Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2168
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais.

Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro

Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais. Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

Sumário: 1. Introdução: o discurso da crise do Estado em face da Constituição de 88. 2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como uma expressão política do modelo de reforma do Estado brasileiro. 3. Diretrizes para uma mudança na atuação estatal: o Estado dividido em setores. 4. A lógica da transferência à sociedade organizada de setores e atividades significativas: uma questão de eficiência? 5. Organizações Sociais: uma proposta de "publicização". 6. Conclusão: Reforma do Estado como caminho para uma reformulação das relações Estado-sociedade: as Organizações Sociais como instrumento e risco desse processo de consolidação da cidadania. Bibliografia.


1. Introdução: O discurso da crise do estado em face da constituição de 88

Contra a memória do período ditatorial, em 1988 surgia uma nova Constituição mais generosa em liberdades civis, em direitos dos cidadãos e em garantias sociais, cujo objetivo no médio prazo era consolidar a transição do Estado brasileiro, então ditatorial e intervencionista, rumo a um modelo de Estado Democrático de Direito.

Contudo, para além da conquista formal de uma "Constituição Cidadã", ficara o desafio do efetivo implemento da maior parte dos ganhos sociais por ela assegurados como direitos fundamentais. Como poderia o Estado brasileiro, no início dos anos 90, ter um horizonte de investimento em todas as áreas demandadas, se economicamente envolto em questões de instabilidade monetária e déficits públicos paralisadores, e se administrativamente abandonado seja a interesses clientelistas, seja a trâmites onerosa e excessivamente burocráticos?

Em face de um contexto de precário planejamento institucional de governos cada vez mais reféns de suas dívidas políticas e financeiras, restaria, equivocadamente, a culpa das incapacidades em cumprir a Constituição Federal para ela mesma.

A Constituição de 88, sob esse âmbito de análise, passou a ser tida como uma verdadeira fonte de mais e mais burocracia e também de mais e mais ineficiência, assim como passou a figurar como causa crítica, independentemente da avaliação singularizada de governos passados e presentes, do acirramento de várias frentes de endividamento estatal (funcionalismo público, crescimento explosivo do número de municípios, maior controle por processos e não por resultados etc).

Ora, segundo essa lógica e em unissonância com correntes econômicas (diz-se do ismo "neoliberal") pela redução da intervenção e do tamanho do Estado, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) lançou as bases do projeto governamental brasileiro de reestruturação do aparato estatal, não só enquanto "resposta à crise generalizada do Estado", mas também, segundo o discurso político vigente, enquanto "forma de defendê-lo como ‘res publica’ ", o que determinou, segundo o próprio Plano Diretor, o caráter "imperativo" da reforma nos anos 90. (PDRAE, 1995:19)

Perante o desafio da crise do Estado, apregoada em níveis políticos, fiscais, administrativos, previdenciários, orçamentários e em sua própria relação com a sociedade, e dado o reiterado discurso político-econômico de governos específicos acerca da "insustentabilidade" do ordenamento jurídico nacional nos patamares em que foi colocado pela CF/88, surgiram várias e nem sempre sérias propostas de "reformar" o Estado.

Como já dito, uma delas, bastante ampla e relevante, foi lançada, nesse cenário, através da proposição pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato (mais exatamente em 1995), do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que buscou inovar em alguns pontos substantivos(1) com o levantamento da bandeira de que a Administração Pública burocrática é, em essência, um dos maiores problemas do Estado brasileiro.

A necessidade de um novo modelo de gestão para o setor público, assim como a mudança na forma de tratamento da crise do Estado, da maneira como é justificada no Plano Diretor, pressupunham a insuficiência ou inadaptação das posturas político-ideológicas anteriores, que, em grande medida, abriram espaço para agravá-la ainda mais.

Fato é que o PDRAE foi lançado em 1995 tentando representar uma lógica diversa da "indiferença" existente no período pós-transição democrática quanto à existência e à dimensão da crise, bem como se propôs (não o fez na prática) a refutar a via neoliberal (noção de Estado Mínimo) colocada em voga no cerne das discussões políticas brasileiras a partir do início da década de 90.


2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho Do Estado com Uma Expressão Política do Modelo de Reforma do Estado Brasileiro

O discurso governamental, à época do lançamento do plano, era pensar a crise sob o foco do desafio de sua superação, donde a noção de que havia que se "reformar", "reconstruir" o Estado, "de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas". (1995:15)

Relevante considerar o posicionamento governamental quanto a tal reforma: o Plano Diretor representa uma via de ação para o aparelho do Estado; distinguindo, nos níveis de dimensão e responsáveis, entre reforma do Estado e reforma do aparelho do Estado.

O desafio da crise diante da necessidade de reformar o Estado é tarefa, segundo o PDRAE, para o conjunto de toda a sociedade, tratando-se de um "projeto amplo", "enquanto que a reforma do aparelho do Estado tem um escopo mais restrito: está orientada para tornar a administração pública mais eficiente e mais voltada para a cidadania". (1995:17)

Focando sobre a perspectiva mais ampla da reforma do Estado, o PDRAE determina que tal reforma deve ser entendida e conformada a partir do contexto da "redefinição" do seu papel. Redefinir o papel do Estado seria, segundo a lógica governamental, fazer com que ele abandonasse a responsabilidade direta pelo "desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento". Em termos mais claros, para o PDRAE, "reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado". (1995:17)

Neste sentido, cabe questionar o limite e as bases que regulamentam tais transferências, sabendo que todo o processo de reforma delineado no plano está pautado e intimamente marcado pela busca por eficiência, busca que vai ao encontro das duas dimensões da reforma: a política e a administrativa.

Em termos de reforma política, a transferência da atuação estatal para o setor privado vai corresponder à necessidade de gerar maior capacidade de governo ("governança"), a partir da limitação dos custos e do dimensionamento a áreas "exclusivamente" estatais, bem como pretende corresponder a um aumento da legitimidade para governar ("governabilidade") à medida que há a valorização da participação social em várias instâncias do processo de reforma e há também o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços "tendo o cidadão como beneficiário". (1995:21)

Já em se tratando de reforma administrativa (estrito senso), o principal marco de renovação seria a proposta de implementar um novo "paradigma" de organização administrativa, a saber, a Administração Pública gerencial, que vem introduzir a perspectiva do desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações estatais.

Ora, analisando os impactos e mesmo o grau de novidade/ ruptura com o modelo de gestão burocrático até então e ainda hoje adotado pela Administração Pública, o "modelo" gerencial visualizado pelo PDRAE como alternativa reformadora possui, em grande medida, apenas dois pilares "revolucionários": "em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a ênfase dos procedimentos (meios) para os resultados (fins)". (1995:22, grifos nossos)

Diante da análise, por outro lado, sobre a necessidade do plano de romper com a Administração Pública burocrática, descobre-se que tal tentativa de superação não é recente. O embate com o modelo de gestão burocrático, no nível de "reforma" do Estado brasileiro, tem sua origem, segundo o próprio PDRAE, no Decreto-Lei 200, de 25.2.1967 que já determinava princípios de racionalidade administrativa, os quais seriam, em outras palavras, a eficiência mesma, que hoje toma ares de jargão técnico-gerencial inusitado.

Igualmente criado para tentar promover a eficiência no setor público, há que se falar de outro precedente que foi o Programa Nacional de Desburocratização, lançado no início dos anos 80 também com vistas à reformulação da estrutura estatal burocrática.

O PDRAE fez questão de colocar em evidência tal embasamento histórico justamente para conformar a noção de processo de reforma, que, em grande medida, fora interrompido, segundo ele, pela Constituição Federal de 88.


3. Diretrizes Para Uma Mudança na Atuação Estatal: o Estado Dividido em Setores

Diante do "retrocesso burocrático de 1988", que resultou em "encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal, como bens e serviços e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos" (1995:29), o PDRAE tenta significar uma retomada da lógica de mudança anterior, a partir da definição dos principais problemas, da forma de tratamento de cada qual e da divisão (segmentação) do Estado em setores que possam trabalhar em específico com os questionamentos e soluções que lhes forem cabíveis em se tratando de reforma estatal.

Para enfrentar as dimensões (de problemas) institucional-legal ("obstáculos de ordem legal"), cultural (coexistência de valores patrimonialistas e burocráticos com os novos valores gerenciais) e gerencial (nível de práticas administrativas), o Plano Diretor estabelece a setorização do Estado de modo a redimensionar o próprio Estado, sua crise e as formas de resolução dessa crise.

O Estado passa, então, a ser entendido, segundo o plano, como uma espécie de amálgama das seguintes esferas de atuação: o primeiro setor que seria o núcleo estratégico; o segundo que representaria o setor de atividades exclusivas do Estado; o terceiro, por sua vez, seria o setor de atuação simultânea do Estado e da sociedade civil, setor este que engloba as entidades de utilidade pública, as associações civis sem fins lucrativos, as organizações não-governamentais e as entidades da Administração Indireta que estão envolvidas com as esferas em que o Estado não atua privativamente, mas que têm um caráter essencialmente público e, finalmente, o quarto e último setor seria o menos característico em termos de intervenção "exclusiva e/ou necessária" do Estado, já que trata da produção de bens para o mercado. A reforma direcionada no PDRAE perpassa o entendimento que se tem sobre justamente o quão necessária e mesmo eficiente é a atuação estatal em cada um desses setores.

Enquanto, por um lado, o núcleo estratégico, que representa o governo em si (âmbito de tomada de decisões), pode prescindir relativamente da eficiência em face da efetividade. Já que, segundo o PDRAE, as decisões políticas, mais que eficientes, devem ser eficazes, ou seja, devem ser certas em sua legitimidade junto à população; devendo tal setor conciliar o modelo burocrático de gestão (que é um conformador de eficácia por excelência) com o gerencial.

Por outro lado, "já no campo das atividades exclusivas do Estado, dos serviços não exclusivos e da produção de bens e serviços o critério eficiência torna-se fundamental. O que importa é atender milhões de cidadãos com boa qualidade a um custo baixo". (1995:53, grifos nossos) Cabe, desta forma, aos três setores em questão, seguir os rumos da Administração Pública gerencial, o que se justifica, segundo o PDRAE, a partir do fato de não ser característica basilar deles a prevalência estrita da dimensão política (enquanto âmbito de demandas e decisões políticas), mas de implementação prática do politicamente já delineado.

Dimensionada sob tal espectro para esses três setores, segundo o Plano Diretor, a eficiência é não só pertinente, mas imprescindível, isto porque o setor de atividades exclusivas representa o nível de execução das decisões tomadas pelo núcleo estratégico no tocante a serviços ou agências em que se exerce o poder extroverso do Estado, bem como porque os serviços não-exclusivos são o âmbito de atuação simultânea do Estado e de instituições públicas não-estatais e privadas na prestação de serviços sociais, e mesmo porque a própria natureza do quarto setor é de produção para o mercado.


4. A lógica da transferência à sociedade organizada de setores e atividades significativas: uma questão de eficiência?.

Atendendo à premência de se gerar cada vez mais eficiência na abordagem introduzida pelo PDRAE sobre a organização estatal brasileira, foram constituídos, no setor de atividades não exclusivas (também chamado de terceiro setor) e no setor de produção para o mercado (entendido como quarto setor), movimentos específicos de transferência da responsabilidade direta do Estado pela prestação de serviços e pela produção de bens para a iniciativa privada.

O movimento ocorrido, em relação à esfera do público não-estatal, se deu no sentido de institucionalizar como "Organizações Sociais", no seio do Direito Administrativo, os entes da sociedade organizada sem fins lucrativos, atuantes no "terceiro setor", o que foi proposto a partir da possibilidade de tais entidades receberem esta qualificação jurídica, em conformidade com um processo de "publicização" previsto na Lei n.º 9.637/98.

Noutro sentido, o movimento perpetuado junto ao chamado quarto setor se deu através da privatização de empresas estatais, que passaram para o domínio de entes do mercado.

Aprofundando a análise sob uma perspectiva global, quando foi considerado, no PDRAE, que a reforma do Estado é tarefa para o conjunto da sociedade, tendo em vista que o papel do Estado, a partir da reforma, seria tão somente o de promover e regular o desenvolvimento econômico e social, a lógica governamental abria a discussão, junto à sociedade, de que os atores no processo de reforma não se restringem aos setores exclusivos do Estado, ou seja, a responsabilidade deve passar a ser compartilhada (e note-se que compartilhar é diferente de compartimentalizar) com a sociedade e com o mercado.

Na mesma medida em que o Estado restringe sua atuação direta ao seu aparelho (núcleo estratégico + atividades exclusivas), cada vez mais a sociedade civil é chamada a fazer "parcerias" com o Estado, tomando para si os outros dois setores e tendo como apoio estatal o nível de promoção, regulação e fiscalização desses.

Eis que neste ponto reside o maior risco à luz da realidade brasileira: o risco de a reforma do Estado não significar uma reestruturação positiva de todos os setores, mas acabar se transformando em uma precarização das relações Estado-sociedade, o que pode ocasionar a aproximação da proposta trazida pelo PDRAE com os marcos de um Estado mínimo excludente diante de um mercado avassalador, afrontando diretamente boa parte dos mais importantes princípios constitucionais da Carta de 88.

É, pois, no envolvimento da sociedade civil que se encontra justamente uma das propostas mais audaciosas quanto à reestruturação do Estado. Senão vejamos o exemplo dos processos de publicização e de criação de organizações sociais. Tais processos, interdependentes entre si, representam o direcionamento prático da saída da intervenção direta estatal do setor de serviços não exclusivos, também chamado de terceiro setor, de maneira a transferir para a sociedade organizada (a saber, organizações públicas não-estatais e privadas sem fins lucrativos) a prestação de serviços como saúde, educação, produção científica e tecnológica, proteção ao meio ambiente e produção cultural.

Há, neste sentido, a problemática de serem as organizações sociais (com a perspectiva de mudanças de fundo na forma atual de prestação desses serviços públicos não-estatais) um âmbito de relação Estado-sociedade muito incipiente ainda na realidade brasileira. É óbvia e forçosamente porque se está chamando a sociedade organizada a comprometer-se ativamente com o público não-estatal que se tem a necessidade de tornar o mais claro e fundamentado possível tal figura jurídico-institucional para que se evitem distorções e enganos prejudiciais à sua implementação, ainda mais se se considerar, por exemplo, que cabe à sociedade (um dos pontos cruciais da Lei n.º 9.637/98) parcela significativa na representação do Conselho de Administração das organizações sociais, que é o seu órgão máximo de deliberação institucional.

O risco de um desvirtuamento do instituto das organizações sociais está previsto até mesmo no PDRAE (1995:74): ou se respeitam as condições descritas em lei, como, por exemplo, a forma de composição de seus conselhos de administração ou se fica à mercê da possibilidade de "privatização ou feudalização dessas entidades".

Sob uma lógica político-econômica de relação custo-benefício, somente se justifica tal nível de risco na medida ele esteja embasado por uma dimensão ideológica mas incisiva. Ora, toda a perspectiva de transferência lançada pelo Plano Diretor (como uma política que vise a obedecer a demanda por maior eficiência) é, em grande medida, um marco ideológico da adoção do "paradigma" da Administração Pública Gerencial.

Faz-se necessário esclarecer aqui que a Administração Pública Gerencial trata-se de um "paradigma" de gestão que apregoa ser capaz de superar (algo bastante questionável) o modelo burocrático segundo os moldes da administração do setor privado, através da mudança nos mecanismos de controle (dos processos aos resultados) e da focalização estrita nos índices de eficiência e desempenho, entre outros.

Neste sentido, a Emenda Constitucional n. 19, de 04.06.98 eleva à condição de princípio constitucional a eficiência, que passa a fazer parte do caput do art. 37 como um dos princípios que regem a Administração Pública brasileira. Isto ocorre fundamentalmente na medida que tal Emenda conforma as diretrizes governamentais de implementação do modelo gerencial na Administração Pública, assim como perfaz toda a "Reforma Administrativa" propriamente dita da Constituição de 88.

Ilustra muito bem tal espectro de discussão a inserção no corpo constitucional, em nível programático ainda, da avaliação de desempenho dos servidores públicos a relativizar o instituto da estabilidade e a inserção do contrato de gestão para o estabelecimento de um controle de resultados (o cumprimento das metas será aferido ao final do prazo estipulado e não tanto ao longo dos processos).

Uma vez considerada a dimensão das mudanças propostas no Plano Diretor e o pressuposto ideológico que o rege, cumpre problematizá-los para que possamos chegar a uma resposta que delimite a série de questões ensejadas pelo título deste tópico: a transferência para a iniciativa privada e/ou para a iniciativa "pública-não estatal" torna a atuação das áreas transferidas mais eficiente? Ou será tudo uma mera lógica de redução indiscriminada de custos para o setor público? A eficiência pode ser tomada como um princípio absoluto, até mesmo em detrimento, por exemplo, dos princípios da dignidade da pessoa humana e da prestação contínua e efetivamente pública dos serviços públicos? Aquilo que é mais eficiente é necessariamente mais público e mais democrático?

É possível começar a questionar a partir a noção de ser o aparato estatal burocrático, "por definição", ineficiente como o pressupõe (implícita e genericamente) o Plano Diretor. É bastante sintomático, neste sentido, praticamente inexistir, no discurso governamental, sequer a cogitação de se buscar um aprimoramento do aparato estatal na prestação de serviços sociais da forma como é feita hoje.

Tal ausência denota a unicidade político-ideológica (no sentido da via de minimização do Estado) da proposta de substituição completa ("transferência") da prestação pelo Estado para a prestação pela iniciativa de entidades privadas sem fins lucrativos. Cabe, portanto, perguntar pelo fundamento da crença de ser a ineficiência característica sine qua non de toda e qualquer organização estatal, comparativamente à esfera privada, quando se fala de prestação de serviços sociais e produção para o mercado. Assim como cabe também o questionamento acerca de ser realmente possível ou não remodelar, tendo em vista a eficiência, as organizações estatais prescindindo dos mecanismos burocráticos. Ora, eis aqui o que BURSZTYN (1998:156) chama de "substituição do ‘fetichismo do planejamento’ pelo ‘fetichismo do mercado’ "...

A reforma do Estado, segundo a concepção neoliberal implícita no PDRAE, pode ser relativizada de acordo com a abordagem de PRZEWORSKI, segundo a qual, "a complacência neoclássica no que diz respeito aos mercados é indefensável: os mercados simplesmente não alocam eficientemente." Já que "mesmo quando os governos só dispõem da mesma informação de que dispõe a economia privada, certas intervenções do governo levariam, sem sombra de dúvida, a um aumento do bem-estar. Portanto, o Estado tem um papel positivo a desempenhar". (1998:44, grifos nossos)

Assim, mais do que isso e sem, a priori, prescindir da atuação estatal direta no âmbito das atividades não-exclusivas, tem-se que

"A reforma do Estado deve ser concebida em termos de mecanismos institucionais pelos quais os governos possam controlar o comportamento dos agentes econômicos privados, e os cidadãos possam controlar os governos. A questão quanto a se um Estado neoliberal é ou não é superior a um Estado intervencionista não pode ser resolvida em termos gerais, uma vez que a qualidade da intervenção estatal depende de um desenho institucional específico. Porém, o Estado neoliberal é, pelo menos, um parâmetro pelo qual se pode aferir a qualidade da intervenção estatal: como as alocações do mercado não são eficientes, desaparelhar o Estado não é um objetivo racional de reforma do Estado". (PRZEWORSKI, 1998: 68, grifos nossos)

As discussões a respeito da transferência dos serviços sociais do Estado para a sociedade civil denotam fundamentalmente, além da preocupação com um desvirtuamento institucional das O.S., a insegurança quanto à possibilidade de serem elas (as organizações sociais), desde sua concepção, uma espécie de "privatização dissimulada". Na realidade brasileira, tanto a preocupação, quanto a insegurança, são amplamente justificáveis em se tratando de "engenharia política" de manutenção das desigualdades sociais e de manutenção do conformismo perante o Estado, haja vista a peculiaridade política brasileira que foi o populismo...

A possibilidade de que as O.S. sejam somente mais um instrumento de "engenharia política" bastante criativo e "maquiavélico" (no sentido vulgar e pejorativo da expressão) de privatizar a prestação dos serviços sociais é percebida por FREITAS (1998:103), de modo a deixar em aberto que,

"Por tudo, se se configurar o desvirtuamento, o modelo federal poderá ter produzido um modo afrontoso de contornar exigências oriundas dos próprios princípios norteadores dos contratos de gestão, bem como terá ofendido regras nucleares de preservação do patrimônio público".

Ora, grande parte da população brasileira, de certo modo, nunca teve uma efetivação abrangente dos direitos sociais como educação e saúde (apesar de estarem conformados na Constituição de 88 como "deveres do Estado") e os rumos que o Plano Diretor denota vão no sentido de restringir o próprio conceito de cidadania (haja vista a noção, pautada sob marcos neoliberais, de cidadão-cliente), bem como no sentido de minimizar as bases de proteção social garantidas direta e universalmente pelo Estado.

Tal insegurança encontra respaldo, segundo BURSZTYN (1998), no fato de nunca ter havido no Brasil uma abrangência universal do Estado de Bem-Estar, vez que uma ampla camada da população sempre esteve marginalizada em relação a qualquer amparo público. O grau de expectativa e de legitimidade em relação ao Estado, para o autor em questão, é muito reduzido na sociedade brasileira.

Consequência disso é que a crise do Estado aqui não se reveste de "caráter de desencanto" (o que acontece com os países de Welfare State). A crise no Brasil seria, neste sentido para BURSZTYN, um

"(...) misto de falta de políticas de bem-estar universalizadas, paralelamente a uma perda de efetividade dos poucos instrumentos de políticas sociais, junto às reduzidas parcelas da população que a elas tinham acesso. Ao invés de saturação, do envelhecimento do W.S., o Brasil vive uma atrofia precoce do seu desenvolvimento." (1998:153, grifos nossos)

Se o Brasil vive uma "atrofia precoce" do desenvolvimento da teia de proteção social, a qual, no modelo do W.S., fora constituída visando a condições mais equânimes (não necessariamente mais igualitárias) de vida, ainda mais sintomática que tal atrofia no referente à garantia de direitos sociais é a própria involução ideológica da noção de cidadania, que, na realidade brasileira, vai se delineando fora do fundamento democrático da universalização dessa condição.

De crucial significado no cerne da linha de ação conformada pelo Plano Diretor e em conflito com uma perspectiva mais democrática de reestruturação estatal, bastante polêmico é o conceito de cidadão-cliente. O embate entre esfera de maximização dos interesses econômicos e um nível mínimo de respeito à cidadania estabelecida nos moldes do regime democrático da Carta de 88, em BURSZTYN, está dimensionado de modo a visualizar que

"A busca de maiores resultados econômicos, no curto prazo, acabou levando a uma formidável negligência com o caráter público da prestação de certos serviços públicos. (...) Paralelamente ao surgimento do conceito "cliente" como o objeto da busca de satisfação, ocorre também uma perversa redução no universo desses beneficiários: a exclusão de uma parte dos usuários - aqueles que não constituíam um mercado, no sentido econômico do termo - da categoria de clientes". (1998:156/157, grifos nossos)

Não há como se falar em eficiência na e da atuação estatal, sem antes retomar a própria razão de ser dela mesma: a transferência de setores significativos do âmbito estatal para a iniciativa privada e/ou para a sociedade organizada gera um vácuo de legitimidade sobre aqueles que requerem do Estado não somente uma regulação estrita do mercado, mas também uma sociedade mais equânime.


5. Organizações Sociais: uma proposta de "publicização"

Amparada nos marcos do Estado Democrático de Direito, a noção de que o público representa uma esfera mais ampla que o estatal perpassa toda a discussão a respeito do terceiro setor, bem como determina, em grande medida, alguns pontos cruciais no processo de "reforma" do Estado, como a conformação de uma necessária participação social mais ativa no nível de defesa dos interesses públicos e, a partir disso, uma menor "dependência" (?) da sociedade civil em relação à estrita atuação estatal na prestação dos serviços sociais.

Pretendendo estar representada em sentido diverso ao programa de privatização implementado nos últimos anos e como que adotando um foco de análise mais amplo, a proposta de transferir o papel de prestador de serviços sociais para organizações sem fins lucrativos da sociedade civil, através da noção de publicização, reflete fundamentalmente a perspectiva paradigmática de consolidação do espaço público não-estatal e a concomitante solução alternativa encontrada pelo PDRAE de restringir o nível de atuação do Estado ao papel de promotor e regulador no que foi chamado terceiro setor através do instituto das organizações sociais.

O que está previsto no PDRAE, em termos práticos, é a institucionalização dessa transferência, donde a necessidade de um Programa Nacional de Publicização (PNP). Se as organizações sociais (já reguladas pela Lei 9.637/98) são o instituto que vinculará tal "parceria" entre Estado e sociedade organizada, o PNP (ainda a ser criado mediante decreto do Poder Executivo ( vide o art. 20 da referida Lei) será o programa que viabilizará a "saída" do Estado (no referente à atuação direta) do setor de atividades não-exclusivas, à medida que se pretende ampliado o espaço da sociedade organizada.

A abordagem realizada no PDRAE é bastante sintomática em se tratando do objetivo da criação de organizações sociais e mesmo da publicização. Esse objetivo seria

"(...) permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal." (1995:74, grifos nossos)

Ora, neste sentido, a "descentralização" dimensionada no PDRAE, abrangendo o conceito de publicização, seria a "absorção" de atividades e serviços até então realizados por autarquias e fundações ("entidades ou órgãos públicos da União") pelas entidades de utilidade pública qualificadas como O.S., o que corresponderia, portanto, a não só reduzir a atuação da Administração Pública Indireta, mas também a promover, simultânea e predominantemente, a atuação da sociedade civil organizada (o que está claro nos objetivos do Plano Diretor, inclusive pelo termo "absorção" da Lei em análise).

Neste sentido, em face do questionamento a respeito de "se deverá sempre ocorrer a extinção de uma entidade pública para que surja em seu lugar uma organização social, a qual assuma o serviço por ela prestado", claro é que teoricamente nada impede que as O.S. atuem paralelamente a órgãos e entidades estatais na prestação de serviços sociais e em atividades de interesse coletivo. Ou seja, "apesar de as organizações sociais terem sido concebidas com o objetivo de substituírem entidades da Administração Indireta (...), elas não são, pois, necessariamente, sucessoras de entidades públicas extintas." (SANTOS; PEDROSA, 1998:14, grifo nosso)

Já, em termos de implementação prática, segundo as autoras supracitadas,

"(...) dificilmente, uma entidade será qualificada como organização social sem que haja extinção de órgão ou entidade pública da mesma área de atuação, devido à escassez de recursos de que dispõe a administração pública. Seria utópico imaginar que as organizações sociais venham a representar um mero acréscimo na oferta de serviços naquelas áreas de atuação específica de que nos fala a lei." (1998:14, grifos nossos)

Se é utópica a perspectiva de que as organizações sociais estão sendo criadas para atuarem de forma complementar à atuação estatal e se só a substituição desta por aquela é o que o governo pretende com o PNP, tem-se que há um impasse diante da Constituição Federal de 88, o qual, nos termos de MELLO, coloca a seguinte questão:

"(...) os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão. Logo, como sua prestação se constitui em "dever do Estado", conforme os artigos citados (arts. 205, 206 e 208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de "adjudicá-los" a organizações sociais. Segue que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou." (1999:159, grifo sublinhado nosso)

O motivo de tal transferência inconstitucional (a publicização) para a sociedade organizada das atividades públicas não exclusivamente estatais, que são desempenhadas pelo Estado, no modelo de reforma brasileiro, é a perspectiva de que o Estado não consegue atender eficientemente às demandas da sociedade, prestando serviços sociais (espaço por excelência do público não-estatal) desprovido de mecanismos dinâmicos de gestão e de uma ampla participação social.

Interessante, neste âmbito, perceber o quão veemente é a crença e reiterado é o discurso do governo de que, por definição, a prestação de serviços e a produção de bens pelo Estado é menos eficiente que a realizada pela iniciativa privada.

Segundo CHAUÍ (1999),

"A Reforma tem um pressuposto ideológico básico: o mercado é portador de racionalidade sócio-política e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso é previsível ( nas atividades ligadas à produção econômica), mas também onde não é admissível, no campo dos direitos sociais conquistados." (Grifos sublinhados nossos)

O problema que se pode depreender desse tipo de "ideologia" política é justamente o dimensionamento de até que ponto a eficiência (em termos exclusivamente econômicos) prepondera sobre os interesses sociais (públicos por excelência), até que ponto esses interesses públicos são precarizados e relativizados no embate com o conceito de publicização, o qual está conformado para uma cidadania que pressupõe vínculo de clientela neoliberal com o Estado.

Ora, faz-se necessário questionar aqui o papel do Estado no processo de publicização diante do necessário caráter universal da prestação de serviços públicos, do princípio da continuidade na prestação deles e do princípio da subsidiariedade, a partir dos quais há que se assegurar a atuação estatal complementar em caso de insuficiência na prestação pelas O.S. dos serviços sociais.

Em que pesem o princípio da eficiência (ênfase nos resultados) e a relação estrita de cidadão-cliente, a retomada da subsidiariedade é exigência primordial para a "saída" do Estado do nível de responsabilidade direta por essa prestação, primordial em face justamente do objetivo do próprio PDRAE de efetivamente reformar o Estado para fortalecê-lo e não para minimizá-lo.

Não obstante a necessária subsidiariedade e muito além dela, maior deve ser a preocupação social (mais que o mero controle social estrito senso) com relação às O.S. no tocante ao fato de o governo transferir a prestação de serviços sociais para a esfera privada (sem fins lucrativos), sem assegurar que seja ela universal (novamente a discussão acerca do conceito de cidadão-cliente), donde a contraposição mesma entre a rentabilidade dos serviços públicos privatizados e princípio da universalização do atendimento denotada por BURSZTYN (1998:157).

Boa parte dos estudiosos de Direito Administrativo tem se preocupado seriamente com tal transferência, a mensurar por suas críticas ao modelo federal. Dimensionando sinteticamente os principais questionamentos neste sentido, DI PIETRO considera que

"Embora a medida provisória [a atual Lei 9.637/98] não diga expressamente, é evidente e resulta nela implícito que as organizações sociais vão absorver atividades hoje desempenhadas por órgãos ou entidades estatais, com as seguintes consequências: o órgão ou entidade estatal será extinto; suas instalações, abrangendo bens móveis e imóveis, serão cedidos à organização social; o serviço que era público passará a ser prestado como atividade privada. Dependendo da extensão que a medida venha a alcançar na prática, o Estado, paulatinamente, deixará de prestar determinados serviços públicos na área social, limitando-se a incentivar a iniciativa privada, por meio dessa nova forma de parceria. Em muitos casos, poderá esbarrar em óbices constitucionais." (1999:312, grifos nossos)

Ora, aprofundando tais questionamentos, diante da transformação ensejada pela Lei n.º 9.637/98 de "serviços públicos" em "atividade privada" e diante da limitação da atuação estatal ao nível de incentivo da iniciativa privada (processos denotados por DI PIETRO que serão consolidados "paulatinamente"), quem são os clientes do Estado para os quais as O.S. devem prestar eficientemente serviços sociais e em que medida os "não-clientes" estão excluídos dessa prestação? Seria cidadão-cliente, segundo a lógica do PDRAE, todo aquele que usa os serviços da "empresa" na qual o Estado está se transformando?

Dimensionada a partir de um pressuposto excludente de conformação da cidadania como clientela (dado que submetida a parâmetros neoliberais), a reforma brasileira do Estado coloca em xeque a própria base de legitimação social deste Estado, porque "onde (...) acima da estrutura textual e legitimatória do Estado ainda se faz valer uma superestrutura consistente de inclusão/ exclusão, o ‘estado constitucional’, que só se pode fundamentar e justificar como Estado universal, ainda não está realizado. A constituição exclui a si mesma do nexo de legitimidade democrática." (MULLER, 1998:99/100, grifos nossos)

Em termos de legitimidade das mudanças que têm sido feitas na Constituição de 88 para viabilizar tais mecanismos de redução do aparato estatal, sem assegurar a universalidade na prestação dos serviços sociais que estão envolvidos com o instituto das organizações sociais, é possível questionar também o que MULLER considera como a "degeneração em ‘povo’-ícone", já que "a exclusão deslegitima. Na exclusão o povo ativo, o povo como instância de atribuição e o povo-destinatário degeneram em ‘povo’-ícone." (1998:105, grifo nosso)

A degeneração em "povo apenas para fazer constar do preâmbulo da Constituição", especialmente na realidade brasileira, corresponderia a um quadro institucional em que "por um lado a maior parte da população é ‘integrada’ na condição de obrigada, acusada, demandada, por outro ela não é integrada na condição de demandante, de titular de direitos" (MULLER, 1998:95, grifos nossos). Donde a "identificação da reivindicação de direitos de cidadania por parte de subcidadãos excluídos e subintegrados, na maior parte das vezes, com subversão". (1998:96, grifos nossos)

A análise da publicização, a partir desta problemática, vai ao encontro do respaldo que tal "processo" recebe de toda a lógica de um governo em específico. Qual reforma do Estado em face da premência da mera rolagem de juros da dívida pública no atual caso brasileiro? – Eis uma base de questionamento já a ser tratada desde as diretrizes do PDRAE e mesmo sobre o próprio conceito de publicização.

O corte de verbas recorrente na saúde e na educação públicas, por exemplo, depõe contra a maior parte dos argumentos de serem as O.S. instrumentos mais democráticos e capazes de atender melhor a um número maior de pessoas. Pergunta-se: se a perspectiva governamental é reduzir o repasse de recursos financeiros para esse setor, como ampliar a prestação de tais serviços sociais, sem implicar a mera privatização diante da cobrança de taxas, mensalidades ou quaisquer outras formas de faticamente restringir a universalidade desses serviços?

Assim, o PNP, para MELLO (1999:157), representaria um "título paradoxal", já que, a priori, o termo publicizar não abre espaço para se interpretar uma transferência para a esfera privada, ainda que essa esfera privada seja sem fins lucrativos.

Segundo DI PIETRO,

"Embora o Plano Diretor fale em publicização e a própria Lei 9.637, logo na ementa, fale em Programa Nacional de Publicização para definir a forma como se substituirá uma entidade pública por uma entidade particular qualificada como organização social, não há qualquer dúvida quanto a tratar-se de um dos muitos instrumentos de privatização de que o Governo vem se utilizando para diminuir o tamanho do aparelhamento da Administração Pública. A atividade prestada muda a sua natureza; o regime jurídico, que era público, passa a ser de direito privado, parcialmente derrogado por normas publicísticas; a entidade pública é substituída por uma entidade privada." (1999:313, grifo nosso)

Neste ponto, cabe questionar ainda em que medida transferir para o regime de direito privado implica tornar mais pública a Administração Indireta? O público não-estatal, como fundamento estruturante das O.S., implica, muito além de transferência de serviços sociais, conformação de níveis mais amplos de participação e controle social, o que, por sua vez, pressupõe uma noção de cidadania mais ativa e comprometida com um nível de coletivo que não depende passivamente do estatal, o que resultou muito mal instrumentalizado a partir da Lei n.º 9.637/98.

Sobre serem as Organizações Sociais uma proposta de efetivamente tornar mais pública a prestação dos serviços sociais, faz-se necessário reavaliar a pergunta inicial deste tópico a partir de uma segunda pergunta: o que seria publicizar? Tornar público o que já é estatal parece, à primeira vista, um contra-senso ou ainda um pleonasmo, mas há que se considerar, como anterior e repetidamente já dimensionado, a existência de uma esfera de público que transcende os limites do estatal.

Em grande medida, o problema passa a ser até que ponto transferir do público-estatal algumas atividades (as ditas não exclusivas do Estado) para o público não-estatal representaria uma via de prestação de tais atividades e serviços mais pública. Correndo o risco de ser um pouco tautológica, seria perguntar se há um público mais público que o outro, donde ser o Programa Nacional de Publicização um título "paradoxal"...

No Estado Democrático de Direito, a distinção entre público e privado só é percebida em limites bem tênues e, em HABERMAS (1995), chega a ser uma perspectiva procedimental, delimitada na lógica do modelo discursivo de democracia. A publicização não significaria, neste sentido, uma transição de algo que fosse menos para mais público estrito senso, porque tal questão só pode ser solucionada na via de processo, no quantum de participação social agregado (se é que é possível mensurá-lo).

A tomada do espaço público pela sociedade civil e mesmo a indistinção fluida entre público e privado a partir da ampliação e evolução na aquisição de direitos pelos indivíduos, numa releitura da proposta governamental de publicização, só são efetivamente indícios de concretização da diretriz constitucional de "instituir um Estado Democrático" (vide preâmbulo da Constituição Federal de 1988) na medida estrita da ampliação do exercício da cidadania.

Publicizar deve implicar, mais que qualquer outra coisa, nível de incremento da participação social em um efetivo exercício da condição de cidadão, sob pena de não corresponder o nome à realidade, pena essa que se coloca sob a égide do desafio de implementar um Estado "reformado" que seja essencialmente democrático.


6. Conclusão: Reforma do Estado Como Caminho Para Uma Reformulação das Relações Estado-Sociedade: as Organizações Sociais como Instrumento e Risco desse Processo de Consolidação da Cidadania

A reforma do Estado tem sido um assunto extremamente discutido, bastante polemizado e pouco esclarecido no meio de tantas correntes ideológicas pelas quais está perpassado. Desde o início deste artigo, enfatizou-se a perspectiva de análise sob os prismas do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e do instituto jurídico das organizações sociais, para que se pudesse levantar riscos, significantes e contextualizações das mudanças que, no âmbito do público não exclusivamente estatal, estão conformadas pelo e ajudam a conformar o movimento de reestruturação estatal no Brasil contemporâneo.

Fundamentalmente, foram deixadas mais perguntas que respostas, mas aqui já se poderia, ao menos, delinear uma via de entendimento para a questão introdutória de tudo o que já foi discutido, visto que só caberia dimensionar a transferência para sociedade organizada de esferas significativas de atuação estatal e o incremento de eficiência no aparelho do Estado como instrumentais efetivos de uma mudança positiva na forma de atuação do Estado, na medida exata em que fossem sendo concretizados no seio de uma maior participação social, ou seja, na medida em que o público não-estatal e a eficiência (segundo o modelo de Administração pública Gerencial) realmente fossem capazes, no contexto brasileiro, de agregar cidadania em termos amplos.

No limiar da possibilidade de serem mais uma precarização da prestação de serviços sociais (alguns deles são mesmo deveres do Estado), rumo a um processo de privatização e de exclusão de uma camada da população que não corresponde ao conceito de cliente, e, em via oposta, da perspectiva de chegarem a se tornar um espaço aberto e instrumentalizado para o incentivo do exercício de uma cidadania mais participativa, as organizações sociais hoje ensejam uma série de desafios, seja porque ainda não há praticamente quase nada posto em prática a respeito do foi proposto, seja porque o grau de mudança esperado é definitivamente muito elevado, quem sabe a própria "a reinstituição do Estado" pela sociedade (?).

Ou se reformula o nexo de relações agent x principal, de modo a induzir que a sociedade participe e exerça, acima de parâmetros estritos de eficiência e de gestão para o mercado, controle no nível de accountability, participação social e exercício de cidadania esses que não se restringem apenas à área dos serviços sociais; ou se estará, sob o discurso de reformar o Estado para a contenção de custos da Administração Pública, apenas aderindo à imposição, geradora de extremas desigualdades sociais, da panacéia do mercado.

Neste sentido, à implementação ainda por vir do instituto das organizações sociais colocam-se alguns complexos desafios, para o Estado e para a sociedade, na medida em que tais entidades deverão, antes de mais nada, ser uma construção de ambos os atores, em uma interação ampla e ainda incipiente na realidade sócio-política brasileira.

Ao Estado, cabe tentar resolver a problemática da desconfiança da sociedade em face da "novidade" do instrumento, cabe atentar para o risco do patrimonialismo, da privatização ou mesmo da "feudalização" das O.S., quando da absorção de autarquias e fundações públicas pelas entidades civis sem fins lucrativos e principalmente cabe ao Estado o dever de fornecer mecanismos compensatórios para que os excluídos participem também (donde não ser possível imaginar a completa substituição da prestação de serviços sociais feita pelo Estado pela prestação feita pelas O.S.), tendo em vista a noção de que o Estado não pode se eximir da sua responsabilidade junto a toda a sociedade de garantir, minimamente, os direitos conquistados constitucionalmente.

Por outro lado, os desafios colocados à sociedade são justamente crer na eficácia do instituto; controlar a atuação dos envolvidos, para garantir a condição de espaço público (ainda que não-estatal) e evitar a "promiscuidade" nos processos, donde caber à esfera social também, se necessário for, resistir à privatização dos serviços sociais camuflada sobre a noção de "publicização".

Tais desafios, em linhas gerais, conformam o meio como deverão ser tratados os muitos problemas e riscos do instituto das organizações sociais. Diante do arranjo jurídico ( em vários pontos da Lei 9.637/98, inadequado); do controle social mal instrumentalizado; do desmonte do setor público (praticamente o que se tem hoje com isso é o Estado deixando de ser até mesmo subsidiário no nível de garantia dos direitos sociais, como saúde e educação); do risco da substituição da prestação dos serviços sociais básicos por sua venda; do ceticismo do governo quanto à eficiente prestação estatal de serviços e das muitas soluções artificiais consideradas sob a ótica estrita dos interesses do mercado e não da sociedade como um todo, desponta como caminho basilar de aprimoramento do modelo proposto o necessário conhecimento da realidade brasileira e das políticas públicas na interlocução entre Estado e sociedade. E conhecer melhor para poder exercer um controle mais consciente, para avaliar ganhos e perdas com o processo, para responsabilizar a esfera política (da qual a sociedade é "principal") em termos de compromisso com os interesses dos cidadãos, para efetivamente reformar o Estado e não para comprimi-lo.

Registrados alguns questionamentos quanto a todas essas arestas conflituosas e fundamentais, já se pode retornar à dimensão das organizações sociais no espaço de reformulação das relações Estado-sociedade. Em se visando realmente à construção, a partir da proposta de reforma do Estado que se tem hoje, do Estado Democrático de Direito no Brasil, para um público não-estatal que implique maior e mais efetiva cidadania, eis que aqui se colocam as organizações sociais: aqui e para toda a sociedade, elas estão dimensionadas como e na condição de desafio, por sua vez, à própria democracia brasileira.


Notas

1. Os principais pontos realmente inovadores são a mudança da forma de controle das atividades administrativas (de controle de processos para controle de resultados, com o devido cumprimento de metas e não mais o mero preenchimento de "n" vias e protocolos) e a perspectiva de maior participação popular, seja através de novos mecanismos de controle, seja através da transferência propriamente dita de atividades prestadas pelo Estado para a sociedade organizada (vide a questão das organizações sociais).


Bibliografia

ABRUCIO, Fernando. "Em Busca de um Novo Paradigma para a Reforma do Estado no Brasil". In: Revista do Serviço Público/ Fundação Escola Nacional de Administração Pública, Brasília: ENAP, ano 48, número 1, jan._ abr. 1997, pp. 149-155.

ANASTASIA, Antônio Augusto Junho. "Governo quer cuidar apenas de ações e áreas estratégicas": Entrevista. In: Revista do Legislativo - "Organizações Sociais: a que fim se destinam?". Belo Horizonte: ALEMG, número 22, abril/ junho de 1998, pp. 20-26.

BENDIX, Reinhard. Max Weber: um perfil intelectual. Trad. Elisabeth Hanna e José Viegas Filho. Brasília: UnB, [s.d.], pp. 231-350.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira, 2.Ed., [s.l.]: Paz e Terra, [s.d.], pp. 17-40.

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. "A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle". In: Cadernos Mare da Reforma do Estado, n.1, Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997.

______. A Reforma do Aparelho do Estado e a Constituição Brasileira. (Conferência ministrada nos seminários sobre a reforma constitucional realizados com os partidos políticos), Brasília, janeiro de 1995.

BURSZTYN, Marcel. "Introdução à crítica da razão desestatizante." In: Revista do Serviço Público/ Fundação Escola Nacional de Administração Pública, Brasília: ENAP, ano 49, número 1, jan._ mar. 1998, pp. 141_163.

CARVALHO, Maria do Socorro Vieira de. "Desenvolvimento Gerencial no Setor Público: velhas questões e novos desafios". In: Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 29 (4): 27-37, out._dez. 1995.

CHAUÍ, Marilena. "A Universidade Operacional: a atual reforma do Estado ameaça esvaziar a instituição universitária com sua lógica de mercado". In: Folha de São Paulo. Caderno Mais!, São Paulo: 9.5.1999, p.3.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. "Contrato de gestão". In: Direito Administrativo. 10.ed. São Paulo: Atlas, 1999, pp. 252-253.

______. Direito Administrativo. 7.ed. São Paulo: Atlas, 1996.

______. "Organizações Sociais" In: Direito Administrativo. 10.ed. São Paulo: Atlas, 1999, pp. 311-313.

______. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. São Paulo: Atlas, 1996.

ESPING-ANDERSEN, Gosta. "O futuro do Welfare State na Nova Ordem Mundial". In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. N.º 35, 1995, pp. 73-111.

FREITAS, Juarez. "Regime Peculiar das Organizações Sociais e o Indispensável Aperfeiçoamento do Modelo Federal". In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, out._dez. 1998, v. 214, pp. 99-106.

HABERMAS, Jürgen. "Três modelos normativos de democracia." In: Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, 3(3): 105-122, jan./jun. 1995.

LIMA, Sheyla Maria Lemos. "O Contrato de gestão e a Conformação de Modelos Gerenciais para as Organizações Hospitalares Públicas". In: Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 30 (5): 101-138, set._ out. 1996.

MARTINS, Luciano. Estado Capitalista e Burocracia no Brasil pós-64. [s.l.]: Paz e Terra, [s.d.], pp. 15-40.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. "Figuras jurídicas introduzidas pela Reforma Administrativa". In: Curso de Direito Administrativo. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1999, pp.142-161.

______. "Serviço Público e Intervenção no Domínio Econômico". In: Curso de Direito Administrativo. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 477-498.

______. "Princípios fundamentais de Direito Administrativo". In: Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, pp. 10-30.

MODESTO, Paulo Eduardo Garrido. "Reforma Administrativa e Marco Legal das Organizações Sociais no Brasil". In: Revista do Serviço Público/ Fundação Escola Nacional de Administração Pública, Brasília: ENAP, ano 48, número 2, mai._ ago. 1997, pp. 27_57.

______. "Reforma do Marco Legal do Terceiro Setor no Brasil". In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, out._dez. 1998, v. 214, pp. 55-68.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. "Organizações Sociais de Colaboração (Descentralização Social e Administração Pública Não-Estatal)." In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, out._dez. 1997, v. 210, pp. 183_194.

MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Reforma Administrativa: texto base - Emenda Constitucional n.19, de 05/06/1998, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

MULLER, Friedrich. Quem é o Povo: A Questão Fundamental da Democracia. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp.83-105.

NASSUNO, Marianne. "Organização dos Usuários, Participação na Gestão e Controle das Organizações Sociais". In: Revista do Serviço Público/ Fundação Escola Nacional de Administração Pública, Brasília: ENAP, ano 48, número 1, jan._ abr. 1997, pp. 27_42.

"Organizações Sociais." In: Cadernos MARE da Reforma do Estado, n. 2, 4 ed. revisada, Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1998.

Presidência da República/ CÂMARA DA REFORMA DO ESTADO. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995.

PRZEWORSKI, Adam. "Sobre o Desenho do Estado: uma Perspectiva Agent X Principal". In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998, pp.39-73.

RAMOS, Marcelo de Matos. "Contratos de Gestão: instrumentos de ligação entre os setores do aparelho do Estado." In: Revista do Serviço Público/ Fundação Escola Nacional de Administração Pública, Brasília: ENAP, ano 48, número 2, mai._ ago. 1997, pp. 81_100.

Revista do Legislativo. "Organizações Sociais: a que fim se destinam?". Belo Horizonte: ALEMG, número 22, abril/ junho de 1998.

SANTOS, Flávia Pessoa; PEDROSA, Maria de Lourdes Capanema. "Aspectos Jurídicos das Organizações Sociais". In: Revista do Legislativo - "Organizações Sociais: a que fim se destinam?". Belo Horizonte: ALEMG, número 22, abril/ junho de 1998, pp. 10-15.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. "Gênese e Apocalipse: Elementos para uma Teoria da Crise Institucional Latino-Americana". In: Novos Estudos. N.20, São Paulo: CEBRAP, 03/88, pp.110-118.

SILVA, Almiro do Couto e - "Os indivíduos e o Estado na realização de tarefas públicas." In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, jul._ set. 1997, v.209, pp.43_70.

SILVA, Carlos Eduardo de Souza e. "Contratos de Gestão nas empresas estatais: estrutura, problemas e acompanhamentos". In: Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 29 (4): 60-73, out._dez. 1995.


Autor


Informações sobre o texto

O artigo em questão foi reformulado a partir dos dois primeiros capítulos da monografia de nome "Organizações Sociais e Reforma do Estado: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada no Brasil" premiada em 2º lugar no XIV Concurso Internacional de Ensayos e Monografias del Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, tendo sido apresentada no V Congreso Internacional sobre Reforma del Estado e de la Administración Pública del CLAD, realizado em Santo Domingo, República Dominicana, de 24 a 28/10/2000

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Élida Graziane. Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais. Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2168. Acesso em: 25 abr. 2024.