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O princípio da insignificância e o recente entendimento dos tribunais superiores

O princípio da insignificância e o recente entendimento dos tribunais superiores

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Analisam-se recentes entendimentos do STF e STJ em relação ao princípio da insignificância.

O princípio da insignificância ou da bagatela consiste num postulado orientador e limitador das ciências criminais, derivado de um gigantesco tentáculo que regula todo o sistema penal: o princípio fundamental da dignidade humana.

O que a insignificância penal pugna é pela atipicidade (isto é, não haverá crime) de certas condutas que, embora abstratamente sejam consideradas crimes (tipicidade formal), sequer chegam a violar no caso concreto o bem jurídico tutelado pela norma, como, por exemplo, um cidadão que pratica furto (sem violência física ou grave ameaça) de um boné avaliado em R$ 25,00.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já chegou a sustentar que o postulado da insignificância é importante no sentido da descarcerização e do descongestionamento da justiça penal, estando inserido, assim, em um relevante quadro de medida de política criminal. Segundo o STF, ao Direito Penal irá ser concedida uma visão mais humanitária e que, caso seja bem aplicado o princípio, não chega a estimular a ideia da impunidade (vide: STF, Habeas Corpus nº 104787/RJ).

Nesse sentido, apenas exemplificando e trazendo julgados mais recentes (todos de 2012, 2011 ou 2010), o Supremo Tribunal Federal reconhece como insignificante (não há crime) os seguintes casos:

·                     Porte ilegal de 0,6 gramas de entorpecente vulgarmente denominado “maconha” (Habeas Corpus nº 110475/SC).

·                     Furto tentado de 22 objetos de um supermercado (8 óleos bronzeadores da marca Sundown, 6 bloqueadores solares da marca Sundown, 2 protetores solares, 1 bermuda, 1 camisa, 1 carteira porta-cédula contendo R$ 9,00, 1 telefone celular da marca Samsung, 1 óculos e 1 bolsa), mas considerando que os óculos, a bolsa, o celular e o porta-moedas, de acordo com a ação penal, já pertenciam à acusada (HC 109.277/SE).

·                     Furto tentado de 2 peças de roupa (uma jaqueta jeans e uma blusa feminina), avaliadas em R$ 139,80 (HC 110.004/RS).

·                     Furto de uma caixa de bombons da marca “Bis”, por policial militar fardado e no seu horário de serviço (HC 108.373/MG).

·                     Furto de 2 gaiolas e 4 pássaros de espécies não protegidas, cujo valor corresponde a R$ 29,00 (HC 107184/RS).

·                     Furto tentado de um aparelho de telefone celular, o qual não ultrapassa o valor de R$ 200,00 (HC 105974/RS).

·                     Furto de 2 vales-transportes no valor de R$ 10,00 (Medida liminar em HC 106214/RS).

·                     Furto de roupas usadas, avaliadas em R$ 55,00 (Medida cautelar no HC 106217/RS).

·                     Prática delituosa de desencapar fio e, com isso, proceder à ligação clandestina, sendo o prejuízo total inferior a R$ 100,00 (HC 98078/RS).

·                     Furto de fios de cobre de propriedade particular, no valor total de R$ 14,80 (HC 104070/SP).

·                     Furto simples de 5 galinhas e 2 sacos de ração (Recurso em HC 105619/RS).

·                     Operação de rádio comunitária sem autorização, comprovado que o serviço era de baixa potência e sem capacidade de causar interferência relevante (HC 104530/RS).

·                     Furto de 9 telhas de amianto (HC 106679/AC).

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, manifestou recentemente que os seguintes casos concretos foram considerados insignificantes, sendo, portanto, atípicos (ou seja, não houve crime):

·                     Furto qualificado tentado de uma lata de tinta avaliada em R$ 130,00 (AgRg no REsp 1282906/SP).

·                     Furto de um telefone celular avaliado em R$ 30,00 (HC 223888/MG).

·                     Furto e receptação de um botijão de gás, bem avaliado em R$ 35,00 (HC 223832/MG).

·                     Furto de 3 camisetas de uma loja, avaliadas no total de R$ 30,00 e posteriormente restituídas (HC 222970/MS).

·                     Furto de R$ 50,00 da bolsa da vítima, quantia esta que foi posteriormente restituída (HC 207626/RS).

·                     Furto tentado qualificado (com rompimento do obstáculo e mediante concurso de agentes) de dois botijões de gás de uma construção, avaliados em R$ 64,00, mesmo ante às condições pessoais desfavoráveis dos agentes (HC 191524/SP).

·                     Furto simples de 10kg de fio de cobre, no valor total de R$ 110,10, não tendo afetado de forma expressiva o patrimônio da vítima (HC 190008/MG).

·                     Furto qualificado de 2 pés de tênis (com numeração diversa), avaliados em R$ 30,00 (HC 182323/SP).

·                     Furto de uma escada de ferro avaliada em R$ 78,90 (HC 181715/RS).

·                     Furto de um aparelho de rádio portátil (AgRg no HC 181389/MG).

·                     Furto tentado de 4 peças de picanha de um supermercado, avaliadas no total de R$ 132,15, mesmo ante à reincidência e maus antecedentes do agente (HC 175812/MG).

·                     Furto qualificado de um par de sandálias, no valor de R$ 49,90, ainda que o agente seja reincidente (Embargos de Declaração no HC 170092/SP).

·                     Furto de 2 caixas de chicletes (Trident), valoradas em R$ 25,00 (HC 159976/SP).

·                     Apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) onde o valor da contribuição não recolhida é de R$ 8.219,07, ou seja, débito inferior a R$ 10.000,00 (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1205495/RS).

·                     Furto tentado de 1 litro de licor, 2 secadores portáteis, 2 óleos de amêndoas e 2 antissépticos bucais de um supermercado (HC 149318/SP).

·                     Furto de uma roda de carrinho de mão e de um brinquedo, valorado à época em R$ 23,00 (HC 119531/MG).

Desse modo, fica a indagação: por que tantos fatos banais, mesquinhos, insignificantes pelo menos do ponto de vista de reprimenda penal continuam sendo levados às mais altas instâncias do Poder Judiciário brasileiro? O jurista Luiz Flávio Gomes dá a resposta:

[...] Por vários motivos. Mas o principal é o seguinte: o princípio da insignificância não está previsto expressamente na lei brasileira (salvo no Código Penal militar). E ainda existem muitos juízes que são extremamente legalistas. Nossas faculdades, em regra, apegadas que são à velha metodologia legalista, só ensinam os códigos e as leis. Em outras palavras, ensinam um modelo de Direito totalmente ultrapassado. O juiz (salvo exceções) sai dessas faculdades com a cabeça totalmente positivista-legalista. O formalismo, o comodismo, o ensino jurídico no Brasil, a metodologia dos concursos públicos para a magistratura, tudo isso vem contribuindo decisivamente para a formação do juiz. Quando lhe aparece um caso de subtração de um queijo, de um frango, de biscoitos, de um xampu, de rolos de papel higiênico etc., ele tende a seguir a jurisprudência dos tribunais locais e reconhecer o crime de furto, aplicando a pena de reclusão de um a quatro anos (trecho extraído do artigo: Insignificância: é preciso ir ao STF para vê-lo reconhecido, Jus Navigandi, 11 maio de 2009).

Vê-se, com isso, que a magistratura brasileira deve estar mais atenta às inovações do Direito Penal, assumindo seu verdadeiro papel frente à sociedade, sua responsabilidade para com os problemas que ocorrem no cenário nacional, como a massificação dos aprisionamentos, muitos dos quais ligados exatamente a furtos de bagatela, resolvidos facilmente em outras searas do Direito.

Apenas para se ter uma ideia, segundo dados de junho de 2011 do Ministério da Justiça (Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN), de 473.994 pessoas presas que tenham cometido crimes tentados ou consumados no país, 233.926 estavam incluídas no grupo que cometeram crimes contra o patrimônio. Desses, 34.794 cometeram o delito de furto simples (art. 155 do Código Penal – “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos, e multa”).

Ou seja, não é pretender incentivar a criminalidade – como equivocadamente poderia se pensar – que se busca enaltecer a importância do princípio nos dias atuais, mas sim melhor analisá-lo como fruto de uma visão mais humanitária e moderna do sistema penal, evitando o processamento de casos que relatam meras banalidades e que poderiam, caso se pense no pior, aprisionar indivíduos não merecedores de enfrentar a barbaridade das masmorras carcerárias brasileiras, verdadeiros centros de degeneração do ser humano. 


Autor

  • Vitor Gonçalves Machado

    Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Vitor Gonçalves. O princípio da insignificância e o recente entendimento dos tribunais superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3215, 20 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21558. Acesso em: 26 abr. 2024.