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Tutela especial do trabalho da criança e do adolescente no Brasil.

Uma análise a partir da encíclica Rerum Novarum

Tutela especial do trabalho da criança e do adolescente no Brasil. Uma análise a partir da encíclica Rerum Novarum

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A pesquisa toma em seu bojo como aporte histórico, a Encíclica "Rerum Novarum", que completa seu 120º aniversário, com sua previsão expressa de especial proteção à infância no ambiente de trabalho.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O Trabalho da Criança e do Adolescente no Mundo: breve histórico; 2 Encíclica Rerum Novarum:de sua gênese à previsão de proteção aos infantes trabalhadores; 2.1 Contexto de Surgimento; 2.2 A Proteção Especial ao Trabalhador Infante; 3 O Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil; 3.1 Notícias Históricas; 3.2 Evolução dos Instrumentos de Proteção ao Trabalho Infantil na Legislação Pátria; 3.2.1 A Doutrina da Proteção Integral; 4 Da Tutela Especial da Criança e do Adolescente na Esfera Trabalhista; 4.1 Direito Fundamental à (Des)Igualdade; 4.1.1 Índoles Formal e Material do Direito Fundamental à (Des)Igualdade; 5 Da Efetividade dos Direitos Fundamentais;5.1 A Eficácia Social dos Direitos Fundamentais das Crianças e Adolescentes nas Relações Trabalhistas; Considerações Finais.

RESUMO

A proteção especial ao trabalho da criança e do adolescente é objeto de debates doutrinários desde os tempos mais remotos, inicialmente de forma tímida, porém, com o passar dos anos, ganhando maior notoriedade. Corroborando a evolução dos estudos nesta seara, o presente trabalho busca evidenciar que a partir do reconhecimento das diferenças entre os sujeitos, dá-se de forma mais eficaz a proteção de seus direitos, ou seja, pretende demonstrar que, devido à sua situação peculiar, assiste às crianças e aos adolescentes uma extensa lista de direitos observados nas mais diversas áreas, notadamente, pelo escopo deste estudo, no âmbito dos direitos laborais. A pesquisa toma em seu bojo como aporte histórico, a Encíclica Rerum Novarum, em vias de completar seu 120º aniversário, com sua previsão expressa de especial proteção à infância no ambiente de trabalho. Ao mesmo tempo, o estudo acolhe uma interpretação sistemática dos dispositivos da Constituição Federal brasileira, dos mandamentos contidos no corpo do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como das normas de tutela previstas pela Consolidação das Leis do Trabalho, trazendo ainda, as Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho sobre o tema, ratificadas pelo Brasil, para, ao seu término, poder arrazoar sobre a importância dos preceitos contidos na Rerum Novarum como norteadores de uma política de efetivação da proteção especial dos Direitos Trabalhistas reservados à criança e ao adolescente.

Palavras-Chave: Rerum Novarum; Trabalho; Criança e Adolescente; Proteção Especial.


INTRODUÇÃO

A proteção à criança e ao adolescente naquilo que se refere ao trabalho destes sujeitos sofreu ao longo dos anos diversas transformações. A Encíclica Rerum Novarum, documento emanado do Papa Leão XIII em 1891 pode ser tomada como um dos marcos históricos da efetiva mudança no trato da questão em tela, conferindo ao Estado o status de principal ator na tutela jurídica desses direitos.

Todos aqueles que hodiernamente se encontram sob a condição de seres humanos são sujeitos de direitos. Porém, esta máxima não encontrava respaldo em tempos nem tão remotos assim, faltando a muitos indivíduos algo que hoje é inerente a qualquer ser humano, qual seja, a sua dignidade, traduzida pela aferição na prática de seus direitos.

Pautando-se na inspiração kantiana é que se alcançou a conscientização contemporânea de que todo o homem possui uma dignidade, não mais sendo uma res com preço. Mesmo com tal evolução de pensamento, é preciso deixar evidente as diferenças de determinados sujeitos, para que melhor se assegurem os seus direitos, não restando dúvidas de que o caminho mais eficiente para se atingir tal mister é o da especificação dos sujeitos de direitos, não os generalizando, mas sim, percebendo suas peculiaridades.

Nesta torre de idéias, não há como negar que o processo de formação física, psíquica e intelectual da criança e do adolescente é diferenciado e a forma de tratamento dispensada pelo ordenamento jurídico a estes indivíduos também merece conter em sua estrutura institutos que atuem distinguindo-os dos demais indivíduos.

Nas relações de trabalho, foco da análise que será neste empreendida, a prática do labor infantil (englobando-se aqui a criança e o adolescente), em desconformidade com os ditames legais, torna-se um exemplo de grave desrespeito à dignidade da pessoa humana, atentando contra os chamados Direitos Humanos Fundamentais Trabalhistas, atingindo, por sua vez, sujeitos de direitos que gozam de especial amparo jurídico.

Vislumbrando discorrer sobre a tutela especial dispensada às crianças e adolescentes no ambiente de trabalho, é que o presente estudo será desenvolvido, apresentando em um primeiro momento breve explanação acerca das origens do labor infantil no mundo, passando a seguir, à contextualização histórica do momento no qual se inseriu a Encíclica Rerum Novarum.

Em um terceiro momento, a pesquisa seguirá oferecendo ao leitor notícias acerca do uso de mão-de-obra infantil no decorrer da história brasileira, ao lado de breves apontamentos relacionados à evolução dos instrumentos legais protetores do labor da criança e do adolescente, contidos no arcabouço jurídico pátrio.

Serão, ainda, objetos do estudo, os elementos formadores da tutela especial dos direitos da criança e do adolescente no ambiente laboral, remetendo um olhar crítico para as escritas papais de 1891, porém, fincando a fundamentação destes no direito hodierno.

Ao seu término, o trabalho almeja, em linhas gerais, abordar a questão da efetividade dos instrumentos de proteção já existentes, ambicionando aproximar os mandamentos contidos nas escritas papais de 1891 e os atuais instrumentos de tutela especial dos direitos trabalhistas reservados à criança e ao adolescente, fomentando, quiçá, novos debates envolvendo o assunto.


1 O TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO MUNDO: breve histórico

A utilização da mão-de-obra infantil se verificou em todas as fases da história da humanidade, porém a determinação precisa do momento inicial do emprego de mão-de-obra de menores de 18 anos em trabalhos resta impossível. Neste sentido pensa-se que com o início do labor do ser humano, deu-se também o início desta prática. [01] A notícia mais antiga que se tem acerca do trabalho infantil (hoje, o termo abrangeria crianças e adolescentes) remonta ao Código de Hamurabi, datado de mais de dois mil anos antes de Cristo, que já previa em seu corpo medidas protetivas às crianças e aos adolescentes que, então, trabalhavam na condição de aprendizes.

As crianças, durante toda a história humana, sempre trabalharam junto às suas famílias e tribos, não havendo distinção entre elas e os adultos com quem conviviam, praticando ações iguais aos adultos, dentro de suas capacidades. [02]

Entre os egípcios, no período das dinastias XII a XX, todos os cidadãos tinham a obrigação do trabalho, sem qualquer distinção ou proteção especial, estando, assim, os menores submetidos ao regime aplicável a todos, desde que já possuíssem algum desenvolvimento físico. Em Roma e na Grécia antigas, com a licitude da escravatura, os filhos dos escravos pertenciam aos amos ou senhores, trabalhando para estes sem qualquer remuneração. [03]

Ainda em Roma, aqueles que não eram filhos de escravos, também trabalhavam e, a partir das corporações para homens livres, os infantes eram aceitos como aprendizes, sendo ensinados, na maioria dos casos, pela própria família, a fim de que, ao emancipar-se, a criança seguisse o ofício de seu pai.

Conforme arrazoa Minharro [04], com a Idade Média e o feudalismo, o senhor feudal dividia sua propriedade em duas metades, sendo a primeira cultivada em proveito próprio, e a segunda destinada ao uso dos camponeses que pagavam altas taxas pelo uso das terras do senhorio. As crianças e adolescentes trabalhavam da mesma forma que os adultos, sendo subjugados, como os pais, ao proprietário da terra.

Nas cidades medievais, toda a produção ficava sob a responsabilidade dos artesãos reunidos nas corporações de ofício, que além de possuírem o monopólio da produção e do comércio dos bens produzidos, ainda concentravam em si o poder de ditar as condições de trabalho à época. Nelas, as crianças e os adolescentes trabalhavam sem qualquer remuneração, muitas vezes, entregando ao mestre do ofício uma determinada quantia para que este lhe ensinasse a arte. Monteiro de Barros [05] destaca que o tempo de trabalho das crianças nas corporações podia em muitos casos girar entre sete e dez anos, excedendo o prazo razoável para que ali fosse lhe ensinado um ofício.

A partir do século XVIII, cresceu a utilização da mão-de-obra dos infantes na chamada zona rural européia. A exemplo disto, na Grã-Bretanha, proprietários de moinhos de algodão recolhiam, em todo o país, crianças órfãs e filhos de famílias miseráveis, fazendo-os trabalhar em troca de alimentação ou de moradia indignas. [06]

É deste período, no sórdido comércio envolvendo crianças e adolescentes, que o empregador deveria se submeter a uma exigência, qual seja, aceitar no lote de trabalhadores menores, os "idiotas", em proporção de uma para cada vinte. [07]


2 ENCÍCLICA RERUM NOVARUM: de sua gênese à previsão de proteção aos infantes trabalhadores

2.1 Contexto de Surgimento

Com o advento da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII, e seguida por outros países, com a mudança do cenário da produção, passando, do sistema corporativo à livre concorrência, a situação dos menores demonstrava-se insustentável no que concerne a seus direitos trabalhistas. As atividades que antes eram artesanais e técnicas passam a ser efetuadas por máquinas, abrindo ainda mais espaço para o uso de mão-de-obra pouco qualificada e mais barata aos industriais, exercida majoritariamente pelas mulheres, por crianças e adolescentes. Pelo magistério de Monteiro de Barros [08], se por um lado o novo regime estimulava o esforço individual, fazendo aumentar a produção, por outro, facilitava a exploração da classe trabalhadora, e, à semelhança do ocorrera com o trabalho da mulher, o maquinismo absorveu também a força de trabalho dos menores.

Não raras vezes, contando com a aprovação de líderes políticos, sociais e religiosos, as crianças passavam a trabalhar nos serviços mais nocivos. Os reflexos sociais disto acabavam por incluir o analfabetismo, agravado pelo empobrecimento maior das famílias e uma verdadeira multidão de crianças doentes, mutiladas ou aleijadas. [09]

Com o panorama acima delineado, e com a postura atentatória adotada pelos empregadores, os trabalhadores passaram a reunir-se buscando condições de trabalho mais dignas, melhores salários e a redução da excessiva jornada de trabalho acompanhada do fim da exploração da mão-de-obra de mulheres e menores.

E assim, em virtude do quadro narrado em linhas anteriores aliado às pressões exercidas pela classe operária e por setores sociais, com grande destaque, aparece a Encíclica Rerum Novarum, considerado o primeiro documento em que a Igreja Católica se posicionava a respeito das injustiças sociais do período, recomendando a intervenção estatal como instrumento capaz de solucionar a questão, eliminando as desigualdades sociais, nomeadamente no tratamento dispensado aos infantes no ambiente de trabalho, conforme será esmiuçado neste, em tópico próprio.

A Encíclica Rerum Novarum, de LEÃO XIII, nome pontifício do Cardeal Gioachino Pecci (1880 -1903), datada de 15 de maio de 1891, almejava reorientar as efervescências do período moderno, alertando sobre os direitos e deveres do operário, do patrão e do Estado.

A Rerum Novarum ambicionava posicionar a Igreja e nortear os fiéis, no final do século XIX, num panorama histórico de grandes transformações que influenciariam, de forma decisiva, o século XX. Sendo assim, é de fundamental importância que se perceba a rede de acontecimentos correlacionados, que liga o autor do documento, o Papa Leão XIII, ao seu contexto. Sabe-se que todo documento é reflexo das conjunturas, estando sempre permeado ao universo da pessoa que o fez. O documento não era considerado de forma alguma ingênuo e sem intenções, pois objetivava persuadir seus receptores. [10]

Com o desenvolvimento do século XIX parecia que os movimentos laicos e seculares passavam do campo do incômodo para um nível mais perigoso, chegando a ameaçar as bases católicas. A descrença pública em Deus se tornava relativamente fácil no mundo ocidental já que muitos ideais do mundo cristão estavam sendo solapados pela ciência e pelas ideologias seculares. [11]

Os frutos das grandes revoluções, como o avanço das tecnologias, a mecanização da produção e, mormente, a expansão do pensamento secularizado, geraram o aumento da urbanização e do proletariado. O crescimento das políticas democráticas dava fôlego também para as expansões do pensamento socialista que fechava este momento vivido pelo Papa Leão XIII.

Há, indubitavelmente, um novo cenário, e a Igreja Católica que, até então vinha se mantendo numa postura de neutralidade em face dos conflitos entre trabalhadores e empregadores, passa a se posicionar. Percebe-se, outrossim, a inquietação do Papa com a nova dinâmica com que o mundo se deparava, já tomando o cuidado de esquematizar uma estratégia que capaz de inserir de forma mais enérgica a Igreja no universo dos debates com a classe operária, evitando o que já parecia ser inevitável, qual seja, um possível confronto entre a Igreja Católica e os operários.

Tal postura do Papa Leão XIII explicou-se, pois, além de ter levado a economia capitalista para uma escala mundial, pode-se afirmar, sem medo, que a Era dos Impériosteve função de extraordinário valor na chamada ocidentalização dos valores culturais, inclusive, disseminando as ideologias laicas. [12]

Questão também importante está relacionada com a democratização em grande escala, ocorrida, notadamente, no final do século XIX. A expansão dos ideais socialistas acelerou este processo, desaguando no crescimento de grupos de massas que tinham por finalidade precípua a contraposição ao governo ou a grupos revolucionários, inclusive, aqueles tidos como de mobilização católica.

Tal conjunto de inovações é que estaria desvirtuando o homem de seu caminho original, levando-o para a procura de realizações puramente carnais. Os progressos humanos estavam empurrando a humanidade para um grande conflito, que, segundo LEÃO XIII, teria como motivo, a usura excessiva e devoradora, assim como a destruição das corporações de ofício que agiam em benefício da sociedade. O próprio socialismo, que se caracterizava como uma das alternativas para a questão operária, é posto pelo Papa, à época, como uma alternativa mais do que errônea para os problemas vividos pela sociedade, pois incitava a desarmonia entre as classes e infringia os direitos sagrados do pensamento católico empobrecendo-os de seus direitos inatos: a propriedade privada e a sociedade doméstica. [13]

Com tamanho perigo se aproximando, a Igreja se via no dever de avisar sobre os maus caminhos e apontar soluções para os desvios da época. A Rerum Novarum coloca que a questão operária só seria resolvida dentro da religião católica. Pode-se concluir, que o Papa assume literalmente a responsabilidade, em nome da Igreja, neste conflito, agindo como os seus predecessores nunca o fizeram, conforme o trecho a seguir transcrito: "É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz." [14]

Assim, a Igreja chama para si a responsabilidade, de maneira sábia, para preservar o seu lugar privilegiado na sociedade da época, garantindo com isto o seu prestígio e o seu poder, afastando, os "perigos" advindos das lutas das classes trabalhadoras.

2.2 A Proteção Especial ao Trabalhador Infante

Uma das primeiras soluções anunciadas pela Igreja, que diante do contexto já demonstrado se sentia na obrigação de apontá-las, relacionava-se com a aceitação das chamadas desigualdades espontâneas da natureza, assentando as classes como harmoniosas e complementares. Nesse sentido apregoava que a sociedade se fazia de pessoas diferentes, com características e habilidades diversas. Disseminava a ideia de que o meio social tanto precisava dos patrões como dos empregados, ou seja, as "desigualdades eram proveitosas." [15]

Desde a Conferência Internacional de Berlim (1890), já se estudavam as bases para a regulamentação internacional do trabalho do menor, deixando evidente a necessidade de intervenção estatal nesta área. A legislação acerca do trabalho do menor sofreu a influência da ação internacional, recebendo um tratamento nitidamente tutelar, mais ou menos semelhante à proteção que mulher recebera. [16]

Nesta perspectiva, a Encíclica sustentava em seu bojo a ingerência estatal nas atividades laborativas, afirmando ser um dever da autoridade pública a proteção de infantes que se encontravam naquela situação, ressaltando que aquilo que um homem válido e na força da idade pode fazer, não será equitativo exigi-lo duma criança.

Especialmente a infância – e isto deve ser estritamente observado, - não deve entrar na oficina senão quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado precoce, e dar-se-á cabo da sua educação. [17] (grifo nosso).

O Papa Leão XIII, já no contexto que envolvia o século XIX, reconheceu de forma explícita um tratamento diverso aos menores no que se refere ao tipo e a duração do trabalho, merecendo, pois, destaque a preocupação esposada pela Igreja com sujeitos de direitos dotados de diferenças em relação à maioria da classe operária da época, valorizando as desigualdades, e, oferecendo subsídios tenazes para o que hodiernamente convencionou-se denominar de igualdade material.

O principal dever dos governantes, conforme previa a Encíclica, seria o que "consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva" [18], mas, não se esquecendo da situação desigual intrínseca à sociedade.

No que tange ao amparo estatal à peculiar condição das crianças e adolescentes, circundando o cenário de elaboração das determinações papais, surgiram, a partir da tomada de posição da Igreja, diplomas legais ofertando amparo, de algum modo, ao trabalhador infante, inaugurando, pois, uma nova etapa de tratamento ao labor infantil.

Ante ao novel panorama, após a Primeira Grande Guerra Mundial, com a assinatura do Tratado de Versalhes, extraíram-se as bases para a criação, em 1919, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), importante organismo que, desde seus primórdios, atua visando harmonizar o ordenamento jurídico dos países, com o objetivo de promover a paz e a justiça social no ambiente de trabalho, a ela podendo filiar-se todos os países-membros da Organização das Nações Unidas. [19]

A partir destes marcos, altera-se o quadro concernente à tutela dos direitos trabalhistas de crianças e adolescentes, alicerçando-se alguns dos pilares de uma doutrina de proteção integral e prioridade absoluta a estes sujeitos, gerando reflexos nos ordenamentos jurídicos das mais diversas partes do globo, inclusive no Brasil, conforme a exposição que será desenvolvida nas linhas abaixo.


3 O TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL

3.1.Notícias Históricas

Discorrer acerca das primeiras informações sobre o trabalho de crianças e adolescentes no Brasil é voltar ao início da colonização do país, em anos que se aproximam de 1500. Pestana, na obra de Minharro [20], aduz que crianças e adolescentes embarcavam em naus portuguesas rumo às terras brasileiras, trabalhando como pajens ou grumetes, submetendo-se a toda sorte de abusos, suportando desde a exploração exaustiva de suas forças físicas na realização dos piores trabalhos, privação de suas alimentações, chegando a sevícias sexuais. Conclui-se que os pequenos eram considerados pouco mais que animais.

Ao lado da exploração dos filhos dos portugueses já nas embarcações, é possível afirmar, sem qualquer medo de errar, que os pequenos nativos também sofreram tais abusos.

À época da escravidão, os filhos dos escravos recebiam o mesmo tratamento de seus pais, não lhes sendo permitido, na maioria das ocasiões, nem o amparo materno em sua infância.

Com a abolição da escravatura, já no século XX, deu-se início ao emprego da mão-de-obra de crianças e adolescentes nas fábricas, seguindo um pouco mais tardiamente, a ausência total de direitos, nos moldes daquilo que a Europa já havia presenciado com a sua Revolução Industrial.

Somente com a chegada da República, em 1889, a preocupação com a regulamentação do trabalho envolvendo os menores tomou algum corpo, desaguando nos diplomas legais que serão alinhados a seguir.

3.2.Evolução dos Instrumentos de Proteção ao Trabalho Infantil na Legislação Pátria

O primeiro instrumento legislativo com vistas à regulamentar o labor de menores no Brasil foi o Decreto n.º 1313 de 1891, que em seu bojo trazia medidas tendentes à disciplinar a atividade de crianças e adolescentes nas fábricas, proibindo o trabalho infantil na maquinação e em faxinas, e vetando a admissão dos menores de doze anos, ressalvando a aprendizagem para aqueles que fossem maiores de oito anos. Porém, embora com dispositivos dotados de um teor protetivo elevado, jamais foi regulamentado, e suas diretrizes não foram colocadas em prática. [21]

A notícia da primeira tentativa parlamentar de proteção ao labor de crianças e adolescentes chega com o Projeto n.º 4-A, de 1912, que deveria regular o trabalho destes sujeitos, proibindo o ingresso dos menores de dez anos, assim como limitando o tempo de atividade, para pessoas entre os dez e quinze anos, a seis horas diárias, condicionando, ainda, a admissão destes a apresentação de exame médico e certificado de frequência anterior em escola primária. [22]

Durante os primeiros anos da República, a tutela do trabalho das crianças e adolescentes encontrou resistência de muitos parlamentares que se escondiam atrás de um argumento que transferia a responsabilidade estatal sobre a matéria para os pais, detentores do pátrio poder, o que acabou por gerar inúmeros diplomas legais sem nenhuma efetividade.

Em 1927, foi aprovado, com o Decreto n.º 17.943-A, o chamado Código de Menores Brasileiro, o qual em seu capítulo IX tratava do labor infanto-juvenil, apregoando, dentre outras proibições, o trabalho para menores de doze anos de idade e a labuta noturna para os menores de dezoito anos. Tal diploma perdurou até o ano de 1979, quando foi revogado pelo Novo Código de Menores, que em suas linhas gerais manteve o mesmo equívoco de seu antecessor, qual seja, tratar, na realidade, apenas da criança em situação irregular (os órfãos ou os chamados "pequenos delinquentes"), considerando que a situação de dependência não ocorria por fatores estruturais, mas sim da orfandade (acidente) e da incompetência das famílias ao não conseguir criá-la.

Merece destaque, no período de vigência do Código de Menores, a sistematização, no ano de 1943, de toda a legislação trabalhista que existia até então, entrando em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), prevendo, dentre outras disposições, que a idade mínima para o labor era catorze anos.

Aportando no momento hodierno, é possível arrazoar que o país evoluiu em temas de tutela ao labor infantil, possuindo, indubitavelmente, uma doutrina normatizada de proteção integral e prioridade absoluta à criança e ao adolescente, pautada na defesa da dignidade desses sujeitos.

3.2.1 A Doutrina da Proteção Integral

A origem da doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente encontra guarida em princípios norteadores desta especial tutela.

Nesse sentido, esses desempenham, pois, uma tríplice função: a) fundamentadora, à medida que inspiram o legislador e servem de alicerce às normas positivas por ele adotadas; b) normativa, porque atuam de forma supletiva, suprindo as lacunas do ordenamento; c) interpretadora, pois se constituem como instrumento de orientação do aplicador da norma, que deles não pode prescindir na descoberta do seu verdadeiro sentido. [23]

Analisando o rol de princípios especificamente reservados ao Direito do Trabalho, pode-se apontar como ápice, o nomeado Princípio da Proteção Integral ao trabalhador, correlacionado ao Princípio da Igualdade e também encontrando lastro no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

No contexto determinado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, a par de outras legislações anteriores, foi adotada pela Organização das Nações Unidas, ONU, em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, visando oferecer à criança e ao adolescente o respeito a seus direitos humanos, exteriorizando os Princípios da Prioridade Absoluta e da Proteção Integral ao trabalhador infanto-juvenil e, neste sentido, o respeito absoluto à sua dignidade de ser humano especial, por estar ainda em franco desenvolvimento físico, mental e social.

São exemplos inequívocos da aplicação desta doutrina no Brasil, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, a CLT, que em seu capítulo IV, dedica-se exclusivamente ao trabalho do menor, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990), notadamente no disposto em seus artigos 3º e 4º, bem como as convenções e recomendações da OIT sobre o trabalho pueril ratificadas pelo país, dentre as quais, se destacam a Convenção n.º 138 [24], complementada pela recomendação n.º 146 [25], regulamentando a idade mínima para o trabalho, e a Convenção n.º 182 [26], complementada pela recomendação n.º 190 [27], versando sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para a sua eliminação.

Ante ao exposto, pode-se balizar o quão diferenciado é, nos dias atuais, o tratamento oferecido pela legislação à criança e ao adolescente nas mais diversas searas, não o sendo diferente, no campo dos direitos laborais.


4 DA TUTELA ESPECIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA ESFERA TRABALHISTA

No que tange à tutela especial dos direitos da criança e do adolescente no ambiente laboral, pode-se afirmar que o processo de conquista destes direitos foi árdua e penosa, atravessando etapas onde a ausência total de direitos, fazia parte do quadro percebido nas relações de trabalho envolvendo os menores, suprimindo, desta feita, qualquer possibilidade de dignidade.

Assim, a grande questão que pode ser suscitada neste ponto gira em torno de se compreender o fenômeno da atribuição de direitos especiais a determinados indivíduos ou grupos sociais, compreendendo a multiplicidade de direitos, a partir do reconhecimento da diversidade de sujeitos, levando à compreensão dos fundamentos do direito à (des)igualdade.

4.1 Direito Fundamental à (Des)Igualdade

Neste momento cabe o esclarecimento de que o processo de multiplicação dos direitos acontece a partir de uma alteração do conceito sobre o homem, que deixa de ser genérico partindo para suas especificidades relacionadas à idade, ao gênero, e às suas condições físicas e psicológicas. Com fulcro nestas especificidades há diferenças em termos de direitos, fazendo com que se proceda a um tratamento e uma proteção desigual. Acompanhando esse raciocínio, "a mulher é diferente do homem; a criança do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes etc." [28]

A tutela da diferença não é utópica, habitando as sociedades de forma rotineira, uma vez que todas as culturas tendem a fazer a distribuição de pessoas e grupos sociais entre dois princípios competitivos de vinculação hierárquica, a igualdade e a diferença – cabendo a uma política emancipatória de direitos humanos, o dever de distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças. [29]

Na seara jurídica, acompanhando o ideário acima, ocorreu a transição do Estado de Direito, balizado pelo Princípio da Legalidade, para o Estado Democrático de Direito ou Estado Constitucionalista, pautado no Princípio da Constitucionalidade, passando a igualdade a ser vista não somente sob o ponto de vista formal, mas sim, sendo observada sob o prisma material, indo ao encontro do direito de prestação positiva do Estado, que precisa, indubitavelmente, tratar de forma desigual os desiguais em busca de um maior equilíbrio nas esferas econômica e social, proporcionando aos mais diversos sujeitos de direitos, uma existência digna, valorizando seus direitos fundamentais.

Dentre os direitos fundamentais, recebe inegável destaque a cláusula da isonomia, na medida em que é tida como "signo fundamental da democracia". [30]

A isonomia, indubitavelmente, acaba por ser o centro do Estado Social e de todos os direitos advindos de sua ordem jurídica. De todos os direitos fundamentais a igualdade é o que mais tem se elevado em relevância no Direito Constitucional atual, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-guardião do Estado Social. [31]

4.1.1 Índoles Formal e Material do Direito Fundamental à (Des)Igualdade

A compreensão acerca do direito fundamental à igualdade deve observar suas dimensões formalematerial. Os textos constitucionais originados após e com fundamento nas revoluções estadunidense e francesa recepcionavam o Princípio da Isonomia apenas em sua dimensão formal, significando a igualdade da lei para todos, sem a admissão de privilégios, percebendo o mesmo valor a todos perante os textos legais, com a proibição de qualquer espécie de discriminação.

Trata-se, pois, a igualdade, em sua vertente puramente formal, de corolário de dimensão negativa, na medida em que afasta o tratamento desigualitário do ordenamento jurídico, não propondo qualquer ação que possa mitigar as desigualdades no plano fático. E, diante desta visão negativista, o princípio da igualdade não oferta espaço senão para a aplicação categoricamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e semelhanças passíveis de verificação entre os sujeitos e as situações em análise. [32]

A compreensão do atual artigo 5º, caput, da Constituição brasileira de 1988, que expressa a igualdade em seu aspecto formal, não pode ser restritiva, devendo, pois, ser realizada em conjunto com outras normas constitucionais, especialmente com as chamadas exigências de justiça social. [33]Do que se infere que a dimensão essencialmente formal da igualdade é insuficiente, não encontrando guarida na atual concepção de Estado Democrático de Direito. Daí porque o texto constitucional pátrio quis aproximar as dimensões formal ematerial da isonomia, uma vez que não se limitou ao mero enunciado da igualdade perante a lei, trazendo vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação. [34]

Em outra via, a concepção material do direito fundamental à igualdade encontra pilares no conhecido pensamento filosófico de Aristóteles, segundo o qual, deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Pensamento que, incorporado ao discurso jurídico, oferece subsídios para que se possa apreender o significado da cláusula geral da igualdade, com a vinculação do ideal de igualdade à noção de justiça. Embora secular, o enunciado aristotélico acerca da igualdade ainda é, para muitos, insuficiente para solucionar a questão da igualdade, uma vez que, passa a gerar questionamentos acerca de se saber ao certo quem são os iguais e os desiguais perante o ordenamento jurídico.

Ao contrário de sua espécie formal, a índole materialousubstancial da cláusula da igualdade, além da não discriminação diante da lei, pugna por uma atitude positiva por parte do Estado, na direção de que sejam promovidas oportunidades a todos, via de suas normas e políticas públicas, objetivando a redução das desigualdades.

Nesta torre de idéias, mulheres, crianças, afro-descendentes, migrantes, portadores de alguma deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificações e peculiaridades de sua condição social, surgindo, ao lado do direito à igualdade, o nomeado direito à diferença, assegurando-lhes trato especial. [35]

Baseando-se, pois, na subdivisão da isonomia (formal e material), orientada a certo modo pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é que mecanismos de proteção ao menor trabalhador foram criados, de forma oportuna, no intuito de minimizar a desigualdade verificada quando da relação laboral envolvendo esses especiais atores.

Destarte, é dever da sociedade promover a integração à sociedade daqueles que se encontram em situação de real desigualdade, fomentando a igualdade de fato, cabendo, sob outra via, ao Estado, a incumbência de se comprometer com ações que garantam às crianças e adolescentes o acesso a seus direitos em todos os níveis sociais, reconhecendo-os como sujeitos dotados de prioridade absoluta.


5 DA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ante ao exposto até este momento, percebe-se que, ao menos na teoria e no corpo legislativo, os avanços concernentes à especial proteção da criança e do adolescente foram muitos. A questão que merece ser colocada neste estudo se refere aos mecanismos ou instrumentos que, na prática, conferirão aos menores infantes a garantia de seus fundamentais direitos já previstos no vasto arcabouço jurídico existente sobre o tema. Acerca dos direitos fundamentais, é elucidativa a lição de Sarlet [36], para quem, os mesmos são todos os previstos no ordenamento jurídico nacional, dotados de suficiência, relevância e essencialidade.

Destarte, é preciso questionar a eficácia dos direitos fundamentais. E, sabendo da amplitude desta missão, a pesquisa realizará, nas linhas subsequentes, um corte epistemológico, abordando por hora, a questão da eficácia social dos direitos fundamentais, no âmbito das relações privadas (horizontais), no contexto brasileiro.

5.1 A Eficácia Social dos Direitos Fundamentais das Crianças e Adolescentes nas Relações Trabalhistas

Explica-se o recorte proposto, uma vez que a relação entre o Estado e o particular não demanda maiores divergências. "Essa dimensão dos direitos fundamentais não é objeto de controvérsia, uma vez que é ampla a aceitação de que o estado deve respeitar e assegurar, de forma eficaz, esses direitos" [37]. Cabe, pois, maior atenção ao campo das relações entre empregado e empregador, in casu, os particulares envolvidos.

Antes de prosseguir, faz-se indispensável anotar o esclarecimento de que o trabalhador pueril, antes da tutela especial que recebe pela sua condição peculiar, é considerado na relação empregatícia como um particular, razão pela qual este tópico merece atenção ímpar.

Os direitos fundamentais originam-se da necessidade de se garantir os interesses do cidadão em face do Estado, perante a disparidade de poder verificável entre ambos.

Todavia, de acordo com a lição de Virgílio Afonso da Silva [38], esta visão limitada provou-se rapidamente insuficiente, pois se percebeu que, sobretudo em países democráticos, nem sempre é o Estado que significa a maior ameaça aos particulares, mas sim outros particulares, sobretudo aqueles dotados de algum poder social ou econômico.

Em seu magistério sobre o tema, o autor [39] aduz que o maior complicador nesta nova situação reside na constatação de que é impossível simplesmente transportar a racionalidade e a forma de aplicação dos direitos fundamentais da relação Estado-particulares para a relação particulares-particulares, especialmente porque, no primeiro caso, apenas uma das partes envolvidas é titular de direitos fundamentais, enquanto que, no segundo caso, ambas o são, o que naturalmente vai resultar numa intensificação da complexidade da questão suscitada.

A Carta Constitucional Brasileira de 1988 incluiu em seu artigo 7º um extenso rol de direitos trabalhistas como fundamentais, e, apesar de seu próprio texto afirmar que os direitos fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º), a amplitude deste comando gera debates doutrinários e jurisprudenciais, notadamente, se consideradas as diversas posições do direito comparado.

Sobre o tema, leciona Sarmento [40], com absoluta propriedade, que os princípios fundamentais incidem, inclusive, na hipótese de relações jurídicas em que não se observa a desigualdade entre as partes, tendo em vista a aplicabilidade universal do princípio da dignidade da pessoa humana.

As relações privadas, notadamente aquelas que envolvem o trabalho humano, podem ensejar diversas situações em que há possibilidade de violação aos direitos fundamentais, onde existe desigualdade entre as partes. Empregado e empregador pactuam um contrato individual de trabalho, mas devido ao maior poder econômico do qual usufrui o empregador o empregado acaba por aderir às clausulas contratuais, sempre limitadas pelos direitos constitucionais dos trabalhadores. O trabalhador goza da titularidade de seus direitos fundamentais, dentre os quais, ganham destaque o direito à segurança, à saúde, à informação e à intimidade no ambiente laboral.

Também merece destaque o pensamento de Steinmetz [41], contribuindo com o estabelecimento de um critério para sopesar os direitos no caso concreto, utilizando o Princípio da Proporcionalidade ofertando prevalência em "prima face" ao direito fundamental quando há inequívoca desigualdade entre as partes.

Ainda nesta esteira, acompanhando a desigualdade, surgem as situações de abuso do direito. Não raras vezes, o empregador exacerba seu poder de direção da prestação dos serviços, impondo condições de trabalho que acabam por representar uma violação aos direitos fundamentais do trabalhador, e, nas relações de emprego envolvendo as crianças e adolescentes, isto pode ocorrer, quando, v.g., a proibição da jornada de trabalho dos menores de dezoito anos não é respeitada, ou, em situações de descumprimento dos preceitos legais da aprendizagem, e, ainda ferindo as previsões de não discriminação do emprego da mão-obra-infantil em relação aos seus vencimentos.

No recorte requerido pelo estudo em tela, a relação de desigualdade é ainda mais acentuada, devido à peculiaridade das crianças e adolescentes trabalhadoras, o que poderia ensejar maior facilidade na compreensão do tema, dada a existência de uma doutrina que confere proteção integral e absoluta a esses sujeitos, conforme o demonstrado em linhas pregressas.

Do exposto, é preciso firmar o entendimento de que abaliza normativa só terá eficácia na sociedade com a garantia dos direitos fundamentais também nas relações firmadas entre particulares, conservando, com isto, os níveis que se fizerem necessários para que seja resguardada a pessoa daquele que trabalha, in casu, a criança e o adolescente.

Não havendo, pois, dúvida a respeito da existência de uma doutrina de efetivação imediata dos direitos fundamentais do trabalhador nas relações privadas no Brasil, nomeadamente, dos trabalhadores pueris, torna-se imprescindível, a busca por caminhos que salvaguardem tais direitos no cotidiano destes jovens cidadãos.

O cenário hodierno envolve novos problemas e a procura por novas soluções. Assim, a humanidade que adentra o século XXI cercada por inúmeras transformações e progressos nas áreas da ciência, tecnologia e indústria não pode guiar-se pelo mesmo pensamento arcaico difundido nos séculos passados, segundo o qual, o trabalho infantil significava maiores lucros, e, sua erradicação era algo tardio e dificultoso em virtude das demandas de um sistema capitalista.

Os desafios postos passam pela compreensão do problema sob o viés da utilização de mecanismos que fomentem a concretização dos preceitos já normatizados, tornando-se urgente o aprofundamento dos debates sobre a implementação de políticas públicas [42] que, de fato, alterem o quadro atual, realizando, neste sentido, o que preceituam as Convenções da OIT sobre o tema, ou seja, erradicando o trabalho infantil em suas modalidades degradantes e prejudiciais.

Não se afirma aqui que a situação é a mesma dos tempos da Revolução Industrial, pois, se assim o fosse, esta análise, cerca de dois séculos após sua eclosão, não teria nenhuma razão de ser. Porém, se num contexto histórico como o vivido contemporaneamente não forem dados os passos decisivos em direção à plena valorização da dignidade da pessoa humana, um estudo acerca do papel da Encíclica Rerum Novarum para a proteção especial do labor infantil, dentro de alguns anos, poderá se transformar em algo absolutamente inócuo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da proteção especial à criança e ao adolescente trabalhador, proposta neste, tomou por aporte, as escritas do Papa Leão XII, que em sua Encíclica Rerum Novarum, datada de 1891, já mencionava a necessidade de se priorizar os infantes, tratando-os de um modo diferenciado quando da realização de trabalhos que caberiam, pelo seu grau de dificuldade e penosidade, preferencialmente aos adultos.

Com efeito, a partir das determinações da Igreja, num contexto histórico de inúmeras transformações na seara das relações de trabalho, impulsionado pela Revolução Industrial, alteradora dos modos de produção até então vigentes, surgem novos paradigmas de proteção ao menor trabalhador, oferecendo a este um papel nunca antes visto, qual seja, a figuração como sujeito de direitos na relação laboral, amparado por arcabouços legais oficializados pelos Estados.

A partir desta alteração factual, evidenciou-se nas linhas pregressas, que a conquista dos direitos da criança e do adolescente ocorreu de forma paulatina, colecionando, notadamente no Brasil, avanços e retrocessos no decorrer dos anos, até desaguar no atual momento histórico, onde prevalece a doutrina da proteção integral e irrestrita ao infante em todos os setores da sociedade, especialmente aqui, no campo da tutela de seu trabalho.

Nesta esteira, com o desenvolvimento do estudo, pôde se vislumbrar a existência de uma doutrina, com raiz internacional, fincada, ao menos moralmente, nas soluções apontadas pela Igreja, através de seu sumo pontífice, em fins do século XIX, encontrando, nos dias atuais, respaldo nos mais diversos ordenamentos jurídicos do globo, e, versando sobre uma prioridade absoluta que reserva ao pueril obreiro, integral proteção, via de uma ampla rede de dispositivos que nasceram com o intuito de oferecer-lhe abrigo nas relações de trabalho, devido a sua situação peculiar, seja em âmbito nacional ou estrangeiro.

E, finalizando, ao menos por hora, os comentários sobre o tema, intentando, a partir destas linhas, fomentar, quiçá, novos estudos a seu respeito, é imperioso dar o grifo necessário à evolução percebida na tutela do labor infantil, sobretudo, a partir do aporte histórico da Encíclica Rerum Novarum, destacando que, muito embora, desde o seu surgimento, até a contemporaneidade, grandes foram os avanços, ainda é preciso caminhar muito, especialmente na seara da efetivação dos direitos fundamentais que se colocam em jogo, caso se tenha por objetivo garantir o acesso desses sujeitos ao ambiente de trabalho, com os benefícios advindos de sua boa prática, sem os abusos dos (não) direitos de outrora, marchando rumo ao respeito da dignidade da pessoa humana como fator preponderante no entendimento das questões relacionadas à tutela especial do trabalho de crianças e adolescentes.


Notas

  1. MARTINS, Adalberto. A Proteção Constitucional ao Trabalho de Crianças e Adolescentes. São Paulo: LTr, 2002. p. 23.
  2. GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianças e dos Adolescentes. São Paulo: LTr, 2000. p. 45
  3. MINHARRO, Erotilde Ribeiro dos Santos. A Criança e o Adolescente no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003. p. 15.
  4. Idem.
  5. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
  6. GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianças e dos Adolescentes. São Paulo: LTr, 2000. p. 46
  7. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 16.
  8. BARROS, op. cit.
  9. GRUNSPUN, op. cit., p. 46.
  10. PADEN, Willian E. Interpretando o Sagrado. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 193.
  11. HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital (1848 – 1875). Tradução de Luciano Costa Neto. 12 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 375.
  12. Ibidem, p. 114.
  13. LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum (1891). Disponível em: <http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subseção=encíclicas&artigo=rerumnovarum&lang=bra> Acesso em: 24 out. 2010. p. 2.
  14. Ibidem, p.5.
  15. Ibidem, p.11.
  16. BARROS, op. cit. p. 519.
  17. LEÃO XIII, op. cit. p. 14.
  18. Ibidem, p.11.
  19. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 130.
  20. MINHARRO, op. cit. p. 21.
  21. Ibidem, p. 24.
  22. NASCIMENTO, Nilson de Oliveira. Manual do Trabalho do Menor. São Paulo: LTr, 2003. p. 55.
  23. SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 61.
  24. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/info/download/conv_138.pdf> Acesso em 21 out. 2010.
  25. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/legislacao/convencoes/cv_138_recomendacoes.pdf> Acesso em 21 out. 2010.
  26. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/info/download/conv_182.pdf> Acesso em 21 out. 2010
  27. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/legislacao/convencoes/cv_182_recomendacoes.pdf> Acesso em 21 out. 2010.
  28. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 69.
  29. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos. In: Reconhecer para Libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 442.
  30. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 210.
  31. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.São Paulo: Malheiros, 2002. P. 340.
  32. RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 38.
  33. SILVA, op. cit. p. 213.
  34. Ibidem, p. 214.
  35. PIOVESAN, Flávia. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: perspectivas global e regional. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 49.
  36. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 281.
  37. VALE, André Rufino do. A Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004. p. 19-20.
  38. AFONSO DA SILVA, Virgílio. A Constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre os particulares.São Paulo: Malheiros, 2008. p. 18.
  39. Idem
  40. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 238.
  41. STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 224.
  42. Pode-se dizer que as políticas públicas representam os instrumentos de ação dos governos, numa clara substituição dos "governos por leis" (government by law) pelos "governos por políticas" (government by policies). O fundamento mediato e fonte de justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de implemento dos direitos fundamentais positivos, aqueles que exigem uma prestação positiva do Poder Público. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. As Políticas Públicas e o Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, São Paulo: Malheiros, 1996. p. 135.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Tutela especial do trabalho da criança e do adolescente no Brasil. Uma análise a partir da encíclica Rerum Novarum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2921, 1 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19443. Acesso em: 24 abr. 2024.