos, deverá o fato ser comunicado ao Procurador Geral do Estado, no prazo de 15 (quinze) dias, pelo órgão encarregado de oficiar no feito, sob pena de responsabilidade.

Por amor ao debate, cite-se a posição ousada de Bockmann:

Ora, não haveria de se sustentar que, na hipótese de a Administração ser a causadora do prejuízo, que a ela fosse atribuído o dever da omissão e a impossibilidade de indenizar, caso não provocada. Seria incongruente e incompatível com aquele dever de buscar a reparação dos prejuízos causados contra o patrimônio público; uma celebração de um interesse administrativo secundário(...). Ao deixar de reparar ativamente os danos oriundos de sua atividade, a Administração celebra a permanência no tempo da irresponsabilidade do soberano (...) [21]

A Administração Pública, em suas várias esferas (Estadual, Distrital e Municipal), deve adotar procedimentos administrativos para as indenizações oriundas de suas condutas omissas relacionadas a prejuízos previsíveis para a coletividade. Interessante a edição de normas de processo administrativo em cada uma dessas esferas, dada a autonomia administrativa e normativa reconhecida pelo Texto Constitucional. No tocante à União, entendemos que, na ausência de disposição específica sobre a indenização nas vias administrativas, o administrado pode fazer tal pedido manuseando a Lei do Processo Administrativo da Administração Pública Federal – Lei nº 9.784/99.

O direito de obter a reparação de danos, com base no art. 37, §6º da Constituição, prescreve em cinco ano, conforme a exegese da Lei nº 9.494, de 19 de setembro de 1997, com as posteriores alterações preconizadas por medidas provisórias (MP nº 2.180-35/2001).


4-Conclusões

Contaminada pela teoria do risco, a responsabilidade do Estado apresenta-se hoje, na maioria dos ordenamentos, como responsabilidade objetiva. A evolução da responsabilidade do Estado, no sentido de sua objetivação, fica ainda mais evidente quando se constata o progredir de tal idéia no dito âmbito das relações privatísticas. A responsabilidade do Estado-Administração não pode ficar na retaguarda do evoluir.

A doutrina e a jurisprudência, sempre tiveram clara a evolução da responsabilidade do Estado, no sentido de sua objetivação, afastando-se da culpa e aproximando-se do risco: a responsabilidade do Estado passou a ser objetiva.

O princípio da indisponibilidade do patrimônio público não pode ser usado como um escudo para protelar o direito dos administrados ao ressarcimento nascido de danos experimentados em situações de patente omissão administrativa no desempenho de suas funções.

Nesse esteio, deve-se impor soluções administrativas, sem embargo da via judicial existente, a fim de que se proceda à indenização que o administrado faz jus conforme o caso, no âmbito de um devido processo legal administrativo.

Ora, quando o Estado brasileiro acordará para a necessidade de consensualidade na sua "faceta Estado-Administração"? Por certo, trata-se de mais um aspecto de legitimação do agir do estatal– exemplificado aqui através da função administrativa. Quando isso acontecerá? Quando?


5-Referências

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Notas

01 ALCÂNTARA,Vanessa. Fortaleza Fragilizada. Jornal O POVO, Fortaleza, 09 de março de 2004, 03h12min. Disponível em <http://www.noolhar.com/>. Acesso em 11 abr.2004.

02 SOUSA, Francisco Djacyr Silva de. Chuvas e planejamento. Jornal O POVO. Fortaleza, 03 de abril de 2004. Opinião. Disponível em: <http://www.noolhar.com/opovo/opiniao/352945.html>. Acesso em 12 abr. 2004.

03 LIMA, Déborah. Lixo e Chuva. Jornal O POVO. Fortaleza, 19 de março de 2004. Da Redação. Disponível em: <http://www.noolhar.com/opovo/politica/348564.html>. Acesso em 12 abr. 2004.

04 ENTERRÌA, Eduardo Garcia de. Derecho Urbanistico e Ciencias de la Administración. UCV, Vol. V, 1983, p. 197.

05 AMARAL, Francisco. Direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 531

06 Assumindo o pecadilho da redundância, esclarece-se abordar a responsabilidade patrimonial extracontratual, visto que a responsabilidade contratual do Estado se encontra sob a égide da específica lei dos contratos administrativos e dos diplomas normativos correlacionáveis.

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07 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 576.

08 Narrado pela doutrina nacional de direito administrativo, tratou-se de acidente ocorrido em 1873, em Bordeaux, França, quando Agnes Blanco foi colhida por vagonete da Cia.Nacional de Manufatura do Fumo. O pai da menina moveu ação alegando a responsabilidade estatal. Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004., p. 550.

09 Importante mencionarmos o surgimento da Teoria do Risco Integral, pela qual o Estado fica obrigado a indenizar todo e qualquer dano, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Tal teoria não encontrou guarida no meio jurídico, por suas chocantes tintas de extremismo.

10 Para Celso Antônio Bandeira de Mello deve ser aplicada a Teoria Subjetiva à responsabilidade do Estado por conduta omissivam sustentando "causarem" no art. 37, §6º, da CF/88 engloba atos comissivos, e não os omissivos (estes últimos somente "condicionam" o evento danoso). Assim, se manifestam Caio Tácito, Themístocles Brandão Cavalcanti, Lúcia Valle Figueiredo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, entre muitos outros. O próprio Aguiar Dias, embora manifeste preferência pela responsabilidade objetiva, admite que predomina a teoria subjetiva quando da falta do serviço. Em favor da responsabilidade objetiva por conduta omissiva temos Odete Medauar, Yussef Saud Cahali, entre outros.

11 MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 96.

12 Apud GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva. A responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 106, 17 out. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4365>. Acesso em: 08 abr. 2004.

13 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 7. ed., ver. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 395.

14 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, 5.ed., revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 279.

15 GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva. A responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 106, 17 out. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4365>. Acesso em: 08 abr. 2004.

16 Trata-se de expressão cunhada por Gilmar Ferreira Mendes in MENDES, Gilmar Ferreira. Perplexidades acerca da responsabilidade civil do Estado: União "seguradora universal"?. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 45, set. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=495>. Acesso em: 11 abr. 2004.

17 Por mais apaixonante que seja o tema, não incursionaremos nessa problemática que engloba as deficiências das defensorias públicas, a dificuldade de acesso à justiça, o ânimo "não consensual" do agir administrativo, as prerrogativas processuais da fazenda pública, etc.

18 MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p.539.

19 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 7. ed., ver. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.399.

20 Ressalte-se que a OAB-CE intentou Ação Civil Pública pleiteando a realocação de verba orçamentária do Estado e do Município para custeio de projetos de habitação, sob o argumento de que as áreas, no interior e na capital do Estado, foram devidamente mapeadas e cadastradas pela Defesa Civil. Cf. E-mail informativo recebido da Biblioteca Virtual OAB-CE [ [email protected]].

21 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo – Princípios Constitucional e a lei 9.784/1999, 2.ed, atualizada, revista e aumentada, São Paulo: Malheiros: 2003, p.134.


Dedico este artigo aos moradores da Travessa Milano (Bairro Aerolândia, Fortaleza-CE), os quais testemunhei, inúmeras vezes, suspendendo seus filhos e empilhando seus módicos pertences pessoais enquanto a água e a lama subiam-lhe acima dos joelhos.

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Sobre a autora
Luziânia Carla Pinheiro Braga

advogada da União, professora de Direito Administrativo da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luziânia Carla Pinheiro. Responsabilidade civil do Estado por omissão em razão das enchentes na cidade:: o exemplo de Fortaleza no ano de 2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1436, 7 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9963. Acesso em: 5 nov. 2024.

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