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A teoria do fato consumado: necessidade de restringir sua aplicação

A teoria do fato consumado: necessidade de restringir sua aplicação

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Se a administração prontamente indefere o pedido do particular, sendo ele, temporariamente, concedido pelo Poder Judiciário, mas negado ao final, não se pode aplicar a teoria do fato consumado.

Resumo: Neste trabalho, procura-se esclarecer a diferença entre duas situações. Na primeira, a Administração Pública reconhece determinado direito ao indivíduo e depois anula sua decisão. Já na segunda, ela prontamente indefere o pedido do particular, sendo ele, temporariamente, concedido pelo Poder Judiciário, mas, alfim da lide judicial, é negado. O bosquejo dessa narrativa ultima-se na revelação de que os princípios constitucionais que gravitam em torno da teoria do fato consumado excluem sua aplicação na segunda hipótese.


Introdução

A teoria do fato consumado é uma realidade na jurisprudência brasileira, notadamente, aplicada em situações jurídico-processuais construídas por "decisões judiciais provisórias" – cautelares, antecipações dos efeitos da tutela, sentenças ou acórdãos contra os quais há julgamento de recurso pendente etc –, que perduram por um longo período, apesar de o ordenamento jurídico não agasalhar a pretensão deduzida em juízo pelo autor da demanda.

Os contornos da concepção acima lançada são evidentes, haja vista desnecessária seria a aplicação dessa teoria, se os fatos narrados na peça pórtica de uma controvérsia judicial fossem merecedores de tutela jurisdicional. Em outras palavras, o postulante não tem direito ao que pleiteou, entretanto, o bem da vida perseguido é-lhe conferido, em decorrência de estar dele usufruindo há certo tempo.

Esse pensamento é sobremaneira aplicado em relações de direito público, principalmente, em concursos públicos, seja na concorrência a um cargo ou a uma vaga nas universidades públicas. Essa prevalência da fruição do bem da vida postulado sobre o direito posto pode possuir até, intimamente, fundamento político: é como se o beneficiário, que fora esquecido pelo Estado, não estivesse se apoderando de coisa alguma, apenas, sendo contemplado pelas políticas públicas vigentes no nosso país.

Por outro lado, seu emprego no âmbito das relações de direito privado não encontra terreno fértil, diante da perplexidade direta que causaria aos litigantes, afinal de contas, na contenda privada, resplandece a Terceira Lei de Newton – ação e reação –, de modo que dar algo a alguém significa tirá-lo de outrem.

Pelo que se vê, a tarefa das linhas abaixo não é das mais fáceis, uma vez que ser pedra é mais cômodo do que ser vidraça. Mas, antes de qualquer crítica açodada, registre-se aqui se defenderá nosso Estado de Direito constitucionalmente concebido, no sentido de demonstrar a abrangência exagerada dessa teoria como alguns pretendem não ter suporte no princípio da inafastabilidade da jurisdição, na coisa julgada, na boa-fé, na segurança jurídica e proteção à confiança.


Das decisões provisórias

Ajuizada uma ação judicial [01], é bem possível a parte autora não poder aguardar seu desfecho, sob pena de a vantagem perseguida transformar-se em bem inútil. Dessa forma, medidas cautelares (preparatórias ou incidentais) eram requeridas, a fim de garantir o resultado proveitoso da tutela postulada, se, ao cabo, fosse ela concedida. Clássico exemplo trata-se da intenção de submeter-se à segunda fase de concurso público. Ora, não sendo garantida sua participação liminarmente, qual o sentido da procedência do seu pleito, quando o certame já tiver encerrado? Hodiernamente, a natureza jurídica desse tipo provimento está bem definida no nosso Código de Processo Civil [02] no artigo 273, ao cuidar da possibilidade de o juiz, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial. Em todo caso, note-se a presença de uma peculiaridade inerente ao Estado Democrático de Direito: a inércia da jurisdição.

Diz-se inerte a jurisdição, porque, regra geral, ela se movimenta apenas quando provocada – advirta-se a provocação ser um requisito inarredável na antecipação dos efeitos da tutela. Não faria sentido o juiz iniciar o processo, pois estaria a pedir providências a ele mesmo, numa clara manifestação de processo inquisitório. Ademais, a atividade substitutiva jurisdicional deve ser a última solução buscada por quem se veja prejudicado em dada situação, caso contrário, fomentar-se-iam conflitos e desavenças onde antes não existiam [03], bem como o primeiro passo da jurisdição contenciosa dado de ofício por um juiz gera vínculo, cuja firmeza pode prejudicar seu dever de julgar de forma imparcial [04].

Vê-se ainda a substituição da vontade das partes pela estatal – leia-se Poder Judiciário – demandar interesse de agir (artigo 3° do CPC), que se traduz na busca, por meio de um instrumento adequado, de certa vantagem (utilidade), cujo êxito – realização de seu pretenso direito material – não seria atingido sem a intervenção do Estado (necessidade).

Constata-se, assim, a procura da tutela jurisdicional revelar a existência de prévia pretensão resistida, que será vencida definitivamente, se o pedido for julgado procedente por decisão dotada de eficácia que a torne imutável e indiscutível, ou seja, acobertada pela coisa julgada.

Até esse manto não revestir o provimento jurisdicional, é possível a modificação da conclusão da tutela prestada em vista da interposição das espécies recursais. Portanto, o autor de lide judicial, cuja pretensão, anteriormente resistida, foi chancelada judicialmente por decisão ainda não transitada em julgada, é cônscio da precariedade dessa situação, de forma ser plenamente possível o retorno do estado anterior ao ajuizamento da sua ação judicial, em caso de provimento de recurso aviado pela parte ex adversa,ainda mais, quando as condições favoráveis foram impostas por meio de antecipação da tutela final, cuja provisoriedade é-lhe inerente, e está expressamente prevista no parágrafo 4° do artigo 273 do CPC.

É importante frisar essa retroação, isto é, a força da sentença final em abranger os efeitos gerados pelas provisórias, está intimamente ligada aos princípiosda inafastabilidade da jurisdição e da coisa julgada.


Dos princípios da inafastabilidade de jurisdição e da coisa julgada

Já tive a oportunidade de escrever sobre o princípio da inafastabilidade da jurisdição:

O art. 5, XXXV, da CF reza que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Este princípio, também chamado de indeclinabilidade da prestação jurisdicional, preceitua que o Poder Judiciário deve prestar seu ofício a qualquer indivíduo ou coletividade que o procure, quando restar comprovada uma situação de ameaça ou lesão a direito, seja ele individual, coletivo ou difuso.

Não há distinção de quem se dirige ao Judiciário; verificadas as condições de ação e os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, o jurisdicionado deverá obter um pronunciamento judicial, seja ele favorável ou contra sue interesse, mas a resposta ao promovente de uma demanda judicial deve ser dada [05].

Destarte, presente lesão ou ameaça a direito, o Poder Judiciário deve, atendidas as condições e pressupostos prévios, tutelar essa situação, sendo irrelevante quem bata suas portas. Por isso mesmo, essa prestação deve ser completa, a ponto de atingir toda a relação jurídica disposta nos autos.

Na ADI 675, o Min. Moreira Alves assentou a cláusula de inafastabilidade da jurisdição (artigo 5°, XXXV, da CRFB) importar prestação jurisdicional completa, de modo que a decisão definitiva, que reconhecer lesão a direito, não está impedida de alcançar os efeitos pretéritos a ela, não tendo qualquer relevância o fato de haver uma decisão intermediária – que, por isso mesmo, não esgota a prestação jurisdicional – em sentido contrário.

Sendo assim, os efeitos produzidos por decisões judiciais não transitadas em julgado não se podem ser entendidos como intransponíveis, caso contrário, transformar-se-ia prestação jurisdicional provisória em definitiva, ofendendo-se as garantias irradiantes da coisa julgada.

A coisa julgada, segundo o artigo 6°, parágrafo 3°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942 [06]), é a decisão judicial de que já não caiba recurso.

Normalmente, é dada a possibilidade de os litigantes impugnarem decisões judiciais, seja por recurso, seja por outro meio. Sucede esse traço de insurreição não pode ser ilimitado. Chega certo momento em que é dada a palavra final, sob pena de não cessar o estado de incerteza da situação jurídica submetida à apreciação do Poder Judiciário.

Moniz de Aragão ratifica essa posição:

A opção universalmente aceita, fundamentada no Direito Romano consiste em, primeiro, submeter a sentença a reexame perante órgãos hierarquicamente superiores (eventualmente permitir sua rescisão posterior, acrescente-se) e após atribuir-lhe especial autoridade, que a torne imutável para o futuro em face de todos os participantes do processo em que fora ela pronunciada [07].

Logo, a coisa julgada não é instrumento de justiça. É, na verdade – sem entrar nas discussões doutrinárias se ela seria efeito de uma decisão, qualidade dos seus efeitos ou situação jurídica do seu conteúdo –, instituto jurídico integrado ao direito fundamental à segurança jurídica, apto a impedir rediscussão, alteração ou desrespeito à decisão judicial final [08].

Nesse contexto, blindar os efeitos de um decisum ainda discutível e alterável é atribuir-lhe a imutabilidade conferida pela coisa julgada, num claro ato subversivo ao nosso sistema jurídico. Lembre-se a possibilidade de reversão do que anteriormente fora decidido é fruto maior da dialética travada no âmbito judicial. Repudiar essa probabilidade é reduzir a abrangência do princípio do contraditório, e negar a completa prestação jurisdicional a quem cuja aspiração é reconhecida pelo direito.


Do princípio da boa-fé

É objetivo fundamental da República Federativa Brasileira construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3°, I, da CRFB). Um dos componentes de um seio social justo é o compromisso de lealdade e probidade com que os indivíduos devem se portar. Partindo dessa passagem constitucional, chega-se ao núcleo deste capítulo: o princípio da boa-fé.

Dispensando-se comentários a respeito da sua origem e evolução, vislumbre-se sua dual conceituação: boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva. Buscando os respectivos conceitos na ordem civil, a boa-fé subjetiva é um estado psicológico, em que a pessoa crer possuir um direito, que, em verdade, só existe na aparência, isto é, o sujeito encontra-se em escusável situação de ignorância. Já sua face objetiva é um princípio de conduta, um modelo de comportamento social, "caracterizado por uma atuação de acordo com determinado padrões sociais de lisura, honestidade de modo a não frutar a legítima confiança da outra parte." [09].

Não obstante o status constitucional do princípio da boa-fé reconhecido pelo próprio STF [10], a teoria do diálogo das fontes é suporte suficiente para a interação entre os ordenamentos civil, processual civil e constitucional. Segundo ela, em vez de exclusão, devem os ordenamentos jurídicos específicos interagir-se mutuamente na tentativa de irradiar suas normas para o mesmo foco, quando elas regerem tema comum [11].

Pois bem. Determinada aspiração – participar das fases seguintes de um certame público, ingressar na universidade etc – é recusada pela Administração Pública, fazendo com que o interessado proponha ação judicial, com a finalidade de ser-lhe, ao menos, liminar e temporariamente garantido e executado esse alegado direito.

Havendo o mínimo de verossimilhança dos alicerces do seu anseio, penso ser correta a antecipação dos efeitos da tutela buscada, tendo em vista a realização da etapa do concurso sem sua participação ou o adiantado do ano letivo sem sua presença nas salas de aula gerarem danos de difícil reparação, se, alfim do feito judicial, entender-se devida a proteção judicial requerida.

Contudo, encerrado o processo, e sendo rejeitado seu pedido, a situação nascida de ordem judicial anterior, e posteriormente reformada (ou anulada), deve ser desfeita, sem qualquer chance de o princípio da boa-fé poder ser aplicado nessas circunstâncias exemplificativas.

Antes da propositura da demanda, a parte autora tinha plena ciência de que havia manifestação contrária aos seus interesses (pretensão resistida), sendo – realce-se –, precisamente, essa a razão pela qual se instaurou a lide judicial. Por conseguinte, é notório o prévio conhecimento de que a rejeição do seu intento poderia prevalecer, não havendo espaço para surpresas ou espantos num desfecho judicial oposto aos seus reclamos.

Infere-se o litigante judicial, ao recorrer ao Poder Judiciário na intenção de praticar seu hipotético direito, estar preparado para a prevalência da resposta negativa (rigorosamente, o móvel da ação judicial) no remate do processo judicial. Ele não gozava de certo direito, tendo sido, posteriormente, dele tolhido. Na realidade, com a provocação da atuação jurisdicional, ele esforçar-se em ter aquilo que nunca teve, ou seja, tenta mudar a realidade dos fatos.


Dos princípios da segurança jurídica e da confiança

Os cientistas políticos entendem ser necessário um grau de segurança e certeza para o homem conduzir-se, planejar-se e desenvolver-se nos diversos ramos sociais. Nossa Constituição refere-se à segurança – incluída aí a segurança jurídica –, além de outras passagens, em seu preâmbulo e no caput do artigo 5°. A função da segurança jurídica, enquanto subprincípio ou elemento conceitual do Estado de Direito e projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana [12], não é outra, senão conferir estabilidade às relações sociais.

Já o princípio da confiança é entendido como elemento da segurança jurídica [13]. O testemunho intelectual de Joaquim Gomes Canotilho, invocado pelo Min. Ayres Britto no julgamento do MS 25.403 (DJe: 10/02/2011), confirmou esses dois postulados – segurança jurídica e proteção da confiança – andarem associados a ponto de alguns considerarem esse último princípio como um subprincípio ou dimensão específica da segurança jurídica. Não obstante exposto algum traço distintivo, no final, narrou-se a comunhão das normas deles dimanadas:

Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. 

Analisando a doutrina estrangeira e brasileira e a jurisprudência da nossa Suprema Corte, resta evidente o princípio da confiança ser aplicável nas relações de direito público, quando a própria Administração Pública age de tal modo a criar favorável expectativa na esfera de direitos do particular, que, por causa de longo transcurso de tempo, ganha certo grau de estabilidade [14].

Eis a lição de Karl Larenz:

ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica [15].

[...]

Dito princípio consagra que uma confiança despertada de um modo imputável deve ser mantida quando efetivamente se creu nela. A suscitação da confiança é imputável, quando o que a suscita sabia ou tinha que saber que o outro ia confiar. Nesta medida é idêntico ao princípio da confiança. [16].

Miguel Reale [17] também entende por descabida a anulação de ato administrativo, devido à carência de requisitos complementares exigidos por lei, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência possam compensar a lacuna originária.

Uma representação para a lição do mestre de São Bento do Sapucaí é a nomeação de servidor público federal, que, apesar de ter declarado (demonstração de boa-fé) possuir 17 anos e 11 meses de idade – a idade mínima legal é de 18 anos, segundo o artigo 5°, V, da Lei 8.112/1990 –, foi empossado, e entrou em exercício, mas, após 10 anos, pretende a Administração Pública afastá-lo dos seus quadros. Parece-me essa situação gerada por falha administrativa merece ser preservada, diante da boa-fé do servidor, já que ausente qualquer ato específico contrário ao seu ingresso no serviço público federal, e em homenagem aos princípios da segurança e da proteção à confiança, curadores da estabilidade de situações jurídicas, aparentemente legais, criadas administrativamente, sem esforço ilícito do particular.

Em todo caso, reforce-se a narrativa hipotética acima lançada ter um alicerce fundamental: foi uma conduta administrativa que provocou a confiança do servidor na legalidade da sua posse e exercício profissional.


Do desprestígio constitucional da teoria do fato consumado nas situações fáticas criadas por decisão judicial

A teoria do fato consumado, deveras aplicada em consolidas situações originadas de fato administrativo, cuja considerável duração gera benefícios a um particular, desconhecedor dos impedimentos da respectiva fruição, espelha a merecida proteção emanada dos princípios da segurança, da confiança e da boa-fé. No entanto, será que ela tem emprego, quando as circunstâncias fáticas derivam de provimento judicial?

De pronto, assevere-se a teoria do fato consumado ter contornos constitucionais, haja vista sua análise decorrer da aplicação, ou não, do princípio da segurança jurídica em atos administrativos inválidos:

A teoria do fato consumado não se caracteriza como matéria infraconstitucional, pois em diversas oportunidades esta Corte manifestou-se pela aplicação do princípio da segurança jurídica em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito, tal como nos julgamentos do MS 24.268, DJ 17.09.04 e do MS 22.357, DJ 05.11.04, ambos por mim relatados. [18]

É sabido as antecipações dos efeitos da tutela e os recursos destituídos de efeitos suspensivos serem um dos motores de uma prestação jurisdicional célere e efetiva, de maneira especial, nas hipóteses em que a negativa da tutela antecipada ocasiona a negação de fato do direito pretendido, sem impedimento da procedência do pedido. O que quero dizer?

Como detalhado no item 24, há casos em que restará ineficiente a sentença de procedência, se houver retardo do desfrute do bem da vida pretendido. Todavia, relembre-se a razão pela qual se instaura um litígio judicial: uma pretensão resistida.

Diferentemente, de prévio reconhecimento de certo direito a um cidadão, permitindo-lhe aproveitar suas vantagens, e, posteriormente, o ente administrativo apresentar entendimento diverso, nessas linhas finais discute-se condições diversas, quais sejam, foi negado peremptoriamente o interesse do indivíduo, o que gerou a necessidade de ele, por meio de uma ação judicial adequada, buscar sua satisfação nas vias judiciais, tendo, inicialmente, logrado sucesso, mas a decisão que transitou em julgado rejeitou sua pretensão.

Não há aqui qualquer caráter de boa-fé. Calma! Não digo o absurdo de haver má-fé em bater às portas do Poder Judiciário. Consigno inexistir um estado psicológico no qual o particular esteja completamente impregnado de certeza e tranquilidade de ser detentor da virtude aspirada. Noutras palavras: ele sabia que havia chances de não sair vencedor da demanda.

Outrossim, exclui-se qualquer influência do princípio da proteção à confiança pela simples razão, como visto acima, de estado de confiança alguma haver. Ora, a situação em discussão surgiu, exatamente, de uma controvérsia de interesses. Se fora negado suposto direito, e, apesar de decisão (decisões) favorável (favoráveis) não transitada(s) em julgado, o Poder Público interpõe os recursos na intenção de reformá-la(s), onde está, nas palavras de Karl Larenz, o necessário comportamento de um sujeito que criou o estado de confiança de outrem a merecer proteção?

De mais a mais, não há falar em segurança jurídica. Todos devem respeitar e cumprir as leis no nosso país. Causa impactante perturbação institucional premiar alguém reconhecidamente descumpridor desse dever pelo simples fato de ter obtido no transcorrer do processo favorável provimento judicial – muitas vezes, concedido em situações de urgência –, cuja conclusão não prevaleceu na decisão transitada em julgado.


Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

O atual entendimento cristalizado na jurisprudência da Excelsa Corte principiou-se, como muitos outros, do espírito perspicaz do Min. Moreira Alves no julgamento do AI 120.893-AgR (DJ: 11/12/1987) havido na Primeira Turma do STF:

Não desconheço que esta Corte tem, vez por outra, admitido – por fundamento jurídico que não sei qual seja – a denominada "teoria do fato consumado", desde que se trate de situação ilegal consolidada no tempo quando decorrente de deferimento de liminar em mandado de segurança.

Jamais compartilhei esse entendimento que leva a premiar quem não tem direito pelo fato tão só de um Juízo singular ou de um Tribunal retardar exagerada e injustificadamente o julgamento definitivo de um mandado de segurança em que foi concedida liminar, medida provisória por natureza, ou de a demora, na desconstituição do ato administrativo praticado por força de liminar posteriormente cassada, resultar de lentidão da máquina administrativa.

[...]

Ora, admitir – como por vezes tem feito esta Corte – que se mantenham situações de fato consolidadas no tempo por atraso de prestação jurisdicional não implica sustentar (o que o Tribunal jamais fez) que há direito adquirido à preservação de quaisquer situações de fato que, por qualquer motivo, se prolongaram no tempo. Para que haja direito adquirido se faz necessária a existência de um direito, o que, nesses casos, não ocorrem a toda evidência.

Em suma, a situação jurídica construída por decisão judicial, posteriormente reformada, deve ser desfeita ao invés de laurear quem não é merecedor do amparo postulado.

Já na Segunda Turma, foi a voz do Min. Celso de Mello, no RMS 23.544-AgR (DJ: 21/06/2002) que ressoou com maior vibração:

(...) situações de fato, geradas pela concessão de provimentos judiciais de caráter meramente provisório, não podem revestir-se, ordinariamente, tractu temporis, de eficácia jurídica que lhes atribua sentido de definitividade, compatível, apenas, com decisões favoráveis revestidas da autoridade da coisa julgada, notadamente nas hipóteses em que a pretensão deduzida em juízo esteja em conflito com a ordem constitucional, como ocorre na espécie destes autos.

Abaixo, seguem alguns julgamentos proferidos pelo STF, cujas situações fáticas não foram capazes de atrair a teoria do fato consumado:

Em concurso público para ingresso na Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, a parte autora sustentava a ilegalidade do teste psicotécnico ou, ao menos, a aplicação da mencionada teoria, sob o fundamento de que "com espeque na liminar a ele concedida, matriculou-se no curso, frequentou-o, formou-se e foi promovido com êxito, tornado a situação fática definitiva e irreversível". Contudo, o Min. Dias Toffoli [19] não acolheu seus argumentos.

A recorrente tinha tomado posse no cargo de analista judiciário do TRT-1 há 11 (onze) anos por causa de anterior provimento liminar, mas a Minª. Cármen Lúcia [20] determinou sua exclusão do quadro de servidores daquele Tribunal, em decorrência de a decisão final ter sido contrária a sua postulação.

A Minª Ellen Gracie [21] foi categórica: "(...) Se a recorrente participou das etapas seguinte do certame, chegar a cursar a Academia da Polícia Militar por força de antecipação de tutela, e, não demonstrou a concessão definitiva em seu favor, não há que se invocar direito adquirido para proteger o ato.".

O Min. Gilmar Mendes [22] afastou a teoria do fato consumado, "mesmo tendo o agravante participado do Curso de Formação, por força de liminar, e tendo sido aprovado e convocado", haja vista "[a] Administração, buscando evitar que esta situação fática se consolidasse, contestou as decisões judiciais, defendendo a legitimidade do certame.".

O Min. Celso de Mello [23] negou os efeitos jurídicos da teoria do fato consumado, a despeito de os recorrentes terem participaram de segunda etapa do concurso de Delegado da Polícia Federal, concluído o Curso de Formação Profissional, e tomado posse nos respectivos cargos.


Conclusão

A teoria do fato consumado tem vasto de aplicação, quando o beneficiário não sabe do obstáculo na aquisição do seu direito, e a conduta da outra parte gerou certa estabilidade que carece de proteção.

No entanto, diante de um litígio judicial, as cores da pintura na moldura são outras. A parte tem ciência do entendimento, v. g., da Administração Pública em negar-lhe sua pretensão, razão pela qual ajuizou o processo. Durante seu trâmite, a parte ré utilizou os meios adequados para fazer prevalecer seu entendimento, sendo, exatamente, essa a conclusão do Poder Judiciário.

Impedir, nos moldes acima comentados, o provimento judicial final abranger todo o espaço de decisão de um processo significa prestação jurisdicional incompleta, deturpação do conceito da coisa julgada, instabilidade entre as instituições e defesa e preservação da confiança e da boa-fé onde não há.

De sorte que é preciso diferenciar situações desassimiladas, a fim de não desfigurar a teoria do fato consumado, estimulando ilegítimo e exacerbado demandismo judicial, voltado a receber o que não é direito seu.


Notas

  1. Art. 2° do CPC: Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.
  2. BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm. Acesso em 07/09/2011.
  3. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 134.
  4. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. I. 7 ed. Salvador: JusPodivm, 2007, p. 74.
  5. GADELHA, Gustavo de Paiva; Guimarães, Diego Fernandes; CRUZ, Henrique Jorge Dantas da. Direito e Poder. Coletânea de artigos sobre aspectos relevantes e atuais de direito público. Nossa livraria: Recife, 2007, p. 98.
  6. BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em 13/09/2011.
  7. ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, p. 189.
  8. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: JusPodium, 2007, p. 478.
  9. PELUSO, Cezar (coord). Código Civil Comentando. 3 ed. São paulo, Manole, 2009, p. 458.
  10. O Min. Gilmar Mendes, na Rcl 6512 (DJe: 22/11/2010) acentuou: "esta Corte já reconheceu que o princípio da boa-fé possui status constitucional, podendo, dessarte ser aplicado como parâmetro de controle de constitucionalidade. Nesse sentido: AI-AgR 490.551, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ 3.9.2010; AI-AgR 410.946, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, DJ 7.5.2010; RE 478.410, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJ 14.5.2010.".
  11. Exemplo perfeito dessa harmonização ocorreu no julgamento da ADI 2.591, sobre o qual escreveu a professora Cláudia Lima Marques: "O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da ADIn 2.591, que concluiu pela constitucionalidade da aplicação do CDC a todas as atividades bancárias, reconheceu a necessidade atual do ‘diálogo das fontes’. Do voto do Min. Joaquim Barbosa extrai-se a seguinte passagem: ‘Entendo que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis. Em relação ao alegado confronto entre lei complementar disciplinadora da estrutura do sistema financeiro e CDC, o Min. Joaquim Barbosa, referindo-se à técnica do diálogo das fontes, observa: ‘Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em influências recíprocasem aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente." (Manual de Direito do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 90) 
  12. MS 24.403, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Ayres Britto, DJ 10/02/2011; MS 22.357, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, DJ 05/11/2004.
  13. MS 24.268, Tribunal Pleno, Relator para o acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 17/09/2004.
  14. No MS 25.259-MC, o Min. Gilmar Mendes pontificou: "A propósito do direito comparado, vale a pena ainda trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do princípio da segurança jurídica: ‘É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados.’"
  15. LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica. Madri. Civitas, 1985, p. 91.
  16. LARENZ, op. cit., p. 95.
  17. REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
  18. RE-AgR 462.909, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ: 12/05/2005 (trecho do voto).
  19. AI 617.917-AgR, Primeira Turma, DJe: 18/08/2011.
  20. AI 813.739-AgR, Primeira Turma, DJe: 01/02/2011.
  21. RE 476.783-AgR, Segunda Turma, DJe: 21/11/2008.
  22. AI 581.992-AgR, Segunda Turma, DJ: 06/10/2006.
  23. RMS 23.544-AgR, Segunda Turma, DJ: 21/06/2002.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Henrique Jorge Dantas da. A teoria do fato consumado: necessidade de restringir sua aplicação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3005, 23 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20043. Acesso em: 25 abr. 2024.