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As marcas do poder

As marcas do poder

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Índice: 1. Introdução . 2. O Poder . 3. A clássica divisão do poder . 4. O exercício do poder. 5. O titular do exercício poder . 6. Conclusão . Referências

"Uma vez que se pode fazer obedecer,

cada chefe pode impor sanções aos subordinados,

no caso de não cumprimento das suas ordens e

dispõe, também do poder de atribuir recompensas

para premiar o empenhamento demonstrado

pelos indivíduos no desempenho das

suas funções"

Luís Carvalheda, Noções de Administração Pública, Texto Editora, V.1


1. Introdução

A angústia de um subordinado é descobrir que tem por chefe alguém todo levado para cima, fingindo saber tudo e sem menores pretensões de se aconselhar com quem quer que seja senão apenas com o seu mundo. Mundo construído por cima da mais nobre humanidade, pisoteando-a e rindo estrondosamente daquilo que acha ser a eterna parvoíce dos que muito a custo tentam suportá-lo.

É comum encontrar muito boas pessoas que, uma vez tornados dirigentes, se arrogam um poder sobrenatural e uma soma e só a soma, de saber e mais saber que mais ninguém jamais sonhou em ser detentor. Excepto, claro, ele próprio.

O que um dirigente faz da sua direcção pode ser uma grande obra ou simplesmente uma ridicularizadora passagem pelo cobiçado poder. O que muitas pessoas não o sabem ou fazem de contas que não, é que o poder corrompe até o mais puro dos corações.

Mas a falta de uma boa postura dos que têm por função a direcção, não se pode escudar nesta máxima. É uma atitude pessoal e, porque não, um verdadeiro exteriorizar da personalidade.

Numa comunidade onde o prestar contas aos que quotidianamente vão dando de si para o sucesso do dirigente, porque esta é a verdade pese embora a forma indirecta, é apenas uma miragem que vai fugindo com o horizonte, mas que se torna realidade quando um superior hierárquico estala um dedo. Aí vem a uma superluminosa velocidade um relatório folclórico e com sublinhados de se lhes tirar o chapéu mostrando que o infalível dirigente está realizando magnificamente as suas obrigações.

Os subordinados se mantendo no seu medonho mutismo com medo de que, a exclusão e até mesmo a declaração de persona no grata lhes bata à porta.

É nossa intenção, neste pequeno ensaio, não aconselhar mas mostrar a face que muitos dirigentes não querem assumir e, talvez, contribuir para que muitos dos que almejam assumir postos de chefia saibam que só sendo verdadeiros dirigentes, orgulhar-se-ão de algum dia o terem feito.

O que nos propusemos abordar nesta nossa incursão pelas malhas do poder, é nada mais que uma tentativa de convidar a uma auto avaliação de todos quantos sejam titulares do exercício do poder, pese embora a forma pouco ortodoxa de o fazer, pois, não nos preocupou minimamente o entendimento dos ilustres iluminados na abordagem do assunto e nem mesmo as considerações eruditamente doutrinárias, mas apenas a constatação prática e no real do nosso quotidiano.

Contudo, apartamo-nos da altivez e nos curvamos àqueles que com sensatez entenderem os nossos propósitos e que nos indiquem o melhor caminho.

Pretendemos somente que detêm o poder se lembrem que ele é principalmente a faculdade ou possibilidade ou ainda, estar arriscado a alguma coisa se parafrasearmos a definição de J. Almeida e A. Sampaio e Melo [01].


2. O Poder

Poder, do latim potere [02] é, literalmente, o direito de deliberar, agir e mandar e também, dependendo do contexto, a faculdade de exercer a autoridade, a soberania, ou o império de dada circunstância ou a posse do domínio, da influência ou da força.

A sociologia, por outro lado, define poder geralmente como a habilidade de impor a sua vontade sobre os outros, mesmo se estes, de alguma maneira, resistirem. Parece ter sido esta a versão abraçada nos diversos trabalhos de Karl Marx. [03]

Visto etimologicamente, poder dá a quem o tem a faculdade de vender, comprar e doar o que está na sua posse. É exactamente esta asserção etimológica que embriaga, entorpece até as mentes mais brilhantes. A enormidade de se encontrar frente a uma empresa com a qual sonhou inúmeras vezes ou até lhe tenha caído de paraquedas, assusta-o. Mas mobiliza-se. E lembra-se que possui autorização, autoridade, razões, força, e esquece-se da faculdade, do direito e da virtude que vêm junto.

Isto é, o novo dirigente olha para o poder apenas na vertente que lhe interessa tendo em vista agradar os seus superiores hierárquicos. O poder é isso mesmo: convencer-se da sua superioridade, da sua maior capacidade de mandar e comandar e, principalmente de se apoderar de tudo quanto possa sem que quem quer que seja questione. Nem mesmo o seu próprio dirigente porque, como bem diz o provérbio, uma mão lava a outra e duas, lavam a cara. Quer dizer, o novo todo poderoso dirigente, precisa de alianças o mais alto colocadas para exercitar o que a autorização, a autoridade, as razões e a força o conferem. Precisa de legitimar a sua actuação e permanecer incólume pelo maior espaço de tempo possível. A legitimidade pode advir da totalidade dos legitimários ou, de alguém que tem legitimidade que optamos designá-la originária que confere a secundária. Não está excluída a legitimidade concorrente, isto é, a que num dado momento e valendo-se da insatisfação de certo sector da sociedade, alguém chama a si a direcção e, daí, o poder, legitimando-se pelo objecto da sua acção que vestida de força, acaba aceite pelos demais.

Mas a outra vertente etimológica do poder, a faculdade, o direito e a virtude, são uma necessidade indispensável de um verdadeiro dirigente. A faculdade faz do dirigente um constante inquiridor da sua actuação, um observador sem limites e imparcial das personalidades dos seus dirigidos, aliado ao direito, que é igualmente uma faculdade mas mais restrita, pois ela se refere à possibilidade de se personalizar, de conferir o seu cunho pessoal às realizações da sua direcção. Um dirigente que assim interpreta o sentido de poder, é virtuoso e, por isso acarinhado e com uma visão sempre projectada para o futuro.

Porém, uma correcta apresentação do sentido do poder, a nosso ver, sobrelevaria a indispensável complementaridade entre a autorização, a autoridade, as razões e a força, por um lado e, a faculdade, o poder e a virtude, por outro. Aliás em jeito de exemplificação, diga-se de passagem que a autoridade não é autoritária. É a faculdade de dizer e fazer com a propriedade de quem realmente conhece. É o direito que o saber lhe dá de iludir a confiança. Daqui se pode então aferir a indispensabilidade de um e de outro.

Ao longo dos tempos o poder tem assumido diversas formas, conformando-se com a personalidade individual dos que o assumem ou ainda, uma espécie de personalidade colectiva que se caracteriza pelas escolhas que cada comunidade vai fazendo em cada momento da sua existência. Com alguma dificuldade se pode fazer uma separação entre o poder individual e colectivo. É que a comunidade, com as suas escolhas, determina exactamente o tipo de pessoas que a vão dirigir por escolha própria, tendo legitimidade para o fazer ou, de forma quase imposta, sujeita-se a uma personalidade que só se revela no seu contacto dia a dia.

Primitivamente com o relacionamento comunitário mais íntimo entre os membros das comunidades, as empresas eram realizadas em conjunto e os dirigentes, aliás os anciãos, eram apenas os mais apaixonados coordenadores. humilde, humanos e com um sentido de inter ajuda muitíssimo bem apurado.

Num sentido mais amplo, o poder em muitas regiões de Africa, mantém-se primitivo embora com nuances de um modernismo imposto pela globalização cultural. Ou melhor dito, nessas regiões, há uma permanência de valores tradicionais incorporados por modelos e factores exógenos.

Sem querer dar um cunho histórico mais apurado, não se pode deixar de referir que o feudalismo, trouxe uma outra faceta do poder: o domínio individual de boa parte dos componentes conceitualizantes e que aumentam a capacidade dominante e elitista sobre si mesmo sem olhar a meios.

Muito embora Nicolau Maquiavel [04] tenha sido desta época, não se tem sido justo com ele ao destacar por parte dos ambiciosos do poder, a afirmação muito simplicista de que os fins justificam os meios. Não nos compete discutir o conselho deste diplomata a Lourenço de Medicis [05], mas entendemos que a sua preocupação com o poder é de se lhe destacar. Basicamente, ele refere-se a dois aspectos fundamentais: a necessidade de se manter o poder e a flexibilidade na actuação do dirigente para que o primeiro dos aspectos se possa materializar. Terá sido, por isso que o imperador Napoleão Bonaparte [06], se interessou pela teoria maquiavelista. Todo o dirigente, aliás, tem de dia após dia, procurar manter-se na sua posição para não hipotecar a confiança de quem ali o colocou.

Modernamente, o poder é cada vez mais a razão de ser e de existir de muita gente. Todos sonham em possuir uma forma de dominação; procuram ter uma posição sobre os outros, principalmente o sabor de lhes dar ordens e a mesquinhez de lhes mostrar que dele dependem. Mas este é o presente da modernidade.

Os últimos dois ou três séculos mostram uma cada vez maior tendência à assunção individual de cada vez mais formas de poder. É também neste período que formas mais democráticas ou democratizantes do poder foram ensaiadas embora, a nosso ver, com sucesso limitado. Na verdade, o poder democrático na sua forma mais adoptada, pressupõe a representação. Mas o representado, quase que invariavelmente , fica refém da medonha hipótese de o representante ser corrompido pelo poder. Neste caso, este último se manifesta por uma de duas maneiras, absorção pelo poder estadual ou desenvolvimento de espírito de superioridade, ou mesmo de ambas em simultâneo.

Até aqui temos vindo a focalizar o poder administrativo e político. Mas há ainda o poder conferido pela competência individual. Ou, simplesmente, autoridade. Apesar de se ter já feito referência à autoridade como parte integrante do poder, é preciso notar que é ela, só, um poder com imensa força. A diferença é que esta forma se constitui de competência e, pode conduzir à necessidade cega de domínio ou a uma abertura até ao âmago de todos quantos requeiram os seus préstimos. A autoridade não se inventa e não se compadece com a mediocridade, em qualquer das formas em que se apresenta, procura auto realização e alcança-a em seu próprio benefício ou dos outros.

Não se confunda a autoridade frustrada, em que alguém se arroga de a possuir sem que mostre a competência que dele se espera. Este é apenas a que as personalidades fracas abraçam para se justificarem perante o mundo como simples vítimas da incompreensão e, neste caso, parte-se para a procura violenta de poder. Também, com facilidade pode-se transitar para as formas administrativa e política de poder.

Qualquer poder, nos nossos dias, encapuça-se do super poder económico e faz depender dele todas as camadas sociais. Uns cada vez mais espezinhados por falta de poder económico e outros a nadarem em opulência financeira e, por isso, com direito a martirizarem os demais.

Está na base deste, todo o poderio de uma pessoa, de uma organização ou mesmo de uma sociedade. Ele substitui e até subestima a autoridade, tida desde que a competência fez destacar os que melhores soluções tinham para os cada vez maiores problemas que a sociedade experimentava.

Bastas vezes, uma personalidade só é notada quando as suas brilhantes ideias assentam sobre uma base de luxúria ou pelo menos de alguma elevação perante os outros. É este poder que provoca guerras, mesmo as intestinas, pois, como já fizemos referência, uma das características do poder é a faculdade de mudar a realidade tanto como acção social colectiva ou apenas como capacidade de exercitar a força de que se dispõe.

Recentemente e na sub zona austral de Africa, um fenómeno novo começa a ganhar forma: a renúncia ao poder. Esta atitude é tão nova quanto surpreendente principalmente quando a teoria geral considera o africano mais apegado ao poder. A nosso ver, no entanto, não se trata de se afastar do poder mas sim de deixar espaço para que outro seja o centro de decisão. É uma nova legitimação tardia do poder já exercido, onde a nostalgia dos antigos subordinados e a autoridade adquirida e muito engrandecida pela voluntária resignação, fazem dele um eterno competente e, por isso, citado amiúde.

Repare-se que não se trata criticismo esta nossa apresentação, mas uma continência ao que assim procede porque este bem compreendeu o sentido da humildade, mesmo estando vestido de um verdadeiro jus imperi.

Este exemplo não se situa apenas nas esferas mais altas de poder. Já não é raro encontrar dirigentes que publicamente, abdicam da sua autorização para decidir alegando, outros, motivos pessoais e os demais, motivos estruturais, ou para ser mais exacto, razões impeditivas de melhor relacionamento estrutural. Muitas vezes, isto acontece quando aquele que excessivamente concentra o poder na sua pessoa, não deixa espaço para que os seus subordinados possam realizar com criatividade as tarefas a que estão adstritos. Sendo assim, o recurso à teoria de que se a base em que se fundou o seu vínculo relacional está corroído ou esteja em risco irremediável de o fazer, o melhor

O ser humano nasce humilde e frágil e com o seu choro, já se faz presente e dominante. É lhe dirigida maior atenção e muito carinho. Em alguns casos e como é natural, dependendo da capacidade parental de distribuir a atenção, gera ciúme.

Que importância tem aqui o ciúme?

Nenhuma e muita. Nenhuma quando não passa de uma simples reivindicação momentânea e normal de um ser humano. Mas o ciúme pode despertar a inveja e, daí, a indispensável sede de poder; a necessidade de supremacia. A perspectiva de se mostrar diferente e dominante, ganha cada vez mais adeptos em todos os círculos de convivência. É a luta pelo poder. Uma luta que pode conduzir a auto destruição ou ao uso constante da força para se garantir ou simplesmente para abri uma brecha no concreto do poder. Em muitos casos, como já se fez referência, o uso da força, tem estandarte: a legitimidade do objecto e do objectivo. Lembremos dos constantes golpes de Estado e em que alguns países africanos são de longe os campeões.


3. A clássica divisão do poder

Existem, dentro do contexto sociológico, diversos tipos de poder: o poder social, o poder económico, o poder militar, o poder político, e não só. Esta classificação e actual concepção de poder têm por base os trabalhos de Michel Foucault, Max Weber, Pierre Bourdieu [07], aos quais prestamos a devida vénia porque acreditamos terem caracterizado a verdadeira natureza do poder.

A política define o poder como a capacidade de impor algo sem alternativa para a desobediência. O poder político, portanto, quando reconhecido como legítimo e sancionado como executor da ordem estabelecida na sociedade, coincide com a autoridade, mas há poder político distinto desta e que até se lhe opõe. Aliás, o contrário não é válido, ou seja, existe autoridade sem seja exercida num contexto de poder político.

Os manuais de política e de outras ciências afim, referem-se a uma classificação do poder que pode ser resumida nos seguintes termos: poder executivo, poder legislativo e poder jurisdicional.

Embora se possa dizer estar inteiramente integrado no político, há que fazer uma referência especial ao administrativo. A sua dependência em relação ao poder político, é enorme ou até dito com maior propriedade, é impensável falar-se do poder administrativo sem que haja uma umbrella do político porque doutra forma seria abandoná-lo ao grande sol de Africa de José Craveirinha e até, a entregá-lo à acção dos elementos.

O poder administrativo exercita-se somente com o aval do político, pois a autorização da sua existência confunde-se mesmo com este último. Mas note-se que uma vez constituído, o poder político acorrenta-se e nunca encontraria o caminho da sua liberdade se não se apoiasse na parede bem mais conservadora e com um dinamismo de resultados afincadamente previstos do poder administrativo.

O judiciário é um poder que se pretende impoluto, autónomo e, muito próximo do religioso. Tem vestes sinistras, ritual e uma fraseologia digno de uma continência mesmo que uma boa parte do que significa seja ignorado por muitos. É por isso que, até há bem pouco tempo, fazer parte deste poder, significava estar acima das necessidades dos outros. Podia, muito à vontade, olhar o resto do mundo de cima para baixo e mesmo com desdém. Até na época contemporânea se clama por um poder judicial isento e imparcial. Mas o paradoxo é que este poder funciona com base em meios fornecidos pelo poder executivo e, fica claramente embaraçante a ele não se curvar. Tal como o religioso, exerce-se com permissão e protecção do político. Os americanos, bem avisados, adoptaram o sistema de ´checks and balances´ tão famoso por permitir o exercício independente dos poderes do Estado embora o façam com vigilância mútua para evitar excessos. Esta situação, porém, é duma precariedade gritante atendendo ao que acima expusemos quanto à dependência financeira e administrativa do judicial. Em qualquer dos casos, há sempre uma margem de tolerância quando se trata de autonomia e independência de um poder em relação ao outro. O tráfico de influências, independentemente da origem e do objectivo, não deixa de existir mesmo com vigilância mútua. Por vezes procura-se influências quando se quer ser titular deste poder porque, mesmo sendo-se um grande cultor jurídico, a possibilidade de só de per si a ele chegar, é remota. Mas uma vez titular, com tanto poder entre as mãos, dificilmente se poderá resistir à tentadora influência do seu próprio mentor.

Há quem leve muito a sério o poderoso poder que lhe pesa: ou o faz de maneira velada mas tiranizante ou, de forma muito comedida e recta. Neste último caso, corre-se o risco de a permanência ser encurtada.

A outra faceta do mesmo poder que merece algum destaque, é parte da advocacia. Ponha-se-lhe um trombone e cantará a inocência do seu constituinte visto ser esse o seu compromisso, esquecendo-se que um dos pilares da justiça é ele mesmo. Mas a questão é outra: é um clube impenetrante no qual o nome do mestre do iniciado é a chave para lhe abrir a porta. Tem o poder de se sentir poderoso procurando demonstrar com desconexas mas difíceis palavras, rebuscadas e moldadas ao prazer de quem as usa, ser indispensável na sociedade e guardião do verdadeiro significado das normas e o legislativo faz questão de produzir.

Esta relação traz ao de cima a importância do poder legislativo. A relação sui generis entre os poderes político e administrativo tem tido altos e baixos cujos picos se fazem notórios em alguns momentos, principalmente os de crise institucional. É aqui onde intervê o poder legislativo. Entra de perneio para normalizar a relação entre aqueles sem o que poderiam vulneralizar a sempre precária estabilidade estatadual. Esta precariedade faz-nos lembrar que a avidez ao poder está entre os elegíveis a ter na mão a faca e o queijo. E não são poucos, de todas as idades e de todas as classes sociais.

O legislativo pode ser puro e induzido. Puro quando exercido por órgão do Estado com competência plasmada na norma que sirva de base a qualquer outra e, induzido se, na decorrência dessa norma, houver autorização para que outra entidade possa produzir normas mesmo que de âmbito limitado.

Em alguns momentos da vida de certas sociedades, o poder legislativo é concentrado numa personalidade de onde irradiam todas as formas legislativas e as distribui a seu bel prazer. É o que se designa de autoritarismo. Se quisermos, podemos dizer que nesta fase da existência de uma sociedade, só existe um poder legislativo distorcido do seu verdadeiro sentido. Não nos esqueçamos do L’Etat c’et moir, de Luis XIV da França.

Existe também o poder democrático que é aquele em a autoridade está concentrada na necessidade de se respeitar a opinião de todos e, saber aceitar com dignidade a possibilidade de a sua não ter vingado. Aparentemente este é o que mais adeptos tem no mundo, ou pelo menos usado como cavalo de batalha para se humilhar os países com menor poder económico. Melhor dito e como sói dizer-se nos dias de hoje, aquele que não arvorar a bandeira da democracia com os direitos humanos no topo, é claro, segundo critérios de quem bem economicamente se encontra, corre o risco de ser, de alguma forma, agredido.

Talvez seja importante abrir aqui um parêntese para lembrar aos muito eruditos defensores dos direitos humanos que eles são uma propriedade universal, pois constituem um conjunto de valores intrínsecos à natureza humana. Mas apesar da sua natureza nata, não deixam de ser apreciados de maneira diversa em diversas sociedades. Nas comunidades apelidadas de selvagens, vistos os direitos humanos neste último prisma, têm tido poucas mortes ou mutilações, por exemplo, comparativamente aos campeões do respeito dos direitos humanos.

O poder é o poder. O religioso, por exemplo, tão solene e intangível, é tão terreno como qualquer outro. Não nos referimos ao Poder Divino, mas unicamente o religioso. Esse que os homens se apoderaram dele e o fizeram refém dos seus prazeres em nome do Altíssimo. Todo o ritual da igreja, mesmo visto na sua consagração bíblica, é condimentado com a necessidade humana de se sobrepor. Não é por acaso que determinadas igrejas têm sido palco de cisões, reformas e, volta e meia, uniões. Os Estados fingem não querer saber do que acontece nas igrejas e só intervêm em nome da ordem pública quando haja algum distúrbio moral ou físico. No entanto, os atentos lembrarão que o poder religioso age sob permissão e protecção de um poder político com o qual não deve nunca se indispor sob risco de se lhe tirar a cobertura.

Porque tão humano como qualquer outro, o poder religioso, politeísta ou monoteísta, tradicional africano, civilizador europeu ou de outro tipo, tem funções específicas em cada momento da história da comunidade onde esteja a ser exercido. A autoridade deste poder, assenta-se nas vestes cumpridas complementadas com as dogmáticas frases das Sagradas Escrituras cuja interpretação se pretende absolutamente literal e imutável. Procura-se com esta interpretação querer que os homens de hoje sejam os de ontem, mesmo atendendo que não possam viver seiscentos anos como o fez o Grande Abraão. Não nos é permitido discutir a interpretação em si, nesta abordagem, mas sim o alcance poderoso por inibição criativa que ela tem. Aliás, as diferentes seitas cristãs são resultado de alguma divergência interpretativa. Insistimos em dizer que o poder religioso se confunde com o Divino na visão simples de muitos praticantes, mas não são a mesma coisa. Deus está acima de tudo e de todos incluindo do poder religioso e, a universalidade está à sua disposição.

Neste grande prisma de inumeríssimas faces, uma das arestas é o poder popular. Este é um verdadeiro cavalo de Tróia. Regimes políticos há que o usam para manipular as massas, dando-lhes um pretenso poder que, usado sob signo de democracia popular mas dentro de apertadíssimos limites por eles traçados, servem os seus interesses. Na verdade há uma penetração incisiva nos direitos individuais das pessoas e, até mesmo nos colectivos e em alguma medida, reduzem-os. Mas o verdadeiro poder popular, nestes casos, limita-se a hibernar e os que o levam a este estado, sabem tratar-se de uma bomba relógio e, na hora marcada, explodirá.

O poder popular, quando não exercido de forma estruturada e de acordo com os interesses de todos, é rebelde, de uma rebeldia eruptiva. E, só tem sentido quando democraticamente exercido. É o poder popular no qual procuram apoiar-se todos os regimes políticos, mas poucos são os que realmente se importam do que realmente é a necessidade das pessoas. Ninguém admite pôr de lado o poder popular, principalmente quando pode e sabe dirigir-se eloquentemente para o que chama de seu povo, esgrimindo um patriotismo tão torpe quanto as suas reais intenções. O verdadeiro povo, são os seus partidários. Em extremos opostos, podemos citar os exemplos de Vladimir Lénine [08] e Adolfo Hitler [09]. Enquanto um procurou mostrar a verdadeira face do poder popular, embora mais tarde ofuscado, o outro, exacerbou esse mesmo poder pintado de patriotismo selectivo.

O poder dos mídias. Apodado como quarto poder, é poderoso pela facilidade que tem de formar e manipular opiniões. Os mídias não precisam de ser isentos para serem aplaudidos mesmo atendendo ao facto de que a isenção devia ser o seu status quo. Aliás, a isenção é sempre um conceito relativo quando analisado na base do estatuto editorial. É isento, nesta perspectiva, o que se baseia nos preceitos estatutários mesmo reconhecendo serem pouco morais os objectivos mediatos pretendidos. Mas entre os mídias, os com facilidade fazem a opinião pública são os sensacionalistas, mesmo que o que pretendem veicular seja uma inverdade. Apenas beliscam o facto noticioso e deixam no ar a hipótese de haver conclusões divergentes. Aliás é aí que está o busílis ou até a sua necessidade de permanência. Pouco se preocupam com as consequências. Em algum momento, são aproveitados pelo poder político para manter as mentes populares ocupadas com assuntos de menor importância, em momentos de crise ou quando este pretende desviar atenções da sua ilegítima actuação.

Portanto, qualquer outro poder, é insensato quando pretende dissociar-se e desafiar o poder dos mídias, entendidos como tal todos os meios de transmissão massiva de informação. Mesmo nas sociedades de cultura tradicional, os sons das batidas de tambores ou outro instrumento que produzam informação, são poderosos meios de comunicação.

Os militares. Esse suporte inigualável de qualquer regime jurando simultaneamente serem apartidários e nada mais. Mas imagine-se o poder que eles detêm. Qualquer político procura não se indispor com eles ou não durará na cadeira para contar a história. Não se confunda com o poderio militar que esta última, representa a capacidade de apresentar uma força treinada, coesa, moderna e muito bem apetrechada. Não se pode por outro lado desprezar a relação existente entre ambos. Um força tem muito poder quando maior poderio possuir. Apesar de, em todas as comunidades, o poder militar tiver um pretenso comandante supremo que é político, goza de uma certa autonomia administrativa e decisória.

O poder militar se manifesta de repente, embora efervescente como o poder popular. E uma particularidade: é atento aos outros poderes e age de acordo com as suas vontades e mesmo que sejam sacrificando os demais. É notório e até mesmo arrogante, mas obediente e pacífico enquanto os outros não o solicitarem ou enquanto não achar chegada a hora de por ordem em casa.

Desde os primórdios de sociedades organizadas, o poder militar se afirmou como o mais importante e, a ele pertencer era a ambição de cada um. Lembremo-nos que os exércitos eram particulares e quase sempre os comandavam os seus donos e se notabilizavam principalmente pela luxúria e modernidade do equipamento que apresentavam [10]. Portanto, pertencer a uma organização militar bem estruturada e bem equipada, era garboso e elevava o status.

Sem querer realçá-lo parece-nos importante apresentar a grandeza do poder da mente, visto ser este quem comanda a maior parte das realizações humanas. Na verdade considerando um dos seus conceitos, cérebro na sua função intelectual, a mente faz com que o homem demonstre capacidades realizadoras que o surpreendem pela novidade mesmo que o resultado do que inicialmente considerou como hipótese seja díspar. Quer dizer, é a mente com a qual o homem planeia o que quer que seja que pretenda realizar e depois, faz a monotoria e valoração da obra realizada.

Apesar disto tudo, ou seja, do reconhecimento da grandeza do poder da mente, verdade seja dita: o conhecimento humano do que seja capaz de realizar e ainda mínimo. Isto é, curto e grosso o homem não se conhece a si mesmo e, talvez seja isto desejável na actual fase conturbada em que as sociedades vivem, pois a ambição leva-lo-ia com poder paralelo ao Divino. Não é que conheçamos o poder Divino mas imaginamo-lo sendo maior que tudo e que tudo dele emana. Mesmo quem assim não entenda há-de convir que o poder humano é mesmo pequeno visto perante o que é o Universo.

A mente humana tem capacidades desconhecidas que vão desde as intenções mais torpes até as mais benéficas passando, é claro, pelas vicissitudes de que possa padecer, ou o que se possa chamar de estados psicóticos pouco anormais. Portanto, é a mente humana um poder muitíssimo poderoso.

Todas as formas de poder que pudéssemos fazer desfilar, não passariam disso mesmo: poder. Visto nas suas várias manifestações o poder ter em si mesmo a força de comando. Ele se expressa nas diversas relações sociais, podendo, por isso, se falar em

Relações de Poder e, onde estas existem, existe política. Por sua vez, a política se corporiza nas diversas formas de poder e pode ser entendida como a política relacionada ao Estado, embora não necessariamente assim, como também, num sentido mais amplo e, não menos importante, em outras dimensões da vida social.

Sempre que se fala de poder refere-se à existência de capacidades e em muitas vezes de ambições desmedidas cujo recalcamento ou realce poderão trazer divergências e entendimentos, respectivamente. Mas a utilização que achamos mais apropriada ao uso do poder seja em que vertente for, deve ser na perspectiva perpetuadora e imanente de um ser humano responsável e ciente de si mesmo e não apenas no que se refere à política. Neste aspecto partilhamos a acertada visão de Max Weber [11], pois para ele a política se referia à liderança ou à influência que uma associação política podia exercer sobre uma liderança. Note-se que a liderança aqui não é unicamente do género político.


4. O exercício do poder

A preocupação com o poder se concentra basicamente na forma como ele é exercido. A necessidade de se regular a existência humana faz com que ab initio, fossem procuradas formas mais adequadas de regular o exercício do poder e suas relações. Por isso, o poder pode ser exercido de diferentes formas desde as mais subtis até às mais explícitas. Assim sendo, o poder, em determinadas situações e circunstâncias, muda de mãos e ganha nuances implícitas e cada vez mais identificáveis com a nata natureza subtil do ser humano.

Veja-se o particular exemplo de uma pessoa que em situação desvantajosa consiga avaliar os níveis do poder que detém, pode recorrer a métodos até abusivos para sair dessa posição. Mas tal só sucede quando seja possível, evidentemente, identificar a desvantagem.

Se atender-se que os regimes democráticos defendem os direitos das minorias, incluídos os individuais, pode-se referenciá-los como sendo neles onde o argumento poder, é exercido na perspectiva de neutralizar a desvantagem. É precisamente aí que se pode computar o facto de o direito que alguém tenha adquirido ser da sua pertença podendo ser exercido de uma forma socialmente correcta ou em detrimento dos valores comunitários.

O que aqui se pretende mostrar é que existem diferentes formas de exercício de poder, dependendo dos objectivos imediatos e mediatos e ainda de quem o exerce. Especificamente, se o poder é político, teremos os diferentes regimes políticos e, também, a singularidade dos titulares destes. Mas, em teoria, qualquer regime político, isto é, as formas de exercício de poder político, têm por escopo a realização dos mais nobres objectivos comunitários. Difere-se apenas na definição do que seja a comunidade. No entanto, mesmo nos regimes totalitários ou no antigo feudalismo, é característica dominante a preocupação de manter sob controlo aqueles a quem dominam sob risco de se verem repetinamente despojados do exercício do poder. Este receio, não se refere apenas aos que se encontrem fora do círculo do poder mas principalmente com os seus correligionários. É que estes últimos são tão afoitos ao poder e a expectativa de serem titulares decisórios lhes ofusca e lhes impele à espreita.

O receio é maior quanto menor for a garantia dos direitos dos cidadãos e é por isso que a arrogância do exercício do poder se torna uma regra e, naturalmente conduz ao autoritarismo, despótico ou outro.

A supressão do autoritarismo e absolutismo, é confiada à comunidade de que esses poderosos fazem parte e não, como tem ultimamente acontecido, à custa de poderes externos. Se bem que factores exógenos podem ser determinantes, não se pode considerar que sejam condição sine qua non. Não existe sociedade alguma que não tenha sido capaz de por si só se libertar dos seus problemas incluindo a individualização una ou de grupo do exercício da autoridade, mesmo a política. A autoridade aqui referida, é sinónima de poder. Não se pode ignorar que algumas nações tiveram os seus líderes e regimes políticos destituídos por intervenção de outras, muitas vezes, com uso de poder militar destruidor. Porém a prática mostrou que as forças externas que estejam na base de destituição dos titulares do poder, não têm poder para impor uma forma de exercício de autoridade. O que parece estar a ser descurado logo à prior, é a legitimidade da intervenção. Essa legitimidade tem de vir de dentro da comunidade e nunca de fora [12]. A apologia deve ser a de potenciar factores internos para que a mudança seja naturalmente aceite. Para que seja vista não como uma imposição vinda de fora, mas uma necessidade intrínseca à sobrevivência da comunidade em questão.

Sem dúvida que falar de poder absoluto não é sinónimo de autoritarismo na sua total dimensão. A figura de Papa, por exemplo, está associada a um certo absolutismo no exercício do poder. Mas embora a última decisão a ele pertença, característica dos líderes religiosos, precisa de apoio incondicional do seu staff. Busque-se o entendimento deste procedimento no conceito de Papa׃ sucessor de S. Pedro e vigário de Cristo. Significa que na qualidade de pai espiritual da religião cristã, particularmente a ocidental ou Romana Apostólica, deve, para além dos diversos outros atributos, tomar em última instância, as decisões mais acertadas e, nesse aspecto, é inquestionável. É, por conseguinte, o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade da Igreja Católica. Note-se, no entanto, que o Papa se aconselha, maxima venia, em Concílio e em Conclave para além de que, na administração corrente da igreja e do Estado do Vaticano, é auxiliado pela Cúria Romana.

É comum, principalmente em países em desenvolvimento, haver um regime político mais ou menos legítimo mas que a nível mais baixo, poderes de base, encontrar-se formas diferentes do exercício do poder das que são legalmente instituídas. Deve-se este estado de coisas, à exiguidade do poder financeiro e até económico na sua totalidade, per capita, aliada à falta de formação adequada e de auto estima, o que faz com que se procurem formas ilícitas de enriquecimento do poder. Nestas condições, o exercício do poder torna-se problemático e, amiúde, formas paralelas umas, mais ou menos legais e outras, completamente à margem, vão ganhando terreno e, logicamente, o fosso entre a detenção do poder e a redução à insignificância se torna regra. Assim se explica o facto de em alguns países se assistir a desenvolvimento macroeconómico e com benefício evidente de uns poucos quando, aqueles que legitimaram esse exercício ficarem cada vez mais na ponta da cauda de um cometa talvez maior que o Halley, existindo.

O que fica transparente no exercício do poder é que ele suporta-se nas seguintes características׃ legitimidade, autoridade e oportunidade.

A legitimidade adquire-se quando o exercício do poder for feito com o superior beneplácito de quem tem autorização para indicar por nomeação ou eleição de quem o deve exercer. Note-se que a legitimidade não depende nunca do regime político ou social vigente, porquanto, a pessoa que o exerce presta contas a uma entidade legítima. Esta última, como é evidente, poderá ter sido adquirida à partida ou com legitimação à posteriori. Portanto é indiferente a origem da legitimidade e mesmo o momento da sua assumpção. Tem apenas relevância o exercício dentro dos limites impostos por quem o conferiu. A mais agitada batuta da legitimação, tem sido o processo eleitoral e, para os mais aguerridos defensores, trata-se da única e verdadeira democracia. Mas para qualquer observador fica cristalino que nem todo o processo eleitoralista é sinónimo de democracia, porque esta, estende-se muito para além das simples escolhas. Ao mesmo tempo, os eleitorafilistas, apregoam fraude sempre que se vejam preteridos pelos eleitores, principalmente nas esferas africanas de poder onde este é tido por vitalício e, daí a crescente tendência em clausular em benefício próprio. Esta questão parece marginal a toda a abordagem que temos vindo a fazer, mas vista no sentido de legitimidade de poder, fica perfeitamente enquadrada. Tem sido comum a muitos processos democráticos, a nível de órgãos estatais ou privativos, a tónica da fraude. O que é no entanto evidente, em muitos casos, é o apego ao poder. Mesmo convencido da justeza e transparência do processo, a ambição fala mais alto. Lança-se mão a expedientes no mínimo imorais para se auto legitimar vencedor.

Conclui-se neste aspecto que a legitimidade pode ser originária quando provenha de um poder ou entidade que o tenha originariamente e, adquirida se, sem autoridade legal e usando de expedientes não apropriados, conquista poder e o exerce. Esta é a razão porque os poderes impostos, com uso ou não de força, desembocam no campo de resistência, muitas vezes, inesperada. Pode se impor o poder mas nunca a legitimidade. Porém, o exercício do poder mesmo o imposto pode criar condições para a sua legitimação pois que o exercício não é legitimação. A autoridade no exercício do poder, prima face, é relevante no plano individual da entidade que o exerce. Mais claro, trata-se de mostrar dignidade e competência na medida do necessário. É a verdadeira personificação do poder para ganhar confiança de quem o autorizou o exercício.

Não são poucas as vezes em que conflituam a autoridade, poder de mando e, a capacidade, competência de realização. Mas não parece haver razão de tal conflito, pois, a primeira se fortalece quando a capacidade de exercício é maior. Quer dizer, o exercício legítimo do poder dá, à partida, autoridade necessária para que se mostre o quão se tem competência tendo sempre presente os diferentes interesses que esse exercício representa. Saber conciliar autoridade e capacidade ou competência, é o pressuposto de um verdadeiro exercício do poder e, até mesmo de um poder que à partida não tenha sido legitimado. Em suma, a autoridade e a competência, são duas faces de uma mesma moeda embora, na verdade, uma possa estar sujeita à acção dos elementos, atendendo que sejam feitas de material diferente.

O último elemento a considerar nesta parte, é a oportunidade. Ela parece estar sempre presente e, em teoria, detida por todos tanto de forma individual quanto de forma colectiva.

Por oportunidade refere-se à possibilidade de qualquer entidade ser titular do exercício do poder. Embora, parágrafo anterior, a oportunidade seja característica comum e cega, é basicamente reduzida a um conjunto de requisitos que nem todos poderão preencher. São critérios discriminatórios nunca discutidos com os potenciais oportunos mas que as aceitam sem muitos questionamentos excepto, quando em alguns casos, sejam afastados da concorrência. Estes critérios, mesmo sendo de selecção, garantem que se façam escolhas dos que personificarão o poder. Não se discute a justeza dos critérios, mas provavelmente os seus resultados vista a oportunidade que o universo tem ou poderia ter.

O fundamento da oportunidade é o de que o exercício do poder não é reservado a um prenominado titular. Qualquer um, na verdade, intuita persona ou representado, pode fazer-se ouvir ou, como bem dizia a clássica romana, personare.

Pelo exposto percebe-se que a oportunidade é uma miragem para a maioria pelo menos no que tange ao exercício directo. Resta-lhe apenas a representação mesmo admitindo que o representante não se vincula à real personalidade do mandante. Imprimirá aquilo que é o seu ser. Fará de si o representado procurando até suplantá-lo e isso se nota quando nunca o consulta na tomada de decisões. Não tem, provavelmente nada de ilegal, mas absolutamente, também nada tem de moral. A personalidade é bem única e que cada um a tem e, só nas escolhas é que se aliena uma pequeníssima parte dela. Mas após o acto, ela é recuperada a cem porcento. O que ofusca este regressar da personalidade é que tanto por parte do representante quanto do representado é o viver cada dia como se o seguinte não existisse. Ou como diz P. Giustiniani, apregoa-se a grandeza do Homem que deve sondar os mistérios da natureza, moldando-os à sua medida. [13] Talqualmente, apenas se encontram as vontades do mandatário e do representado num fugaz momento, porque dali e doravante, cada personalidade se resume à tentativa de se auto afirmar e, no caso do primeiro, com a aberrante escolha de minimizar a personalidade do segundo.

O titular do exercício do poder, o mandatário, não é nem de longe um suicida׃ prudentemente realiza a sua acção na plena convicção ou pura esperança de que o mandante seja cego. Pois está consciente de que, a qualquer momento senão mesmo no momento do encontro das vontades, poderá ser preterido. Não será exagero se o exemplo das reformas de Solón [14] for aqui chamado. Mesmo com estas, os conflitos sociais não deixaram de existir chegando mesmo a haver caos e desilusão que, Pisístrato [15], aproveitou para chamar a si a titularidade do exercício do poder. Este aproveitamento nem sempre é pernicioso: em alguns casos trata-se de substituir a legitimidade do voto. Justifica-se assim o recurso a sucessivos golpes de Estado que assolaram alguns países africanos e mesmo do chamado velho continente. Como se fez referência atrás, o exercício do poder assim adquirido pode ser problemático por falta de legitimidade ou não se o titular se identificar com aqueles em nome dos quais, tornou-se detentor do poder.

Em jeito de súmula, convém notar que o exercício de poder pode ser analisado usando os seguintes critérios: a legitimidade, o número de titulares e a oportunidade. Ora, e como analisado supra, a legitimidade é essencial para um exercício sem sobressaltos visto ter de se sustentar em uma base legal ou humana ou ainda, em ambas para encontrar uma verdadeira correspondência nas suas acções. E, em repetição, vale destacar que por legitimidade se entende a possibilidade de agir por si ou com permissão de alguém. Nestas condições, a legitimidade é originária quando se age por si e no caso de o titular do exercício do poder o fazer com autorização de alguém que a tenha originariamente. É adquirida se, pelo contrário, tendo sido titularizada por meios diferentes dos anteriores, se venha a ser legitimada. Pondo-se um pouco à margem das considerações legais, pode colocar-se a questão dos titulares do exercício que, sem uma formal legitimação após a aquisição, exercem-no no perfeito encontro das verdadeiras aspirações dos que têm legitimidade para legitimar. Portanto se trata de uma legitimação não expressa e sempre a posterior. Neste caso, há quase sempre uma atitude reticente, no início, vinda de fora. É que quer se queira ou não, não se pode eximir-se à influência de factores exógenos durante o exercício do poder, independentemente do tipo de poder a que se refere. Os mais apaixonados, condenam-no prima face; outros, mais comedidos, esperam para ver. Há, evidentemente, os que são acérrimos defensores dos novos titulares do exercício do poder mesmo por simples identidade de objectivos ou ainda e na melhor das hipóteses, serem estes os mentores daqueles. No entanto, não se pode ignorar que esta legitimidade, muito rebuscada, acaba sendo legítima. Se os legitimadores têm as suas vontades satisfeitas, apoiando inequivocamente o exercício, onde estará então a ilegitimidade do exercício desse poder? Aparentemente se situa apenas num plano absolutamente formal.

Repare-se que não se trata de apologia ou conselho ao recurso de meios ilegais para se titularizar o exercício do poder, mas unicamente reconhecer que perante facto consumado e face ao correcto desempenho do exercício, nada mais há que fazer se não reconhecer a legitimidade desse poder e, ao mesmo tempo, recomendá-lo para que se enquadre no cumprimento das formalidades legais infra princípios gerais então defendidos.

No que respeita ao número de titulares, o exercício pode ser feito por um ou por um múltiplo de um, resultando daí que possa ser, respectivamente, singular ou colectivo. Sendo singular, o exercício do poder rigorgita à volta de uma única figura. Não se trata de exercício unipessoal porque neste, cabe ao titular a decisão e o mando. Naquele, ao contrário, o titular é um perfeito coordenador das pessoas e das actividades e a sua presença física é um marco constante mesmo sabendo não se encontrar ali. Tudo é feito para que a harmonia entre o titular e o titulante, o legitimador, esteja sempre presente e acima de quaisquer outros considerandos. Guia-se, este exercício, pelas ansiedades que legitimaram a sua existência. A sua fragilidade situa-se precisamente na tão delicada coordenação. É um esforço gigantesco e desgastante. Não se pretende, contudo afirmar haver pouco esforço coordenativo no exercício unipessoal; longe disso. A destrinça está em que neste último caso, nada pode ser feito sem a participação efectiva do titular. A presença física deste, não é só uma constante, é indispensável. O seu maior risco é o de não ser capaz de compreender as capacidades e dificuldades dos colaboradores, resultando, muitas vezes, visão estreita.

Noutro prisma, o exercício colectivo do poder, sobrepõe-se ao individualismo do unipessoal e à multiplicidade individualizada do singular. Na verdade, há uma falange de titulares no exercício do poder embora virados para um mesmo objectivo. É o que se pode designar de exercício participativo. A tónica dominante deste, é a sua dispersão ou sectorização sendo que cada um dos sectores tenha um titular que de forma individualizada e quase autónoma, relativamente aos demais, exerce-o na medida em que o tenha sido autorizado. Mas neste aspecto, reside o calcanhar de Aquiles [16]: demora na tomada de decisões que se prende com o facto de haver que ser estudado o assunto por todos os sectores em momentos diferentes. A experiência dos balcões únicos, BAU’s [17] parece apontar para uma solução deste nó de estrangulamento. Quer nos parecer que este tipo de entidades constituem um bom antídoto contra o cancro da corrupção que, como todos sabem, tem tendência de sedentarizar os titulares de poder com uso de meios sempre esquivos. A verdadeira face da corrupção está exactamente no corrupto passivo que quanto a nós, não declina e nem denuncia o corruptor, aceitando passivamente o objecto da corrupção. Pense-se, então, no impacto que tem a circunstância de um titular do exercício de poder ser, simultaneamente, ser um corrupto passivo e o efeito multiplicador que isso tem. Aliás, é comum nos dias que correm, cobrar-se comissões não legais, pelos serviços prestados, ou seja, institucionalizou-se, de forma não oficial e não aberta, uma prática que por lei, é perniciosa e, moralmente condenável. Mas ela, persegue inexoravelmente os titulares do exercício do poder e, apanha sempre os incautos.

Qual seria, então, o alcance do exercício do poder?

Quer nos parecer que ficou suficientemente demonstrado que o poder pode ser exercido por titulares que tenham ou não legitimidade à priori. Este facto não inviabiliza o exercício do poder com suficiente alcance dos objectivos preconizados. Na verdade e, dependendo muito da personalidade do titular do exercício do poder, este pode ter maior ou menor alcance. Note-se, porém, que a relação exercício - alcance não é necessariamente directa. É que essa relação pode ser perfeitamente indiferente desde que o titular do exercício do poder o faça apenas em prol ao seu próprio interesse e em realce ao seu egoísmo. Desta forma o que se consegue é personalizar e evidenciar o egoísmo de todos os que se subordina esse exercício e como tal, o alcance real seria limitado pela esfera de exercício de cada executante. Aparentemente a multiplicação de pequenas esferas, tornaria maior o alcance, no entanto, uma análise mais cuidada mostra a sua fragilidade e a pequenez de cada objectivo alcançado.

Um maior alcance é conseguido por uma forte e perspicaz personalidade do titular do exercício do poder pelo facto de esta irradiar de maneira incisiva por todos quantos dele depende.

Mas a personalidade do titular do exercício do poder é assunto a ser analisado a seguir. O que aqui pretendemos realçar é que o exercício do poder não pode ser feito sem ter em conta o que a pessoa é, quer dizer a personalidade.


5. O titular do exercício poder

Podendo, embora, parecer repetição, o exercício do poder tem evidentemente a marca do seu titular. É este aspecto que nos propusemos abordar nesta parte da nossa dissertação. Aliás clarifique-se desde logo que nos cingiremos aos titulares singulares começando, como é evidente, pela sua escolha.

A escolha do titular do poder não se resume à simples indicação de uma entidade que reúna os requisitos técnicos, porquanto este, tem de possuir sobretudo um conjunto de virtudes, muitas vezes, intuita persona.

Mas olhemos, ainda que brevemente, para o verdadeiro alcance destes requisitos.

Uma escolha é, a todos os títulos, discriminatória. Significa que se está perante uma universalidade na qual se deve destacar apenas um ou um grupo que reúna melhor que os outros, os aspectos considerados básicos para o preenchimento das vagas em causa.

O ingresso, por exemplo, numa escola para aí ser considerado aluno, exige o preenchimento de requisitos como a idade, ou a entrega de formulário devidamente preenchido e, até o pagamento de uma taxa que mesmo sendo simbólica, tem de ser paga. Ora, se a idade de ingresso nesta escola, por exemplo, for X, então, o candidato que tiver X+Y, fica automaticamente impedido de poder se candidatar. Se, por alguma razão que até pode não lhe ser imputada, este último não pôde ingressar num momento anterior e, tendo o direito à educação formal constitucionalmente consagrado, quid juris?.

Por semelhança se pode dizer que escolher, por eleição ou por nomeação, os titulares do exercício do poder, é preterir uns, a maioria que se compõe de todo o universo de um país. Repare-se que a lei civil, só para citar um exemplo, prevê a possibilidade de excluir cidadãos por alguma incapacidade de exercício [18]. Trata-se neste caso e sem dúvidas de uma forma legal e até moral de defesa dos mesmos. Mas em geral, escolher é um exercício discriminatório que sendo necessário, é pernicioso precisamente por afrontar a universalidade do exercício do poder. Em muitos casos, a maioria, os requisitos discriminatórios não são negociados e nem negociáveis. Isto é, os titulares de um certo poder decisório, definem-nos e os tornam obrigatórios com aquiescência quase geral. Há uma submissão total e sem que mesmo se compreenda o seu real significado. Tem se em geral e em perspectiva o resultado final e, preferivelmente favorável na perspectiva de quem escolhe.

O lado positivo das escolhas situa-se quase sempre num futurismo da melhoria da prestação dos escolhidos. Ou seja, a expectativa da satisfação dos anseios dos que fazem as escolhas é imensa e, bastas vezes, traz ao de cima as verdadeiras e insuspeitáveis capacidades das pessoas. Há uma espécie de verdadeira concorrência não só no aspecto formal mas igualmente na verdadeira demonstração do orgulho sui generis do ser humano. E isto é tão verdade quanto ao facto de que todo o candidato à escolha deve demonstrar todo o seu potencial despindo-se da mesquinhez no relacionamento com os demais, falta de transparência e falsidade como bem se refere P. Giustiniani. [19]

Consiste, pois, na personificação de uma boa liderança a disponibilidade de ser titular do exercício de poder. Esta personificação não se resume ao saber gerir o seu âmbito de exercício, mas principalmente na forma de o fazer tendo em conta que é um acto de gerir relacionamentos em todas as suas vertentes.

Um verdadeiro líder, porque liderar é quanto a nós um exercício de poder, preocupa-se sobretudo com a perfomance de todos quantos ele se vê na contingência de liderar, conquistando a sua confiança e impondo a sua autoridade. Quer dizer o tecnicismo que lhe confere primazia na escolha deve ser combinado com a inseparável autoridade e nisto, vai consistir a sua real competência.

Não sugerimos que o líder seja um troféu, ou seja, que a todos os títulos mereça que lhe seja erigida uma estátua, mas unicamente que os seus actos sejam motivo de orgulho dos que o assessoram.

A figura do titular do exercício tem de ser a luz que ilumina o caminho dos demais; é a projecção da imagem e do bom nome que todos almejam principalmente as colectividades.

É por isso que defendemos que para além de tecnicamente competente tem de ser o aglutinador, o verdadeiro porto de partida e de chegada dos seus colaboradores, sem precisar de ser o super homem.


6. Conclusão

Desde os primórdios que o Homem se vestiu de poder porque compreendeu que ele é próprio dos seres vivos e, particularmente do ser humano. Na verdade desde as comunidades primitivas até aos dias de hoje, o poder tem fascinado o Homem levando-o mesmo a procurar meios pouco ortodoxos para a sua conquista.

O poder, por um lado produto da imaginação humana e por outro, necessidade de existência, não pode simplesmente ser refém dos seus estados emocionais.

Se bem que esses estados emocionais acabam provocando a multipartição das formas de aquisição das várias formas de poder, podem não conferir a necessária autoridade.

Recorre-se então às escolhas que, pese embora a sua importância, não são infalíveis e nem por isso deixarão de ser o único meio legítimo de se titular o exercício de poder.

É por isso que aos titulares do exercício do poder se exige esforço quase sobre humano e, particularmente rectidão de carácter para amealhar confiança e autoridade por ser ele a personificação real de poder que ele exerce.

O titular é a face viva do poder e só ele impõe os verdadeiros limites que na prática representam os limites da sua própria personalidade sendo por isso, de maior ou menor aceitação onde exerce o poder e quiçá, na sociedade.


Referências

Giustiniani, P., O Homen: Fascínio e Desafio, Edições Paulistas, Lisboa,1993

Manfred, A. Z., História do Mundo, V. I, Edições Sociais, Lisboa, 1977

Almeida, J. e Sampaio e Melo, A., Dicionário da Língua Portuguesa, 5ª Edição

Mandlate, Filipe, Código Civil, 1ª Edição, Plural Editores, Maputo, 2003

Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, 2ª Edição, Livros de Bolso – Europa América, 1976

http//pt.wikipedia.wiki/poder....


Notas

  1. J. Almeida e A. Sampaio e Melo, Dicionário da Língua Portuguesa, 5ª Edição
  2. http//pt.wikipedia.wiki/
  3. Karl Marx, pensador alemão, estudou as diferentes formas de manifestação do poder e as relações que este tinha com a sociedade.
  4. Nicolau Maquiavel, O Príncipe, 1972
  5. Idem
  6. Idem
  7. http//pt.wikipedia.wiki/
  8. Líder da Revolução Soviética de Outubro de 1917. A sua obra foi depois popularizada e expandida para outras latitudes.
  9. Ditador nazi de orientação nacionalista, mas que se tornou célebre pela sua aversão a raças não arianas, eespecialmente os judeus e, pela invasão de países vizinhos. Esta invasão, para além dos diversos motivos que a sustentam, destaque-se a necessidade de fazer esquecer os problemas internos, alegando haver uma pretensa ameaça externa.
  10. Na sociedade feudal, os senhorios eram os donos do exército e, o Estado, em caso de precisão, solicitava-o em troca de benefícios materiais incluindo a atribuição de mais terras. É a este poder que a igreja cristã apelou nas cruzadas para o combate aos ‘profanadores muçulmanos. A primeira cruzada foi decretada pelo Papa Urbano em 1095 com a promessa de absolvição dos pecados dos que participassem; Manfred, A. Z., História do Mundo, V. I, Edições Sociais, Lisboa, 1977, Pág. 215.
  11. Max Weber, 1884 – 1920, alemão, economista, jurista, historiador, sociólogo e grande adepto do antipositivismo e, por isso mesmo defendeu, no seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo que "a religião foi um dos aspectos mais importantes que influenciaram o desenvolvimento das culturas ocidentais e oriental".
  12. São exemplos mais que evidentes as recentes intervenções das forças internacionais no Afeganistão e no Iraque e, porque não, na Somália, para não citar os casos do Líbano e nos territórios da antiga Jugoslávia.
  13. Gistiuniani, P., O Homem׃ Fascínio e Desafio, Ed. Paulistas, Lisboa, pp. 35
  14. Solón, legislador de Atenas, viveu entre os anos 640 e 550 a.C., foi poeta e político para além de ter sido comerciante, actividade que o fez enriquecer.
  15. Pisístrato, se tornou em 580 a.C. primeiro tirano ateniense, contornando com alguma facilidade as reformas de Solón.
  16. Aquiles, herói da mitologia grega que o seu ponto fraco era um dos calcanhares, porque em tudo o resto, foi imbatível embora enfim, tenha sido morto.
  17. Em Moçambique, timidamente esta experiência vai se alargando. Trata-se de entidades adminstrativas que reúnem os principais serviços numa mesma ‘sala’ para reduzir distâncias de deslocação e de decisão.
  18. Artigos 122 e ss do Código Civil
  19. P. Giustiniani, O Homen: Fascínio e Desafio, pp. 46

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHELENE, Reginaldo Rogério. As marcas do poder. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2973, 22 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19818. Acesso em: 26 abr. 2024.