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Embriaguez ao volante e o STF.

A proteção da segurança nas vias públicas

Embriaguez ao volante e o STF. A proteção da segurança nas vias públicas

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A lei não mais faz referência de “expor a dano potencial”. Especificou uma margem de alcoolemia pela qual presume o risco. O crime que era de perigo concreto passou a ser de perigo abstrato. Foi o que reconheceu a Suprema Corte.

Tem-se veiculado na mídia notícia que salta aos olhos dos leitores: a de que a Suprema Corte da nação decidiu ser “crime dirigir embriagado, ainda que não cause acidentes”. Ora, pergunta o mais crítico: e isso não já era crime? Por qual motivo o Supremo Tribunal Federal precisou afirmar o que está escrito no art. 306 do Código de Trânsito? Será que os ministros daquela Corte afirmaram o óbvio? Não, e não foi isso que discutiu o Egrégio Tribunal, mas sim, se seria necessário comprovar efetiva direção perigosa, além da embriaguez, ou se bastaria a comprovação do estado etílico igual ou superior aos seis decigramas por litro de sangue. Para a Defensoria Pública da União, através de habeas corpus impetrado perante a Corte Suprema, deveria prevalecer o primeiro entendimento, qual seja, a necessidade de se comprovar uma condução anormal do veículo, gerando concreto perigo de desastre, e a de que os crimes de perigo presumido – como a mera constatação de teor alcoólico - seriam inconstitucionais. Em outras palavras, para a defesa, quem dirige bem, de maneira adequada, sem gerar riscos potenciais, embora tenha ingerido álcool, não deveria responder pelo crime de embriaguez ao volante. Teses estas afastadas pelo Tribunal.

Trata-se do habeas corpus 109.269, de relatoria do min. Ricardo Lewandowski, originário das Minas Gerais, onde ficou decidido que o crime do art. 306 do Código de Trânsito – embriaguez ao volante - é crime de “perigo abstrato” e não há qualquer inconstitucionalidade da norma, como pretendia a defesa através da Defensoria Pública da União. Para melhor compreensão do problema, oportuno lembrar duas classificações objeto do debate. Quanto à materialidade¹ existem crimes que a literatura penal classifica como: (1) “de dano ou lesão” e outros como (2) “de perigo”. Este último se subdivide em crimes: (2.1) “de perigo concreto” e (2.2) “de perigo abstrato”. A primeira espécie, crime de lesão, exige, para sua caracterização, que ocorra um resultado danoso, é o caso do crime de homicídio, que só se consuma com a efetiva morte da vítima (o dano) ou o furto (art. 155 do Código Penal) que se efetiva com a subtração do patrimônio alheio. Já os crimes de perigo dispensam um resultado danoso, a violação é meramente jurídica, viola-se a norma, independentemente de um resultado no mundo fático. Nos crimes de perigo abstrato, porém, sob uma perspectiva ex ante já há um desvalor da conduta, o perigo é presumido e inerente à própria conduta. É exemplo dele o porte ilegal de arma de fogo (inclusive comparado com a embriaguez pelo ministro relator em seu voto), basta que o sujeito esteja armado e sem o devido porte (documento necessário), independentemente de usar a arma ou não, atirar ou mesmo ameaçar alguém. Já o delito de perigo concreto é um meio termo, não necessita de dano, tampouco se contenta com o perigo abstrato: exige um perigo potencial. A discussão no Supremo se deu apenas em relação às subespécies de crime de perigo: se concreto (2.1) ou abstrato (2.2).

Um exemplo oportuno de crime de perigo concreto é o de embriaguez ao volante com a redação anterior a que lhe deu a Lei. 11.705/2008 (Lei seca). Antes de 2008 dizia o art. 306 o seguinte: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.” Atente para a parte final do dispositivo “expondo a dano potencial”: não exige causação de dano (crime de lesão), mas o dispositivo não se satisfaz com a mera constatação da embriaguez, exige, ainda, que desta direção alcoolizada decorra um perigo concreto (ex. subir a calçada, dirigir em ziguezague, na contramão etc). Outro exemplo, e que está em pleno vigor no Código de Trânsito, é o crime previsto no art. 309 (dirigir sem permissão/habilitação)², cuja redação é a seguinte:  “art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano”. Este art. 309 tem o perigo concreto reconhecido através da súmula 720 da Suprema Corte³. A Lei 11.705/08 em nada alterou este artigo, diferentemente do que ocorreu com o delito de embriaguez ao volante, previsto no art. 306. É deste raciocínio que se extrai a tese da Defensoria Pública. Porém, a nova redação do art. 306, em vigor a partir da chamada Lei Seca, diz o seguinte: “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.” O que se exige, a partir de 2008, é a constatação de que o condutor do veículo esteja com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior à 6 decigramas, a lei não mais faz referência de “expor a dano potencial”, especificou uma margem de alcoolemia onde presume o risco. Logo, o crime que era de perigo concreto, passou a ser de perigo abstrato. Foi o que reconheceu a Suprema Corte.

No referido habeas corpus o juiz de primeiro grau em Minas Gerais absolveu o réu sob o fundamento de que não havia comprovação de direção perigosa, anormal, caracterizadora de um perigo concreto. A Acusação recorreu do julgado e conseguiu revertê-lo no Tribunal de Justiça de Minas. A Defesa recorreu da decisão do Tribunal de Justiça mineiro ao Superior Tribunal de Justiça, mas teve seu pedido negado (mantendo, portanto, a decisão do TJ de Minas), sob a relatoria do desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, designado naquela corte superior, Dr. Haroldo Rodrigues. Com isso, recorreu-se da decisão mais uma vez, agora para o Supremo Tribunal Federal, que, por unanimidade, através da segunda turma, confirmou a decisão do STJ e TJ Mineiro, para entender no sentido de que o crime é de perigo abstrato e que não há inconstitucionalidade no dispositivo. É esta ementa do julgamento:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO.

IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

I - A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas.

II - Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente.

III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime.

IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal.

V – Ordem denegada. Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.2.

Com essa decisão fica afastada a tese de que quem bebe, mas dirige de forma adequada, sem gerar maiores perigos, deve ser absolvido, e a de inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Comprovado o teor alcoólico, comete-se crime. Vale ressaltar, por fim, que no caso julgado o condutor foi submetido a exame e ficou comprovada a embriaguez, o réu não se negou a fazê-lo. A Corte nada disse sobre a obrigatoriedade ou não do agente se submeter ao bafômetro. Este tema, portanto, fica para uma próxima oportunidade.


Notas

 (1) Nesse sentido, ver. PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal brasileiro – parte geral, 2010. p. 253-254.

(2) Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, 2009. p.1159-1160.

(3) Súmula 720 STF: “O art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, que reclama decorra do fato perigo de dano, derrogou o art. 32 da Lei das Contravenções Penais no tocante à direção sem habilitação em vias terrestres.”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS FILHO, Felinto. Embriaguez ao volante e o STF. A proteção da segurança nas vias públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3304, 18 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22242. Acesso em: 23 abr. 2024.