Quando eu era criança minha avó e minha mãe sempre me falavam que mentira tem perna curta sempre que sabiam que eu estava tentando esconder algo delas. Confesso que naquela época eu não sabia bem o que elas estavam tentando me dizer (ou ensinar), mas hoje acredito que tenha alguma relação com o que vamos conversar neste artigo.
Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 estabelece, em rol taxativo, quais são os órgãos policiais que compõem a Segurança Pública no Brasil, são eles:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
VI - polícias penais federal, estaduais e distrital.[1]
Originariamente dentro da estrutura das policiais investigativas existiam as unidades incumbidas de realizar as atividades de perícia criminal, medicina-legal e identificação criminal. Contudo, paulatinamente iniciou-se um movimento de maior independência dessas unidades e em vários Estados foram transformados em órgãos autônomos, os quais passaram a ser denominados de Polícia Técnico-Científica ou, apenas, Polícia Científica, numa tentativa canhestra de fazer crer se tratar de uma instituição Policial integrante da Segurança Pública.
Contudo, além de tal denominação não constar do texto constitucional, buscou-se com essa identificação camuflar a realidade das coisas para tentar alcançar um status que não lhes pertencia mais, vale dizer, o de organismo/força Policial e, com isso, manter o vínculo com a Segurança Pública, e isso não em razão de uma vocação profissional, mas, sim, em razão de interesses privados.
Com efeito, é sabido que os servidores que integram os órgãos Policiais possuem algumas vantagens pessoais que os demais trabalhadores não possuem, isso em razão do risco a que estão expostos, o regime de trabalho diferenciado, prontidão e permanência, enfim, sendo que dentro dessas vantagens temos o porte de arma de fogo e a aposentadoria especial.
Assim, na medida em que tais unidades (perícia criminal, medicina-legal e identificação criminal) deixaram a estrutura do órgão policial que integravam a consequência lógica seria a perda do status de órgão policial integrante da Segurança Pública e, consequentemente, as vantagens pessoais, nada mais lógico e natural do que isso.
E eis aqui o ponto nefrálgico. Se o movimento de libertação em busca de maior autonomia é impulsionado por uma vontade de melhor prestar o serviço público ao qual se está incumbido, não deveria importar se se vai preservar essas vantagens pessoais ou não, afinal, a motivação é algo que deveria ser superior a isso, qual seja, o interesse público em se ter um trabalho técnico com autonomia.
Porém, como diria Augusto Branco, nem tudo que reluz é ouro, ou seja, nem tudo que aparenta ter uma motivação nobre de fato possui essa motivação. Às vezes as alegações altruístas são usadas, apenas, como cortina de fumaça para esconder a verdadeira pretensão, sendo certo que no caso que estamos conversando é a busca por maiores benefícios, privilégios, vantagens, sem que se tenha qualquer controle. Ou seja, busca-se máximos direitos com mínimos deveres, para parafrasear Bruno Garschagen[2].
Ocorre que o Brasil ainda possui sistemas de controle, os quais às vezes funcionam em prol do interesse público, e foi este o caso da atuação do Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2575[3].
Referida ação abstrata de controle de constitucionalidade foi proposta pelo Partido Social Liberal em face do inciso III, do art. 46 e art. 50, § 1º, § 2º e § 3º, todos da Constituição do Estado do Paraná (redação dada pela emenda nº 10)[4] e o STF assim decidiu a questão:
[...] O art. 50 da Constituição do Estado do Paraná, na redação originária, embora faça menção ao órgão denominado de Polícia Científica, por si só, não cria uma nova modalidade de polícia, como órgão de segurança pública, mas apenas disciplina órgão administrativo de perícia. Nada impede que o referido órgão continue a existir e a desempenhar suas funções no Estado do Paraná, não precisando, necessariamente, estar vinculado à Polícia Civil [...]conferindo-se interpretação conforme à expressão polícia científica, contida na redação originária do art. 50 da Constituição Estadual, tão somente para afastar qualquer interpretação que confira a esse órgão o caráter de órgão de segurança pública. (sic).
O que ficou definido é que não existe qualquer problema em se pretender ter plena autonomia, desvincular-se do órgão policial que integrava e buscar uma melhoria na prestação do serviço público. O que não se pode é, sob esse argumento, pretender se tornar uma Polícia autônoma para satisfazer interesses privados na busca de mais poder e direitos, criando uma estrutura que não encontra qualquer respaldo na Constituição Federal.
Não seria necessário dizer, porém, considerando a realidade brasileira e tendo em vista que o mesmo fenômeno ocorrido no Paraná possuí congêneres em outros Estados da nossa federação, inclusive existindo territórios onde a alegada Polícia Científica pretende seguir os mesmos passos percorridos no Paraná[5], é preciso deixar claro que a decisão proferida no STF na ADI 2575 tem eficácia genérica e obrigatória, vale dizer, vincula a todos em território nacional a obedecer a sua decisão, seja quem já estava errado ou ainda quem pretendia errar.
E, assim, como diriam minha avó e minha mãe, a mentira tem perna curta, ou seja, uma hora, cedo ou tarde, a verdade há de prevalecer, pois nada há de oculto que não venha a ser revelado, e nada em segredo que não seja trazido à luz do dia (Mc 4:22). Interesses particulares escusos, ainda que camuflados, não deveriam prevalecer diante do interesse público, porém, se realmente acham que vão prestar um melhor serviço público desvinculados da Polícia, então, que saiam dela, porém, deixem as armas e a possibilidade de aposentar de forma especial, e que sejam felizes e satisfaçam o interesse público onde quer que estejam!