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A taxa de bombeiros e a chama da Constituição

A taxa de bombeiros e a chama da Constituição

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O que se verifica na generalidade dos Municípios é que taxas foram criadas para o custeio do próprio serviço público prestado pelos bombeiros, estando em geral atreladas à cobrança de IPTU, o que caracteriza inequívoca bitributação.

 

 

Não é segredo para ninguém que o Brasil é reconhecido no cenário internacional por ter uma das maiores cargas tributárias do mundo. Com efeito, segundo dados divulgados pela Folha de São Paulo, o Brasil supera cargas tributárias de países desenvolvidos como Japão, Estados Unidos, Suíça e Canadá.[1]

É cediço, de outra banda, que a despeito da quase insuportável carga tributária, que conduz em grande parte à informalidade e a sonegação, os serviços públicos oferecidos em contrapartida são péssimos, sendo o brasileiro o povo que obtém o pior retorno pelos tributos que paga, segundo se infere de dados divulgados pelo Instituto Nacional de Planejamento Tributário.[2]

Nesse cenário, o sistema constitucional tributário, desenhado em 1988, a despeito de prever uma multiplicidade de espécies tributárias, trouxe garantias mínimas ao contribuinte, voltadas à sua proteção contra a sanha arrecadatória do Estado.

As garantias referidas estão relacionadas com a previsão de inúmeros princípios, como os da legalidade, anterioridade, segurança tributária, princípio federativo, vedação a bitributação entre outros.

Sem prejuízo, inúmeras espécies tributárias foram criadas por diferentes entes da Federação ao longo dos anos e por vezes sob o olhar complacente dos nossos Tribunais, que as referendaram a despeito da violação a inúmeros preceitos de índole constitucional.

Paradigmático na violação a preceitos constitucionais foi a  criação de taxa de serviço público de bombeiro.

Com efeito, aludido serviço, a despeito de atingir um número indeterminado de pessoas, sendo classificados pela doutrina como serviço universal, passou a ser em inúmeras unidades federativas custeado por intermédio de taxas.

Cumpre sublinhar, nada obstante, que consoante determina o art.145, inciso II, do Texto Magno, apenas serviços públicos específicos e divisíveis poderiam ser custeados por intermédio de taxas, de modo que serviços gerais deveriam ser custeados pelos distintos e inúmeros impostos já pagos pelos cidadãos brasileiros.

Nesse sentido, HELY LOPES MEIRELES, ao se referir aos serviços públicos gerais ou uti universi, já teve oportunidade de assinalar que por satisfazerem indiscriminadamente a população, sendo indivisíveis, não são mensuráveis em sua utilização, motivo pelo qual devem ser custeados por meio de impostos e não por taxas, cuja remuneração é mensurável e proporcional ao uso individual do serviço.[3]

A despeito das lições doutrinárias repetidas em todos os manuais disponíveis no mercado e dos termos claros e unívocos da Constituição Federal, os Tribunais brasileiros optaram por legitimar a referida taxa, e o que é pior com hipótese de incidência própria de imposto territorial urbano.

Destarte, no acórdão paradigma no âmbito do Supremo Tribunal Federal relatado pelo Min. Ilmar Galvão RE nº 206.77/SP se decidiu pela constitucionalidade das denominadas taxas de bombeiros, que estariam adstritas a supostos serviços específicos e divisíveis de prevenção e extinção de incêndios.

Cumpre registrar, nada obstante, que referidas taxas, que se reproduziram em inúmeros Municípios, não estão normalmente vinculadas a serviços específicos e divisíveis de inspeção de estabelecimentos comerciais e industriais com a consequente expedição de alvará para funcionamento, serviços normalmente realizados pelo corpo de bombeiros.

Em absoluto, o que se verifica na generalidade dos Municípios é que as aludidas taxas foram criadas para o custeio do próprio serviço público prestado pelos bombeiros, estando em geral atreladas à cobrança de IPTU, o que caracteriza inequívoca bitributação.

Não há dúvidas, em nossa ótica, que o referido serviço público é prestado à generalidade das pessoas, inclusive àquelas que não são proprietárias de imóveis e desse modo não pagam o imposto territorial urbano ou a aludida taxa, mas ainda assim usufruem dos serviços prestados pelo corpo de bombeiros, como, e.g., por intermédio da extinção de um incêndio em uma via pública ou salvamento aquático de um turista em uma cidade litorânea.

De outra banda, é impossível mensurar a utilização específica de cada contribuinte pelo serviço prestado pelos bombeiros, sendo certo que um cidadão pode até passar toda a vida sem se valer desse serviço, mas mesmo assim ter que despender o valor da taxa em virtude de inúmeras leis municipais criadas.

É certo, nada obstante, que o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a constitucionalidade da referida exação, como se vê do RE 550.262-7, de relatoria do Ministro RICARDO LEWANDOSWKI:

“STF - A Corte possui entendimento pacífico pela constitucionalidade de taxas cobradas, geralmente por municípios, em razão de serviços de prevenção, combate ou extinção de incêndios, uma vez que instituídas em contraprestação a serviços essenciais, específicos e divisíveis, a exemplo do julgamento do RE 206.777/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão.

No caso concreto, o rateio do custo total dos serviços leva em conta a área do imóvel e a carga de incêndio específica (potencial calorífico) para cada tipo de imóvel, o que decerto, guarda relação mais do que razoável com os serviços custeados pela taxa em questão”

A se consolidar o aludido entendimento, qualquer serviço público poderá eventualmente ser custeado por taxa, bastando um pouco de criatividade ao legislador para vincular alguma especificidade a serviços como os prestado pela polícia militar ou serviços de saúde e educação, por exemplo.

Destarte, ao serviço prestado pela polícia militar se poderia vincular talvez a especificidade de ser morador em um imóvel com características tais e que tenham ronda de viaturas X vezes ao dia. Aos serviços de educação, poderia se vincular a especificidade de ser genitor de crianças em idade escolar, ainda que essas frequentem estabelecimentos privados.

Daí se vê que a maleabilidade conferida aos conceitos efetivamente pode conduzir a qualquer caminho desejado pelo intérprete e que a Constituição, como asseverava Ferdinand Lassale, quando não afinada com os fatores reais de poder, não passa mesmo de uma folha de papel.


Notas

[1] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/792959-carga-tributaria-no-brasil-e-maior-do-que-nos-eua-dinamarca-lidera.shtml, acesso em 24/02/2012.

[2] http://www.barrazine.com.br/2011/06/brasil-tem-a-pior-carga-tributaria-do-mundo-em-custo-beneficio/, acesso em 24/02/2012.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 29ª Edição, Editora Malheiros, p.323.

 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Leonardo Bellini de. A taxa de bombeiros e a chama da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3170, 6 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21228. Acesso em: 19 abr. 2024.