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O valor judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)

O valor judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)

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Resumo: Este trabalho trata sobre a composição do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), enfocando a sua forma de atuação, traçando-se um paralelo com a atuação da polícia judiciária, bem como expondo a possibilidade de utilização judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência em processos judiciais. Para a realização do trabalho foi feita uma análise a partir do estudo sistemático da Constituição Federal, das legislações que tratam sobre os órgãos que compõe o SISBIN, bem como com base em entendimentos doutrinários existentes. Foram identificados os requisitos que permitem o entendimento no sentido da possibilidade de utilização dos documentos de inteligência nos processos criminais e inquéritos policiais, desde que observados os limiteis legais e constitucionais existentes. Neste contexto, conclui-se que a atividade de inteligência, obedecidos os requisitos legais e constitucionais e desde que não importe em publicidade de documentos de inteligência essenciais para a segurança do estado e da sociedade, podem ser utilizados em inquéritos policiais e processos criminais.

Palavras chave: inquérito policial; atividade de inteligência; ABIN; eficiência; federativo.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 Do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN). 2.1 Da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). 2.2 Do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP). 2.3 Do Decreto nº 4.376 de 2002. 2.4 Da Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública (DNISP). 3 Da investigação criminal. 4 Inquérito Policial versus Atividade de Inteligência. 5 Da sistemática constitucional acerca da segurança pública. 5.1 Do devido processo legal.5.2 Do princípio da eficiência e do princípio federativo. 6 CONCLUSÃO. 7 Referências Bibliográficas


1. INTRODUÇÃO

A questão relacionada às provas que merecem ser creditadas pelo judiciário sempre foi um assunto polêmico, especialmente em se tratando de matéria criminal, sendo que constantemente os tribunais vêm atribuindo entendimentos diversos sobre o assunto, sempre no anseio de propor a melhor interpretação jurídica aos preceitos constitucionais e legais acerca da matéria.

Nessa esteira, ganha relevo a questão da possibilidade da utilização judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), que é o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN).

Como é de conhecimento de todos, a norma processual penal, em consonância com a constituição Federal de 1988, trás o rol das provas admitidas em juízo, bem como o meio pelas quais é possível a sua produção, sob pena de tê-las como ilícitas ou ilegítimas.

O problema na utilização judicial dos documentos produzidas pela ABIN surge pelo fato de esta instituição não deter as mesmas prerrogativas da Polícia Judiciária, vulgarmente chamada de Polícia Civil, bem como pelo fato de que a ABIN não ter sido criada para auxílio nas investigações criminais, mas tão somente para auxiliar o executivo na tomada de decisões de cunho eminentemente políticas.

Com efeito, a presente pesquisa tem por finalidade demonstrar, de forma sistemática, se haveria incompatibilidade ou impedimento de se utilizar em âmbito judicial os documentos produzidos pela ABIN, esclarecendo todas as características do sistema Brasileiro de Inteligência, traçando um paralelo de suas atividades se relacionadas com a Polícia Judiciária, bem como indicando a interpretação sistemática adequada ao caso, propiciando, assim, uma conclusão juridicamente aceitável acerca da matéria.


2. DO SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA (SISBIN)

O Sistema Brasileiro de Inteligência foi instituído pela Lei 9.883 de 1.999, com a finalidade precípua de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

Sua função está bem delineada no artigo primeiro da referida lei, conforme segue:

"Art. 1º Fica instituído o Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional."

Não obstante sua função eminentemente política, o SISBIN, por expressa determinação da lei que o instituiu, também tem como fundamentos, além de outros, a dignidade da pessoa humana, devendo cumprir e preservar os direitos e garantias individuais. In verbis:

"§ 1o do art. 1º da Lei 9.883 de 1.999: O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária."

O Sistema de Inteligência instituído é composto pelas entidades da Administração Pública Federal que, direta ou indiretamente, possam produzir conhecimentos de interesse na atividade de inteligência, em especial aqueles responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores:

"Art. 2º Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal que, direta ou indiretamente, possam produzir conhecimentos de interesse das atividades de inteligência, em especial aqueles responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores, constituirão o Sistema Brasileiro de Inteligência, na forma de ato do Presidente da República.

§ 1º O Sistema Brasileiro de Inteligência é responsável pelo processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária ao processo decisório do Poder Executivo, bem como pela salvaguarda da informação contra o acesso de pessoas ou órgãos não autorizados."

A instituição é responsável pelo processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária ao processo decisório do Poder Executivo, bem como pela salvaguarda da informação contra o acesso de pessoas ou órgãos não autorizados.

Apesar de, a princípio, a Lei trazer o Sistema Brasileiro de Inteligência como órgão composto pelas entidades da Administração Pública Federal, não há qualquer impedimento para que, havendo interesse e mediante ajustes específicos, as Unidades da Federação possam compor a instituição.

"§ 2o do art. 2º da Lei 9.883 de 1999: Mediante ajustes específicos e convênios, ouvido o competente órgão de controle externo da atividade de inteligência, as Unidades da Federação poderão compor o Sistema Brasileiro de Inteligência."

2.1 DA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA (ABIN)

A Agência Brasileira de Inteligência foi criada por meio da Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001, que alterou o artigo 3º da Lei 9.883 de 1.999, passando a ter a seguinte redação:

"Art. 3º Fica criada a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, órgão da Presidência da República, que, na posição de órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência, terá a seu cargo planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País, obedecidas à política e às diretrizes superiormente traçadas nos termos desta Lei."

Nos termos do art. 4º da Lei, à ABIN compete:

"I - planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República;

II - planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade;

III - avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional;

IV - promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de inteligência."

Impende ressaltar que a lei é categórica no sentido de que, mesmo sendo a ABIN uma instituição de assessoramente do presidente da república, órgão máximo do poder executivo, ainda assim, para desenvolver qualquer atividade de inteligência deverá agir com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado. [01]

Com efeito, a ABIN, atuando na composição de documentos segundo a sua finalidade legalmente prevista, assim como a Polícia Judiciária, tem o dever de atuar sob o manto da legalidade e constitucionalidade, não podendo, sob o pretexto de realizar o seu mister, ferir direitos e garantias individuais, sob pena de responsabilização da Administração Pública.

2.2 DO SUBSISTEMA DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA (SISP)

Objetivando difundir a atividade de inteligência aos estados federados, dotando assim de maior utilidade ao número de documentos de inteligência produzidos e até mesmo para que a atividade de inteligência fosse dinamizada, o legislador ordinário criou, por meio do Decreto nº 3695 de 2000, o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, composto pelos Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Defesa e da Integração Nacional e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

A finalidade deste órgão, que foi criado no âmbito do SISBIN, é a de coordenar e integrar as atividades de inteligência de segurança pública em todo o País, bem como suprir os governos federal e estaduais de informações que subsidiem a tomada de decisões neste campo (art. 1º do Decreto nº 3695 de 2000).

Nos termos do §2º do art. 1º do Decreto mencionado, poderão ainda integrar o SISP os órgãos de Inteligência de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal, sendo que cabe aos integrantes do Subsistema, no âmbito de suas competências, identificar, acompanhar e avaliar ameaças reais ou potenciais de segurança pública e produzir conhecimentos e informações que subsidiem ações para neutralizar, coibir e reprimir atos criminosos de qualquer natureza [02].

Nessa esteira, vê-se que a atividade de inteligência começou a tomar dimensões que lhe possibilitam uma atuação efetiva, seja em âmbito federal como estadual, sempre sob o principal enfoque de assessorar o chefe do executivo na tomada de decisões, especialmente no que toca a repressão, prevenção e neutralização de atos criminosos, almejando, com isto, a pacificação social.

2.3 DO DECRETO Nº 4.376 DE 2002

O Decreto nº 4.376 de 2002, publicado no D.O.U de 16/09/2002, dispôs sobre a organização e funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência instituído pela Lei no 9.883, de 7 de dezembro de 1999, e deu outras providências.

Complementou os conceitos de inteligência e contra-inteligência, definiu os integrantes do SISBIN, bem como reavivou que cabe a cada órgão, no âmbito de suas competências, o planejamento e execução de ações relativas à obtenção e integração de dados e informações, conforme segue:

"Art. 6º. Cabe aos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Inteligência, no âmbito de suas competências:

I - produzir conhecimentos, em atendimento às prescrições dos planos e programas de inteligência, decorrentes da Política Nacional de Inteligência;

II - planejar e executar ações relativas à obtenção e integração de dados e informações;

III - intercambiar informações necessárias à produção de conhecimentos relacionados com as atividades de inteligência e contra-inteligência;

IV - fornecer ao órgão central do Sistema, para fins de integração, informações e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais; e

V - estabelecer os respectivos mecanismos e procedimentos particulares necessários às comunicações e ao intercâmbio de informações e conhecimentos no âmbito do Sistema, observando medidas e procedimentos de segurança e sigilo, sob coordenação da ABIN, com base na legislação pertinente em vigor."

No que tange especificamente à ABIN, o Decreto também elencou suas funções, estando dentre elas a de coordenar a obtenção de dados e informações e a produção de conhecimentos sobre temas de competência de mais de um membro do Sistema Brasileiro de Inteligência, promovendo a necessária interação entre os envolvidos, bem como acompanhar a produção de conhecimentos, por meio de solicitação aos membros do Sistema Brasileiro de Inteligência, para assegurar o atendimento da finalidade legal do Sistema.

"Art. 10. Na condição de órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência, a ABIN tem a seu cargo:

I - estabelecer as necessidades de conhecimentos específicos, a serem produzidos pelos órgãos que constituem o Sistema Brasileiro de Inteligência, e consolidá-las no Plano Nacional de Inteligência;

II - coordenar a obtenção de dados e informações e a produção de conhecimentos sobre temas de competência de mais de um membro do Sistema Brasileiro de Inteligência, promovendo a necessária interação entre os envolvidos;

III - acompanhar a produção de conhecimentos, por meio de solicitação aos membros do Sistema Brasileiro de Inteligência, para assegurar o atendimento da finalidade legal do Sistema;

IV - analisar os dados, informações e conhecimentos recebidos, com vistas a verificar o atendimento das necessidades de conhecimentos estabelecidas no Plano Nacional de Inteligência;

V - integrar as informações e os conhecimentos fornecidos pelos membros do Sistema Brasileiro de Inteligência;

VI - solicitar dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal os dados, conhecimentos, informações ou documentos necessários ao atendimento da finalidade legal do Sistema;

VII - promover o desenvolvimento de recursos humanos e tecnológicos e da doutrina de inteligência, realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de inteligência, em coordenação com os demais órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência;

VIII - prover suporte técnico e administrativo às reuniões do Conselho e ao funcionamento dos grupos de trabalho, solicitando, se preciso, aos órgãos que constituem o Sistema colaboração de servidores por tempo determinado, observadas as normas pertinentes; e

IX - representar o Sistema Brasileiro de Inteligência perante o órgão de controle externo da atividade de inteligência.

Parágrafo único. Excetua-se das atribuições previstas neste artigo a atividade de inteligência operacional necessária ao planejamento e à condução de campanhas e operações militares das Forças Armadas, no interesse da defesa nacional."

2.4 DA DOUTRINA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA (DNISP)

Em função dos jogos Pan Americanos realizados no estado do Rio de Janeiro em 2007, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) divulgou a Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública (DNISP), com o objetivo de possibilitar a padronização da Inteligência da Segurança Pública (ISP) em nível nacional para poder realizar o enfrentamento do crime que atualmente é dinâmico e "translocalizado" (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2007, p. 10).

De acordo com a SENASP, o processo de globalização, os avanços tecnológicos, desequilíbrios sociais e econômicos, dentre outros fatores, possibilitam que a camada criminosa da sociedade se aperfeiçoe, minando o estado com corrupção, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas, e na expectativa de se combater esse desafio, os órgãos de segurança pública passaram a produzir conhecimento através da inteligência de segurança pública.

Com efeito, a SENASP pretendeu disciplinar, orientar e padronizar as ações de Inteligência de Segurança Pública dentro do Sistema de Inteligência de segurança Pública, orientando a produção e a salvaguarda do conhecimento dentro dos parâmetros legais, preservando os direitos e garantias individuais.

Nessa linha de raciocínio, a SENASP assim definiu a atividade de inteligência de segurança pública:

"O exercício sistemático de ações especializadas para a produção e salvaguarda de conhecimentos necessários para prever, prevenir e reprimir atos difusos de qualquer natureza ou relativos a outros temas de interesse da Segurança Pública e da Defesa Social. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2007, p.12)"

Além disso, a DNISP trouxe, especialmente, a definição de inteligência e de contra-inteligência, de segurança orgânica e segurança ativa, criou um ciclo de conhecimento, definiu os documentos de inteligência, esclareceu as operações de inteligência e outros.

Para melhor compreensão do tema, vale esclarecer o que prevê a DNISP acerca de cada um dos itens citados no parágrafo anterior:

  • Inteligência: "é o ramo da ISP que se destina à produção de conhecimentos de interesse da Segurança Pública e Defesa Social", isto é, produz conhecimentos para a atividade-fim (inteligência "positiva").

  • Contra-inteligência: "é o ramo da ISP que se destina à proteção da atividade e da instituição, por intermédio de medidas ativas e passivas de proteção", ou seja, produz conhecimento para proteger a inteligência e a respectiva instituição (inteligência "negativa").

  • Segurança orgânica (segurança de pessoal, segurança da documentação, segurança das instalações, segurança do material, segurança das operações de ISP, segurança das comunicações e telemática, segurança da informática);

  • Segurança ativa (contrapropaganda, contra-espionagem, contra-sabotagem, contraterrorismo).

  • Ciclo de produção do conhecimento: Processo formal, contínuo e seqüencial, composto por quatro fases, que tem como resultado um conhecimento de inteligência: Planejamento; Reunião de dados e/ou conhecimentos (ações de coleta e ações de busca); Processamento (avaliação, análise, integração e interpretação) e; Difusão.

  • Tipos de conhecimento: Informe, informação, apreciação e estimativa

  • Documentos de inteligência: Relatório de Inteligência (RELINT), Pedido de Busca (PB), Mensagem (Msg) e Sumário.

  • Reunião de dados – Operações de inteligência: "É conjunto de Ações de Busca (podendo, eventualmente, envolver Ações de Coleta) executado para obtenção de dados protegidos e/ou negados de difícil acesso e que exige, pelas dificuldades e/ou riscos, um planejamento minucioso, um esforço concentrado e o emprego de pessoal, técnicas e material especializados"

  • Ações de busca: reconhecimento; vigilância; recrutamento operacional; infiltração; desinformação; provocação; entrevista; entrada; interceptação de sinais (eletromagnéticos, óticos e acústicos) e de dados; observação [DISPERJ: interrogatório; interceptação postal; interceptação das comunicações; não entrada]


3. DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Em apertada síntese, a investigação criminal é um procedimento preliminar, de caráter administrativo e normalmente feito pela polícia investigativa ("polícia judiciária"), por meio do qual se procura reunir um mínimo de provas que permita ao acusador pedir o início do processo penal.

Praticado um fato definido como infração penal, surge para o Estado o jus piniendi, que só pode ser concretizado através do processo. É na ação penal que deve ser deduzida em juízo a pretensão punitiva do Estado. A fim de se propor a ação penal, entretanto, é necessário que o Estado disponha de um mínimo de elementos probatórios que indiquem a ocorrência de uma infração penal e sua autoria, sendo o mais comum que isso seja obtido com o inquérito policial.

Seguindo a lição de Fernando Capez, o Inquérito Policial:

"É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial. Tem como destinatários imediatos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (CF, art. 129, I), e o ofendido, titular da ação penal privada (CPP, art. 30); como destinatário mediato tem o juiz, que se utilizará dos elementos de informação nele constantes, para o recebimento da peça inicial e para formação do seu convencimento quanto à necessidade de decretação de medidas cautelares. [03]"

Cabe à polícia judiciária, exercida pelas autoridades policiais, a atividade destinada a apuração das infrações penais e da autoria por meio do inquérito policial, preliminar ou preparatório da ação penal.

O destinatário imediato do inquérito é o Ministério Público (no caso em que o crime se apura mediante ação penal pública) ou o ofendido (nos casos de ação penal privada), que, com ele, forma a opinio delicti para a propositura da ação penal.

Na lição de Júlio Fabbrini Mirabete:

"Não é o inquérito ‘processo’, mas procedimento administrativo-informativo destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários á propositura da ação penal." [04]

A polícia, instrumento da administração, é uma instituição de direito público, destinada a manter a paz pública e a segurança individual. Nos termos do ordenamento jurídico do país, cabe à Polícia as funções administrativas (ou de segurança), de caráter preventivo, em que deve garantir a ordem pública e impedir o cometimento de fatos que lesem ou ponham em perigo bens individuais ou coletivos e a função judiciária, de caráter repressivo, quando deve, após a prática de uma infração penal, recolher elementos para que se possa instaurar a competente ação penal contra os autores do fato.

O processo penal (em sentido estrito) é o procedimento principal, constituindo-se num procedimento judicial de caráter jurisdicional, feito para decidir se alguém (o réu) será penalmente condenado ou absolvido pela suposta prática de uma infração penal.

A persecução criminal, "persecutio criminis", persecução penal, perseguição penal ou perseguição criminal é um procedimento persecutório, consistente no conjunto de atos e meios utilizados pelo investigador, no procedimento preliminar administrativo (investigação criminal), e pelo acusador, no procedimento principal judicial (processo penal), para demonstrar a existência da infração penal e sua autoria e, no procedimento principal, também para obter a sentença penal condenatória transitada em julgado (ou a sentença penal absolutória imprópria com imposição de medida de segurança, transitada em julgado).

A persecutio criminis, portanto, divide-se em duas:

I - persecutio criminis extra iudicio, que é a investigação criminal, normalmente conduzida pela polícia investigativa ("polícia judiciária"), mas que pode ser feita, dependendo do caso, por outras autoridades, como ocorre, por exemplo, com as comissões parlamentares de inquérito (CPIs), e;

II - persecutio criminis in iudicio, que é feita pelo acusador no processo penal, que é normalmente o Ministério Público e, como exceção, um particular.

Seguindo a lição de Denilson Feitoza, numa releitura constitucional, a persecução criminal tem as seguintes finalidades imediatas principais:

"a) demonstrar a existência ou inexistência da infração penal e sua autoria, ou, por outra perspectiva, formar a convicção da entidade decisora (Ministério Público ou acusador privado, na investigação criminal, e órgão jurisdicional, no processo penal) sobre a existência ou inexistência de um fato delitivo (infração penal) e sua autoria;

b) iniciar o processo penal em sentido estrito, na fase pré-processual (com ou sem investigação criminal);

c) obter uma sentença definitiva transitada em julgado sobre o fato delitivo e sua autoria, condenando ou absolvendo o réu, no processo penal em sentido estrito;

d) garantir os direitos fundamentais das pessoas sujeitas à persecução criminal."

Os fins mediatos da persecução penal podem ser divididos em geral e específico, sendo geral a segurança pública, e específico os bens jurídicos constitucionalmente protegidos [05].

De acordo com a CF, às policiais civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as "funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares", senão vejamos;

"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

[...]

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares."

Impende ressaltar que o art. 4º do Código Penal pátrio não faz tal distinção, denominando de "polícia judiciária" os órgãos de apuração de infrações penais. [06]

Vejamos de que forma Fernando Capez define a Polícia judiciária:

"- Judiciária: função auxiliar à justiça (daí a designação); atua quando os atos que a polícia administrativa pretendia impedir não foram evitados. Possui a finalidade de apurar as infrações penais e suas respectivas autorias, a fim de fornecer ao titular da ação penal elementos para propô-la. Cabe a ela a consecução do primeiro momento da atividade repressiva do Estado. Atribuída no âmbito estadual às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, sem prejuízo de outras autoridades (CF, art. 144, §4º). [07]"


4. INQUÉRITO POLICIAL VERSUS ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA

De imediato, é evidente que ambos os institutos, cada um a seu modo, buscam a verdade sobre algo, utilizando-se para tanto de pesquisas científicas, sendo o Inquérito Policial através de investigação criminal/processo penal, e a Atividade de Inteligência por meio de atividades/operações de inteligência.

Entretanto, a evolução de seus métodos, técnicas e instrumentos de busca da verdade, portanto, podem ser reconduzidos a um modelo único de comparação. Por exemplo, a técnica de pesquisa denominada observação (participante ou não), utilizada na pesquisa científica, é uma idéia básica que se denomina respectivamente vigilância, na inteligência, e campana, na investigação criminal.

Na lição de Denilson Feitoza:

"as diferenças fundamentais são os critérios de aceitabilidade da verdade, objetivos, marcos teóricos e regras formais específicas de produção. Por exemplo, no processo penal, objetiva-se uma verdade processual, necessária à tomada de decisão judicial, enquanto, numa atividade de inteligência destinada a um ‘processo político’, o grau de aceitabilidade do caráter de verdade de um fato é o necessário para uma decisão política." [08]

E conclui afirmando que:

"Os métodos, técnicas e instrumentos das atividades e operações de inteligência e da investigação criminal podem ser reconduzidos ao modelo geral do método científico".

Não há como negar que, na busca da verdade, todos estabelecem um problema, hipótese, objetivo, justificativa/relevância, situação do tema/problema, marco teórico, métodos/técnicas/instrumentos de pesquisa, população/amostra, cronograma, conclusão, produção do relatório de pesquisa etc. As terminologias podem ser diferentes, mas a idéia básica é a mesma.

Vejamos as principais diferenças entre os institutos (Inquérito Policial e Atividade de Inteligência):

Quanto aos pressupostos:

  • Inquérito policial: infração penal

  • Atividade de inteligência: demanda informacional

Quanto aos meios:

  • Inquérito policial: diligências policiais (art. 6º do CPP [09])

  • Atividade de inteligência: ciclo de inteligência

Quanto à finalidade:

  • Inquérito policial: processo penal (matéria probatória)

  • Atividade de inteligência: processos decisórios de segurança pública (sem restrição às suas fontes informacionais)

Podemos citar como técnicas de inteligência aplicáveis ao inquérito policial:

  • Técnicas analíticas aplicadas pelo órgão de inteligência (OI) no inquérito policial (IP): Exemplo: em determinado inquérito policial de alta complexidade, analistas do órgão de inteligência empregam técnica de análise associativa para estabelecer vínculos/ligações entre "entidades" (contas-correntes, correntistas, datas, transferências etc.)

  • Conhecimento de inteligência do OI no IP. Exemplo: conhecimento de inteligência sobre modus operandi de certa organização criminosa pode orientar apuração em determinado inquérito policial.

  • Conhecimento de contra-inteligência do OI no IP. Exemplo: conhecimento de contra-inteligência sobre ameaça concreta de certa organização criminosa pode orientar medidas de salvaguarda em determinado inquérito policial.

  • Ações de busca/técnicas operacionais do OI no IP. Exemplo: em inquérito policial sobre determinada organização criminosa, equipe do órgão de inteligência é acionada para ação de busca de dado protegido.

Com efeito, torna-se evidente que métodos, técnicas e instrumentos de inteligência e contra-inteligência aplicados pelo órgão de investigação policial ao IP não são exclusividade de órgãos de inteligência e podem ser adaptados a órgãos de investigação criminal.


5. DA SISTEMÁTICA CONSTITUCIONAL ACERCA DA SEGURANÇA PÚBLICA

A noção de segurança pública pode ser extraída do art. 144, caput, da Constituição, que estabelece ser a segurança pública de responsabilidade de todos e dever do estado, devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos órgãos indicados no mesmo dispositivo, conforme segue:

"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:"

Impende, neste momento, mais uma vez colacionar a preciosa lição de Denilson Feitosa acerca do real significado e importância de Segurança Pública:

"A segurança pública, portanto, tem relação tanto com a ordem pública quanto com a incolumidade das pessoas e do patrimônio. A referência genérica à incolumidade e a previsão dos corpos de bombeiros militares nos demonstram que a segurança pública não tem relação somente com a prevenção, controle e repressão à prática de crimes, mas também com a orientação e socorro à população quanto à incolumidade das pessoas e do patrimônio independentemente da prática de crimes, como na ocorrência de calamidades (incêndios, inundações, tempestades etc.) ou na prevenção de riscos individuais ou coletivos de incêndios.

A segurança pública é a atividade de preservação (dinamicamente) ou a situação (estaticamente) de ordem pública e de incolumidade das pessoas e do patrimônio. A ordem pública pode ser definida como situação de paz e de ausência de crimes. A paz pode ser definida estaticamente como a ausência de violência, processualmente como a identificação e a resolução favorável de fenômenos caracterizados por algum tipo de violência, e estruturalmente como capacidade de uma sociedade de tornar visível e resolver favoravelmente os tipos de violência nela existentes. A paz se caracteriza bem melhor como um processo (de identificação e resolução de violência) do que como um estado ideal a ser atingido. E a paz, por fim, nos remete à noção de violência acima exposta. A violência estrutural (e, por extensão, as demais) ocorre, usando a formulação de FISAS (2002), "quando por motivos alheios a nossa vontade não somos o que poderíamos ser ou não temos o que poderíamos ter.

Assim definida, a segurança pública pode ser abordada como um processo de realização/preservação de paz e, por conseguinte, de identificação e resolução favorável de fenômenos caracterizados por algum tipo de violência. Tendo em vista a noção ampla de violência, a segurança pública se refere à integralidade dos direitos fundamentais.

Por fim, como categoria jurídico-dogmática, a segurança pública pode ser enfocada por vários ângulos, como direito fundamental social, direito fundamental individual, dever fundamental, princípio, bem jurídico constitucional difuso ou coletivo lato sensu, bem como pelas várias funções dos direitos fundamentais, como função de defesa, função de proteção, função de prestação social e função de não-discriminação. [10]"

Para o doutrinador, e entendimento que merece ser recebido com louvor, a finalidade da Segurança Pública é realizar a segurança pública, o que é feito por meio do Inquérito Policial, Atividade de Inteligência, administração Estratégica e Gestão do Conhecimento.

Com efeito, a partir deste entendimento, podemos então concluir que o rol dos órgãos legitimados a exercer a segurança pública, constante no art. 144 da CF, é numerus apertus, ou seja, não é taxativo, haja vista que a segurança pública, como direito fundamental, não pode ter seu âmbito de atuação restringindo apenas àqueles órgãos, até mesmo por uma questão de interpretação principiológica da CF, conforme se verá adiante.

Vale ressaltar que a Segunda Turma do STF, em julgamento em 10/03/2009, reconheceu por unanimidade que existe a previsão constitucional de que o Ministério Público (MP) tem poder investigatório. A Turma analisava o Habeas Corpus (HC) 91661, referente a uma ação penal instaurada a pedido do MP, na qual os réus são policiais acusados de imputar a outra pessoa uma contravenção ou crime mesmo sabendo que a acusação era falsa.

Segundo a relatora do HC, ministra Ellen Gracie, é perfeitamente possível que o órgão do MP promova a coleta de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e materialidade de determinado delito. "Essa conclusão não significa retirar da polícia judiciária as atribuições previstas constitucionalmente", ponderou Ellen Gracie.

Ela destacou que a questão de fundo do HC dizia respeito à possibilidade de o MP promover procedimento administrativo de cunho investigatório e depois ser a parte que propõe a ação penal. "Não há óbice (empecilho) a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente à obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal", explicou a ministra.

A relatora reconheceu a possibilidade de haver legitimidade na promoção de atos de investigação por parte do MP. "No presente caso, os delitos descritos na denúncia teriam sido praticados por policiais, o que também justifica a colheita dos depoimentos das vítimas pelo MP", acrescentou.

Na mesma linha, Ellen Gracie afastou a alegação dos advogados que impetraram o HC de que o membro do MP que tenha tomado conhecimento de fatos em tese delituosos, ainda que por meio de oitiva de testemunhas, não poderia ser o mesmo a oferecer a denúncia em relação a esses fatos. "Não há óbice legal", concluiu.

O HC foi denegado por essas razões e porque outra alegação – a de que os réus apenas cumpriam ordem do superior hierárquico – ultrapassaria os estreitos limites do habeas corpus. Isso porque envolve necessariamente o reexame do conjunto fático probatório e o tribunal tem orientação pacífica no sentido da incompatibilidade do HC quando houver necessidade de apurar reexame de fatos e provas.

5.1 DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O princípio do devido processo legal, expressamente previsto na CF como direito e garantia fundamental (art. 5º, LIV), é assegurado à todos, seja em âmbito administrativo, judicial ou legislativo:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;"

Seguindo a lição de Fernando Capez, o Devido Processo Penal:

"Consiste em assegurar à pessoa o direito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens, sem a garantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei (due process of Law – CF, art. 5º, LIV). No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica, de ter acesso à defesa técnica, de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões, ressalvadas as exceções legais, de ser julgado perante o juízo competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado. Deve ser obedecido não apenas em processos judiciais, civis e criminais, mas também em procedimentos administrativos, inclusive militares." [11]

Nesse contexto, tratando-se o SISBIN de uma instituição de cunho eminentemente administrativo, parece ser claro que a ela também se aplica o devido processo legal quando da produção de documentos de inteligência.

A partir deste entendimento, não podemos esquecer que, mesmo atuando sob o manto do devido processo legal administrativo, a atuação da ABIN ainda encontra restrição nas circunstâncias em que a lei prescreve como sendo de reserva de jurisdição, como é o caso, por exemplo, da interceptação telefônica, que só pode ser realizada mediante autorização judicial, nos termos do art. 1º da Lei nº 9296 de 1996, conforme abaixo:

"Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática."

Ademais, como dito alhures, a atuação da ABIN também encontra restrição nos direitos e garantias fundamentais, sob pena de responsabilização.

Com efeito, tendo em vista as restrições evidenciadas, o que faz cumprir a carta magna, convicto é o entendimento, portanto, que a atividade de inteligência, contra-inteligência e operações de inteligência são juridicamente possíveis.

Impende esclarecer que no Inquérito Policial a polícia judiciária também deve observar o devido processo legal, mas nesse caso o devido processo legal é administrativo e judicial, com as mesmas restrições impostas à atividade de inteligência (AI), acrescentando as limitações constitucionais específicas da condição de suspeito/investigado/indiciado.

Com isto, para que haja observância aos preceitos constitucionais, quando houver a confusão entre o IP e a AI, deverão sempre observar todas as limitações relativas ao IP, sob pena serem considerados ilícitos os documentos eventualmente produzidos.

Com efeito, as "provas" obtidas pelas atividades de inteligência em geral e pelas operações de inteligência podem, em princípio, ser utilizadas na investigação criminal, desde que sujeitas às limitações de conteúdo e de forma estabelecidas pela lei processual penal.

Claro que no processo penal propriamente dito, a aplicabilidade dos documentos produzidos pela ABIN é menor, tendo em vista as normas probatórias mais limitativas, como princípio do contraditório, princípio da ampla defesa, entre outros.

Como bem lembra Denilson Feitoza:

"Em razão do segredo de certas matérias ou dos sigilos funcionais a que estão submetidos agentes de inteligência, geralmente não é possível a utilização dos elementos probatórios colhidos durante as atividades de inteligência no âmbito do direito processual penal, não porque não sejam reconhecidos pelo direito processual como elementos probatórios ou investigativos, mas por força dos sigilos legalmente impostos aos agentes de inteligência ou às matérias sigilosas"

Em razão do sigilo constitucional imposto aos documentos de inteligência de imprescindibilidade para a sociedade e estado, os mesmos não devem ser pura e simplesmente inseridos em inquéritos policiais e processos penais, eis que afetaria a eficiência e a confiabilidade da AI.

5.2 DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E DO PRINCÍPIO FEDERATIVO

Alguns doutrinadores, como o próprio Denilson Feitoza, apontam o princípio da eficiência e o princípio federativo como os fundamentos estruturadores da possibilidade de os documentos produzidos pela ABIN serem também utilizados em inquéritos policiais e ações penais.

O princípio da eficiência, inserido na CF por meio da EC nº 19 de 1.998, traduz a necessidade do serviço público ser prestado com qualidade e resultado, não se contentando apenas com a observância do princípio da legalidade, devendo, além de tudo, importar em um retorno positivo e satisfatório para a sociedade.

Acerca do princípio da eficiência, vejamos a brilhante lição de Hely Lopes Meireles:

"Eficiência – o princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros." [12]

O princípio da eficiência está expressamente previsto no caput do art. 37 da CF. In vérbis:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:"

Com efeito, com sabe no princípio da eficiência, a AI não só pode como deve ser utilizada como documentos probatórios em Inquéritos Policiais e processos criminais, haja vista que, esta colaboração entre as instituições está justamente dando aplicabilidade ao desígnio constitucional da eficiência, até mesmo porque todos sabem que muitas vezes o aparato da polícia judiciária estadual não é o suficiente para realizar as atividades investigativas que a sociedade dela espera.

No tocante ao princípio da federação, por ele procura-se dar-se aplicabilidade ao disposto no art. 144 da CF, haja vista que seu texto é claro no sentido de que a segurança pública é dever do Estado, e direito e responsabilidade de todos.

Ora, nos termos do art. 1º da CF, a República Federativa do Brasil (RFB) é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, tendo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º da CF), bem como que tem como poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o legislativo, o judiciário e o executivo.

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político;

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Nesse contexto, considerando que a RFB é formada pela união indissolúvel dos Estados e Município e do Distrito Federal, considerando que o judiciário, o executivo e o legislativo são todos poderes da União e devem funcionar de forma harmônica entre si, e, considerando ainda, que a segurança pública é dever do estado, direito e responsabilidade de todos, não há que se falar em qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade na utilização de documentos produzidos pela ABIN pela polícia judiciária, haja vista que tal colaboração traduz o princípio do federalismo, adotado pela própria CF.


6. CONCLUSÃO

Face a toda fundamentação exposta, podemos concluir que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), é responsável por planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País, de acordo com a política e às diretrizes superiormente traçadas nos termos da Lei que a instituiu, qual seja, a Lei 9.883 de 1.999, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

Em sua atuação, a ABIN é obrigada a observar o devido processo administrativo, nos termos da Lei que a criou, bem como encontra restrição à sua atuação também nos direitos e garantias fundamentais, elencados no art. 5º da CF.

Igualmente ocorre com a polícia judiciária quando da condução do inquérito policial, de maneira que, em sua atuação, tem o dever de observar o devido processo legal administrativo, uma vez que o IP é um procedimento preliminar preparatório eminentemente administrativo, bem como o devido processo legal judicial e, ainda, os direitos e garantias fundamentais e as limitações constitucionais específicas da condição de suspeito/investigado/indiciado.

Foi visto que a possibilidade de utilização dos documentos produzidos pela ABIN em inquérito policial e processos criminais, desde que os documentos não se revelassem imprescindíveis à segurança do Estado e da sociedade, encontra como aliados os princípios da eficiência e do federalismo, ambos explícitos na CF.

Por eles, a utilização em inquérito policial e processos criminais dos documentos produzidos pela ABIN, representaria maior eficiência à atuação da polícia judiciária, haja vista que esta nem sempre detêm os meios e técnicas necessárias para realizar suas investigações de maneira a atender os anseios da sociedade, bem como que representaria a observância ao princípio do federalismo, que traduz a necessidade dos entes federados cooperarem entre si em busca de um objetivo maior, que é a defesa dos interesses da sociedade, dando-se, assim, efetiva aplicabilidade ao art. 144 da CF, explicitado alhures.

Com efeito, quando a atividade de inteligência, portanto, se confundisse com o inquérito policial, sua atuação não estaria comprometida, mas, assim como ocorre no IP, deverá observar, além do devido processo legal administrativo e os direitos e garantias fundamentais, também o devido processo legal judicial e todas as restrições constitucionais específicas da condição de suspeito/investigado/indiciado, sob pena de revestir os documentos produzidos de flagrante ilicitude.

Com isto, se a atuação da atividade de inteligência foi realizada dentro das mesmas limitações impostas á atuação da polícia judiciária, não há porque não merecer credibilidade do judiciário os documentos eventualmente produzidos. Aliás, muito pelo contrário, tais documentos deverão ser recepcionados com a plenitude de um documento idôneo, com base nos princípios da legalidade e do federalismo.


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Feitoza, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 5. ed. rev., ampl., e atual. Niterói: Impetus, 2008ª;

Feitoza Pacheco, Denilson. O princípio da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007;

Feitoza, Denilson. Persecução às organizações criminosas e novos métodos de investigação. In: CONGRESSO PERSPECTIVAS RELEGITIMADORAS DO SISTEMA PENAL, 1., 2008, Goiânia. Goiânia: ESMPU, 2008c. Slide em PowerPoint;

Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005;

Távora, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Ed. Jus Podiun;

Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª edição. Ed. Malheiros. 2002;

Mirabete, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 10ª edição. Ed. Jurídico Atlas. 2003.

Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Ed. Saraiva. 2006.


Notas

  1. Parágrafo único do art. 3º da Lei 9.883 de 1.999: As atividades de inteligência serão desenvolvidas, no que se refere aos limites de sua extensão e ao uso de técnicas e meios sigilosos, com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado.

  2. Art. 1º Fica criado, no âmbito do Sistema Brasileiro de Inteligência, instituído pela Lei no 9.883, de 7 de dezembro de 1999, o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, com a finalidade de coordenar e integrar as atividades de inteligência de segurança pública em todo o País, bem como suprir os governos federal e estaduais de informações que subsidiem a tomada de decisões neste campo.

  3. Art. 2º Integram o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública os Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Defesa e da Integração Nacional e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

    § 1º O órgão central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública é a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.

    § 2º Nos termos do § 2º do art. 2º da Lei no 9.883, de 1999, poderão integrar o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública os órgãos de Inteligência de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal.

    § 3º Cabe aos integrantes do Subsistema, no âmbito de suas competências, identificar, acompanhar e avaliar ameaças reais ou potenciais de segurança pública e produzir conhecimentos e informações que subsidiem ações para neutralizar, coibir e reprimir atos criminosos de qualquer natureza.

  4. Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Ed. Saraiva. 2006. 72p.

  5. Mirabete, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 10ª edição. Ed. Jurídico Atlas. 2003. 86p.

  6. FEITOZA, Denilson. Direito processual: teoria, crítica e práxis. 5. ed., rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2008a, p. 47-52.

  7. Art. 4º do CPP: A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

  8. Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. . 13ª edição. Ed. Saraiva. 2006. 73p

  9. FEITOZA, Denilson. Direito processual: teoria, crítica e práxis. 5. ed., rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2008a, p. 719-720

  10. Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

  11. I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; (Inciso com redação determinada na Lei nº 8.862, de 28.3.1994, DOU 29.3.1994)

    II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais. (Inciso com redação determinada na Lei nº 8.862, de 28.3.1994, DOU 29.3.1994)

    III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;

    IV - ouvir o ofendido;

    V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;

    VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

    VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

    VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;

    IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.

  12. FEITOZA PACHECO, O princípio da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro, 2007, p. 171 e 175-176.

  13. Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Ed. Saraiva. 2006. 32/33p

  14. Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª edição. Ed. Malheiros. 2002. 94p.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Fabrício Piassi. O valor judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2112, 13 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12626. Acesso em: 3 maio 2024.