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O dever constitucional do Município em garantir, ao trabalhador portador de deficiência, as prestações materiais necessárias para exercício do direito de igual oportunidade no mercado de trabalho

O dever constitucional do Município em garantir, ao trabalhador portador de deficiência, as prestações materiais necessárias para exercício do direito de igual oportunidade no mercado de trabalho

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A dimensão do dever de prestar tem relação direta com a natureza da deficiência de cada pessoa, condicionado somente pela inexistência comprovada de recursos financeiros e a impossibilidade constitucional de redimensionamento de verbas orçamentárias em função de vinculação de recursos, pelo Texto Maior, a outras prestações estatais.

1 - Introdução. 2 - Direitos fundamentais, pessoa portadora de deficiência e igualdade de oportunidade para o trabalho. 3 - Dos deveres constitucionais do Estado Federal para com as pessoas com deficiências. 3.1 - Estado Federal. Competências federativas. Competências legislativas e não legislativas. 3.2 - Aproximação entre o art. 23, II, parte final e os artigos 24, IV, 203 e 204, da CF/88. 4 - Do descumprimento, pelo Município, do dever constitucional contido no art. 23, II, parte final, da CF/88. 5 - Da reserva do possível. 6 - Da separação dos poderes. 7- Conclusões. 8 - Referências Bibliográficas

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Liberdade ao trabalho. Igualdade de oportunidades. Pessoa portadora de deficiência. Federação. Distribuição de competências. Dever constitucional. Omissão municipal. Separação dos poderes. Reserva do possível orçamentário.


1. Introdução

Neste ensaio, procurar-se-á demonstrar a natureza jurídica do direito fundamental à liberdade para o trabalho e do direito à igualdade de oportunidades para o acesso ao trabalho, do trabalhador portador de deficiência.

Estes direitos não se realizam sem a implementação de políticas públicas que forneçam ao trabalhador em tela as condições materiais necessárias para habilitá-lo ou reabilitá-lo ao trabalho.

Tais políticas são de competência de todos os entes federativos, mas podem ser exigidas especialmente do município, por ser o ente político mais ao alcance da realidade das pessoas em epígrafe.


2. Direitos fundamentais, pessoa portadora de deficiência e igualdade de oportunidade para o trabalho.

A liberdade ao trabalho e o direito à igualdade de oportunidade para acesso ao direito ao trabalho são direitos fundamentais.

A doutrina controverte-se a respeito do conceito da expressão direitos fundamentais. Comumente os estudiosos procuram distinguir o conteúdo dos direitos fundamentais relacionando-os aos direitos humanos e conceituam os primeiros como sendo os direitos do homem garantidos por dada ordem jurídica e limitados no tempo e no espaço - os direitos desenhados por determinada ordem jurídica. Já os segundos são conceituados como os direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos - ínsitos à natureza humana, com caráter inviolável, intemporal e universal.

Os direitos fundamentais, no Texto Constitucional de 1988, ocupam um extenso rol prescritivo. No Título II encontram-se prescritos os "Direitos e Garantias Fundamentais". Este título abre-se em cinco capítulos, sendo os que mais nos interessam o Capítulo I "Direitos e Deveres Individuais e Coletivos" e o Capítulo II "Direitos Sociais".

Os direitos fundamentais podem ser classificados de várias maneiras, dependendo do critério eventualmente adotado. Dentre as classificações possíveis está a que divide os direitos fundamentais em: direitos de liberdade e direitos de igualdade. Outras classificações existentes na doutrina alinham os direitos de liberdade sob a expressão "direitos individuais" e os direitos de igualdade, sob o epíteto de "direitos sociais"; ou, então, de "direitos de não fazer" e "direitos de fazer" (prestacionais), dentre outras.expressões.

Para fins deste arrazoado adotar-se-á a classificação dos direitos fundamentais em: direitos de liberdade como equivalente aos direitos individuais e direitos de igualdade como equivalente aos direitos sociais. Os primeiros impondo, ao sujeito passivo, em regra, um dever de não fazer e os segundos, em regra, impondo um dever de fazer ou de prestar.

Sob esta ótica, especialmente o Estado – compreendido pela União Federal, os Estados membros, o Distrito Federal e os Municípios - tem o dever de omitir-se em relação à intervenção nos direitos fundamentais individuais, bem como tem do dever de agir para protegê-los. Já em relação aos direitos fundamentais sociais, o Estado tem o dever de prestar – legislativa ou administrativamente – para assegurá-los e dar-lhes efetividade. O Estado tem o dever de tomar as providências necessárias para proteger e garantir o cumprimento dos direitos fundamentais sociais (dever de proteção).

No rol dos direitos individuais prescritos na CF/88 está o direito geral de liberdade (art. 5º, II). Decorrente deste, também está prescrito na Constituição a liberdade para o exercício do trabalho – valor eleito a fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV) e cujo implemento concorre para o reconhecimento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). No art. 6º, está prescrito também o direito ao trabalho. Este dispositivo constitucional, aliado aos incisos XXX e XXI, do art. 7º, da CF/88, prescrevem o direito à igualdade de oportunidade para o exercício do trabalho. Pode-se, portanto, afirmar que o direito ao trabalho, à liberdade de trabalho e à igualdade de oportunidade para o exercício do trabalho são direitos fundamentais constantes do Texto Constitucional de 1988.

Cita-se o art. 7º, XXXI, da CF/88, em função de sua pertinência ao tema ora tratado:

" Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante (...) a critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência".

Neste dispositivo, põem-se em evidência os seguintes termos e expressões: discriminação, critérios de admissão e deficiência.

Utilizando-se dos signos lingüísticos eleitos pelo próprio constituinte pode-se entender o termo discriminação como sendo o sentido contrário ao termo igualdade. Discriminar é distinguir algo ou alguém, considerado como um elemento de um conjunto.

Não obstante os ordenamentos jurídicos prescrevem a igualdade formal entre as pessoas, esta igualdade deve ser tomada sob o ponto de vista deôntico, pois no campo ôntico, ela não existe..Para fins de organização social o art. 5º, caput, da CF/88, considera que todos os seres humanos são iguais. Esta prescrição é reafirmada em vários outros artigos do texto constitucional, dentre eles o que considera homens e mulheres iguais em deveres e direitos. Note-se que o constituinte não afirma que, no mundo do ser, as mulheres e homens são iguais, mas que assim os considera ao criar o mundo dos direitos e deveres, ou seja, no mundo do dever-ser.

No mesmo sentido, o constituinte proíbe distinções entre pessoas em função de cor, raça, origem, etc. Note-se que no mundo real as pessoas têm características especiais que as distinguem superficialmente entre si, mas estas características não lhes retiram a condição de seres humanos. E é com base nesta condição que o constituinte uniformiza as pessoas.

Uma característica capaz de diferençar uma pessoa da outra - além da cor, da altura, do sexo, etc – é se seu corpo possui ou não alguma deficiência em relação a um padrão de normalidade eleito pela Ciência [01].

No mundo do ser, a deficiência física, mental ou sensorial é tomada como critério para distinguir as pessoas entre si, nas relações sociais. Buscando igualizar seres humanos que superficialmente possuem características desigualizantes, o constituinte de 1988, no que se refere à pessoa deficiente que pretenda trabalhar prescreveu o art. 7º, XXXI, cujo texto foi transcrito acima

Ciente das discriminações sofridas pelo trabalhador portador de deficiências, no mundo do ser (plano ôntico e pré-jurídico), em razão das limitações ínsitas à sua condição deficiente, o constituinte de 1988, reafirmou-lhe o direito à igualdade de oportunidade para o trabalho.

O que o constituinte pretendeu com a criação da norma supra foi reconhecer a condição humana de toda e qualquer pessoa e, especialmente em relação àquelas com características deficientes (em relação a padrão de normalidade pré-jurídico) reafirmar que as mesmas não retiram a condição humana de dada pessoa. Portanto, os portadores de deficiências devem ter a mesma oportunidade jurídica de trabalho que os não-deficientes.

Se o art.7º, XXXI, for combinado com o disposto no art. 5º, §1°, da CF/88, poder-se-á descrever as seguintes normas primárias constitucionais:

O trabalhador portador de deficiência tem o direito fundamental à igualdade de oportunidade para a admissão ao trabalho.

Para fins de contratação para o trabalho, é proibido ao contratante a distinção entre o trabalhador do portador de deficiência e o não deficiente, se ambos forem capazes para o desenvolvimento de trabalho de igual valor.

Já da combinação do direito fundamental do portador de deficiência à igualdade de oportunidade de exercício do direito fundamental ao trabalho (art. 7º, XXXI) e o art. 24, IV, decorre uma norma de estrutura que obriga o legislador infraconstitucional atribuir efeitos à proibição de discriminação já veiculada no próprio texto constitucional.

Note-se que não obstante o constituinte não ter prescrito efeitos para o descumprimento do inciso XXXI, este veicula uma proibição. O inciso em questão veicula uma norma de conduta primária e, nos termos do art. 5º, §1º, da CF/88 deve produzir efeitos imediatamente. Cabem aqui as considerações do professor Luis Roberto Barroso:

"A norma jurídica de conduta caracteriza-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra, determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação jurídica que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito subjetivo, a possibilidade de agir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir" [02].

E, como já ressaltado supra, o direito à igualdade de oportunidade é direito fundamental, assim como também é fundamental o direito à liberdade para o trabalho. Ambos são de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", da CF/88.


3. Dos deveres constitucionais do Estado Federal para com as pessoas com deficiências

O Estado possui deveres constitucionais relativos à eficácia do direito fundamental ao trabalho. Em relação às pessoas não portadoras de deficiências, especialmente no que se refere ao direito à liberdade para o trabalho, o dever imposto ao Estado é o de abster-se de intervir no direito de cada pessoa em exercer sua opção em trabalhar ou não, bem como de desenvolver o que melhor lhe aprouver (princípio da livre iniciativa – art. 1º, IV, CF).

Em relação ao trabalhador com deficiência física, mental e/ou sensorial o constituinte foi mais rigoroso com o Estado, impondo a este o dever de abstenção aliado ao dever de prestação. Afinal, uma coisa é deonticamente oferecer a mesma oportunidade a duas pessoas, mesmo que uma delas possua alguma deficiência que lhe dificulte os movimentos, por exemplo; coisa diversa é possibilitar a real igualdade de oportunidade para ambas, dado que a primeira necessitará de uma providência material que lhe supra a dificuldade de movimentar-se.

Em função desta circunstância, para garantir o exercício da liberdade ao trabalho ao trabalhador com deficiência, o constituinte acrescentou ao Estado um dever de prestar a este trabalhador as providências necessárias para superação das deficiências que o mesmo possuir.

Ao Estado o constituinte somou o dever de não intervenção na liberdade ao trabalho ao dever de prestar as condições necessárias para o exercício da referida liberdade. Isso porque, no caso do trabalhador com deficiência, não basta a não intervenção do Estado para lhe garantir a liberdade de trabalho, pois há uma dependência deste à prestação material que lhe supra a desigualdade real e lhe garanta a igualdade real de oportunidade para o trabalho.

O direito do referido trabalhador a tais prestações materiais decorre de dois comportamentos impostos constitucionalmente ao Estado: o dever de não intervir na liberdade para o trabalho e o dever de prestar providências materiais igualizantes – sendo que último, traz implícito em si uma proibição de tratamento formalmente igual em relação aos trabalhadores não portadores de deficiências [03].

3.1. Estado Federal. Competências federativas. Competências legislativas e não legislativas.

A Constituição Federal de 1988, como não poderia deixar de ser, uma vez que o Estado Brasileiro é de natureza federal, repartiu as competências estatais legislativas e não legislativas (administrativas e/ou políticas). As primeiras atribuídas ao Poder Legislativo e as segundas, ordinariamente, ao Poder Executivo, de cada um dos entes federados. A competência para aplicar o direito positivo e controlar a validade dos atos estatais restou atribuída ao Poder Judiciário.

Segundo Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior a Constituição Federal não dividiu apenas as competências legislativas, mas foi além, preestabelecendo hipóteses de competência material, ou administrativa, nas quais se atribuiu ao Poder Público o poder-dever de realizações de índole político-administrativa. Se no art. 22 o Texto Maior prescreveu expressamente que ‘compete privativamente à União legislar sobre...’, nos art.s 21 e 23 omitiu o verbo ‘legislar’ para impor atribuições de índole material (executivas) [04].

Dentre as competências executivas, constantes do art. 23, da CF/88, destaca-se a seguinte:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

... II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Não obstante as palavras utilizadas pelo texto carregarem consigo certa medida de naturalidade, faz-se necessário determinar-lhes o sentido que foi pretendido pelo constituinte. Destaca-se, inicialmente, que o inciso II supra veicula tantas normas quantos são os entes políticos ali referidos, bem como os verbos de ação nele prescritos. Assim, é possível identificar no texto acima que, para cada um dos entes políticos autônomos há uma competência material autônoma, mesmo que em regime de solidariedade.

O inciso II, do art. 23, prescreve capacidade autônoma para obrigações prestacionais, que poderão ser divisíveis ou não, dependendo da natureza da deficiência da pessoa. O regime de cumprimento de cada uma das obrigações é solidário, o que evidencia a importância do conteúdo ali regulado.

Pela leitura do caput do art. 23, supra transcrito, é possível identificar uma norma de competência, na qual se atribui ao Poder Executivo de cada ente político o poder para fazer/realizar os comportamentos prescritos pelos verbos ali presentes.

A expressão assistência pública, segundo Plácido e Silva, "designa toda espécie de auxílio, cuidado ou apoio prestado pelos poderes públicos às pessoas ou corporações que deles necessitarem. Essa assistência, pois, se desenvolve no sentido de fomento ou proteção" [05]. "Diz-se proteção ou auxílio, quando a assistência é dada no sentido de socorrer instituições pias ou de mantê-las, para que prestem socorros aos doentes, pobres, necessitados, aos velhos, às crianças abandonadas ou órfãs" [06].

Em relação ao sentido do termo proteção, Plácido e Silva esclarece: "Do latim protectio, de protegere (cobrir, amparar, abrigar), entende toda espécie de assistência ou de auxílio, prestado às coisas ou às pessoas, a fim de que se resguardem contra os males que lhes possa advir." [07]

Não obstante o sentido depreendido do inciso II pela indicação do conteúdo semântico de cada uma das palavras e expressões expostas, interessa-nos especialmente o sentido do termo garantia constante do art. 23, II, CF/88. Há certa zona de indeterminação no conteúdo da palavra em questão todavia, por aproximação ao sentido atribuído à mesma em outros textos constitucionais relativos a direitos fundamentais, é possível determinar o seu conteúdo no art. 23, II, da CF/88.

Para a referida aproximação invocam-se outros dispositivos constitucionais que tratam dos direitos fundamentais da pessoa humana onde a palavra garantia foi usada: no Titulo II, a CF/88 prescreve; "Dos Direitos e Garantias Fundamentais"; também no art. 5º § 1°, o constituinte utilizou a palavra garantia "§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.". O mesmo ocorreu no parágrafo 2º do mesmo artigo: "§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"; e ainda no mesmo sentido o prescrito no art. 60, § 4º: "IV - os direitos e garantias individuais".

Nota-se que, em todos os dispositivos o termo garantia está aliado ao termo direitos. Celso Ribeiro Bastos, ao considerar a diferença entre direitos e garantias (gênero), leciona que "As garantias, são, pois, os instrumentos que conferem eficácia aos direitos fundamentais. Vale dizer que é tão importante a existência dessas garantias que em, alguns casos, a própria extensão do direito protegido e dada pela maior ou menor força do instrumento que o tutela" [08].

Na mesma linha, J. J. Canotilho considera: "Rigorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de proteção de direitos" [09]. Note-se que os comentários doutrinários transcritos referem-se ao gênero garantia, ou, por outras palavras, ainstrumentos capazes de viabilizar a efetividade social de dado direito fundamental previsto no Texto Constitucional.

No sentido prescrito no art. 23, II, o sentido do termo garantia não é diverso do acima exposto. Ele também foi utilizado pelo constituinte para significar instrumento de viabilização e efetividade de direito fundamental garantido pelo Texto Constitucional.

Do caput do artigo 23 depreende-se uma norma de competência que prescreve de maneira autônoma (individualizada) o poder/permissão para o Poder Executivo fazer, na medida da oportunidade, da conveniência e dos recursos disponíveis, um extenso rol de atribuições. É voz doutrinária corrente que as competências constitucionais são veiculadas por normas em cujo modal deôntico consta o verbo permitir, ao invés de obrigar. Este é o entendimento correto para a leitura de uma norma de competência: atribuição de poder. Ao legislador, as competências atribuídas também são permissões constitucionais, salvo quando o constituinte prescreve um dever de legislar.

Para interpretar o inciso II, do art. 23, separa-se dele o enunciado descritivo "cuidar das garantias para a pessoa portadora de deficiência". Deste enunciado, combinado com o caput do mesmo artigo, depreende, à primeira leitura, uma norma permissiva ao Poder Executivo de cada ente federativo em relação à providência constitucional pretendida. Todavia, esta não é a melhor interpretação. Explicamos.

Ao elencar o vasto rol de direitos fundamentais individuais – classificados como direitos de liberdade – o constituinte também lhes prescreveu garantias; por exemplo, à liberdade ao trabalho (direito negativo) prescreveu a não intervenção, à liberdade de ir, vir e permanecer prescreveu o habeas corpus, à liberdade para a visa privada prescreveu os direitos de resguardo, à igualdade formal perante oportunidades que as relações humanas o constituinte prescreveu a imposição de tratamento real igual.

Mas e em relação à pessoa portadora de deficiência que, não obstante possuir ter a mesma condição que as demais pessoas,possui limitações físicas, mentais e/ou sensoriais reais? Como o constituinte poderia garantir-lhe a igualdade formal às oportunidades referidas? A solução foi a de , impor ao Estado um dever executivo, ao invés de uma permissão (como na maioria dos demais incisos do art. 23).

Entender o inciso II, do art. 23, como permissão ao Estado para implementar prestações que garantam à pessoa portadora de deficiência as condições necessárias para o exercício da igualdade formal é submeter o direito à igualdade formal (mínima, portanto) à conveniência estatal ao invés de garantir; este entendimento equivale a afirmar deonticamente a diferença da pessoa portadora de deficiência, tomando por critério a própria condição deficiente.

Na verdade, a palavra garantia, constante do inciso II, parte final, veicula um dever constitucional implícito, fora do rol dos direitos fundamentais expressos constantes do Título II, contrariando o sentir doutrinário que lê as normas de competência como de natureza permissiva. O fato de tal direito de garantia estar fora do rol do Título II, bem como constar de norma constitucional de competência, não lhe retira o caráter obrigatório, assim como evita tornar o inciso 7º, XXI, letra morta e sem qualquer eficácia social, contrariando o disposto no art. 5º, §1º, da Carta Maior.

Note-se, por fim, que o direito de garantia previsto no art. 23, II, parte final, é conditio sine qua non para que o direito fundamental à liberdade para o trabalho e à igualdade formal de oportunidade para o trabalho possam ser exercidos; e é também deste caráter condicional fático absoluto que é retirado sua força deôntica imperativa.

Das considerações acima decorre uma primeira conclusão: os entes políticos federativos deverão fornecer às pessoas portadoras de deficiência os instrumentos necessários para a viabilização do exercício de direitos fundamentais.

3.2. Aproximação entre o art. 23, II, parte final e os artigos 24, IV, 203 e 204, da CF/88.

Como visto acima, a norma constitucional prescrita no inciso II, parte final do art. 23 tem natureza imperativa e prescreve um dever de fazer, solidário e autônomo, ao Município e aos demais entes políticos federativos. O sujeito destinatário das normas ali veiculadas é o Poder Executivo de cada um dos entes federados.

Por oportuno, compara-se ao inciso II, parte final, do art. 23, ao artigo 24, XIV [10] que se refere à prestações legislativas relativas à pessoa portadora de deficiência. Quem são os sujeitos destinatários do último inciso constitucional citado? Os Poderes Legislativos da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Qual a diferença entre as normas veiculadas no inciso II, parte final, do art. 23 e no inciso IV, do art. 24? O primeiro dispositivo veicula uma norma imperativa de conduta para os Poderes Executivos de cada ente federativo, uma vez o termo garantia é condição para o exercício de outros direitos, e como tais são impositivas, nos termos já tratados acima. Quanto ao segundo dispositivo, as normas constitucionais de competência ali contidas são normas imperativas de segunda instância [11], que permitem ao legislador obrigar ou proibir determinados comportamentos, que serão veiculados em outras normas, estas de natureza infraconstitucional.

Note-se que as diferenças entre as normas constitucionais previstas no inciso II, do art. 23 e a veiculada no artigo 24, XIV, estão: a) no dever constitucional de execução, diretamente relacionado a cada Poder Executivo de modo horizontal, autônomo e solidário, prescrito no primeiro dispositivo; e, b) na permissão constitucional concorrente, vertical e cumulativa ao legislador federal, estadual e distrital (art. 24, §§ 1° a 4°) para criarem normas imperativas/proibitivas para terceiro executar.

No primeiro caso, impõe-se uma ação estatal - sem necessidade de outra norma jurídica intermediadora, uma vez que sua força imperativa decorre do próprio texto constitucional. No segundo caso, não há ação prescrita, mas apenas permissão para prescrever legislativamente ações/comportamentos humanos, atribuindo-lhes efeitos.

Ainda em relação à força vinculante do art. 23, II, parte final, faz-se mister um esclarecimento tendo por referência ao conteúdo do parágrafo único, do mesmo artigo 23, que dispõe: "Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional." [12]. Este dispositivo tem a função de direcionar e otimizar as execuções solidárias prescritas nos incisos do artigo, uma vez que, não obstante a forma federativa do Estado Brasileiro, em última análise, o que se pretende com isso é dar maior eficiência às prestações estatais. Todavia, tal parágrafo não tem o condão de afastar o caráter autônomo e solidário do dever constitucional de prestar, explicitado pelo termo comum, presente no caput do artigo.

Também é importante analisar o art. 23, II, em comparação com o contido nos artigos 203 e 204, da CF/88:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

.....................................................................................................................................................

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência...; ......................................................................................................................................................

(destaques nossos)

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal(...);

......................................................................................................................................................

Para melhor análise, faz-se importante desmembrar, em linguagem descritiva, as normas constitucionais contidas nos dispositivos transcritos acima. Pode-se encontrar nos mesmos as seguintes normas:

A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social...

A assistência social tem por objetivo a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência. [13].

As ações de assistência social, às quais está obrigado o Estado Federal Brasileiro, serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes [14].

As ações de assistência social, às quais está obrigado o Estado Federal Brasileiro serão organizadas com base na descentralização político-administrativa.

Cabe à União criar normas gerais para a esfera federal com vistas à execução de ações de assistência social

Cabe à União a coordenação federal das ações de assistência social.

Cabe aos Estados a coordenação e a execução de programas estaduais de ações de assistência social

Cabe aos municípios coordenação e a execução de programas municipais de ações de assistência social.

Note-se que, em relação ao adimplemento municipal do dever constitucional de prestar garantias às pessoas portadoras de deficiência, tal como previsto no art. 23, II, última parte, os dispositivos constitucionais supra transcritos não são contraditórios ou contrários, mas complementares.

A assistência social, que integra o sistema de seguridade social, é de atribuição de todos os entes federados e de financiamento cooperativo ou não. Aos municípios cabe prestar a habilitação e realibitação para as pessoas portadoras de deficiência, tal como prescrito no art. 203, IV c/c art. 204, assim como todas as demais garantias que se fizerem necessárias ao exercício de direitos fundamentais, para as referidas pessoas, conforme o dever constitucional genérico prescrito no art. 23, II, parte final da CF/88.

Não é exagerado afirmar que, na situação concreta de garantia pelos entes estatais aos portadores de deficiências, esta também se fundamenta na mínima qualidade de vida que a estas pessoas deve ser assegurado. Em última ratio a garantia em questão é um reflexo do direito à vida, um direito à saúde física e mental [15]. Tudo isso decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, do valor ínsito à pessoa, e, da conseqüente negação da coisificação do ser humano, da rejeição à idéia de refugo humano e de apoio à pessoa que não tem condições de, por si só, participar das relações humanas em condições mínimas de igualdade.

Do ponto de vista do trabalhador portador de deficiência, o Município – assim como os demais entes federativos – tem o dever constitucional de prestar-lhe os meios necessários para viabilizar a igualdade de oportunidade ao acesso ao trabalho, em relação aos demais trabalhadores. O direito fundamental a ser tutelado pela garantia a ser viabilizada pelo município é a igualdade de oportunidade para o acesso ao trabalho para o trabalhador portador de deficiência.

A igualdade de oportunidade, prescrita e imposta pelo art. 7º, XXXI, da CF/88, terá eficácia social se fornecido ao trabalhador portador de deficiência o instrumental necessário e suficiente para colocá-lo em nível de igualdade formal adequado - em relação aos demais trabalhadores – para o exercício do direito ao trabalho. Aqui fica ressaltada a interdependência entre os direitos humanos dos direitos de liberdade dos de igualdade [16].

Em resumo, o Município – assim como aos demais entes políticos previstos no art. 23, II, da CF/88 – tem o dever constitucional de suprir o trabalhador portador de deficiências do instrumental necessário para garantir a ele a igualdade de oportunidade para o acesso ao direito fundamental ao trabalho. Instrumental este que dependerá da extensão e da natureza da deficiência portada pelo trabalhador.

Independentemente do sentido das palavras constantes do inciso II, do art. 23, da CF/88, ressalte-se que este veicula quatro normas imperativas de conduta individualizadas para os Poderes Executivos de cada um dos entes federativos. As normas imperativas em questão, combinadas com o disposto no art. 7º, XXXI, da CF/88 dão a dimensão do dever constitucional de cada um dos entes federativos para com a pessoa portadora de deficiência. Qual a extensão do dever constitucional? A extensão será medida por um elemento externo às normas constitucionais citadas, a deficiência da pessoa trabalhadora. Dependendo do nível de deficiência, o dever constitucional do Município será apenas de capacitar o trabalhador ou esta aliada a instrumentos corretivos da deficiência física, sensorial ou mental.


4. Do descumprimento, pelo Município, do dever constitucional contido no art. 23, II, parte final, da CF/88.

Frente à omissão total ou parcial do Poder Executivo Municipal, em relação ao cumprimento dever constitucional de prestar as garantias necessárias para viabilizar a igualdade de oportunidade ao trabalhador portador de deficiência, o adimplemento pode ser exigido judicialmente?

Para a resposta à questão acima, num primeiro momento, há de ser feita a análise do ponto de vista deôntico. Esta decorre do já exposto e assegura a possibilidade de exigência de adimplemento do dever constitucional em questão – ressalvadas as considerações de cunho financeiro e da relação entre os poderes estatais, que serão levadas a efeito mais abaixo.

Em um segundo momento, há a análise de natureza ideológica, que não se constitui no objeto do presente trabalho, mas em relação à qual podem ser tecidas algumas considerações sem que se perca a direção do texto. Neste sentido, considera-se a classificação ontológica [17], [18] das Constituições formulada por Karl Loewenstein, que as diferencia em: normativas, nominais e semânticas.

A primeira espécie de Constituição é aquela que juridicamente válida [19] e efetivamente integrada na sociedade, o que a torna socialmente eficaz e tem força para submeter o exercício do poder às suas normas. A segunda espécie de Constituição é um texto prescritivo, mas desconforme à realidade do poder, não obstante, possui a força necessária para que tal desconformidade possa ser sanada no decorrer da construção da história. A terceira, a Constituição semântica, é aquela cujas normas prescritivas são submetidas às relações fáticas de poder, tal o nível de desconformidade existente entre o dever-ser nela prescrito e o ser, a realidade fática.

A CF/88 parece não se encaixar totalmente em qualquer delas, encontrando-se numa transição entre a espécie nominal e a espécie normativa. A tendência é de que seja classificada como normativa, uma vez que se percebe um movimento dos estudiosos e dos aplicadores do direito constitucional em dar maior efetividade aos textos constitucionais, especialmente aos direitos fundamentais.

Naturalmente, o problema da força normativa da Constituição também passa pelo problema do sentimento constitucional do povo brasileiro em relação ao respeito à imperatividade e obrigatoriedade da mesma. Segundo Loewenstein, em sua obra Teoria da Constituição,., há uma "alarmante indiferencia de la masa de los destinatários del poder frente a la constitución, actitud psicológica que puede conducir, finalmente, a uma atrofia de la conciencia constitucional" [20]. Conforme o citado autor, "Existen naturalmente grados de apego y de indiferencia de um pueblo a su constitución. Es evidente que una constitución necesita tiempo para fijarse en la conciencia de una nación. Cuanto más tiempo haya estado en vigor tanto más habrá aprendido la comunidad a vivir sus ventajas y desventajas" [21].

O povo brasileiro, aos poucos, tem descoberto a sua Constituição e os textos garantidores nela prescrito. Lentamente, os destinatários dos direitos fundamentais vão tomando consciência destes, bem como da vinculabilidade e eficácia que lhes são inerentes. Este evoluir, em direção a uma consciência constitucional mais sólida, vai conferindo legitimidade ao texto constitucional e, ao mesmo tempo, obrigando os detentores do Poder Constituído, dentre eles, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, a reler os textos constitucionais com vistas a dar maior efetividade jurídica e social aos mesmos.

Aliando-se a linha ascendente de consciência constitucional aos direitos fundamentais postos em linguagem prescritiva no Texto Constitucional de 1988, é possível vislumbrar, para o futuro, maior força normativa [22] do texto constitucional de 1988. Ou seja, há uma crescente possibilidade de as pessoas legitimadas para tanto exigir dos municípios brasileiros – e dos demais membros do Estado Federal – as garantias necessárias, às pessoas portadoras de deficiência, para o exercício dos direitos fundamentais, dentre eles o de ter igualdade de oportunidade para o acesso ao trabalho.


5. Da reserva do possível orçamentário

Não obstante, o exposto no item anterior, a imposição constitucional ao Poder Executivo municipal decorrente dos arts. 7º XXXI e 5º, §1°, combinados com o art. 23, II, parte final, da CF/88 pode sofrer algumas limitações, também de natureza constitucional.

É cediço que de todo direito caráter prestacional material decorre um custo financeiro - daí a existência das competências tributárias e das normas que regulam a atividade orçamentária. Muitos autores consideram utópico atribuir um dever ao Estado sem levar em consideração o correspondente custo a ele relativo. Por isso, a doutrina e a jurisprudência [23] têm admitido certo limite de natureza financeira ao direito fundamental às prestações materiais: a existência ou a falta de recursos financeiros.

Este limite fático é tratado pela teoria da reserva do possível e apresenta-se como um obstáculo para o desenvolvimento e a efetivação judicial dos direitos a prestações materiais. A tarefa de destinar recursos financeiros para uma ou outra prestação estatal é atribuída ordinariamente ao Poder Executivo de cada ente federativo. Todavia, segundo o Supremo Tribunal Federal, quando tal dever estiver prescrito no próprio texto constitucional e o poder ordinariamente competente não tiver tomado as providências necessárias para implementar as prestações havidas por obrigatórias, extraordinariamente, o Poder Judiciário poderá obrigar o Poder Executivo a agir conforme o Texto Maior. E este é exatamente o caso da garantia prescrita no art. 23, II, combinada com o direito constante do art. 7º, XXXI, da CF/88.

Quanto ao município possuir ou não os recursos necessários e suficientes para a prestação das garantias devidas ao trabalhador portador de deficiências - pressupondo este controle jurisdicional admitido pelo STF – não se admitirá a demissão pura e simples do dever constitucional, sob a alegação de falta de recursos. Para que este argumento tenha lastro e não caracterize a tentativa de legitimar a omissão estatal frente à vontade do constituinte, há de ser comprovado pelo município, em juízo, a real inexistência de recursos, bem como os motivos para a não alocação dos recursos orçamentários não vinculados à rubrica prescrita no texto constitucional como caráter de fundamentalidade.

Note-se que o assunto tratado neste tópico soma-se ao tratado no tópico anterior, para apontar um novo posicionamento da Corte Suprema Brasileira, em direção a conferir maior efetividade aos direitos fundamentais prestacionais, bem como a possibilidade de controle jurisdicional da ineficácia dos direitos fundamentais quando o dever de implementá-los decorrer diretamente do Texto Maior.


6. Da separação dos poderes

Outro ponto polêmico relativo à eficácia dos direitos fundamentais prestacionais, que se alia aos dois últimos tópicos tratados neste trabalho, é a possibilidade ou não de interferência do Poder Judiciário na função de outro poder, o Poder Executivo.

O princípio da separação de poderes está baseado nas lições de John Locke e de Montesquieu. A essência das lições deste último está em que o poder deve controlar o poder. Ele não fala que os poderes do Estado devam ser absolutamente separados, entre si, mas que para ser alcançado um Estado Moderado (contrário ao Estado Despótico) faz-se necessário um equilíbrio entre os poderes estatais [24]. Destas idéias nasceu a teoria americana dos freios e contrapesos.

A doutrina da separação dos poderes foi elaborada segundo a ótica liberalista. Após o período do estado liberal, a história revelou a forma do Estado intervencionista. As Constituições passaram a prescrever novos direitos, os chamados direitos de segunda e terceira gerações, prescrevendo ao Estado um novo conjunto de atribuições frente aos seus cidadãos. Por conseqüência, aliada à maior atuação administrativa e legislativa do Estado, estas novas Constituições (chamadas por Canotilho de "Constituições Dirigentes’) também criaram novo campo para o controle dos atos legislativos [25] e administrativos [26]; controle este feito, em regra, pelo Poder Judiciário. Quanto mais dirigente a Constituição (Canotilho), maior o campo para ação/omissão estatal e, portanto, maior o campo para o controle da validade do comportamento estatal frente ao texto constitucional.

Por adequadas, citam-se as lições de Andréas Joachim Krell: "A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais." [27]

No mesmo sentido o entendimento do Ministro Celso de Melo em decisão monocrática proferida no ADFP n. 45/04, (no contexto ele refere-se ao cabimento da via judicial eleita para fins de controle de políticas públicas) in verbis:

"(...) não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:

"DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPOR-TAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.  - O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

.......................................................

- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental." (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)"

Em função do exposto neste item, bem como no anterior, é necessário concluir com o Supremo Tribunal Federal que, quando o dever de fazer ou não fazer estiver prescrito no próprio texto constitucional e o poder ordinariamente competente tiver agido, ou, não tiver tomado as providencias necessárias para implementar as prestações havidas por obrigatórias, o Poder Judiciário poderá controlar o agir ou a omissão e obrigar o Poder Executivo a agir conforme o Texto Maior, sem que isso configure-se como interferência indevida de um Poder em outro.


7. Conclusões

1. A CF/88 prescreve como direito fundamental da pessoa portadora de deficiência a liberdade ao trabalho e a igualdade de oportunidade formal ao trabalho (art. 1º, III, IV, art. 5º, caput, art. 6º e art. 7º, XXI).

2. Os direitos supra têm como garantia a superação das dificuldades impostas faticamente pela deficiência que tal pessoa trabalhadora possui.

3. O art. 23, II, parte final, impõe ao Município, de modo autônomo em relação aos demais entes políticos federativos, o dever constitucional de prestar as providências necessárias para o fim de garantir os direitos fundamentais referidos no item 1.

4. O dever constitucional em questão decorre da relação condicional que os direitos fundamentais e as providências materiais possuem entre si.

5. A dimensão do dever de prestar tem relação direta com a natureza da deficiência de cada pessoa, condicionado somente pela inexistência comprovada de recursos financeiros e a impossibilidade constitucional de redimensionamento de verbas orçamentárias em função de vinculação de recursos, pelo Texto Maior, a outras prestações estatais.


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Notas

  1. Entenda-se como tal a Biologia, a Psicologia e a Medicina.
  2. BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 103 – 104. O autor não desconhece a controvérsia existente sobre a utilização da noção de direito subjetivo, neste campo. Todavia, considera que "inexiste qualquer fundamento doutrinário que impeça a aplicação plena dos elementos e atributos do conceito clássico de direitos subjetivos ao Direito Constitucional", p. 104.
  3. Não obstante a grande divergência terminológica referida à pessoa deficiente, adotamos a presente, uma vez que a mesma consta do Texto Constitucional de 1988.
  4. ARAUJO, Luiz Alberto David et all. Curso de Direito Constitucional, 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 272.
  5. Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, p. 151.
  6. Idem, ibdem, p. 151.
  7. Idem, ibdem, p. 1121.
  8. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, p. 274.
  9. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, p. 532.
  10. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:(...) XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; (...)
  11. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 47.
  12. Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006.
  13. Pinçou-se apenas este objetivo, dentre os elencados nos demais incisos do art. 203, da CF/88, em função de sua referência direta ao objeto do presente trabalho.
  14. Ressalte-se que, para fins de criação de fontes de custeio diversas das prescritas no art. 195, não se pode perder de vista o § 4° do mesmo artigo, que faz remissão ao art. 154, I, da CF/88, cujo texto atribui a competência tributária residual à União Federal. Assim, toda nova fonte de custeio especificamente destinada para as ações de assistência social, primeiramente, deverá ter a natureza jurídica de contribuição social (sob pena de incidência do art. 167, IV, 1ª parte, da CF/88) e ainda, deverá ser criada pela União. Estas diretrizes, todavia, não afasta a possibilidade de utilização, pelos vários entes federativos, de recurso orçamentário de natureza diversa e sem destinação legal específica para as ações de assistência social, dentre elas a de habilitação e reabilitação de pessoa portadora de deficiência.
  15. Ressalte-se, que o direito à saúde também se encontra sob a estrutura da seguridade social e prescrita no art. 196, da CF/88. Na decisão prolatada nos autos do AgRE 271.286-8/RS, o STF entendeu que o art. 196 da CF/88 tem aplicabilidade imediata, pois obriga o Poder Público a tomar as providências necessárias para que seja plenamente viabilizado o direito à saúde. No mesmo sentido, a decisão proferida no AI 238.328/RS, o STF entendeu que o acórdão agravado pelo Município estava em consonância com o art. 196, da CF/88, uma vez que este impõe responsabilidade ao Município para as prestações à saúde. Na decisão em tela, entendeu-se que o termo Estado constante do art. 196 abrange todos os entes federados, inclusive o Município. O reconhecimento do direito subjetivo à saúde supõe afirmar que as pessoas podem exigir o reconhecimento judicial do mesmo, perante o Poder Judiciário.
  16. Indaga-se: por meio de políticas públicas – assim entendidas como um "padrão de conduta (standard) queassinalauma meta a alcançar" (cfr.BUCCI, Maria Paulo Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 253) ou a qualquer tempo e de modo não condicionado à formulação daquelas? Parece acertado entender que, imposto o dever de cumprimento pelo Estado, a ele cabe identificar a melhor e mais racional forma de prestação do referido dever. Certamente que, por meio de políticas públicas, o Estado planificará o atendimento e alocará os recursos de maneira racional. Todavia, esta prestação coletiva, se não implementada pelo Poder Público, não pode ser impeditivo para a exigência individual do direito à prestação, perante o Poder Judiciário. O mesmo raciocínio aplica-se às garantias para as pessoas portadoras de deficiências, o Estado – aí incluído o município – tem o dever de prestá-la. A forma por meio da qual adimplirá o dever não condiciona o exercício do direito por seu titular. Certamente que a melhor forma é a formulação de um programa de ação que planifique o agir, racionalize a aplicação de recursos humanos e materiais, diminua custos, etc. Mas, a ausência deste programa de ação estatal não pode impedir que o indivíduo bata às portas do Poder Judiciário frente a uma situação de inadimplemento do dever constitucional.

  17. A dependência do exercício do direito fundamental à igualdade de oportunidade para o acesso ao trabalho, pelo trabalhador portador de deficiências, às garantias que deverão ser viabilizadas pelo Município e demais entes federativos somente reafirma o contido na Declaração de Viena (1993), em seu parágrafo quinto, in verbis: "5. Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais." (destaques nossos). Sobre a interdependência dos direitos humanos de liberdade e de igualdade, consultar: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000.
  18. Note-se que Loeweinstein alerta que: "La clasificación de una constitución como normativa, nominal o semántica no podrá ser hecha a partir del texto (…)se hace necesario en cada caso adentrarse en la realidad del proceso del poder" (LOEWENSTEIN, Kart. Teoría de la Constitución. p. 219)
  19. Karl Loewenstein considera que "el criterio del analisis ontológico radica en la concordancia de las normas constitucionales con la realidad del proceso del poder. Su punto de partida es la tesis de que una constitución escrita no funciona por sí misma una vez que haya sido adoptada por el pueblo, sino que una constitución es lo que los detentadores y destinatarios del poder hacen de ella en la práctica" ( Idem, p.217)
  20. Particularmente entendemos que o caso seria de eficácia e não de validade, mas este último foi o critério utilizado pelo autor, no texto.
  21. LOEWENSTEIN, Kart. Teoría de la Constitución, p. 223.
  22. Ibdem, p. 227.
  23. Segundo Konrad Hesse, "A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada presente ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas. Mas, - esse aspecto afigura-se decisivo – a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições como elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que um simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente das forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social" ( pp. 14-5). E continua o autor: "A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia" (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die Normative Kraft der Verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed. 1991, p. 16).
  24. No acórdão do RE 198265 constam as seguintes considerações do Ministro Celso de Mello: "O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional."
  25. "A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado."(...)

    "O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas - impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

    "Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais - que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Poder Constituinte e Poder Popular, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição."

    "Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante."

    Ressalte-se que, especialmente tratando de direitos fundamentais relativos à saúde, o STF, em ações individuais, faz pouca aplicação da teoria da reserva do possível. Na Petição 1246, o Ministro Celso de Mello assevera: "Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida". No RE 342413/ PR, a Relatora, Ministra Ellen Gracie assevera que "obstáculo de ordem burocrática ou orçamentária (...) não podem ser entraves ao cumprimento constitucional que garante o direito à vida". No mesmo sentido, a decisão proferida no RE 195192/ RS, na qual o Ministro Marco Aurélio considera que "problemas orçamentários não podem obstaculizar o implemento do que previsto constitucionalmente". No AI 537237/PE, o Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu que "a falta de prévia dotação orçamentária não serve como justificativa para inviabilizar o direito".

    Na ADPF n. 45, não obstante ter sido considerada prejudicada por perda do objeto, o direito à saúde foi afirmado, mas o Ministro Celso de Mello fez uma análise sobre a "reserva do possível", a limitação de recursos e dos custos dos direitos, bem como o controle judicial sempre condicionado ao inadimplemento do direito. Sobre a forma de decidir e fundamentar as decisões relativas a direitos fundamentais de educação e saúde, consultar: LIANG WANG, Daniel Wei. Escasses de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In site: http://repositories.cdlib.or/bple/alacde/050207-16, consultado em 21/11/08.

  26. Montesquieu. O espírito das leis. Apresentação de Renato Janine Ribeiro; tradução de Cristina Murachco. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 196, 170, 131, 75, 39.
  27. Cfr. PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2ª ed., São Paulo: RT, 2003.
  28. MOUSINHO, Ileana Neiva. Efetivação dos direitos fundamentais mediante ação civil pública para implementar políticas públicas. In O MPT como promotor dos direitos fundamentais. Coord. Sebastião Caixeta el all. São Paulo: LTr, 2006.
  29. KRELL, Andréas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed. 2002, p. 22-23.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Dâmares. O dever constitucional do Município em garantir, ao trabalhador portador de deficiência, as prestações materiais necessárias para exercício do direito de igual oportunidade no mercado de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3084, 11 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20577. Acesso em: 19 abr. 2024.