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A exclusão política do servidor da Justiça Eleitoral e as razões pelas quais não houve a recepção do artigo 366 do Código Eleitoral Brasileiro

A exclusão política do servidor da Justiça Eleitoral e as razões pelas quais não houve a recepção do artigo 366 do Código Eleitoral Brasileiro

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Aqueles que apoiam a validade da proibição da filiação e a participação político-partidária dos servidores da Justiça Eleitoral ou fundamentam-se em ideais antiquadas, sem nenhuma pertinência com os preceitos constitucionais vigentes, ou fundamentam-se através de idéias distorcidas a respeito de tais preceitos.

Resumo

Durante a maior parte da histórica do Brasil, a participação popular na vida política do país tem sido bastante restritiva. Somente mais recentemente é que o povo passou a desempenhar um papel mais efetivo no governo.

A atual Constituição inaugurou um novo momento, onde a legitimação do Estado está atrelada à soberania popular, sendo esta exercida pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, na busca da construção de um Estado democrático de direito baseado nos fundamentos da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, conforme elencados em seu art. 1º.

No entanto, a Lei Fundamental, com o fim de se preservar a igualdade e a democracia nos rumos políticos do país, define alguns critérios a serem observados por uma classe de funcionários públicos que almejem disputar cargos políticos, dada a relevância de suas atribuições na administração pública, hábeis a criar uma situação de desequilíbrio na atividade política, como é o caso dos magistrados, dos membros do Ministério Público e dos militares.

Porém, o vigente Código Eleitoral, originalmente promulgada como lei ordinária em pleno regime militar e recepcionada como lei complementar no tocante à matéria de organização da Justiça Eleitoral pela Constituição de 1988, afastou do jogo político os servidores públicos eleitorais, por força de seu art. 366, uma vez que proibidos de se filiarem a partidos políticos ou de exercerem atividade partidária, tornando-os, com isso, inelegíveis por via reflexa, uma vez que se trata, a filiação partidária, de requisito necessário para a habilitação como agente passivo da disputa eleitoral.

Questiona-se, assim, a aplicabilidade de tal norma por duas razões: primeira, que segundo o § 9º do art. 14 da Constituição da República, somente lei complementar poderá estabelecer casos de inelegibilidades, agravada pela criação de uma situação sui generis de desigualdade ao impedir o exercício da cidadania plena, em franco paradoxo com um dos princípios constitucionais mais relevantes de nosso ordenamento, sem a previsão de alternativas legais de para que se proceda à desincompatibilização dos servidores eleitorais para que possam participar do jogo eleitoral, como ocorre com os demais servidores públicos; segundo, justamente por ferir princípios constitucionais, como a cidadania, isonomia e soberania popular, e pelo fato de ter sido criada e promulgada em um momento histórico em que as garantias constitucionais foram substituídas por atos institucionais elaboradas por um governo ilegítimo, tal norma é inválida, uma vez que não poderia ter sido recepcionada.

Verifica-se, com isso, que se trata de questão polêmica, haja vista a falta de unanimidade dos tribunais, cuja jurisprudência não é convergente e os fundamentos a favor da validade do art. 366 do Código Eleitoral são incapazes de tecer um balizamento jurídico satisfatório para justificar sua validade.

Palavras-chave: Servidor público eleitoral. Direito Eleitoral. Constituição Federal. Princípios constitucionais. Validade. Elegibilidade. Inelegibilidade. Eleições. Cidadania ativa e passiva.


1 INTRODUÇÃO

Quando promulgou a Constituição de 1988, queria o constituinte afastar o autoritarismo imposto pelo antigo regime que limitou diversos direitos fundamentais, dentre eles os Políticos, restringindo a participação do povo na escolha de seus dirigentes com o qual o governo garantia uma legitimidade às avessas, criando seus próprios princípios ao argumento de se garantir a segurança nacional.

Ao fim do regime militar, o país necessitava refazer-se, pois a nova ordem que surgiu era totalmente incompatível com a antiga, exigindo, assim, uma nova Carta Política que buscasse satisfazer os anseios da sociedade, cujos valores foram elevados à categoria de princípios norteadores de toda a normatividade. Assim, tudo aquilo que não se ajustasse à nova ordem deveria, necessariamente, ser banido, derrogado sob o manto da inconstitucionalidade.

O atual Código Eleitoral, tendo sido construído sob o regime militar, precisou se adequar à nova ordem. No entanto, ainda restaram algumas aberrações frente à atual Constituição. Uma delas insere-se no art. 366, que proíbe ao servidor da Justiça Eleitoral, enquanto em exercício de suas atividades, a filiação partidária.

Assim, com o fim de se demonstrar que a referida norma não se encontra recepcionada pela atual Constituição, buscou-se desenvolver este trabalho, o qual se subdivide em 5 (cinco) capítulos, sendo o primeiro esta introdução.

No segundo capítulo será apresentado um breve histórico das eleições no Brasil, cujo conhecimento auxilia no entendimento do atual sistema eleitoral brasileiro.

Buscou-se tratar, no terceiro capítulo, da análise de alguns princípios que orientam o Direito Eleitoral, segundo suas pertinências para o desenvolvimento desse trabalho.

O quarto capítulo cuida dos Direitos Políticos conforme previsão constitucional, dos critérios de elegibilidade e inelegibilidade e o tratamento dado pela Constituição Federal para o caso dos magistrados, membros do Ministério Público e dos militares.

No quinto capítulo, no qual será desenvolvido o tema central do trabalho, busca-se demonstrar as razões da não recepção do art. 366 do Código Eleitoral e o problema de sua interpretação extensiva pelos Tribunais, restringindo, ainda mais, o exercício da cidadania pelos servidores da Justiça Eleitoral.

Por fim, no capítulo sexto é feita a conclusão deste trabalho, cuja finalidade não é esgotar o assunto, uma vez que o tema, a despeito de sua reduzida delimitação, é extenso, demandando um aprofundamento maior que o necessário para a elaboração desse trabalho de monografia.


2 HISTÓRICO Das ELEIÇÕES NO BRASIL

A disputa por cargos políticos no Brasil remontam ao período colonial, quando do levantamento de vilas aqui implantadas com o fim de se efetivar a colonização e centralizar, nas colônias, o controle régio sobre o território e sobre a incipiente economia de exploração. Neste contexto, os centros de administração, as câmaras de vereança, cuja participação era restrita aos "homens bons", eram compostas por ricos proprietários que definiam os rumos políticos das vilas. Era um sistema que, longe de ser democrático, afastava o resto da população da vida política colonial, apesar de uma efêmera participação popular por meio das juntas do povo, que decidiam sobre diversos assuntos da Capitania, o que perdurou, em sua essência, até a proclamação da independência.

A eleição para os cargos das repúblicas das vilas e cidades era regida pelo Código Eleitoral da Ordenação do Reino, que em seus capítulos não explicitavam os órgãos da administração, mas referiam-se aos ocupantes dos diversos cargos e funções (FERREIRA, 2005, p. 28).

Marcos Ramayana (2005, p. 7) ressalta, ainda:

(...) a existência do Regime de Tomé de Souza, reconhecido como uma autêntica Carta Constitucional, pois, outorgada por Dom João III, Rei de Portugal à época, regulava as relações colonizadoras sob a influência do Código Manuelino de 1512, não se aplicando aos indígenas, mas estruturava órgãos políticos descentralizados, tais como a figura do Governador-Geral, Provedor-Mor e Ouvidor-Geral, cujas regas para preenchimento dessas funções e cargos advinham de pura nomeação do Rei de Portugal, inexistindo eleições nesse período colonial, mas aplicando-se as regras do Código Manuelino como fonte inspiradora da formação descentralizadora, havendo uma colisão de forças dos poderes locais das capitanias hereditárias que formavam um embrião do Estado Federal.

Com o fim do sistema colonial e a criação do império brasileiro, em virtude da outorga de sua primeira Constituição, a qual dividia as funções estatais em quatro poderes: o Judiciário, o Legislativo, o Executivo e o Moderador, o Brasil passa a ter autonomia política, sob o governo de um imperador que acumulava aquelas duas últimas funções. Nesse período, surge uma intensa disputa por cargos no governo entre as elites nacionais que se alternavam, muitas vezes, segundo os interesses do próprio imperador.

Em 19 de junho de 1822 foi publicada a primeira lei eleitoral brasileira, que regulamentava a escolha de uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, a qual, eleita após a Proclamação da Independência, elaborou a Constituição do Império, outorgada em 1824. É de se notar que a lei eleitoral do império brasileiro é anterior à própria Constituição, visto que era necessária, conforme visto, para a eleição dos membros da Assembléia Constituinte.

Ao contrário da lei eleitoral copiada da Constituição espanhola, esta, a de 19 de junho de 1822, era perfeita para a época. Toda a matéria eleitoral era bem estruturada e ainda hoje nota-se a sua redação simples e acessível. Não havia, ainda, partidos políticos. O sistema era indireto, em dois graus: o povo escolhia eleitores, os quais, por sua vez, iriam eleger os deputados. Não havia, em primeiro grau (o povo), qualificação ou registro. Somente os seus delegados, os eleitores da paróquia, possuiriam o necessário diploma, uma cópia das atas das eleições. Observemos, ainda, que a religião católica era a religião oficial, adotada pela Monarquia portuguesa, o que explica as missas estabelecidas nas Instruções. E, finalmente, que a eleição era única e exclusivamente de deputados à Assembléia Geral, não havendo, ainda, assembléias nas províncias (FERREIRA, 2005, p. 73-74).

Característica marcante do sistema eleitoral à época, residia nas limitações à capacidade eleitoral passiva, na medida em que, dentre outros requisitos para a elegibilidade, impunha-se a quantia de quatrocentos mil réis de renda líquida, mas é importante frisar que todo o Poder Legislativo era delegado à Assembléia Geral com a sanção do Imperador, e não estavam disciplinadas, no texto constitucional, as regras concernentes ao modo prático das eleições e ao número de deputados relativamente á população do Império (RAMAYANA, 2005, p. 7).

Considerando a estrutura econômico-social da época, conclui-se que o voto era privilégio dos proprietários de terras, engenhos, etc. Isso, não obstante a sua extensão aos guarda-livros e primeiros caixeiros das casas comerciais, criados da Casa Real (de hierarquia superior) e administradores de fazendas e fábricas. De qualquer modo, o exercício do voto, direito político, assentava-se sobre bases econômicas (FERREIRA, 2005, p. 82).

A política adotada a partir da independência perdurou praticamente sem a participação popular até o fim do Império, quando houve uma ruptura do regime monárquico para o republicano, mantendo-se, apesar disso, a prevalência dos interesses de uma minoria representada pelas oligarquias cafeeiras.

2.1 O Exercício da Cidadania na República Velha

Com a proclamação da república, viu-se surgir uma participação popular mascarada na vida política do país, que visava, sob o manto de uma representatividade escolhida pelo eleitor, condição adquirida apenas pelos homens e que soubessem ler e escrever, legitimar as oligarquias agrárias a um governo totalmente voltado aos seus interesses. Devido a isso, a participação do povo era apenas aparente, posto que as eleições eram feitas com "cartas marcadas", decididas pela Política dos Governadores, por meio de um sistema que explorava os chamados "currais eleitorais", que garantiam os votos que elegeriam os candidatos das elites dominantes na época, através de eleições fraudulentas, apuradas e ajustadas a "bico de pena".

O direito de voto estava assegurado pela Constituição, mas o fato da grande maioria dos eleitores habitarem o interior e serem muito pouco politizados levou os proprietários agrários a controlar o voto e o processo eleitoral em função de seus interesses (CANCIAN, 2011).

Apesar dos abusos eleitorais ocorridos durante a República Velha, sobretudo no controle do voto da população rural pelos coronéis, conhecido como "voto de cabresto", da Comissão de Verificação, formada pelo Legislativo, cuja função era aceitar ou não os resultados do pleito, e do compromisso político entre o governo federal e as oligarquias que governavam os estados – Política dos Governadores –, há de se ressaltar que foi a primeira vez na história do Brasil em que houve uma abertura política à participação do povo por meio do chamado "sufrágio universal", conforme ficou denominado na época, apesar das restrições impostas ao voto feminino, cuja conquista não ocorreria antes de 1932.

2.2 O Surgimento da Justiça Eleitoral e Algumas Peculiaridades Históricas

A legislação eleitoral que surgiu no Brasil após a Revolução de 1930 e até os dias de hoje caracteriza um dos mais importantes períodos da vida política brasileira.

A Constituição teve o grande mérito, valor e respeito de erigir ao patamar constitucional a Justiça Eleitoral, como órgão do Poder Judiciário.

Os historiadores identificam uma forte influência dos princípios e normas da Constituição Alemã de Weimar na Constituição de 1934. (RAMAYANA, 2005, p. 9).

A instituição de uma Justiça Eleitoral independente de injunções políticas, e que coloca o Brasil acima dos países mais civilizados do globo; a instituição do voto feminino; a adoção da representação proporcional; o registro de partidos políticos; a cédula oficial e única nas eleições majoritárias; volta à unidade nacional em matéria eleitoral, retirando dos estados o direito de legislar e restabelecendo o sistema que prevaleceu no Império (FERREIRA, 2005. p. 323).

O Código Eleitoral de 1932 criou a Justiça Eleitoral, que passou a ser responsável por todos os trabalhos eleitorais – alistamento, organização das mesas de votação, apuração dos votos, reconhecimento e proclamação dos eleitos. Além disso, regulou em todo o País as eleições federais, estaduais e municipais. Assim, no Brasil foi implantada uma Justiça sui generis, que acumulava atividades tanto administrativas quanto jurisdicionais.

No entanto, com o advento do Estado Novo, a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, excluiu-se a Justiça Eleitoral dos órgãos do Poder Judiciário. De 1937 a 1945 foram nomeados interventores para o Poder Executivo Estadual e Municipal, e as Casas Legislativas foram dissolvidas, cancelando-se as eleições em todo o país. A Justiça Eleitoral somente retoma suas atividades com a Edição do Decreto-Lei nº 7.586, de 28 de maio, que regulamentou as eleições e restabeleceu-a, retomando suas atividades em 7 de junho de 1945.

A história aponta no sentido da consagração das tendências ditatoriais da época, (...), o que gerou o desaparecimento, v.g., da Justiça Eleitoral nos moldes da Constituição de 1934, que sofreu críticas por sua inadaptação na esfera da realidade da época (RAMAYANA, 2005, p. 10).

Em 1946, uma nova Constituição é promulgada no Brasil, a partir da qual são retomados princípios democráticos e sociais que houveram sido consagrados pela Constituição de 1934 e abolidos pelo Estado-Novo. Com a redemocratização, surgem novos partidos políticos, de caráter nacional, e as eleições para presidente da república voltam a ocorrer de forma direta, com a consagração do sufrágio universal.

(...) muito embora o período instituído com a Constituição de 1946 seja considerado um período democrático, uma grande instabilidade política ainda podia ser verificada no Brasil. Em 1950, o ex-ditador, Getúlio Vargas, é eleito democraticamente, presidente da república. Setores oposicionistas, liderados pela UDN (União Democrática Nacional), partido político que rivalizou com o PTB (Partidos Trabalhista Brasileiro) e o PSD (Partido Social Democrático) durante quase vinte anos, tentam impedir a posse do presidente e, após esta, fazem tudo para o depor. Em meio a uma grande crise política, Getúlio Vargas se suicida, em 24 de agosto de 1954, adiando, em dez anos, o golpe militar que terminaria ocorrendo em 1964 (BARREIROS NETO, 2009).

2.3 A Criação do Atual Código Eleitoral

A Constituição anterior, de 1946, sofreu substanciosas alterações através dos Atos Institucionais de nºs 1, 2, 3 e 4, além de várias emendas constitucionais que iriam trilhar princípios para a elaboração de um novo texto constitucional, que seria a Constituição de 1967.

Cresce também a repressão política. As eleições diretas para presidente da república, governadores de estado e prefeitos de capitais e de zonas consideradas de segurança nacional deixam de ser realizadas, e o bipartidarismo é imposto, a partir de 1966, com a dissolução de todos os partidos políticos existentes até então e a criação de duas novas agremiações partidárias: a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) (BARREIROS NETO, 2009).

Ao instituir o sistema de "eleições indiretas", o regime militar interrompeu o processo de crescente da população na escolha dos dirigentes do país e inventaram eleições presidenciais através do Colégio Eleitoral. Essa criação obedeceu ao único propósito de manter a escolha do presidente da República sob controle dos militares e das elites políticas que os apoiavam. Era um sistema mais restrito do que o sistema eleitoral da República Velha, onde o escolhido da oligarquia tinha que enfrentar o processo eleitora, por mais que fosse viciado. Cada um dos presidentes militares foi referendado pelo Colégio Eleitoral, cujas regras para sua composição foram especialmente criadas em função das necessidades de ocasião (REPÚBLICA... 2011).

Neste contexto, o Congresso Nacional continuou aberto apenas para demonstrar aos outros países que havia normalidade política e administrativa e que, apesar do desmonte do Estado de Direito, a ditadura estava protegendo o país dos seus inimigos: os comunistas.

Os textos legais eram aprovados sem o voto dos congressistas. O governo impôs o decurso de prazo, manobra utilizada para legalizar o ilegítimo e inviabilizar qualquer propositura de emendas ao orçamento do governo e, ainda, a discussão e votação dos projetos enviados pelo poder executivo.

O Congresso, eventualmente, era palco de denúncias de alguns parlamentares da oposição que, na maioria das vezes, não encontravam espaço na imprensa para fazê-las: os anais do Congresso registravam os protestos e o assunto logo caía no esquecimento.

Quando se sentia ameaçado, o governo ditatorial cassava os deputados de postura mais oposicionista. Em 1966, a ditadura militar cassou diversos deputados da oposição e fechou o Congresso Nacional. Foram presos os integrantes do partido oposicionista que protestaram em plenário contra o AI-3, sob suspeita de subversão e sabotagem ao espírito da revolução, segundo a imprensa. Muitos políticos acabaram desistindo da vida pública, tal a pressão sofrida e tal o clima de terror institucionalizado, deixando desta forma terreno para o partido situacionista agir livremente.

Castelo Branco reabriu o Congresso impondo o projeto de uma nova Constituição, sem a instalação de uma Assembleia Constituinte. Sem debates, sem contraditórios, no dia 24 de janeiro de 1967, a Constituição de 1967 foi aprovada (REGIME... 2011).

Foi neste momento histórico, de ausência de autonomia do Congresso Nacional, que a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, o atual Código Eleitoral, foi promulgado, estabelecendo os princípios básicos do atual sistema eleitoral brasileiro e ampliando o campo de atuação desta Justiça Especializada.


3 O DIREITO ELEITORAL E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES

3.1 Conceito de Direito Eleitoral e as Bases de sua Autonomia

Segundo José Jairo Gomes (2010, p. 19), Direito Eleitoral é "o ramo do Direito Público cujo objeto são os institutos, as normas e os procedimentos regularizadores dos direito políticos. Normatiza o exercício do sufrágio com vistas à concretização da soberania popular".

Já Marcos Ramayana (2005, p. 25) conceitua analiticamente o Direito Eleitoral "como sendo o ramo do Direito Público que disciplina o alistamento eleitoral, o registro de candidatos, a propaganda eleitoral, a votação, apuração e diplomação, além de regularizar os sistemas eleitorais, os direitos políticos ativos e passivos, a organização judiciária eleitoral, dos partidos políticos e do Ministério Público dispondo de um sistema repressivo penal especial".

José Jairo Gomes (2010, p. 20) utiliza-se do conceito de microssistemas para fundamentar a autonomia desse ramo do Direito Público, nestes termos:

Para que um setor do universo jurídico seja inserido na categoria de microssistema, deve possuir princípios e diretrizes próprios, ordenados em atenção ao objeto regulado, que lhe assegurem a coerência interna de seus elementos e, com isso, identidade própria. Ademais, pressupõe a existência de práticas sociais específicas, às quais correspondam um universo discursivo e textual determinado a amparar as relações jurídicas ocorrentes.

O Direito Eleitoral atende a tais requisitos. Nele se encontra encerrada toda a matéria ligada ao exercício de direitos políticos e organização das eleições. Enfeixa princípios, normas e regras atinentes a vários ramos do Direito, como constitucional, administrativo, penal, processual penal, processual civil.

Assim, o citado autor defende a autonomia do Direito Eleitoral, uma vez que apresenta princípios e normas próprios para assegurar a organização e o exercício de direitos políticos precipuamente os de votar e ser votado (art. 1º do Código Eleitoral).

3.2 Os Princípios Fundamentais do Direito Eleitoral

Os princípios são, enquanto valores, a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada (BONAVIDES, 2008). Bobbio, citado por Bonavides (2008), classifica-os conforme as seguintes funções: a função interpretativa, a função integrativa, a função diretiva e a função limitativa.

A Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 1º, eleva à categoria de princípios fundamentais, a soberania, a cidadania e o pluralismo político, enquanto que, em seu Preâmbulo, a igualdade e a justiça compõem os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. São valores fortes, caracterizadores de uma sociedade evoluída e capaz de se autogerir, direta ou indiretamente, denotando a independência e a responsabilidade de um povo capaz de construir seu próprio futuro.

Entretanto, apesar de sua função orientadora básica, porque elevados à categoria constitucional, outros princípios também dão fundamento a todo o ordenamento, sendo alguns específicos a determinadas matérias enquanto outros possuem abrangência mais ampla.

Vários são os princípios presentes no Direito Eleitoral. Entre eles, destacam-se os seguintes princípios: democracia, democracia partidária, Estado Democrático de Direito, poder soberano, republicano, federativo, sufrágio universal, legitimidade, moralidade, probidade, igualdade ou isonomia. Revelam ainda princípios de natureza processual. (GOMES, 2010, p. 29).

Marcos Ramayana (2005, p. 31-41) elenca outros princípios próprios do Direito Eleitoral: princípio da lisura das eleições, princípio do aproveitamento do voto e o princípio da responsabilidade solidária entre candidatos e partidos políticos.

No entanto, dadas as respectivas pertinências no âmbito deste trabalho, trataremos de apenas alguns desses princípios.

3.3 O Princípio da Moralidade

O princípio da moralidade é previsto no art. 14, § 9º, da Constituição Federal, no âmbito dos Direito Políticos, e no art. 37, caput, na ingerência da Administração Pública.

Tornou-se comum a exigência de ética na política e em todos os setores da vida social. As ações imorais, antiéticas, têm sido repudiadas em toda parte, tendo que o art. 37 da Constituição Federal erigiu a moralidade administrativa como princípio da Administração Pública.

Um duplo desafio das democracias modernas é garantir a legitimidade das eleições e a moralidade dos mandatos. Esse também o problema da democracia brasileira, assolada por denúncias de improbidade administrativa de autoridades públicas e falta de decoro de parlamentares em todas as esferas de poder.

No âmbito dos Direitos Políticos, o princípio da moralidade inscrito no art. 14, § 9º, da Constituição conduz a ética para dentro do jugo eleitoral. Significa dizer que o mandato obtido por meio de práticas ilícitas, antiéticas, imorais, encontrar-se-ia eivado de legitimidade. Mais que isso: significa que o mandato político deve ser sempre conquistado e exercido dentro dos padrões éticos aceitos pela civilização (GOMES, 2010).

O agente público, ao exercer suas funções, deve-se portar sempre de acordo com as balizas da honestidade, da boa-fé, da ética, da probidade e da lealdade, porquanto, somente assim, o Estado Federal Brasileiro efetivará os direitos fundamentais e os objetivos fundamentais estabelecidos no artigo 3º, da Constituição, quais sejam: garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim, não foi por outra razão que o legislador constituinte preconizou no artigo 14, §9º da Carta Magna, o princípio da moralidade como diretriz bastante a ser exigida daqueles que pleiteiam exercer mandato eletivo.

Ora, se o princípio da moralidade é baliza governante e regente da Administração Pública e, conseqüentemente, de seus servidores, quiçá dos cidadãos que estão com intento de disputar um mandato eletivo, os quais, não raras vezes, se eleitos, serão responsáveis pelo controle do orçamento e da máquina administrativo-financeira estatal, pela escolha das políticas públicas relacionadas à educação, à saúde, à assistência social, à segurança pública, entre outras áreas, enfim, pela gestão da coisa pública como um todo.

Como conceber que a Administração Pública possa efetivamente concretizar os direitos fundamentais e satisfazer as necessidades coletivas, se alguns responsáveis por tais misteres estão envolvidos em descalabros administrativos e financeiros, tipificados como delitos?

Deste modo, o princípio da moralidade não só pode, como deve ser parâmetro legítimo para indeferimento de candidaturas daqueles que estão respondendo a processos criminais ainda não findos (TAVARES, 2008).

Conforme previsto no § 9º do artigo 14, foi editada a Lei Complementar 64/90, que trouxe ao mundo jurídico um rol de causas de inelegibilidades que buscam satisfazer o anseio da moralidade na política na tentativa de se impedir aos indivíduos de vida moral desabonadora o acesso ao registro de candidatura e, com isso, afastá-los das urnas e da vida pública. A lei contém também instrumentos para fiscalização das condutas de candidatos e de apoiadores em campanhas eleitorais, visando coibir os eventuais excessos e preservar a vontade do eleitor, punindo as práticas de abuso do poder econômico e político e da corrupção e captação ilícita de sufrágio.

Diga-se de passagem, o princípio da moralidade do art. 14, § 9º, e art. 37, caput, da Constituição, por direcionar a um comportamento conforme os valores considerados relevantes à sociedade, está mais voltado às questões éticas que morais propriamente ditas. Isso porque a moral condiz aos valores subjetivos em que cada um, em sua individualidade, constrói com base em sua vivência inserto num ambiente histórico-cultural em um determinado tempo. Diferentemente, a ética discute e problematiza o comportamento humano quando inserido em uma comunidade, a qual serve de direcionamento que possibilite o convívio social.

3.3.1 Considerações Críticas sobre o Princípio da Moralidade

O artigo 37 da Constituição Federal nos fornece as diretrizes principiológicas que norteiam a atividade da administração pública, quais sejam, os princípios da legalidade, da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Assim, os atos administrativos praticados pelo Estado, por meio de seus agentes, deverão se pautar, enquanto exercentes de suas atribuições, em tais princípios com o fim de se alcançar os fins a que se destinam, ou seja, a persecução do interesse público.

No tocante ao princípio da Moralidade, segundo Hely Lopes Meirelles (2004, p.89), citando Welter:

A moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum; ela é composta por regras de boa administração, ou seja: pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o Bem e o Mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa.

Sendo assim, a moralidade administrativa constitui em pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública. A moralidade do ato administrativo, juntamente com a sua legalidade e finalidade, além da sua adequação aos demais princípios, constitui pressuposto de validade sem o qual toda atividade pública será ilegítima.

No entanto, durante um julgamento do Tribunas Superior Eleitoral, na qual se decidia a aplicabilidade do artigo 366 do Código Eleitoral ao caso de uma servidora da Justiça Eleitoral que fora reeleita prefeita do município de Moita Bonita, no Sergipe (TSE. RESPE 29.769-SE, Relator Ministro Marcelo Ribeiro, 2009), foi suscitado pela Ministra Cármen Lúcia que a norma busca alcançar uma moralidade cuja amplitude vai além daquela prevista no artigo 14, § 9º, e 37 da Constituição Federal:

Penso, também, que o Ministro Marcelo Ribeiro dá um tom que é extremamente consentâneo com os princípios constitucionais.

O que se quer com uma norma como essa norma? Moralizar o processo inteiro, tanto o processo eleitoral quanto a administração pública, e muito mais a administração que diz respeito ao Poder Judiciário que cuida das eleições.

Então, não é possível imaginar que um cidadão comum tenha que conviver com qualquer desconfiança. Temos o direito de dormir em paz pensando que temos direito a um governo honesto, a uma justiça honesta, e que isso acontece.

Então, a norma como essa é exatamente para evitar que as instituições do Judiciário – e muito mais do Judiciário Eleitoral –, que precisam de passar, de viver a experiência da moralidade, passem por uma dúvida. Não é que este ou aquele, ou esta servidora teria qualquer conduta incompatível com a moralidade; é que não basta ser honesto no cargo público; é preciso parecer para que a outra pessoa tenha segurança de que as instituições funcionam a contento.

As normas contidas no Código Eleitoral devem ser interpretadas segundo os preceitos constitucionais vigentes, sendo requisito necessário para que tenha validade em nosso ordenamento. Assim, à luz da Constituição da República, o que se deveria buscar com a aplicação do artigo 366 é resguardar a moralidade administrativa, no sentido de se evitar que o servidor público eleitoral utilize-se das prerrogativas de suas funções em proveito próprio ou de seus correligionários.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Melo (2006, p. 115):

De acordo com o princípio da moralidade administrativa, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que as sujeita a conduta viciada da invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreende-se, em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé, (...). Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos.

Por outro lado, a Lei Fundamental deverá proteger a moralidade para o exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, conforme previsão de seu artigo 14, § 9º, com redação dada pela Lei Complementar nº 4, de 1994. O fim a que se destina a norma é afastar a falta de ética ao processo eleitoral por parte dos candidatos.

Desta feita, deve-se entender que a moralidade no processo eleitoral, conforme preceituado no artigo 14, § 9º, da Lei Fundamental, é diversa da moralidade adstrita às atividades desempenhadas pela administração pública, conforme previsto no artigo 37 da Carta da República, não podendo, por isso, atribuir àquela a mesma qualidade desta. Conforme dito por José Jairo Gomes (2010, p. 50), "no âmbito dos direitos políticos, o princípio da moralidade inscrito no artigo 14, § 9º, da Constituição conduz a ética para dentro do jogo eleitoral". Com isso, no âmbito do processo eleitoral, a conduta ética esperada deve partir do cidadão-candidato, que deverá apresentar, perante seus eleitores, uma postura íntegra para o desempenho de suas funções políticas.

Assim, a moralidade objetiva, prevista constitucionalmente e direcionada tanto aos agentes políticos quanto aos agentes públicos no exercício de suas atribuições, não poder ser confundida com a moralidade subjetiva, esta partindo das concepções pessoais dos eleitores sobre o modo de agir do servidor público da Justiça Eleitoral enquanto candidato a cargos políticos, pois, segundo Hauriou, citado por Meirelles (2004, p. 89):

A moral comum é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.

3.4 O Princípio da Isonomia

Trata-se de um princípio jurídico disposto pela Constituição da República Federativa do Brasil, assentado no art. 5º, caput, que diz que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)", independentemente da riqueza ou prestígio destes, informando a todos os ramos do Direito.

Alguns juristas construíram duas diferenciações no entendimento deste princípio: o da igualdade na lei, a qual é destinada ao legislador, ou ao próprio Executivo, que, na elaboração das leis, atos normativos, e medidas provisórias, não poderão fazer nenhuma discriminação. E o da igualdade perante a lei, que se traduz na exigência de que os Poderes Executivo e Judiciário, na aplicação da lei, não façam qualquer discriminação. No entanto, essa diferença é dita como desnecessárias, pois, conforme José Afonso da Silva, "a doutrina como a jurisprudência já firmaram há muito a orientação de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei" (MENDES, 2008).

A aplicação do princípio poderá ser relativizado de acordo com o caso concreto. Doutrina e jurisprudência já assentam que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as obrigações correspondentes, o que significa "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam", visando, sempre, o equilíbrio entre todos.

Também a igualdade já se pôs como um valor fundamental da pessoa humana, ligado à igualdade substancial de todos os homens. Em relação à igualdade é preciso, também, uma reformulação da própria concepção. Realmente, o individualismo exacerbado afirmou a liberdade como um valor, mas limitou-se a considerá-la um direito, sem se preocupar em convertê-la numa possibilidade. Em consequência, também a igualdade foi apenas formal, pois os desníveis sociais profundos, mantidos em nome da liberdade, e a impossibilidade prática de acesso aos bens produzidos pela sociedade tornavam impossível, para muitos, o próprio exercício dos direitos formalmente assegurados. A reação a essa desigualdade foi também desastrosa, pois partiu de uma concepção mecânica e estratificada da igualdade, impondo, praticamente, o cerceamento da liberdade para que fosse mantida. A concepção da igualdade como igualdade de possibilidades corrige essas distorções, pois admite a existência de relativas desigualdades, decorrentes da diferença de mérito individual, aferindo-se este através da contribuição de cada um à sociedade. O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros uma situação de privilégio mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos (DALLARI, 2007).

Entretanto, cabe salientar que tal distinção não possui base constitucional, uma vez que não há previsão de relativização do princípio em questão, uma vez que o artigo 3º da Constituição da República, em seu inciso IV, prevê, como objetivo fundamental da República, "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" e o artigo 5º do mesmo diploma prescreve, em seu caput, que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)".

Tem-se, ainda, que a igualdade encontra-se intimamente ligada à dignidade da pessoa humana, conforme citação a seguir:

De acordo com o professor Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio da igualdade "encontra-se diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo por outro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toa e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material" (SARLET apud SILVA, 2003).

A conceituação de tal princípio tem conteúdo historicamente variável. A doutrina tradicional preconizou que o conteúdo de tal preceito seria o de dar tratamento diverso para pessoas desiguais; entretanto, não precisou ou esclareceu em que circunstâncias e em que medida seria constitucionalmente admissível que a lei desigualasse, com um posicionamento que é praticamente igual a máxima de Aristóteles, para o qual o princípio da igualdade consistiria em "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam". Isso porque o filósofo grego, em sua obra "A Política", acreditava que "a cidade-modelo não deverá jamais admitir o artesão no número de seus cidadãos. Isto porque a virtude política, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àqueles que não têm necessidade de trabalhar para viver (...)" (DALLARI, 2007).

Conforme se pode extrair do fragmento citado, o conceito de igualdade no mundo grego de Aristóteles estava intimamente vinculado à virtude, qualidade que se apresentava apenas a uma parte do povo e que era necessária à participação da gestão da cidade.

Resta-nos, ainda, uma rápida ponderação a respeito do tema. A igualdade deve ser tratada em consonância com o princípio democrático no sentido da afirmação do equivalente ao governo de todo o povo, neste se incluindo, porém, uma parcela muito mais ampla dos habitantes do Estado, e não naquela democracia idealizada pela emergente classe burguesa, a partir do século XVIII, com o fim de se ascenderem politicamente frente ao enfraquecimento do Absolutismo e que convocava as massas apenas para serem "usadas" como instrumento de manobras às suas aspirações.

Assim, as considerações apresentadas por Rui Barbosa, durante seu discurso como paraninfo dos formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, fora feita em uma época em que imperava a doutrina liberal, que ajustou o conceito de igualdade de maneira a justificar os privilégios de uma classe que, durante toda a República Velha, utilizou-se da máquina estatal como meio para a realização de seus próprios interesses. A participação popular, nesse contexto, limitava-se apenas a legitimar, por meio de sufrágios forçados e duvidosos, a eleição dos representantes das elites dominantes daquela época.

Por isso, tal discurso não pode ser utilizado para justificar a implementação de uma igualdade que desiguala em um Estado que se diz Democrático de Direito.

3.5 A Cidadania e o Direito do Servidor Eleitoral

Cidadania tem origem etimológica no latim civitas, significando "cidade". Designa um estatuto de pertença de um indivíduo a uma comunidade politicamente articulada e que lhe atribui um conjunto de direitos e obrigações.

"A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social" (DALLARI, 1998).

A cidadania, conforme prescrita no art. 1º, II, da Constituição da República, apresenta um sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial do regime democrático (SILVA, 1998).

Uma vez que tenha sido elencado como fundamento da República, o exercício da cidadania não pode sofrer embaraços, tanto que a Lei Fundamental garante, em seu artigo 5º, LXXVII, a gratuidade das ações de habeas corpus e habeas data e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania, tendo sido regulamentado pela Lei nº 9.265/96.

Segundo Cármem Lúcia Antunes Rocha, citada por Costa (2002, p. 33):

Nessa Lei Fundamental de 1988, a cidadania significa o status constitucional assegurado ao indivíduo de ser titular do direito à participação ativa na formação da vontade nacional, na concretização dessa vontade transformada em Direito definidor, tanto na institucionalização do Poder quanto da limitação das liberdades públicas, e no controle das ações do poder.

A cidadania comporta, genericamente, três dimensões:

1.Civil. Direitos inerentes à liberdade individual, liberdade de expressão e de pensamento; direito de propriedade e de conclusão de contratos; direito à justiça;

2.Política. Direito de participação no exercício do poder político, como eleito ou eleitor, no conjunto das instituições de autoridade pública;

3.Social. Conjunto de direitos relativos ao bem-estar econômico e social, desde a segurança até ao direito de partilhar do nível de vida segundo os padrões prevalecentes na sociedade.

Interessa-nos a dimensão política, uma vez que cidadão é aquele, detentor dos direitos políticos, que participa politicamente da vida política do país, seja escolhendo os governantes, seja sendo escolhido para ocupar cargos políticos-eletivos (GOMES, 2010).

E, segundo José Afonso da Silva (1998, p. 346):

"a cidadania qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política. Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas conseqüências".

Ainda, segundo José Jairo Gomes, o alistamento eleitoral é fator de determinação da cidadania do indivíduo, uma vez que deferido, este é integrado ao corpo de eleitores, podendo exercer direitos políticos, votar e ser votado.

Não havendo alistamento, não é possível que o indivíduo exerça direitos políticos, já que, não tendo título de eleitor, seu nome não figurará no rol de eleitores de nenhuma seção eleitoral, tampouco constará da urna eletrônica. Por isso, tem-se dito que o alistamento eleitoral constitui pressuposto objetivo da cidadania, sem o qual não é possível a concretização da soberania popular (GOMES, 2010).

Ao contrário, a inalistabilidade impede que a cidadania se constitua. O inalistável não pode exercer direitos políticos, pois lhe falta capacidade eleitoral ativa e passivo. A Constituição trata de elencar as situações em que isso ocorre, em seu art. 14, § 2º, quais sejam: os estrangeiros e os conscritos enquanto em período de serviço militar obrigatório.


4 OS DIREITOS POLÍTICOS E AS PREVISÕES CONSTITUCIONAIS DE ELEGIBILIDADE DOS MAGISTRADOS, MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DOS MILITARES

Segundo Alexandre de Morais, Direitos Políticos são um conjunto de regras que disciplinam as formas de atuação da soberania popular. São direitos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis, permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da cidadania (MORAIS, 2010).

A soberania popular, conforme prescreve o art. 14, caput, da Constituição Federal, será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante: plebiscito, referendo, iniciativa popular.

O direito de sufrágio é a essência do direito político, expressando-se pela capacidade de eleger e de ser eleito. Assim, o direito de sufrágio apresenta-se em seus dois aspectos:

- capacidade eleitoral ativa (direito de votar – alistabilidade);

- capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado – elegibilidade).

A capacidade eleitoral ativa consiste em forma de participação da pessoa na democracia representativa, por meio da escolha de seus mandatários. É condição necessária para o exercício da capacidade eleitoral passiva, sendo um de seus requisitos o alistamento eleitoral.

Já o alistamento eleitoral consiste em procedimento administrativo, instaurado perante os órgãos competentes da Justiça Eleitoral visando a verificação do cumprimento dos requisitos constitucionais e das condições necessárias à inscrição como eleitor (MORAIS, 2010). Como visto, trata-se de um dos requisitos necessários para que o cidadão tenha condições de elegibilidade, conforme o art. 14, § 3º, da Constituição Federal.

4.1 Elegibilidade

Elegibilidade é a capacidade eleitoral passiva consistente na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos (MORAIS, 2010).

Essas condições são previstas na própria Constituição Federal, em seu art. 14, § 3º, a seguir reproduzido:

§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I – a nacionalidade brasileira;

II – o pleno exercício dos direitos políticos;

III – o alistamento eleitoral;

IV – o domicílio eleitoral na circunscrição;

V – a filiação partidária;

VI – a idade mínima de:

a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;

c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;

d) dezoito anos para Vereador.

Conforme se pode extrair da norma, verifica-se que o cidadão, ao se pretender candidato a cargos políticos, deverá atender tanto aos requisitos genéricos, elencados nos incisos, quanto aos requisitos específicos da idade mínima em função do cargo pretendido.

Além disso, vale mencionar que a Constituição de 1988 prevê, para alguns cargos públicos, em virtude à sua relevância na Administração Pública e, algumas limitações no tocante à habilitação ao exercício da cidadania passiva. Caso contrário, tais essas prerrogativas gerariam uma situação de desequilíbrio no jogo político, uma vez que detentores de elevados cargos públicos gerariam graves prejuízos ao Estado Democrático de Direito. É o caso dos Magistrados, Militares e Membros do Ministério Público.

Com relação aos demais servidores públicos, leis infraconstitucionais tratam de criar mecanismos jurídicos que possibilitem sua candidatura sem, no entanto, se aproveitarem das prerrogativas funcionais, tornando, assim, a disputa política equilibrada.

Prevê, ainda, a exigência de Lei Complementar que defina os casos de inelegibilidade, conforme norma do art. 14, § 9º:

§ 9º Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Conforme se pode extrair do comentário acima, um dos fins pretendidos pelo constituinte é proteger a probidade administrativa, preservando-lhe a neutralidade, a moralidade e a honestidade na execução de seus fins, sempre agindo no interesse público.

4.2 Inelegibilidade

Denomina-se incompatibilidade o impedimento decorrente do exercício de cargo, emprego ou função públicos. No que concerne a cargo eletivo, ela surge com o exercício do mandato. Esse impedimento é causa de inelegibilidade, fundando-se no conflito existente entre a situação de quem ocupa um lugar na organização político-estatal e a disputa eleitoral.

A inelegibilidade suscitada pela incompatibilidade só pode ser superada com a desincompatibilização. Esta consiste na desvinculação ou no afastamento do cargo, emprego ou função públicos, de maneira a viabilizar a candidatura.

Nas hipóteses de desincompatibilização, o agente público pode escolher entre manter-se no cargo, emprego ou função e não se candidatar ou sair candidato e, nesse caso, afastar-se temporariamente ou definitivamente, sob pena de tornar-se inelegível, já que estará impedido de ser candidato.

A finalidade desse instituto é evitar o quanto possível que candidatos ocupantes de cargos públicos coloquem-se a serviço de suas candidaturas, comprometendo não só os desígnios da Administração Pública como também o equilíbrio e a legitimidade da eleição.

As hipóteses de desincompatibilização são definidas na Constituição ou em lei complementar, que fixam prazos para que o agente público afaste-se do cargo, emprego ou função que ocupa.

4.3 Dos Magistrados

O art. 95, parágrafo único, inciso III, e o art. 73, § 3°, c/c o art. 75, todos da nossa Carta Magna, vedam o exercício de atividade partidária aos magistrados e membros dos Tribunais de Contas, seja da União, dos Estados ou de Municípios.

Todavia, apesar de haver disposição constitucional que veda expressamente a atividade partidária dessas autoridades, o que não ocorre no caso dos servidores da Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral regulamentou a matéria de forma a viabilizar a participação dessas autoridades na disputa democrática dos cargos eletivos, senão vejamos, in verbis:

Magistrados e Membros do Tribunal de Contas, por estarem submetidos à vedação constitucional de filiação partidária, estão dispensados de cumprir o prazo de filiação fixado em lei ordinária, devendo satisfazer tal condição de elegibilidade até seis meses antes das eleições, prazo de desincompatibilização estabelecido pela Lei Complementar n° 64/90. (Resolução n° 19.978, 25/09/1997). (grifado).

O magistrado ou membro de Tribunal de Contas que pretenda disputar algum mandato eletivo precisa se aposentar ou pedir exoneração do cargo no prazo de desincompatibilização de 06 (seis) meses, exigindo-se a filiação partidária somente a partir desta data. Os militares com mais de 10 anos de caserna e os membros do Ministério Público, como já vimos, também possuem regulamentação jurisprudencial própria, que viabilizam a elegibilidade mediante licença para exercer atividade partidária, apesar de disposição constitucional expressa vedando o exercício de atividade partidária por todos eles.

4.4 Dos Membros do Ministério Público

A Constituição da República, em seu art. 128, II, e, com redação dada pela EC nº 45/2004, vedou ao membro do Ministério Público o exercício de atividade político-partidária.

Essa vedação é causa absoluta de inelegibilidade, pois os membros do Ministério Público não poderão filiar-se a partidos políticos, nem tampouco disputar qualquer cargo eletivo, salvo se estiverem aposentados ou exonerados.

Ademais, a alínea j, II, do art. 1º da LC nº 64/90, exige que, nos 6 (seis) meses anteriores ao pleito, o membro do Ministério Público afaste-se de suas funções para disputar cargo eletivo. Salienta-se que o afastamento exigido pela norma, em consonância com a vedação constitucional alterada pela EC nº 45/2004, deverá ser em caráter definitivo.

4.5 Dos Militares

Dispõe o art. 142, § 3º, V, da Constituição que "o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos". Apesar do mandamento proibindo a filiação do militar a partidos políticos, não está aquele alijado do exercício da cidadania plena, uma vez que o ordenamento criou mecanismos jurídicos que o possibilitem de participarem passivamente do jogo eleitoral.

Assim, o TSE entende que a filiação partidária não é exigível do militar da ativa que pretenda concorrer a cargo eletivo, bastando o pedido de registro de candidatura após prévia escolha em convenção partidária (TSE - Res. nº 22.156/2006). Desse modo, não é necessário que o militar-candidato esteja filiado a partido, sendo suficiente que detenha cidadania ativa.

O pedido de registro de candidatura, apresentado pelo partido, com a anuência expressa do candidato, após a realização da convenção, servirá como suprimento da prévia filiação partidária, não se exigindo, para os ocupantes destes cargos públicos, o prazo mínimo de 1 (um) ano de filiação.

Se o agregado não for eleito, retorna às atividades normais após a necessária desfiliação partidária; caso eleito, passará automaticamente para reserva remunerada, a partir da sua diplomação, pressuposto essencial para a posse no cargo eletivo, permitindo-se a opção pela remuneração mais vantajosa.

Entretanto, o art. 14, § 8º, da Constituição Federal, prevê:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

[...]

§ 8º O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições:

I – se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade;

II – se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade.

Logo, a partir do registro de candidatura, o militar em atividade será afastado definitivamente, se contar menos de 10 (dez) anos de serviço sendo, pois, desligado da organização a que pertence. Entretanto, se tiver mais de 10 (dez) anos de serviço, será agregado. O afastamento e a agregação só ocorrerão com o deferimento do registro de candidatura (Resoluções do TSE nº 20.169/2002 e nº 20.318/2002).

Na condição de agregado, o militar deixa de ocupar vaga na escala hierárquica da organização a que serve, embora continue a figurar no respectivo registro militar, sem número, no mesmo lugar que até então ocupava. Não sendo eleito, retorna à caserna, reassumindo seu posto. Se eleito, passa, automaticamente, à inatividade no ato da diplomação.

4.6 Dos Demais Servidores Públicos

O servidor público efetivo, estatutário ou não, deve desincompatibilizar-se. Apesar de afastado, preserva-se o direito à percepção de vencimento integrais. O afastamento é temporário. Em regra, a desincompatibilização deverá ocorrer 3 (três) meses antes das eleições, conforme previsto no art. 1º, II, l, da Lei Complementar nº 64/90.


5 A SITUAÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO ELEITORAL NO EXERCÍCIO PASSIVO DOS SEUS DIREITOS POLÍTICOS

Segundo o art. 366 do Código Eleitoral, "Os funcionários de qualquer órgão da Justiça Eleitoral não poderão pertencer a diretório de partido político ou exercer qualquer atividade partidária, sob pena de demissão". A norma, cuja redação não dá margem a diversidade de interpretações, determina que os servidores da Justiça Eleitoral deverão necessariamente exonerar-se de seus cargos pelo menos 1 (um) ano antes do pleito, prazo mínimo exigido para a filiação partidária.

Com base nisso, o Ministro Sálvio Figueiredo vislumbrou "a busca constante da moralidade que deve presidir os pleitos eleitorais" (TSE - Ac. n. 19.928 de 10/09/2002), enquanto o Ministro Fernando Neves entende ser "mais que razoável que aqueles que participam da organização do pleito e do processamento e julgamento dos feitos eleitorais não possam ter nenhuma atividade político-partidária" (TSE - Res. n. 20.921 de 23/10/2001).

O alcance pela moralidade nos pleitos eleitorais que se busca com a vedação dada aos servidores eleitorais é relativa, conforme já debatido no item 3.1.1 deste trabalho, uma vez que a desincompatibilização visa justamente garantir a candidatura de servidores públicos a cargos políticos sem o benefício das prerrogativas de seus cargos.

Tutela-se com a desincompatibilização a isonomia entre os pré-candidatos ao pleito eleitoral específico, bem como a lisura das eleições contra a influência do poder político e/ou econômico e a captação ilícita de sufrágio, porque incide uma presunção jure et de jure que o incompatível utilizará em seu benefício a máquina da Administração Pública (RAMAYANA, 2005, p. 107)

Muitas vezes, tem-se visto a defesa da tese, por parte dos Tribunais Eleitorais, da vedação do exercício de atividade político-partidário por servidores eleitorais, dando uma interpretação extensiva à norma do art. 366, limitando ainda mais o direito à cidadania. O tema será tratado mais adiante.

De fato, a mercê das pesquisas que se tem feito pela jurisprudência sobre a questão do servidor público eleitoral como partícipe da disputa eleitoral, observa-se uma heterogeneidade de pensamentos na solução jurídica levadas ao judiciário.

Vejamos, por exemplo, o seguinte acórdão, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo:

DIREITO ELEITORAL. SERVIDOR DA JUSTIÇA ELEITORAL. FILIAÇÃO. CANDIDATURA. REGISTRO. PRAZO. CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE NÃO SATISFEITA. RECURSO DESPROVIDO.

I- A filiação partidária com antecedência mínima de um ano das eleições é condição de elegibilidade sem a qual não poderá frutificar pedido de registro (art. 18 da Lei nº 9.096/95).

II- O servidor da Justiça Eleitoral, que não pode "exercer qualquer atividade partidária, sob pena de demissão", para candidatar-se a cargo eletivo, deverá afastar-se do serviço público com tempo hábil para cumprimento da exigência de filiação partidária. (BRASÍLIA, TSE. RESPE - RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 19.928. Relator(a) Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 2002) (Grifamos).

Observa-se que o Relator, na citada ementa, entendeu, naquele julgado, que a atividade eleitoral passiva de servidor eleitoral somente poderá ocorrer mediante seu afastamento do serviço público em tempo hábil para cumprimento da exigência de filiação partidária, conforme aplicação do artigo 38 da Constituição Federal.

Segundo Hely Lopes Meirelles (2004, p. 440-441):

O exercício de mandatos eletivos por servidor público não é vedado na Constituição Federal, cujo art. 38 regula a situação dos servidores da Administração direta, autárquica e fundacional investidos em mandato eletivos.

As duas principais regras que defluem da norma constitucional são: 1ª) o servidor público pode exercer mandato eletivo federal, estadual ou municipal sem perder o cargo, emprego ou função, devendo apenas afastar-se, com prejuízo da remuneração; 2ª) o tempo de serviço do servidor afastado para exercer mandato eletivo será contado para todos os efeitos legais, exceto para promoção por merecimento.

A lei 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, prevê, em seu Capítulo V do Título III, as hipóteses de afastamento dos servidores públicos, dentre os quais se destaca o afastamento para exercício de mandado eletivo. Percebe-se que o colegiado do TSE entendeu, naquele momento, que o caso é de afastamento, não de demissão do servidor da Justiça Eleitoral para que se filie ao partido político no prazo genérico para habilitação ao registro de candidatura.

O acórdão enfrentou questão em dois focos principais: a ausência de disciplinamento constitucional da condição de elegibilidade para os servidores públicos da Justiça Eleitoral e a isonomia entre os servidores públicos em geral. Todavia, os estatutos dos servidores públicos adotam como regra geral o prazo de três meses de desincompatibilização. Assim, a r. decisão está a exigir prazo de um ano de desincompatibilização, considerando o disposto do art. 366 do Código Eleitoral (RAMAYANA, 2005).

Mas a questão não possui um direcionamento claro, definido, uma vez que há decisões no sentido de que o simples afastamento não é suficiente a sanar a incompatibilidade, sendo necessária a efetiva exoneração do pretendente, conforme ementa a seguir:

ELEIÇÕES 2008. RECURSOS ESPECIAIS. 1) INTERPOSIÇÃO ANTERIOR Á PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. AUSÊNCIA DE RATIFICAÇÃO. RAZÃO DE DECIDIR. NÃO COMPROVAÇÃO ANTERIOR. NÃO CONHECIMENTO. 2) REGISTRO DE CANDIDATURA. VEREADOR. SERVIDOR DA JUSTIÇA ELEITORAL. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. EXONERAÇÃO. CARGO. NECESSIDADE. PROVIMENTO.

I - Obsta o conhecimento do especial sua interposição antes da publicação oficial, sem comprovação da ciência anterior das razões de decidir.

II - Na linha da jurisprudência deste Tribunal, o servidor da Justiça Eleitoral que pretenda filiar-se a partido político deve exonerar-se do cargo que ocupa, sendo necessário, ainda, observar o prazo a que alude o artigo 9º da Lei nº 9.504/97, caso pretenda candidatar-se.

III - Recurso especial da Coligação e outros não conhecido. Recurso especial eleitoral do Ministério Público conhecido e provido.

(BRASÍLIA, TSE. RESPE - RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 35.354 - Manaus/AM. Relator Min. Fernando Gonçalves) (Grifamos).

Neste caso, a Corte Superior da Justiça Eleitoral entendeu se tratar de caso de pedido de exoneração por parte do servidor eleitoral caso este opte por disputar cargos políticos.

Como se vê, o tema ainda não se encontra definitivamente esgotado, uma vez que a jurisprudência do TSE tem oscilado entre a necessidade ou não de exoneração do servidor para o exercício da cidadania plena, uma vez que estão envolvidos, na questão, garantias e princípios que são a base do ordenamento pátrio, tais como a da moralidade, da cidadania, da isonomia, legalidade, dentre outros.

5.1 Foi o artigo 366 do Código Eleitoral recepcionado?

A questão que se pretende verificar é se o art. 366 do Código Eleitoral encontra-se válido em nosso ordenamento ou se este não fora recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Recepção consiste no acolhimento que uma nova constituição posta em vigor dá às leis e atos normativos editados sob a égide da Carta anterior, desde que compatíveis consigo. O fenômeno, além de receber materialmente as leis e atos normativos compatíveis com a nova Carta, também garante a sua adequação à nova sistemática legal (MORAIS, 2010).

Em nosso sistema jurídico, uma norma somente poderá ser considerada válida no ordenamento ou por meio de sua construção conforme um processo previsto constitucionalmente, ou através de sua recepção, aproveitando-se tudo aquilo que esteja conforme a Constituição vigente.

É sabido que o atual Código Eleitoral foi promulgada em 1965, quando o Brasil estava sob um regime que limitava as liberdades individuais. Isso quer dizer que seu teor foi profundamente influenciado pelos valores reinantes naquela época, muitos dos quais são incompatíveis com os princípios que nortearam a construção do atual ordenamento.

Naqueles tempos, o Brasil foi governado em estado de exceção, por meio de edições sucessivas de Atos Institucionais, recurso adotado pelo regime para instituir "ordens" emanadas do governo com o fim de suprimir garantias constitucionais vigentes e impor a austeridade militar com o argumento de salvaguardar a nação dos perigos da "subversão".

Diante das evidentes ilegalidades impostas pelos Atos Institucionais, que, dentre outras coisas, atribuíram ao governo o poder de legislar sobre qualquer assunto e onde a representatividade estava bastante limitada devido à instituição do bipartidarismo, questiona-se a validade da construção normativa daquele período, uma vez que foram elaboradas em um momento em que as garantias constitucionais estavam suspensas.

Assim, não seria ilegítima a "promulgação" do Código Eleitoral vigente por ter sido ele construído neste contexto de exceção? Afinal, houve a usurpação da competência legislativa garantida pela Constituição de 1946, vigente até então e que acabou suspensa pelo famigerado Ato Institucional nº 5, em 1968, e, finalmente, substituída por Emenda Constitucional, em 1969, que passou a ser chamada de "Constituição" e que, dentre outras coisas, incorporou o AI 5, e o desrespeito às regras do processo legislativo que validam a elaboração das leis.

No entanto, ao que tudo indica, o TSE acabou por adotar as ideias de Kelsen, para quem o fundamento de validade da norma não importa, mas, sim, a pertinência de seu conteúdo com os preceitos da Lei Fundamental, para justificar a recepção do Código Eleitoral pela atual Constituição.

Deve-se a Kelsen a teorização do fenômeno da recepção, pelo qual se busca conciliar a ação do poder constituinte originário com a necessidade de se obviar vácuos legislativos.

Kelsen sustenta que as leis anteriores, no seu conteúdo afinadas com a nova Carta, persistem vigentes, só que por fundamento novo. A força atual desses diplomas não advém da Constituição passada, mas da coerência que os seus dispositivos guardam com o novo diploma constitucional. Daí Kelsen dizer que "apenas o conteúdo dessas normas permanece o mesmo, não o fundamento de sua validade".

O importante, então, e que a lei antiga, no seu conteúdo, não destoe da nova Constituição. Pouco importa que a forma de que o diploma se revista não mais seja prevista no novo Texto Magno. Não há conferir importância a eventual incompatibilidade de forma com a nova Constituição. A forma é regida pela lei da época do ato (tempus regit actum), sendo, pois, irrelevante para a recepção.

Assim, mesmo que o ato normativo se exprima por instrumento diferente daquele que a nova Carta exige para a regulação de determinada matéria, permanecerá em vigor e válido se houver a concordância material, i.e, de conteúdo, com as novas normas constitucionais (MENDES, 2008, p. 203-204).

De qualquer modo, cabe ao intérprete ponderação na interpretação do Código Eleitoral, uma vez que muitas de suas normas perderam sua validade frente aos novos valores, muitos deles paradoxais àqueles que inspiraram sua construção original e que foram abarcados pela atual Constituição. O problema repousa em saber o que se encontra válido e o que não mais pode ser considerado! A jurisprudência, pelo menos no tocante ao seu artigo 366, ainda não chegou a uma conclusão definitiva quanto à sua pertinência no ordenamento.

Mas, e o que vem a ser a validade de uma norma?

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "validade é uma qualidade da norma que designa sua pertinência ao ordenamento, por terem sido obedecidas as condições formais e materiais de sua produção e consequente integração no sistema" (FERRAZ JÚNIOR, 2007).

Conforme dito anteriormente, essa pertinência poderá ser alcançada também através da recepção da norma anterior pelo ordenamento vigente, se em conformidade com os valores que o norteiam.

No tocante ao Código Eleitoral, a despeito das considerações a respeito de sua elaboração, pode-se dizer que, segundo entendimento do TSE, as normas relativas à organização e competência da Justiça Eleitoral foram recepcionadas até que seja produzida Lei Complementar que as regulamente, conforme se depreende do fragmento de decisão a seguir citado:

"Mandado de segurança impetrado pelo Partido dos Democratas - DEM contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados. Natureza jurídica e efeitos da decisão do Tribunal Superior Eleitoral - TSE na Consulta n. 1.398/2007. Natureza e titularidade do mandato legislativo. Os partidos políticos e os eleitos no sistema representativo proporcional. Fidelidade partidária. Efeitos da desfiliação partidária pelo eleito: perda do direito de continuar a exercer o mandato eletivo. Distinção entre sanção por ilícito e sacrifício do direito por prática lícita e juridicamente conseqüente. Impertinência da invocação do art. 55 da Constituição da República. Direito do impetrante de manter o número de cadeiras obtidas na Câmara dos Deputados nas eleições. Direito à ampla defesa do parlamentar que se desfilie do partido político. Princípio da segurança jurídica e modulação dos efeitos da mudança de orientação jurisprudencial: marco temporal fixado em 27-3-2007. (...) Mandado de segurança contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados. Vacância dos cargos de Deputado Federal dos litisconsortes passivos, Deputados Federais eleitos pelo partido Impetrante, e transferidos, por vontade própria, para outra agremiação no curso do mandato. (...) Resposta do TSE a consulta eleitoral não tem natureza jurisdicional nem efeito vinculante. Mandado de segurança impetrado contra ato concreto praticado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, sem relação de dependência necessária com a resposta à Consulta n. 1.398 do TSE. O Código Eleitoral, recepcionado como lei material complementar na parte que disciplina a organização e a competência da Justiça Eleitoral (art. 121 da Constituição de 1988), estabelece, no inciso XII do art. 23, entre as competências privativas do Tribunal Superior Eleitoral - TSE ‘responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político’.

[...]"

(MS 26.604, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 4-10-07, Plenário, DJE de 3-10-08). No mesmo sentido: MS 26.602, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 4-10-07, Plenário, DJE de 17-10-08; MS 26.603, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-10-07, DJE de 19-12-08 (Grifado).

Desse modo, em se tratando das demais matérias, naquilo que não conflita com a Constituição, o Código deverá ser tratado como lei ordinária.

Assim, a partir desse entendimento, a norma que trata da proibição da filiação do servidor da Justiça Eleitoral a partido político, que, por via reflexa, afeta-lhe o exercício da cidadania eleitoral plena, tornando-o inelegível, não pode ser tratada por lei ordinária por falta de previsão legal, uma vez que, segundo o art. 14, § 9º, com a redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4 de 1994:

art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

[...]

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (grifado).

Conforme estabelecido constitucionalmente, as inelegibilidades somente poderão ser tratadas pela própria Constituição ou por lei complementar.

Mas o artigo 366 do Código Eleitoral foi ou não recepcionada? A pergunta somente poderá ser respondida mediante verificação dos princípios afetos ao caso. E, em se tratando de princípios constitucionais igualmente válidos, não se deve esquecer da ocorrência de antinomias entra eles, o que necessitará a aplicação de algumas regras de interpretação, propostas por Jorge Miranda, citado por Moraes (2010), para a sua correta adequação:

- a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios;

- deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade;

- os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto implicitamente, a fim de colher-se seu verdadeiro significado.

Sob o aspecto do princípio Democrático, a norma em questão encontra alguns obstáculos para a sua permanência no ordenamento pátrio.

Segundo a conceituação de Marcos Ramayana (2005, p. 26):

A democracia, em síntese conceitual, exprime-se como um governo do povo, sendo um regime político que se finca substancialmente na "soberania popular", compreendendo-se os direitos e garantias eleitorais, as condições de elegibilidade, as causas de inelegibilidade e os mecanismos de proteção disciplinados em lei para impedir as candidaturas viciadas e que atentem contra a moralidade pública eleitoral, exercendo-se a divisão das funções e dos poderes com aceitação dos partidos políticos, dentro de critérios legais preestabelecidos, com ampla valorização das igualdades públicas.

Completa o citado autor que:

(...) democracia designa um modo de vida numa sociedade em que se acredita que cada indivíduo tem direito a participar livremente dos valores dessa sociedade. Num sentido mais limitado, democracia é a oportunidade dos membros da sociedade de participarem livremente das decisões em qualquer campo, individual ou coletivo. no seu sentido mais restrito, o termo designa a oportunidade dos cidadãos de um Estado de participarem livremente das decisões políticas mais específicas que lhe afetam a vida individual ou coletiva.

Tem-se, assim, que qualquer norma que impossibilite o livre acesso do indivíduo à participação das decisões relevantes para a vida em sociedade, não contribuindo com a expansão do princípio democrático, deverá ter sua validade denegada justamente por não estar em inconformidade com o Estado Democrático de Direito.

Mediante o princípio da Isonomia, verifica-se que a exclusão do servidor eleitoral da atividade política o distancia dos demais servidores públicos não impedidos constitucionalmente ou por Lei Complementar. Na verdade, trata-se de inelegibilidade sui generis, uma vez que não se enquadra entre os magistrados, membros do Ministério Público e militares, nem entre os demais servidores da Administração Pública. E aqui não vale a máxima de Rui Barbosa, "tratar os iguais igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade", uma vez que não há relatividade na desigualdade em questão.

José Afonso da Silva (2005) ensina que:

A igualdade do direito de ser votado constitui outro aspecto do princípio da igualdade do sufrágio. Caracteriza a desigualdade do direito da elegibilidade o fato de criarem-se condições discriminatórias para que alguém possa ser eleito a determinado cargo eletivo. Em princípio, pois, todo eleitor deverá ser elegível para cumprimento de mandatos, nas mesmas condições.

Entretanto, o TSE já se posicionou sobre a questão por meio da Resolução nº 21.570/2003, que proíbe ao servidor da Justiça Eleitoral a filiação partidária, e da Resolução nº 22.088/2005, regulamentando que o "servidor da Justiça Eleitoral deve se exonerar para cumprir o prazo legal de filiação partidária, ainda que afastado do órgão de origem e pretenda concorrer em estado diverso de seu domicílio profissional".

A propósito, a Justiça Eleitoral é o único ramo do Poder Judiciário que legisla, por meio de Resoluções, sobre sua matéria, conforme determina o artigo 23, IX, do Código Eleitoral, naquilo que julgar conveniente para a execução deste diploma legal. O problema é que esta Justiça Especializada vem regulamentando matérias que extrapolam seus limites, em franca usurpação da competência legislativa constitucionalmente atribuída ao Poder Legislativo. Neste sentido é a Resolução do Tribunal Superior Eleitoral de nº 14.623/98, que fixa as atribuições da Polícia Federal quando à disposição da Justiça Eleitoral, e a Resolução nº 22.376/06, que dispõe sobre a apuração de crimes eleitorais. Diante disso, seria o caso de se julgarem inconstitucionais as Resoluções legisladas por esta Especializada, no tocante às matérias que extrapolam de sua competência.

Por fim a Constituição Federal garante a plenitude de liberdade de associação para fins lícitos, conforme se pode extrair de seu inciso XVII do art. 5º. Por se tratar de uma garantia constitucional, somente a própria poderia tratar das exceções, o que não ocorre no caso dos servidores da Justiça Eleitoral.

Dessa monta, verifica-se que a norma contida no art. 366 do Código Eleitoral não se adequa a alguns dos mais relevantes princípios que norteiam o atual ordenamento brasileiro, contrapondo-se a eles, fazendo com que a matéria não conduza a um entendimento unânime pelos Tribunais quanto à sua validade, conforme se verifica em seus julgados.

Veja-se, por exemplo, a resposta afirmativa à Consulta nº 2.305/99, dada pelo Tribunal Regional Eleitoral de Tocantins:

(...) não há vedação a filiação partidária, para efeitos de candidatura de servidor da Justiça Eleitoral, quando realizado no período que a lei eleitoral exige para concorrer a cargo eletivo" e que "é possível o retorno do servidor da Justiça Eleitoral à função que desempenhava antes da candidatura, desde que haja prévio cancelamento da filiação.

Em contrapartida, o Tribunal Superior Eleitoral respondeu à Consulta nº 1.164 que:

(...) o servidor da Justiça Eleitoral, para candidatar-se a cargo eletivo, necessariamente terá que se exonerar do cargo público em tempo hábil para o cumprimento da exigência legal de filiação.

E no julgamento do REsp nº 19.928, a maioria dos Ministros, com a ressalva do Ministro Sepúlveda Pertence, negou-lhe provimento por entenderem que:

(...) o servidor da Justiça Eleitoral, que não pode 'exercer qualquer atividade partidária, sob pena de demissão', para candidatar-se a cargo eletivo, deverá afastar-se do serviço público com tempo hábil para cumprimento da exigência de filiação partidária.

Conforme se vê, a falta de unanimidade entre os julgadores demonstra se tratar de matéria controversa em nosso sistema normativo.

De fato, diante ao seu descompasso com os valores resguardados pela atual Constituição Federal, é de se acreditar que a proibição contida na norma em análise não pode ter sido recepcionada, trazendo, com isso, grande prejuízo à uma classe de brasileiros, alijados de seu pleno exercício de cidadania, no sentido de reconhecimento desses indivíduo como pessoas integradas à sociedade estatal.

5.2 Interpretação extensiva do artigo 366 do Código Eleitoral pela jurisprudência.

Em recente questão, o Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe negou provimento ao Recurso Eleitoral nº 2.593/2008, sendo vencido o Relator, aceitando o argumento do Procurador Regional Eleitoral:

(...) seria indispensável que ela tivesse se exonerado da função na Justiça Eleitoral, a despeito de estar afastada, haja vista que o seu direito de pleitear cargo público é peremptoriamente vedado, em decorrência da sua impossibilidade de exercer atividade político-partidária, que inclui a indispensável filiação partidária, simultaneamente com a função. Não havendo cumprido tal requisito, olvidou em preencher um requisito indireto de elegibilidade (Grifado).

Verifica-se que aquele Tribunal Regional, em seu julgamento, acabou por estender a interpretação do art. 366 do Código Eleitoral ao aceitar a tese do Procurador Regional Eleitoral de que a vedação prevista pela lei aos servidores da Justiça Eleitoral não se limita apenas à atividade partidária, mas, também, à atividade política.

Deve-se ressaltar que, diante à limitação imposta por Lei Ordinária por recepção às garantias constitucionalmente previstas a uma parcela de seu funcionalismo, não pode a Corte Máxima da Justiça Eleitoral estender-lhe mais ainda as limitações.

No entanto, em decisão prolatada à Petição nº 1.025/2001, os Ministros do Tribunal Superior Eleitoral indeferiu pedido da Associação dos Servidores do Tribunal Superior Eleitoral - ASSERTSE que fosse permitido ao funcionário da Justiça Eleitoral o exercício da atividade política, com o seguinte fundamento:

De fato, é mais que razoável que aqueles que participam da organização do pleito e do processamento e julgamento dos feitos eleitorais não possam ter nenhuma atividade político-partidária. Penso que essa é uma decorrência inafastável da condição de servidor da Justiça Eleitoral, na medida em que, administrando eleições, deve permanecer totalmente isento, sem demonstrar explícito interesse por essa ou aquela agremiação.

De outra parte, não vejo como desvincular a filiação partidária das atividades político-partidárias, a que se refere o art. 366 do Código Eleitoral.

Apesar do posicionamento assumido pela Corte, deve-se ressaltar que ela não foi unânime, uma vez que o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto vencido, argumenta que:

"embora consciente das razões de alta conveniência da proibição afirmada pela maioria, não me animo a estabelecer restrição de direitos políticos que - ao contrário de outras hipóteses (...) – nem impôs nem previu que a impusesse a lei".

Em Acórdão nº 434/2008 do Recurso Eleitoral nº 2.593 do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, o Relator Carlos Rebêlo Júnior, em voto vencido, faz uma interessante observação sobre o assunto, a cujos argumentos nos alinhamos:

"(...) que a fundamentação sentencial prendeu-se à terminologia 'atividade político-partidária'. Eis sutil ampliação, dado que a norma especifica bem: atividade partidária. Não se desconhece que haja decisões pretorianas caracterizando a filiação como atividade partidária.

Bem examinado, a filiação partidária é uma condição de elegibilidade constitucional, em outras palavras, requisito para o exercício de direito político. Esta exigência não deixa de ser uma excrescência que aumenta o chamado déficit democrático.

Para melhor elucidar, vejamos uma definição:

Os direitos políticos são a faculdade ou a garantia que tem o cidadão de integrar ou participar, direta ou indiretamente, da organização administrativa do Estado, por via eletiva ou de nomeação, do modo como previsto em lei.

Esse conjunto de normas assegura 'o direito subjetivo de participação no processo político e nos órgãos governamentais'.

Parece hialino que a atividade política não se confunde com a partidária. Conquanto, em alguns casos, o exercício de algumas tarefas na organização do Estado dependa de que a sua postulação seja antecedida de filiação partidária.

Tanto isto é diferente, que, por exemplo, quando se trata de vedação ao magistrado, a norma constitucional menciona 'atividade político-partidária".

A vedação ao servidor não tem o mesmo alcance, pois que se trata, singelamente, de 'atividade partidária'. Aqui, portanto, se dá o fenômeno inverso: o próprio legislador introduziu a distinção. Fazê-la, portanto, no caso, não é resultado de interpretação, mas do próprio e literal texto normativo.

Assim, não está vedado ao servidor eleitoral a atividade política. A filiação partidária para eventual postulação de cargos eletivos é um requisito que não confunde com a própria atividade política".


6 CONCLUSÃO

Com a promulgação da Constituição de 1988, abriu-se um horizonte mais amplo para o brasileiro. Nunca na história do Brasil a participação política havia sido mais democrática. Pela primeira vez, todos poderiam participar de maneira mais efetiva da vida política nacional, elegendo diretamente seus representantes ou disputando cargos políticos.

Tal conquista, no entanto, foi lenta, gradual e recente. Na maior parte da história brasileira, permeada por raros momentos de uma incipiente democratização, como ocorrera com a promulgação da Constituição de 1946, a maior parte da população era excluída do jogo político, cuja participação, quando ocorria, limitava-se apenas a legitimar a permanência no poder de uma elite de privilegiados.

Foi assim que, após a saída do país de um de seus períodos mais negros de sua história, o regime militar, viu-se a necessidade da criação de um modelo mais participativo de governo, onde a integração de todos passasse a ser a regra, garantindo-se, assim, a legitimidade do Estado, o que acabaria por dificultar a ascensão nefasta de grupos cujos interesses particulares preponderariam sobre o público.

Entretanto, apesar da enorme abertura política promovida pela atual Constituição da República, assiste-se a ocorrência da exclusão de uma classe de brasileiros, impossibilitados do exercício pleno da cidadania, uma vez que, apesar de garantida a sua participação como eleitores, foi-lhes negada a capacidade eleitoral passiva, ou seja, a de serem eleitos, uma vez que o Código Eleitoral – elaborado e promulgado, nos termos do art. 4º, caput, do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, em pleno regime militar, uma época em que as liberdades, os direitos e as garantias constitucionais estavam suspensas e o governo tinha plenos poderes sobre o Congresso Nacional, cuja representatividade limitava-se a apenas dois partidos políticos – proibiu-lhes a filiação partidária, requisito necessário ao registro de candidatura.

Assim, diante de um país que se diz plural em idéias e opiniões, tendo como princípios a cidadania, a igualdade, a justiça, a participação e o respeito de todos e tendo como um de seus objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária, não há como se admitir a existência de exclusões, ainda mais baseadas em uma norma cuja legalidade é duvidosa, diante das circunstâncias de sua elaboração, e contrária aos valores mais relevantes em nosso atual ordenamento.

Tema um tanto inconclusivo, uma vez que ainda gera dúvidas sobre a sua aplicabilidade, haja vista as divergências doutrinárias presentes na jurisprudência, o fato é que aqueles que apóiam a validade da norma contida no artigo 366 do Código Eleitoral, que proíbe a filiação e a participação político-partidária dos servidores da Justiça Eleitoral, impedindo-lhes, por via reflexa, a participação política passiva, ou fundamentam-se em ideais antiquadas, sem nenhuma pertinência com os preceitos constitucionais vigentes, ou fundamentam-se através de idéias distorcidas a respeito de tais preceitos.

Conclui-se que se trata de situação sui generis, que deveria ser afastada de nosso ordenamento na busca da satisfação plena da cidadania por essa classe de brasileiros, ou, pleno menos, com a adoção de mecanismos, a serem criados pelas vias adequadas e em consonância com a Constituição, que lhes garantam a participação na vida política de um Estado que se diz plural.

Por fim, cabe ressaltar que, durante a elaboração deste trabalho, foi apresentado ao Congresso Nacional, pelo deputado federal do Partido da República do Amazonas Henrique Oliveira, o Projeto de Lei nº 873/2011, que propõe a revogação do art. 366 do Código Eleitoral.

Atualmente, o Projeto de Lei, cuja fundamentação se alinha ao que foi apresentado neste trabalho, tramita em regime de prioridade, aguardando a apreciação do Plenário.


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CONRADO, Vinícius Nunes. A exclusão política do servidor da Justiça Eleitoral e as razões pelas quais não houve a recepção do artigo 366 do Código Eleitoral Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3015, 3 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20127. Acesso em: 23 abr. 2024.