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O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen

O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen

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A partir do ponto de vista do autor da Teoria Pura do Direito, busca-se harmonizar seu conceito de Estado com as últimas atualizações de seu pensamento, para entender problemas contemporâneos, como a interação entre política e direito e o aperfeiçoamento da democracia.

1.Introdução

O Estado é uma realidade complexa e pouco afeita a definições. É um objeto de conhecimento disputado, sobretudo, entre a Ciência do Direito, a Sociologia e a Ciência Política. Cada uma dessas ciências exprime definições de Estado que, na maior parte das vezes, não se harmonizam. Pelo contrário: excluem-se.

Um dos grandes problemas de fechamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, foi exatamente tentar definir e recepcionar o Estado de forma exclusiva, com base no vetusto postulado que condicionava autonomia científica a objeto privativo.

Na contemporaneidade, é cada vez mais evidente que realidades complexas como o Estado, a democracia e o próprio Direito desafiam abordagens transversais, que não se ajustam ao esquema compartimentalizado de produção de conhecimento ainda predominante nas universidades.

Na Teoria Pura do Direito, porém, Kelsen reconstruiu a noção de Estado segundo os cânones de afirmação científica vigentes àquele tempo, na década de 30 do século passado. Enfrentou o duplo desafio de assegurar a autonomia da Ciência do Direito segundo os imperativos da época e desvelar o Direito como objeto de especulação científica genuína, sem as intercorrências metafísicas herdadas do direito natural.

Com o passar do tempo, à medida que sua doutrina é exposta a críticas à luz das novas premissas epistemológicas que reconfiguram o próprio saber científico, Kelsen enriquece seu pensamento, flexibiliza o Direito autárquico formulado nas versões originais da Teoria Pura, mas não chega a reelaborar o conceito de Estado.

Como demonstra Paulson (2007), a três fases bem distintas e definidas na evolução do pensamento kelseniano: a fase do construtivismo crítico (1911-1921), a fase clássica (1921-1960) e a fase cética (1960-1973). Na primeira fase, as posições de Kelsen estavam ainda pouco desenvolvidas e, na última fase, ele não chegou a fechar uma teoria, o que, de certa forma, explica o fato de que a maioria dos juristas só dê atenção a doutrina kelseniana da fase clássica.

Muitas dos erros atribuídos a Kelsen, como a fragilidade teórica da norma fundamental, referem-se a posições sustentadas nessa fase intermediária, superadas em trabalhos posteriores.

O monismo Estado-Direito nunca foi expressamente rejeitado pelo autor da Teoria Pura, mas dificilmente poderia ser harmonizado com os postulados da doutrina kelseniano desenvolvidos na fase cética, em que o Direito torna-se mais permeável à realidade. A identidade entre Estado e Direito, como visto, é pressuposto da blindagem do Direito em face do mundo empírico.

Nesse artigo, pretendo assumir o ponto de vista do autor da Teoria Pura e harmonizar seu conceito de Estado com as últimas atualizações de seu pensamento. Esse exercício especulativo pode lançar luzes sobre intrigantes problemas contemporâneos, como a interação entre política e direito e o aperfeiçoamento da democracia.


2.As fases do pensamento kelseniano

Stanley L. Paulson, na obra já referida, subdivide a trajetória científica de Kelsen em três fases: construtivismo crítico (circa 1911-1921), fase clássica (circa 1921-1960) e fase cética (circa 1960- até a morte de Kelsen, em 1973) (Paulson, 1998, pp. xxiii-xxvii).

A primeira fase corresponde ao período em que Kelsen constroi seus principais conceitos e preocupa-se, fundamentalmente, com a afirmação da Ciência do Direito como disciplina normativa. Nas palavras de Paulson, o autor procurava "to stablish legal science as a ‘normative disciple" [01] (Paulson, 1998, p. xxiv).

A diretriz do pensamento de Kelsen, nesse introito, era destacar os elementos próprios da análise jurídica. Definiu-se que o discrímen do objeto da Ciência do Direito caráter normativo peculiar.

A ciência jurídica rudimentar que aparece nessas formulações iniciais de Kelsen tinha acentuado caráter descritivo e estático. A preocupação era definir o que é o Direito e não como funciona o Direito.

Na segunda fase, Kelsen formula e consolida a Teoria Pura do Direito. No esforço para sistematizar o Direito e compreender seu funcionamento, incorpora a doutrina da estrutura hierárquica de Adolf Merkl, conhecida como pirâmide normativa.

Essa doutrina apresenta o Direito em processo dinâmico no qual recria a si mesmo de forma ininterrupta. Normas inferiores são determinadas por normas superiores. Sobressai desse sistema dinâmico a premissa básica de que uma norma é sempre criada por outra.

Kelsen vale-se na Teoria Pura do princípio da imputação, de matriz kantiana, estruturar a unidade básica do Direito, a norma, segundo a fórmula se a, deve ser b, em que a é, em termos gerais, é o fato sobre o qual incide a norma e b a sanção decorrente. O princípio da imputação, segundo o qual funciona oDireito, é um simulacro do princípio da causalidade, segundo o qual funciona a natureza .

Na terceira fase, Kelsen rompe com as doutrinas kantianas, que tanto o influenciaram no período anterior. Começa a formular uma teoria mais voluntarista do direito, com menos apelo à razão. Em suma,

Kelsen abandons his early view to the effect that norms are subject to constraints imposed by logic. Second, He gives up the idea that legal science has a normative dimension. Third, he defends an utterly emaciated version on the basic norm thesis, namely, the basic norm qua fiction [02] (Paulson, 1998, p. xliii).

Nessa fase cética, pouco conhecida pelos juristas, o próprio Direito é reconhecido como uma ficção, em vez de construção teórica lógica, absolutamente sistemática e pura.

Kelsen assume, como David Hume assumiria, que o Direito lógico e pura é uma crença, um imperativo, um dever ser, que deveria ser perseguido a todo custo, mas que jamais seria alcançado.

Todos conhecem a Teoria Geral de Estado da fase clássica de Kelsen, mas o autor não chegou a formular uma Teoria Geral do Estado compatível com sua doutrina da fase cética.

Não me proponho a fazê-lo, apenas a indicar algumas linhas gerais nesse sentido, com objetivo de extrair conteúdo para aperfeiçoamento da teoria democrática contemporânea. Preliminarmente, problematizo, de maneira crítica, os principais postulados da Teoria Pura.


3.Contornos da Teoria Pura

A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, constitui um esforço intelectual para peneirar o Direito e separar-lhe as impurezas. O jurista insistia que o adjetivo "pura" se referia à teoria e não ao Direito:

De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo dato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura do Direito empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não para ignorar ou, muito menos, negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto (2009, p. 1-2)

Como bem demonstra Arnaldo Vasconcelos, com base nas exposições do próprio Kelsen, é "igualmente puro o Direito da teoria pura" (2003, 108).

Kelsen, ao formular uma técnica para flagrar o Direito em sua essência, tal como é, livre de qualquer impureza, seguia o imperativo de que para fundar uma ciência é necessário especificar seu objeto, distingui-lo do objeto de outros campos de investigação.

A pureza do Direito em Kelsen não significa que se pode abstrair o Direito da realidade que contorna e permeia, mas que o Direito não se confunde com o objeto de análises de outras ciências.

O simples fato de haver zonas de interseção entre o objeto da Ciência do Direito e o de outras ciências não significa que o Direito assim concebido perdeu sua pureza, até porque não se pode confundir o todo com suas partes, porque a distinção fundamental é de perspectiva e de metodologia.

Aos críticos que objetaram que a impermeabilização do Direito é impraticável, com base na descoberta de que mesmo nas ciências exatas é impossível a neutralidade axiológica, Kelsen responderia, com suporte em Weber, que o Direito puro é um tipo ideal, um dever ser.

Qualquer discrepância entre o Direito ideal e o Direito empírico deveria ser tratada como déficit de eficácia, irrelevante do ponto de vista estritamente normativo. O juiz, diante do dever de julgar o caso concreto, jamais será neutro, mas deve se esforçar para decidir de maneira objetiva e isenta.

O fechamento do Direito em si mesmo ajudava a resolver o problema fundamental de toda a doutrina de Kelsen, que consistia em separar o Direito de contingências externas, as quais ele sintetizava como ideologia.

A separação do Direito da realidade empírica adjacente é decorrência da separação absoluta entre ser e dever ser, emprestada do pensamento de David Hume. Harmoniza-se com a noção de razão formal do Estado moderno, formulada por Weber, segundo a qual os valores que pautam a conduta dos indivíduos são formalmente anulados pela objetivação da lei.

O abismo entre dever ser e ser já distinguia o objeto da Ciência do Direito (normas) do objeto das ciências empíricas (coisas, fenômenos). O passo seguinte seria separar entre Direito e os demais objetos confinados ao mundo do dever ser conhecíveis pela Ciência, como a moral.

Na Teoria Pura, o que distingue o Direito, nesse âmbito, é a sanção oficial (aplicada com exclusividade pelo Estado) e a coerência interna. O Direito é coerente porque é sistemático. Configura um sistema piramidal de normas escalonadas, cada qual com fundamento de validade na norma imediatamente superior.

Restava ainda solucionar o seguinte paradoxo que decorre da doutrina da estrutura hierárquica: se apenas uma norma cria outra norma, o que criou a primeira norma? Kelsen vai procurar resposta em Kant.

Kant tenta demonstrar a absoluta necessidade de existência de leis morais universais, descoladas do indivíduo e da realidade empírica. "A razão pura é por si mesma prática, e dá (ao homem) uma lei universal, que denominamos lei moral [Sittengesetz]" (2005, p. 41).

No vértice do sistema normativo que configura o Direito, Kelsen instala a norma fundamental, que emula o imperativo categórico de Kant, que sintetiza em si todas as demais normas morais válidas e constitui o ponto de interseção entre a razão pura (meramente especulativa) e a razão prática (dirigida a fins).

Diferentemente dos imperativos categóricos de Kant, a norma fundamental não tinha conteúdo. Na fase clássica, a que pertence a versão da doutrina kelseniana mais conhecida, essa norma era meramente hipotética, que o jurista deveria supor para dar sentido ao Direito.

Kelsen poderia, então, advogar que a norma original, que orienta todo o sistema jurídico-normativo, tinha caráter objetivo, universal, atemporal e extra-empírico. O problema é que semelhante formulação era mais apropriada ao direito natural, fundado na ideia de razão divina.

O artifício da norma fundamental deixou o sistema normativo sem lastro efetivo, porque, ao contrário de todas as demais normas, a norma fundamental não era imperativa.

A regra de controle das normas que configuram o Direito ficou sendo simplesmente sua estruturação hierárquica, que tinha como referência última uma norma não imperativa, quando, segundo o próprio Kelsen, o que define uma norma é exatamente sua imperatividade. Esse fechamento forçado da teoria pura e do próprio Direito que dela se deduz foi sempre sua fonte de instabilidade.

A Teoria Pura exclui, a priori, considerações sobre pressões políticas e sociológicas a forçar a reelaboração ou a ressignificação das normas a partir da base das pirâmides, processo que acabaria por violar a norma fundamental e distorcer, por consequência, o próprio Direito.

A luta [contra a Teoria Pura do Direito] não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre Ciência Jurídica e política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da Ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam com a melhor das boas-fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe (Kelsen, 2009, p. XII).

Além disso, observa o imperativo lógico deduzido por David Hume de que do ser não decorre o dever ser e vice-versa (apud Kelsen, 1986, p. 109). Ou seja, o ato normativo, como ato de vontade circunscrito ao campo do dever ser, só pode originar-se de outro ato normativo.

Para não contradizer esse princípio, no topo da pirâmide normativa Kelsen instala, como visto, uma norma fundamental hipotética, que interrompe a regressão ad infinitum que colocaria estabeleceria o direito na metafísica. Ainda assim, a norma fundamental não deixa de refluir ao apriorismo, que era próprio do direito natural.

Esse problema, repise-se, só foi solucionado com concessão de que a da norma fundamental era pura ficção (não podia ser deduzida logicamente). Na última versão da Teoria Pura do Direito, Kelsen acaba por desistir o rigor científico que o impulsionava nas duas fases iniciais.

Na Teoria Pura, o sistema normativo piramidal, auto-referenciado, pressupunha a neutralizalização das fontes "não jurídicas" do Direito. A única fonte não puramente jurídica admitida é a norma fundamental. Era o elo perdido que, mesmo sem existência empírica, podia integrar logicamente todas as normas existentes por simples encaixe lógico.

Na obra General Theory of Law and State (Teoria Geral do Direito e do Estado), de 1945, sob influência da Common Law, Kelsen admite, na segunda fase de seu pensamento, a interdependência entre a validade e a eficácia do Direito:

Uma norma é considerada válida apenas com a condição de pertencer a um sistema de normas, a uma ordem que, no todo é eficaz. Assim, a eficácia é uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade (Kelsen, 2005, 58).

Antes, na primeira fase, o critério da efetividade valia apenas para a norma fundamental ou para o ordenamento como um todo. Com a mudança de posicionamento, Kelsen concede que os fatos sociais podem gerar Direito à revelia do estrito formalismo da ordem jurídico normativa.

Na Segunda Edição da Teoria Pura, de 1960, Kelsen admite a desuetudo – anulação do Direito estatuído pelo costume –, mas insiste que o costume não pode criar Direito (2009, pp. 237 e 425). Mas a anulação de uma norma nada mais é que a criação de uma norma invalidadora. Vale dizer: o costume só pode anular uma norma se detém poder normativo.

O pensamento de Kelsen continua a evoluir. Em 1963, já na terceira fase, ele admite que estava errado quanto à natureza da norma fundamental:

En obras anteriores he hablado de normas que no son el contenido significativo de acto de volición. En mi doutrina, la norma básica fue siempre concebida como una norma que no era el contenido significativo de un acto de volición sino que estaba presupuesta por nuestro pensamiento. Debo ahora confesar que no puedo seguir manteniendo esta doutrina, que tengo que abandonarla. Puedem crerme, no há sido fácil renunciar a una doctrina que he defendido durante décadas. La he abandonado al comprobar que una norma (Sollen) deve ser correlato de uma voluntad (Wollen). Mi norma básica es una forma ficticia basada em un acto de volición ficticio... En la norma básica se concibe un acto de volición ficticio, que realmente no existe (apud Alf Ross, 1971, 147).

Se a norma fundamental é uma forma vazia, ou menos que isso, uma suposição do pensamento, ela não tem nada de coercitivo. Mas, se ao contrário, a ficção não diz respeito à norma fundamental, mas à sua vontade criadora, ela torna-se coercitiva e o Direito passa a ter uma força cogente mais consistente.

A ideia de vontade geral, de Rousseau, é, em última análise, uma ficção, produto de wishful thinking. Assim, é possível convergir uma Teoria Pura projetada a partir das inovações da doutrina kelseniana da terceira fase com a democracia republicana. A vontade fictícia que configura a norma fundamental e que estabiliza o direito é a mesma que deve guiar a política.


4.O Estado na Teoria Pura

O plano de ação da Teoria Pura consiste, exceto na fase cética de Kelsen, em demarcar o campo de incidência da Ciência do Direito em face de disciplinas adjacentes ao Direito.

Kelsen anda relativamente bem em seu intuito até se deparar com o fenômeno Estado. Destilar o Direito é bem mais simples que destilar o Estado, que se compreende no objeto consolidado da Sociologia e da Ciência Política.

A Teoria Pura solucionou o litígio com as ciências rivais da forma mais prosaica possível: ao negar a cindibilidade epistemológica do Estado por meio do expediente de subsumi-lo ao Direito, que concebe como monopólio da Ciência Jurídica, a Teoria Pura exime-se do problema da análise multifacetada do Estado, que exige a demarcação exata do campo de investigação das ciências concorrentes.

Hans Kelsen, na fase clássica, sustentava que "o Estado, como pessoa, não é mais do que a personificação da ordem jurídica" (1939, 106). Para ele, a doutrina dualista que dissociava Estado e Direito estava comprometida com o vício da hipóstase do Estado.

Assim como no campo religioso a figura de Deus deformava-se na medida em que era equiparada à figura do homem, no campo da Ciência Jurídica, Estado se empobrecia ontologicamente quando antropoformizado.

Kelsen aponta a impossibilidade lógica de atribuir direitos e deveres a um ente que não apenas é a fonte desses direitos e deveres, como também os contém, na medida em que se confunde com a ordem normativa em que se integram. A personificação da ordem jurídica, segundo Kelsen, malgrado possa ajudar a organizar o pensamento, não tem qualquer respaldo científico (Kelsen, 2009, 315).

Para o autor da Teoria Pura do Direito, "em si as comunidades jurídicas [como é o caso do Estado] carecem de personalidade jurídica, mas podem ser representadas como se fossem pessoas e tivessem essa personalidade" (Kelsen, 1959, p. 94). O fato, porém, de o Estado ser representado como pessoa não significa que seja uma pessoa.

A visão monista de Estado harmoniza-se com a concepção fundamental da Teoria Pura do Direito de que a norma é a única realidade jurídica (Dallari, 2011, p. 124) ou o único substrato sob o qual devem incidir toda e qualquer análise da Ciência do Direito.

A identidade entre Estado e Direito impede, porém, uma necessária divisão de trabalho harmoniosa entre o Direito, a Sociologia e a Ciência Política, como discutiu-se acima. Se o Estado nada mais é que um sistema de normas, não há fenômeno sociológico ou político a ser nele observado.

Note-se que essa concepção foi descartada na terceira fase, em que Kelsen deixa de defender que Ciência do Direito tem apenas uma dimensão normativa. Se o Direito não está restrito ao campo normativo [03], muito menos o Estado.

O projeto kelseniano de simplificar a realidade para ajustá-la perfeitamente a uma teoria que se afirma pura é, obviamente, puro solipsismo. A Teoria Pura do Direito, nesse aspecto, está em conflito com a realidade. O Direito é essencialmente dever ser e o Estado, ser, e ambos estão em relação dialética, em retroalimentação recíproca.

O Direito programa e empodera o Estado, que configura e realiza o Direito, e essa interação é dinâmica e contínua, e submete-se a algum grau de controle social, mesmo nas mais austeras ditaduras.

O Estado não dá à luz o Direito para em um segundo momento ser concebido com ele. Estado e Direito não surgem instantaneamente prontos, mas são construídos no tempo. Como qualquer pessoa capaz de direitos, o Estado concorre na criação do Direito, mas ao mesmo tempo é constrangido pelo Direito.

O Estado não pressupõe necessariamente o Direito, nem o Direito não pressupõe necessariamente o Estado. Direito e Estado quase que se pressupõem mutuamente apenas na Era Moderna.

Mais recentemente, o eclipse entre Estado e Direito, que nunca foi total, começa a desfazer-se. A Ciência do Direito começa a se ocupar de micro-estruturas jurídicas extra-estatais, como o faz a abordagem do Direito Achado na Rua, e com macro-estruturas jurídicas extra-estatais, como o Soft Law.

A fusão entre Estado e Direito pretendida por Kelsen, ademais, não resolve o problema da manipulação do Direito pelo Estado. Se o Estado é o Direito, a quem recorrerá a sociedade quando o Estado-Direito se tornar opressor?

Para blindar o Direito, em vez de fundi-lo com o Estado, Kelsen deveria ter proposto uma inversão: não é o Estado que deve dar o Direito, mas é o Direito que deve dar o Estado. Essa ilação, porém, à luz da Teoria Pura, seria objeto da Ciência Política, e não do Direito Positivo.

O Direito controla o Estado até certo ponto, mas mesmo ao Estado mais democrático de que se tem notícia reserva-se uma margem de discricionariedade imune a qualquer constrangimento jurídico, controlável tão somente por mecanismos da política.

Poderia se objetar que é o Direito que define esses graus de liberdade. Parece muito mais plausível a hipótese de que é o poder social que constitui o próprio Direito e as limitações intrínsecas deste (não é possível nem conveniente a regulação total do mundo da vida) é que concorrem para a demarcação do espaço de atuação do Estado sujeito apenas ao controle político.

Um dos efeitos colaterais do monismo Estado-Direito é contaminar o próprio objeto da análise e arruinar, por consequência, a capacidade explicativa da Teoria Pura. Esta dá conta de explicar não o Direito com que se depara na ordem empírica, mas aquele que é reelaborado conceitualmente para encaixar-se no sistema kelseniano. O Direito, na Teoria Pura, é mais que uma estrutura normativa a incidir sobre a realidade: é essa estrutura condensada na realidade.

A purificação que Kelsen promove, então, não é substancial e procedimental, como alegam muitos de seus detratores (por todos, Vasconcelos, 2003, 107), nem meramente procedimental, como defendia o próprio: é sobretudo uma purificação conceitual. Kelsen não parte dos fatos para o conceito, mas do conceito para os fatos.

Outra externalidade da concepção monista do Estado é a redução da unidade de análise da Ciência Jurídica. Só cabe a essa ciência a análise do Direito e nada mais; e se o Direito é o Estado, ficam de fora o Direito internacional (que Kelsen considera em estágio rudimentar) e o Direito extra-estatal (que Kelsen simplesmente ignora).

A dinâmica do Direito, na Teoria Pura, é simplesmente o processo por meio do qual a norma transforma a realidade. Entretanto, essa dinâmica deveria abarcar também o ciclo de vida total do próprio Direito, desde suas origens rudimentares até seus desenvolvimentos últimos.

O Direito da Teoria Pura tem um substrato formalista. É preciso, porém, atentar-se para a advertência de Miguel Reale, de que essa abordagem não é informada por um formalismo transcendental [04].

A Teoria Pura consiste em um formalismo que tem pretensão constitutiva em relação à realidade em que está referenciado. Então, pode tomar da realidade o Estado e reprocessá-lo em conformidade com suas premissas metodológicas e ainda negar a validade de qualquer análise concorrente. É, assim, um solipsismo esquizofrênico. Que teoria, porém, não o é em alguma medida?

O Estado entendido como um conjunto de atos concretos ou como manifestação de poder é irrelevante e deve ser diluindo na noção de ordem jurídica. "O que existe como objeto do conhecimento é apenas o Direito" (op. cit., 346).

É por essa razão que não faz sentido, em seu entendimento, sujeitar o poder do Estado ao Direito ou ainda descolar o Estado do Direito. As ações imputadas ao Estado e o próprio poder do Estado seriam, dessa forma, meras normas incidindo no campo da realidade.


5.Estado, Direito e Sociologia

O monismo Estado-Direito de Kelsen desafia a tradicional concepção ultimada por Georg Jellinek (1954), que desdobra o Estado em fato do poder e ordem normativa. Nessa perspectiva teórica, o Estado como ordem legal dependeria do Estado como fato do poder para se consubstanciar e se estabelecer.

O dualismo Estado-Direito, na óptica da Teoria Pura, está em confronto com a lógica, pois como poderia o Estado se submeter à ordem jurídica que supostamente constitui se ele mesmo é constituído por ela (2009, 315).

Para Hans Kelsen, a Teoria Dualista ratifica um artifício para emprestar legitimidade ao Estado. O Direito alienado do Estado funcionaria como superestrutura justificadora do Estado (2009, 316), na mesma medida em que Karl Marx aponta que o Direito é instrumental ideológico de justificação da ordem econômica (1964, p. 216). Ao subsumir o Estado no Direito, a Teoria Pura busca, então, proscrever o Direito como instância legitimadora do Estado.

O monismo Estado-Direito poderia aparecer no pensamento de Kelsen como proposição normativa (dever ser) ou como uma ficção – no sentido de Vaihinger (1920, 29) – para fechar o sistema da Teoria Pura do Direito. Só que, antes do amadurecimento de sua doutrina na terceira fase de sua produção acadêmica, Kelsen julgava estar simplesmente estabelecendo a verdade dos fatos [05].

A cisão entre Estado e Direito harmoniza-se com o pensamento de Max Weber, para quem o Estado em sentido sociológico corresponde à validade empírica da ordem jurídica, ao passo que o Estado em sentido jurídico corresponde à validade ideal dessa ordem [06].

Verificar o grau de aderência social ao Direito, a partir de metodologia empírico-causal, é objeto da Sociologia Jurídica. Analisar a estrutura interna da ordem jurídica e desvelar os critérios para sua validade ideal é objeto da Ciência do Direito.

Weber afirma, em síntese, que o Estado para o sociólogo é um complexo de ações orientadas pelo Direito, mas para o jurista, um complexo de normas que orienta a sociedade (Economia e Sociedade, 2004, vol.1).

A análise empírica que cabe ao sociólogo tem a finalidade de compreender o Estado como realidade social. Já a análise empírica que compete ao jurista tem a finalidade de compreender o Estado como realidade jurídica. São perspectivas diferentes.

Para Kelsen, porém, o dualismo Estado-Direito não se justifica, porque "o Estado como comunidade em sua relação com o Direito não é uma realidade natural" (2005, 264), mas simplesmente normativa.

Se existisse um conceito sociológico do Estado, seria um conceito necessariamente subordinado ao Direito, argumenta Kelsen. Isso porque a ação social que a Sociologia Jurídica reivindica como objeto é orientada pela ordem jurídica, e a definição de ordem jurídica é monopólio da Ciência do Direito. O conceito sociológico, portanto, "não é um conceito de Estado; ele pressupõe o conceito de Estado, que é um conceito jurídico" (Kelsen, 2005, 272).

Kelsen, dessa forma, alarga o conceito de Estado para incluir na noção de ordem jurídica o Estado como fato social. O expediente está em flagrante contradição com programa metodológico de excretar do Direito elementos que lhe sejam estranhos. Essa posição normativista, porém, não é mais sustentada, como terceira fase da doutrina kelseniana.

A ordem jurídica que orienta concretamente a ação social não é exatamente a definição abstrata formulada pela Ciência do Direito, mas a ordem jurídica efetivamente recepcionada pelo indivíduo:

Toda ação, especialmente a ação social e, por sua vez, particularmente a relação social podem ser orientadas, pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima. A probabilidade de que isto ocorra de fato chamamos "vigência" da ordem em questão (Weber, 2004, p. 19).

Essa ordem jurídica efetivamente recepcionada pelo indivíduo interessa ao jurista na medida em que interessa à definição do Direito válido. A norma sem eficácia social tem prejudicada, no tempo, sua própria existência como norma.

A ordem legítima que influencia a ação dos indivíduos pode ser entendida como uma representação coletiva:

"A sociedade tem por substrato o conjunto dos indivíduos associados. O sistema que eles formam quando se unem, e que varia segundo sua disposição sobre a superfície do território, a natureza e o número de vias de comunicação, constitui a base sobre a qual se eleva a vida social. As representações que são sua trama se livram das relações que se estabelecem entre os indivíduos assim combinados ou entre grupos secundários que se intercalam entre o indivíduo e a sociedade total" (Durkheim, 2004, p. 33)

Nesse sentido, o Direito, como representação social, constituiria objeto da Sociologia. O objeto da Ciência do Direito surgiria da seguinte indagação: representação de que?

A Sociologia Jurídica pressupõe uma relação de causalidade entre ação e Direito (representação), a Ciência Jurídica pressupõe uma relação normativa entre Direito (norma) e ação. A diferença, então, é de ponto de referência.

A pergunta básica com que se depara a Sociologia Jurídica é: o que causa a aderência da ação ao Direito? Essa pergunta pressupõe, apenas remotamente, a pergunta fundamental da Ciência do Direito: o que é normativamente o Direito?

De outra perspectiva, para responder o que é normativamente o Direito (o Direito positivo), a Ciência Jurídica depende de prévia averiguação do grau de eficácia da ordem normativa, porque o Direito, como ordem normativa, não existe sem eficácia social.

Contudo, se a medida da eficácia da ordem é função do grau de deslocamento entre o Estado como ordem concreta e Estado como ordem normativa, ela só pode ser verificada em concurso com a Ciência Jurídica. A necessidade de uma joint-venture entre Sociologia Jurídica e Ciência Jurídica, ainda assim, não compromete a autonomia e a especificidade de uma ou de outra.

A interface entre a ordem empírica e a ordem normativa é, de fato, um campo de disputa entre a Sociologia Jurídica e a Ciência do Direito. Para a Sociologia Jurídica, a ordem empírica é objeto, e a ordem normativa, parâmetro de análise (como se comporta a realidade frente ao Direito?). Já para a Ciência do Direito, é o inverso: a ordem normativa é objeto, e a ordem empírica, parâmetro (como deve comportar-se o Direito frente uma realidade dada?).

Portanto, à Ciência Jurídica cabe estabelecer abstratamente o Direito válido [07], ao passo que a Sociologia Jurídica se ocupa de explicar a ação orientada pelo Direito.

À Ciência Jurídica cabe o estudo da essência do Direito (o que é o Direito?), ao passo que à Sociologia caberia o estudo da manifestação empírica do Direito. O olhar de uma e de outra, ainda que mirando inicialmente o mesmo "objeto", acabam por constituir objetos diferentes.

Kelsen deveria ter renunciado à sua visão monista de Estado para salvaguardar a coerência interna da Teoria Pura. Ele mesmo separa entre fatos externos, submetidos à lei da causalidade, e fatos normativos, submetidos à lei da imputação.

(...) não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, (...) como causa e efeito. (...) Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais (...) Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação (2009, p. 85).

Kelsen, nesse trecho, concede que o engajamento da conduta humana aos preceitos ditados pela respectiva ordem jurídica são explicáveis pelo método empírico-causal da Sociologia Jurídica, como sustentava Weber.

Essa concessão não reduz em nada o objeto da Ciência do Direito, cujo princípio orientador é a imputação. O esquema geral de uma norma padrão é: se a, então b, onde a é uma conduta e b, uma sanção a ela imputada. A relação aí não é de causa e efeito, porque concretamente a não causa b. Pelo princípio da imputação, se o agente sancionador verifica a ocorrência de a, é obrigado a produzir b. Nas palavras de Kelsen, "a conseqüência do ilícito é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito, como sua causa" (2009, p. 91).

O critério da imputação, que preside à sistematização das normas e à aplicação do Direito, refrise-se, configura um poderoso discrímen do objeto da Ciência Jurídica em relação à Sociologia Jurídica. A primeira opera segundo a lógica da imputação; a segunda segundo o juízo da causalidade. A verdade da Sociologia Jurídica só pode ser a material; e a da Ciência do Direito, a formal.

As disputadas travadas pela Teoria Pura nas fronteiras entre o Estado concreto e o Estado normativo põem em evidência o esforço de Kelsen para separar natureza e Direito, ser e dever ser. O Estado concreto, negado por Kelsen, é um conjunto interações na ordem do ser. É um componente inequívoco do mundo natural, portanto, sujeito a lógica da causalidade.

O Estado normativo, que para Kelsen abarcava o Estado concreto, é um conjunto de interações na ordem do dever ser. É a consolidação de todas as normas vigentes ou, na dicção de Kelsen, a própria ordem normativa, a qual se sujeita ao princípio da imputação.

A disputa de espaço entre a Ciência Jurídica e a Sociologia Jurídica poderia ser solucionada de maneira simples na Teoria Pura. Bastava a Kelsen abdicar em favor da Sociologia Jurídica, como de fato parece fazer na terceira fase de sua doutrina ,a pretensão de anexar como parte de seu objeto de análise um componente do Estado, sua manifestação empírica, a qual, elemento do mundo natural e sujeita à lógica da causalidade, é insuscetível de ser conhecida pela metodologia da Teoria Pura, que se baseia no princípio da imputação.

Essa readequação metodológica e epistemolológica estaria convenientemente em consonância com o programa da Teoria Pura do Direito, de trazer à análise o Direito tudo o que importa para conhecer o Direito, sem o equívoco de misturar realidade concreta com realidade normativa.

Seria, entretanto, uma retumbante incoerência transformar um ser (o Estado concreto) em dever ser (o Estado normativo), quando a razão de ser do Direito opera em sentido inverso: transformar o dever ser (as normas) em ser (fatos concretos).

A outra saída, que Kelsen adota na terceira fase, seria afrouxar a concepção de Direito lógico que opera estritamente seguinte o princípio da imputação. Assim, a formação do Direito em si implicaria fontes sociológicas e até políticas, concorrendo com as fontes meramente formais, normativas.

Essa abertura da Teoria Pura só seria possível sem afetar suas premissas fundamentais se as fontes sociológicas e políticas estiverem sujeitas a controle democrático. Sem esse controle democrático, o Direito não seria Direito, seria não-Direito. É por essa razão é que penso que a Teoria Pura supõe o Estado Democrático.


6.Estado, Direito e Política

Na concepção de Kelsen, um dos mais perniciosos corpos estranhos a serem removidos do Direito é a Política, mas a absorção do Estado por sua ordem jurídica é um processo que implica, necessariamente, a assimilação de um elemento da política pelo Direito.

Por outro lado, a Teoria Pura contrapõe-se à autonomização do elemento político do Estado. Para Kelsen, o Estado, como organização política, nada mais é que a respectiva ordem jurídica (op. cit. 316-317).

Kelsen considerava que o erro de considerar o Estado um ente político decorria do fato de que pensava que o Estado tem ou é poder. Nessa perspectiva, o Estado seria o poder que está "atrás do Direito" ou que "impõe o Direito" (2005, p. 274).

A Teoria Pura, no entanto, confina o poder do Estado no Direito, ao reduzir esse poder meras manifestações exteriores de atos de coação estabelecidos pela ordem jurídica. Para Kelsen, "o poder político é a eficácia da ordem coercitiva reconhecida como Direito" (2005, p. 275). Nessa perspectiva, não se admite que possa haver uma vontade do Estado transcendente à norma.

Como sociedade política, o Estado influencia a instância jurídica e é por ela influenciado, na busca dos valores fundamentais do indivíduo e da sociedade e da organização mais eficaz para concretizá-los (Dallari, 2001, p. 129).

É por meio dessa abertura à política é que o Estado e o próprio Direito se abrem à vontade da comunidade social a que se referem. A Teoria Pura, em suas formulações originais, não podia, admitir um poder de fato a estabelecer e animar o Estado. Kelsen, no entanto, caminha nessa direção e penso que uma Teoria Pura aberta politicamente à democracia é a única compatível com seu pensamento na terceira fase.

Na obra póstuma, Teoria Geral das Normas, Kelsen tenta aperfeiçoar a doutrina da norma fundamental, com a recepção da ideia de ficção, de Hans Vaihinger. Esse filósofo alemão afirmou que, como a realidade não poderia ser assimilada completamente pelo ser humano, esse constroi sistemas de pensamento lacunares, que só se preenchem com ficções.

A ficção, no sentido de Vaihinger, são formulações que contradizem a realidade e que contradizem a si mesmas. O importante é que o fechamento agora era declaradamente provisório, como o é as próprias concepções científicas contemporâneas.

Kelsen teve que enfrentar um paradoxo. Na Teoria Pura o Direito deveria atender aos requisitos de pureza e lógica. O Direito puro exige normas puras, atos de vontade exclusiva do legislador, dentro da moldura imposta pela norma imediatamente superior. O Direito lógico deveria observar o imperativo de que um ser não pode produzir um dever ser, de que uma norma (dever ser) só pode ser gerada por outra norma (dever ser).

A norma fundamental, apesar de necessária para interromper a regressão ad infinitum do sistema normativo, impede que o Direito da Teoria Pura seja puro e lógico, porque ela mesma era vazia de sentido e, antes da terceira fase, não configurava ato de vontade. Assim, no Direito da Teoria Pura havia uma norma impura (que não era determinada por norma superior), a norma fundamental.

Por outro lado, o artifício da norma fundamental também comprometia o Direito como ordenamento lógico. Como não era um ato de vontade, não poderia gerar, como gerava na Teoria Pura, as demais normas do sistema. Assim, a norma fundamental só era norma no nome.

Configurar ato de vontade não é problema para as demais normas, porque há o controle subjacente da norma fundamental. Na Teoria Pura, a norma fundamental é contingente, e só se sujeita a controle a posteriori. O que a condiciona é apenas a efetividade do próprio ordenamento jurídico a que se refere.

Na Teoria Pura retificada pelas reformulações da terceira fase, o controle político da norma fundamental seria a priori. A vontade fictícia não seria fictícia por não existir, mas apenas porque Kelsen, como Weber, não admitia, como Durkheim, a possibilidade de existir uma vontade coletiva.

Ao admitir a norma fundamental como ato de vontade, Kelsen abre mão do Direito presidido pela objetividade e pela racionalidade absoluta. A ordem jurídica compatível com o pensamento mais maduro de Kelsen é sujeita à contaminação e não pode contar com juízes neutros manejando material jurídico neutro.

É uma ordem jurídica de risco, que só pode ser estabilizada pela operação concomitante do princípio democrático. Com isso, o Direito lógico e científico pressupõe uma simbiose com a instância política, porque só pode existir no Estado Democrático.

O mais interessante é que essa solução simbiótica entre Direito e política pode ser deduzida desde os primeiros trabalhos de Kelsen. O próprio autor demora a compreender que o Direito científico, já alinhavado na Teoria Pura, exigia a democracia e vice-versa.

Essa conclusão decorre da conjugação entre o cerne da Teoria Pura com as concepções kelsenianas sobre democracia, exteriorizadas no texto A essência e o valor da democracia (Kelsen, 1993), publicado originalmente em 1929.

A engenharia dogmática que sintetiza as soluções kelsenianas para blindar o que reivindica como seu verdadeiro e exclusivo objeto – o Direito – e demarcar, de forma absoluta, o objeto da Ciência Jurídica em relação às ciências adjacentes, perde o sentido com a virada epistemológica da terceira fase.

A partir desse da concessão de que a norma fundamental é um ato de vontade e que a validade formal da norma tem relação de dependência com sua eficácia social, Kelsen poderia ter reformulado profundamente a Teoria Pura do Direito a ponto de ela não merecer mais esse nome, mas esse empreendimento, não se sabe por que razões, não foi levado adiante.

Penso que o passo inicial para essa reelaboração teria que partir de uma análise transnormativa do Estado, segundo a qual o Estado fosse compreendido como uma realidade que transcende o ordenamento jurídico a que se refere. A obra póstuma de Kelsen, Allgemeine Theorie der Normen (Teoria Geral das Normas) publicada em 1979, não persegue esse objetivo e ainda revela um Kelsen confinado na norma.


7.O Estado transnormativo

O Estado é um complexo que articula uma dimensão material (território e ações sociais), um aspecto normativo (uma estrutura institucional cogente) e um aspecto político (o poder de fato e os fins do Estado).

Há uma interseção entre Direito, Sociedade e Política na configuração do ser que chamamos Estado. Os aspectos normativo, sociológico e político do Estado não podem ser abstraídos sem prejuízo para compreensão do que seja ele de fato.

Não é possível analisar esse entre pluridimensional a partir de uma ciência exclusiva. Durkheim advertia que "não há reino na natureza que não dependa de outros reinos" (2004, p. 32). O próprio Kelsen revê sua posição purista em What is justice (O que é justiça?), publicado nos Estados Unidos em 1957:

O Direito pode ser objeto de diversas ciências. A Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência do Direito possível ou legítima. A sociologia do Direito e a história do Direito são outras. Elas, juntamente com a análise estrutural do Direito, são necessárias para uma compreensão completa do fenômeno complexo do Direito (Kelsen, 1997, 291-292).

O substrato da doutrina de Kelsen pode ser resgatado mediante a concessão de que o objeto fundamental do Direito é a norma, o dever ser, mas que a formação e a operação da norma, a integração do Direito com a realidade não pode ser ignorada pela Ciência Jurídica, nem resolvido por ela de forma isolada, sem concurso da Sociologia e da Ciência Política. E essa transcendência do Direito é essencial à captação do que seja o Estado.

A noção de norma fundamental é perfeitamente compatível com essa ampliação do objeto da Ciência do Direito que aparece na Teoria Pura. A norma fundamental poderia ser compreendida nas democracias, não como ficção, mas como uma representação coletiva de Direito ideal, que baliza, em concreto, a consubstanciação do Direito fático e inclusive da própria constituição.

A evolução dessa representação explicaria a proscrição e a criação de normas à revelia das instâncias formais. O poder que cria o Direito e move o Estado é condicionado pelo formalismo jurídico, mas não neutralizado por ele.

O mais importante desdobramento dessa concepção teórica seria a unificação dos fundamentos de validade do Direito estatal e do Direito internacional. A representação coletiva que subjaz ao Estado tem controle direto sobre este, e participa da representação coletiva mais ampla, que governa o sistema internacional.

O julgamento sobre a constitucionalidade das normas, nesse contexto, assumiria uma legitimação mais democrática do que a que se apoia em substrato puramente normativo. A fundamentação do Poder Judiciário no poder da sociedade seria menos remota do que na sistemática excessivamente normativa hoje vigente.

Essa mudança, aparentemente simples, expõe o Direito em sua origem, e, em decorrência, em todos os seus desdobramentos, a algum grau de controle político. O poder que funda o Direito também tem autoridade para retificá-lo.

É possível conceber uma nova Ciência do Direito, que aproveite e concilie os aspectos estruturais do pensamento de Kelsen de forma a configurar um direito relativamente flexível, forjado, de um lado, pela dogmática jurídica, que deve presidir à estruturação da pirâmide normativa e a aplicação do Direito, e de outro pelo princípio democrático, que deve preencher as normas do sistema, inclusive, a norma básica.

É epistemologicamente viável uma Ciência jurídica em que o Direito e a democracia se pressuponham mutuamente. O fato de se conceder que o objeto da Ciência do Direito não é uma construção absolutamente lógica, mas lógico-democrática, não afeta em nada a assepsia que deve presidir tanto o estudo do Direito na academia como sua aplicação pelos diversos órgãos do Estado.


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Notas

  1. "Estabelecer a Ciência do Direito como disciplina normativa" (Tradução livre do autor).
  2. "Primeiramente, Kelsen abandona sua visão anterior no que tange a concepção de que as normas estão sujeitas a constrangimentos impostos pela lógica. Segundo, ele desiste da ideia de que a Ciência do Direito tem uma dimensão normativa. Terceiro, ele defende uma versão completamente empobrecida da tese da norma fundamental, nominalmente, a norma básica como ficção" (Tradução livre do autor).
  3. Interessante, nessa questão epistemológica, a posição de Robert Alexy: ‘É natural orientar-se, de início, por aquilo que de fato é praticado como Ciência do Direito e designado como "dogmática jurídica’ ou ‘ciência jurídica’, ou seja, pela Ciência do Direito em sentido estrito e próprio. Se isso é feito, é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica: uma analítica, uma empírica e uma normativa" (Alexy, 2008, p. 33).
  4. "A teoria kelseniana jamais foi formalista, no sentido ingênuo desta palavra. Para ele, fiel à doutrina de Kant, para quem a forma sem a realidade é vazia, e a realidade sem forma é cega, o elemento formal jamais se apresenta como algo válido em si, mas sempre como uma estrutura aplicável a determinada porção ou determinado momento da experiência. A forma, própria do normativismo kelseniano, é, desse modo, constitutiva, no sentido de que desempenha sempre uma função referencial em relação à experiência social" (REALE, 1985, p. 125).
  5. A Teoria Pura é informada por uma inequívoca pretensão positivista, como se vê no seguinte excerto:
  6. "(...) [A Teoria Pura] quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito (2009, 1)."

  7. Quando se fala de "Direito", "ordem jurídica" e "norma jurídica", deve-se observar muito rigorosamente a diferença entre os pontos de vista jurídico e sociológico. Quanto ao primeiro, cabe perguntar o que idealmente se entende por direito. Isto é, que significado, ou seja, que sentido normativo, deveria corresponder, de modo logicamente correto, a um complexo verbal que se apresenta como norma jurídica. Quanto ao último, ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre, dado que existe a probabilidade de as pessoas participantes nas ações da comunidade – especialmente aquelas em cujas mãos está uma porção socialmente relevante de influência efetiva sobre essas ações –, considerarem subjetivamente determinadas ordem como válidas e assim tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas" (Weber, 1999, v. I, p. 209).
  8. A Ciência do Direito, nessa óptica, constitui o próprio objeto. Direito válido é uma expressão redundante, porque na perspectiva da Ciência Jurídico a validade é inerente ao Direito.

Autor

  • Edvaldo Fernandes da Silva

    Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM), especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), bacharel em Direito e em Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Direito Tributário em nível de graduação e pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (UniCeub); e de Pós-Graduação em Ciência Política no Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado do Senado Federal (de carreira).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Edvaldo Fernandes da. O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20163. Acesso em: 24 abr. 2024.