Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/20819
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Da possibilidade jurídica da lavratura de escritura pública de estabelecimento de diretivas antecipadas de vontade

Da possibilidade jurídica da lavratura de escritura pública de estabelecimento de diretivas antecipadas de vontade

|

Publicado em . Elaborado em .

O testamento vital é o documento em que a pessoa determina o tratamento a que deseja ser submetida caso se encontre em estágio terminal de doença incurável, ou simplesmente, que não deseja ser submetida a nenhum tratamento que evite a sua morte caso esse processo já tenha se iniciado.

1- FUNDAMENTO LEGAL

O presente artigo tem por finalidade defender a possibilidade dos tabeliães procederem à lavratura de Escritura Pública de Estabelecimento de Diretivas Antecipadas de Vontade, também denominada de Testamento Vital, entendida como o documento em que a pessoa determina o tratamento a que deseja ser submetida caso se encontre em estágio terminal de doença incurável, ou simplesmente, que não deseja ser submetida a nenhum tratamento que evite a sua morte caso esse processo já tenha se iniciado.

Nos Estados Unidos esse documento tem valor legal, tendo surgido com o Natural Death Act, no Estado da Califórnia em 1970. Exige-se que seja assinado por pessoa maior e capaz, na presença de duas testemunhas, sendo que a produção de seus efeitos se inicia após 14 dias da sua lavratura. É revogável a qualquer tempo, e possui uma validade limitada no tempo (cerca de 5 anos), devendo o estado terminal ser atestado por 2 médicos. (BAUDOUIN, J. l., BLONDEAU, 1993, p. 93).

No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, não há legislação expressa nesse sentido, podendo, no entanto, a possibilidade jurídica da lavratura dessa escritura ser respaldada nos artigos 1º, inciso III e 5º inciso III Constituição Federal, bem como no artigo 3º da Lei nº. 9434/97 e no Código de Ética Médica.

A Constituição Federal, no seu artigo 1º, inciso III trata do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, nas palavras de Roxana Cardoso Brasileiro Borges, "liga-se à possibilidade de a pessoa conduzir sua vida e realizar sua personalidade conforme sua própria consciência, desde que não sejam afetados direitos de terceiros. Esse poder de autonomia também alcança os momentos finais da vida da pessoa". (BORGES, 2005).

Assim, possui a pessoa o direito de ter a sua integridade física e psicológica respeitada, a garantia da sua integridade e identidade manifestadas como a exteriorização de sua personalidade, o que implica em não ser submetida a um tratamento médico que evite artificialmente um processo de morte já iniciado, de modo que a desumanize, condenando-a a um estado vegetativo.

Tal assertiva encontra respaldo nos direitos a garantias fundamentais, já que a Constituição Federal, no seu artigo 5º inciso III estabelece que "ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante".

Os avanços da medicina devem ser entendidos de modo a proporcionar uma melhoria das condições de vida e de saúde do paciente, e não como um fim em si mesmo. A tecnologia não se justifica quando é utilizada apenas para prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano, também entendida como o direito a ter uma morte digna.

Jussara Meirelles e Eduardo Didonet Teixeira ensinam que "é possível entender que o acharnement subverte o direito à vida e, com certeza, fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como o próprio direito à vida. Se a condenação do paciente é certa, se a morte é inevitável, está sendo protegida a vida? Não, o que há é postergação da morte com sofrimento e indignidade [...] Se vida e morte são indissociáveis, e sendo esta última um dos mais elevados momentos da vida, não caberá ao ser humano dispor sobre ela, assim como dispõe sobre a sua vida?" (MEIRELLES, Jussara, TEIXEIRA, Eduardo Didonet, 2002, p. 371).

O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931, de 17 de Setembro de 2009), no Capítulo I, inciso VI , determina que "o médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade".

Nessa seara, prolongar indefinidamente o funcionamento dos órgãos vitais de uma pessoa, sem que haja possibilidade de cura ou melhora no seu quadro clínico, com o fim apenas de evitar o inevitável, impedindo o processo de morte natural, é ferir a sua dignidade enquanto ser humano.

Cumpre ressaltar que o que se defende aqui é o processo de ortotanásia, o qual é atípico perante o nosso Código Penal, e não a eutanásia.

Com efeito, a ortotanásia consiste no processo de morte natural, ou seja, ao invés de se prolongar artificialmente o processo de morte, o médico permite que este siga o seu curso natural. Diferentemente da eutanásia, em que há a antecipação da morte de pessoa que sofre de patologia incurável, a fim de abreviar seu sofrimento.

Por oportuno, cumpre ressaltar que em 1984, com a Reforma da Parte Geral do Código Penal, havia também a proposta de reforma da Parte Especial, a qual não ocorreu. E o Anteprojeto da Parte Especial trazia a previsão expressa da ortotanásia, cunhada nos seguintes termos: "Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se previamente atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão". (121, § 4º).

A Lei 9434/97, no seu artigo 3º estabelece que "a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina".

Assim, poderia ser aplicada por analogia tal dispositivo legal à Escritura Pública de Estabelecimento de Diretivas Antecipadas de Vontade, sendo aplicada a vontade ali esposada pelo outorgante caso 2 médicos atestem a morte encefálica de acordo com os critérios clínicos e tecnológicos definidos pelo Conselho Federal de Medicina.


2- MINUTA DA ESCRITURA PÚBLICA DE DETERMINAÇÃO DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

ESCRITURA PÚBLICA DE DETERMINAÇÃO DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE QUE FAZ: _________ COMO ADIANTE SE SEGUE:

SAIBAM ..... compareceu em cartório, perante mim, Tabelião de Notas, o Sr _______(qualifica). O presente, tendo se identificado como o próprio, através dos documentos referidos, por mim, Tabelião de Notas, pelas duas testemunhas que exigiu presenciassem este ato, do que dou fé. Aí, perante as testemunhas, por ele outorgante me foi dito o seguinte: A) Que tem pleno conhecimento da possibilidade legal de fazer um testamento, e que tal documento possui efeito post-mortem, valendo a ultima vontade ali manifestada, somente após a morte do outorgante testador. B) Todavia, o outorgante tem igualmente conhecimento, que se qualquer pessoa vier a ser acometida de enfermidade incurável, e que entre em estado de vida vegetativa, não mais lhe sendo possível o uso de suas faculdades mentais e intelectuais, atingida que tenha sido, pelo Mal de Alzheimer, pelo Mal de Parkinson ou outra enfermidade, ou se tal estado seja decorrente de acidente de qualquer natureza, o outorgante tem testemunhado a situação desesperadora que a família passa a vivenciar. C) O outorgante, assim, como medida de cautela, e no irrefutável desejo de não se tornar causa de dificuldades de toda ordem e sofrimentos para seus familiares, enfim, para, involuntariamente vir a se tornar um peso, um estorvo para seus familiares, quer e determina, que em ocorrendo qualquer situação, por qualquer causa ou motivo, que impossibilite o outorgante de exercer plenamente suas atividades físicas e o uso pleno de suas faculdades mentais e intelectuais, quer e determina o seguinte: 1 – Que muito embora acometido do Mal de Parkinson, até o presente momento continua vivendo normalmente, exercendo plenamente suas atividades laborativas e outras atividades como ___________, dirigindo veículos automotores, locomovendo-se normalmente sem qualquer ajuda. 2 – Todavia, como a referida enfermidade é incurável, progressiva e degenerativa, poderá vir a ocorrer no futuro, o comprometimento de suas condições físicas, mentais e intelectuais, seja em razão da enfermidade existente, seja ocasionada por outras, ou por acidente de qualquer natureza que venha torná-lo dependente da ajuda e de cuidados imprescindíveis à sua condição, inclusive podendo ficar impossibilitado de se expressar e manifestar sua vontade, vem pela presente, expressar sua vontade e estabelecer as diretrizes para o caso de ocorrer tal situação, determinando o seguinte: 2.1 – Que deverá ser internado em uma casa dedicada ao atendimento de idosos/enfermos, mas a mais simples possível, cujos custos não venham afetar de maneira nenhuma a vida financeira de sua família, para que ele outorgante não se torne em um peso para a mesma. 2.2 – Se alguma outra enfermidade o acometer, e houver uma progressividade acentuada, tornando-se irreversível e o outorgante chegar a um estado terminal e de inconsciência, vivendo vegetativamente, quer e determina que se pratique a ortotanásia, entendida como morte no seu tempo devido, sem prolongamento da vida de forma indigna e artificial e que certamente acarretará somente em sofrimento para o outorgante/doente e para a família. Sendo, portanto a ortotanásia, a supressão do tratamento médico invasivo ou desproporcional ao benefício que possa trazer em caso de processo de morte irreversível e sem perspectiva de cura, outorgante opta assim pela morte sem sofrimento e com dignidade. 3 – Para dar cumprimento ás determinações contidas neste instrumento, que pode ser denominado também de Testamento Vital, o outorgante nomeia em primeiro lugar, seu filho ________________, portador da Cédula de Identidade RG nº. _______, e inscrito no CPF sob nº. ____________, e na falta e/ou impossibilidade deste, nomeia seu genro _________, portador da Cédula de Identidade RG nº. _______, e inscrito no CPF sob nº. ____________, aos quais confia essa tarefa desde já lhes agradece penhoradamente, ficando certo que as determinações contidas neste instrumento, deverão prevalecer sobre quaisquer outras que possam ser sugeridas por familiares ou médicos. E, de como assim disse me pediu, lavrei-lhe esta Escritura _________.


3- REFERÊNCIAS:

BAUDOUIN, Jean-Louis, BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press Universitaires de France, 1993.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 871, 21 nov. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/7571>. Acesso em: 18 set. 2011.

MEIRELLES, Jussara, TEIXEIRA, Eduardo Didonet. Consentimento livre, dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente. In: RAMOS, Carmem Lúcia Nogueira et al (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZONI, Oscar; PINTO, Juliana Mezzaroba Tomazoni de Almeida. Da possibilidade jurídica da lavratura de escritura pública de estabelecimento de diretivas antecipadas de vontade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3115, 11 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20819. Acesso em: 16 abr. 2024.