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John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista

John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista

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O presente artigo faz uma revisão das teorias democráticas deliberativas de Jürgen Habermas e John Rawls por meio de uma análise comparativa. As duas concepções de democracia deliberativa buscam superar a questão do pluralismo político por meio de caminhos diferentes.

Resumo: O presente artigo faz uma revisão das teorias democráticas deliberativas de Jürgen Habermas e John Rawls por meio de uma análise comparativa. As duas concepções de democracia deliberativa buscam superar a questão do pluralismo político por meio de caminhos diferentes. Para o autor estadunidense, a justiça como equidade tem por base uma ideia substantiva de democracia deliberativa fundada em uma situação hipotética por ele criada, onde os representantes dos cidadãos, em condições de igualdade, deliberariam por princípios em busca de um consenso sobreposto. Já o filósofo alemão, buscando superar o modelo substantivo de sociedade justa, sugere como um sistema de direitos é capaz de legitimar o poder estatal a partir de sua formação deliberativa, orientada por condições comunicativas.

Palavras-chave: Pluralismo Político; Justiça como Equidade; Democracia Deliberativa.

Sumário: I. Introdução; II. A Teoria da Justiça como Equidade de Rawls; II.1. A Ideia de Posição Original; II.2. A Ideia de Consenso Sobreposto e os Limites da Razão Pública; II.3. Os Princípios de Justiça e a Concepção de Democracia Substantiva; III. A Democracia Deliberativa Procedimental de Habermas; IV. A Ética do Discurso e a Reconciliação entre Autonomia Moral e Sistema de Direitos; V. Conclusão; VI. Referências Bibliográficas.


Considerações Iniciais

Os estudos de Rawls e Habermas estão focados em uma das principais problemáticas relacionadas com as democracias modernas, a questão da produção de consensos entre cidadãos autônomos, necessários para a vida político-democrática. Alcançar esse consenso é, pode-se afirmar, um dos desafios teóricos mais relevantes para estes filósofos, para o qual traçam caminhos essencialmente distintos. O primeiro, por meio da da posição original, que será adiante explicada; e o segundo por meio comunicação linguística real de todos em um discurso ideal. Não obstante, enquanto o filósofo alemão desenvolveu uma teoria essencialmente procedimental, o americano desenvolveu uma teoria substantiva. Mas os pontos de diferença entre os autores são ainda mais amplos, e dizem respeito ao próprio objeto teórico de cada um: Habermas formula uma teoria abrangente que envolveria qualquer questão religiosa, moral ou política dentro da esfera deliberativa e Rawls uma teoria do político. Melhor dizendo, Rawls procura manter intocadas todas as doutrinas religiosas, metafísicas e morais para se basear exclusivamente na filosofia política autossustentável[1]. Já Habermas, por meio da teoria da ação comunicativa, abarca uma série de elementos que superam a filosofia política, se caracterizando como uma doutrina abrangente, buscando na filosofia da linguagem um parâmetro para a compreensão da racionalização social do mundo moderno[2]

Com efeito, os projetos rawlsiano e habermasiano para a modelação da democracia constitucional partem do pressuposto de que o pluralismo cultural é uma caractarística central das sociedade modernas. O projeto rawlsiano está estruturado a partir de fundamentos teóricos que fornecem a base para a construção de uma justiça como equidade: (I) a ideia de posição original; (II) a ideia de um consenso sobreposto e de razão pública; (III) os princípios de justiça que consolidam sua concepção substancial de democracia. Em Habermas, a estrutura da democracia está situada em bases deliberativas, e na formação de um sistema de direitos capaz de legitimar a ordem jurídico-política do Estado.


II. A Teoria da Justiça como Equidade de John Rawls

John Rawls, em “O Liberalismo Político”[3], traz nova ideia do contrato social e formula sua teoria da justiça como equidade, para abarcar a sociedade plural contemporânea em uma democracia constitucional[4] [5]. Para o autor, a sociedade democrática moderna é composta por doutrinas diferentes e incompatíveis entre si, mas razoáveis, onde todos os cidadãos respaldam as diferentes concepções morais, filosóficas ou religiosas. Essa seria a consequência do exercício da razão humana sobre instituições livres em um regime democrático constitucional. Quando surgissem doutrinas abrangentes desarrazoadas, o sistema deveria contê-las de maneira que não criassem empecilhos à unidade e à justiça da sociedade. O problema trabalhado pelo autor é justamente estabelecer a estrutura necessária para que doutrinas abrangentes profundamente divergentes, ainda que razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política do regime constitucional[6]. Em outras palavras, o projeto político-deliberativo rawlsiano pretende alcançar o consenso entre sujeitos racionais dotados de autonomia moral acerca do conteúdo de princípios de justiça necessários para regular a estrutura básica de uma sociedade plural.

O Liberalismo tenta trazer para o plano político a estrutura teórica de Rawls sobre a justiça, mais precisamente sobre como podemos deliberar sobre princípios de justiça aplicados universalmente em uma sociedade política bem-ordenada. Isto acontece na medida em que Rawls enfrenta inúmeras críticas à sua obra “Uma Teoria da Justiça” (1971) durante os anos 70. A principal dessas críticas questiona a real possibilidade de a concepção política de justiça como equidade poder, na prática, garantir que cidadãos com diferentes doutrinas abrangentes (religiosas ou filosóficas) deliberem sobre aspectos da política, com argumentos razoáveis que possam ser aceitos por pessoas racionais e morais. Esse é um dos temas mais caros para Rawls. Tanto assim que busca esclarecer, já no Liberalismo, que sua teoria da justiça não tem a pretensão de se tornar uma doutrina moral compreensiva, mas um modelo voltado apenas para questões básicas da política, como a organização das instituições sociais e a forma como deve ocorrer a distribuição de renda e de recursos. Sobre essas questões básicas, Rawls acredita que mesmo doutrinas morais divergentes podem alcançar um consenso, em termos de justiça como equidade. Estão, assim, concebidos os fundamentos para a ideia de consenso sobreposto (overlapping consensus), como adiante será analisado[7].

II. 1. A Ideia de Posição Original: o contratualismo rawlsiano

A ideia de posição original constitui um dos elementos centrais que compõem a teoria da justiça de Rawls. Por meio dela, a filosofia política rawlsiana é elevada à categoria contratualista, ou seja, os termos de cooperação social, firmados no contrato original, devem ser elaborados a partir de um acordo inicial sobre o qual todos os indivíduos submetidos podem concordar. A posição original é utilizada, assim, como um artifício metodológico, capaz de criar um cenário hipotético em que indivíduos livres e iguais, com igual capacidade racional, podem deliberar sobre o conteúdo dos termos contratuais fundamentais para o convívio social. Nesse momento hipotético, os indivíduos estariam desvinculados de seus projetos de vida pessoal, isto é, não poderiam conhecer qual o estado econômico, cultural ou político em que estão inseridos na vida social. Suas posições morais, filosóficas ou religiosas não podem influenciar a deliberação na posição original, uma vez que comprometeriam o seu resultado final, desvirtuando o conteúdo essencialmente político dos princípios de justiça.

A tese do autor é focada no desenvolvimento das condições necessárias para celebrar o acordo social, consistente na escolha dos princípios de justiça para orientar as principais instituições sociais em uma sociedade plural. Rawls deixa claro que a escolha de princípios que abarquem a pluralidade social só é factível considerando-se uma concepção política de justiça e não uma doutrina moral abrangente. Para construir essas condições, parte-se da ideia hipotética da “posição original” (original position).

A posição original seria um arranjo inicial apropriado para que o acordo social fosse celebrado em uma situação de equidade entre os cidadãos. Trata-se de uma situação imaginada em que as pessoas estariam em condição de igualdade para deliberarem. O autor define as pessoas como sendo cidadãos cooperativos da sociedade, o que seria um pressuposto da posição original. Os cidadãos devem ser livres e iguais em virtude de suas capacidades morais e das faculdades da razão. O fato de terem essas faculdades no grau mínimo necessário para serem membros plenamente cooperativos da sociedade é o que as tornam iguais[8]. Rawls, em Liberalismo, delineia uma concepção política de pessoa como resposta às possíveis lacunas que foram deixadas em Teoria. Procura responder à questão de como as partes, na posição original, poderiam aceitar o conteúdo dos princípios de justiça e a relação de precedência do primeiro princípio sobre o segundo[9]. Para tanto, desenvolve uma concepção política de pessoa, fundamental para explicar o comportamento das partes no momento de deliberação do acordo hipotético.

Essa concepção política de pessoa está ancorada na ideia de que os cidadãos são representados como pessoas dotadas de duas faculdades morais – a capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma concepção sobre o bem –, e que são livres em três aspectos: (I) os cidadãos concebem a si mesmos como indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção do bem; (II) consideram-se também no direito de fazer reivindicações válidas a suas instituições de modo a promover suas concepções do bem, desde que essas concepções estejam incluídas no leque permitido pela concepção pública de justiça; (III) os cidadãos devem ser capazes de assumir responsabilidades pelos seus objetivos (RAWLS, 1993, p. 29-35).  

Nesse ponto, é importante a distinção tecida por Rawls entre duas categorias de concepção de bem – uma concepção restrita e uma concepção plena. Na concepção restrita de bem estão incluídos os interesses básicos dos indivíduos para o desenvolvimento de seus planos de vida. Cada indivíduo racional deseja certa quantidade mínima de liberdades e de recursos econômicos que constituem requisitos para realizarem seus planos de vida. A ideia de uma concepção restrita de bem desempenha um papel fundamental no momento da posição original. Isso porque, nesse momento hipotético, os indivíduos agem com capacidade racional na escolha dos princípios de justiça. Mas se não conhecem as suas posições na sociedade, os seus verdadeiros interesses econômicos ou aspirações políticas, como podem ser incentivados a deliberar e quais seriam os critérios para a escolha dos princípios. Rawls, então, assume que as partes possuem uma concepção de bem de acordo com a teoria restrita do bem, segundo a qual, cada indivíduo possui interesse em preservar recursos básicos e liberdades mínimas para a vida em sociedade. Dotadas de uma concepção restrita de bem, as partes podem deliberar sobre princípios básicos de justiça. No momento da posição original, portanto, somente é assegurada às partes uma concepção restrita de bem que condiciona a escolha racional dos princípios a uma estrutura primária de bens (direitos sobre distribuição de recursos e liberdades mínimas). A concepção restrita de bem procura dar conta do pluralismo resultante de vontades diferenciadas, isto é, de distintos planos de vida presentes na sociedade. Ao reduzir a concepção de bem a um mínimo necessário para a deliberação no momento inicial, Rawls pretende ressaltar justamente o valor das concepções plenas de bem. Os indivíduos sabem que possuem planos de vida particulares, mas na posição original o conteúdo específico desses planos não pode influenciar a sua decisão. Então, somente lhes resta escolher princípios de justiça que possam preservar o livre desenvolvimento dos seus respectivos planos de vida na sociedade formada após o contrato social original. Ou seja, a despeito de não conhecerem os seus desejos e interesses pessoais – isto é, a sua concepção plena de bem –, as partes na posição original sabem que possuem um projeto de vida particular, e querem preservar a possibilidade de realizarem esse projeto. Somente por meio de liberdades básicas e de bens primários fundamentais as partes podem ter a certeza de que seus projetos de vida, sejam quais forem eles, estarão garantidos frente aos projetos de vida dos demais indivíduos[10].

As pessoas sujeitas à deliberação para a confecção do acordo social estariam submetidas ao que o autor chamou de “véu da ignorância” (veil of ignorance). É por meio desse artifício que se alcança a igualdade entre as partes deliberantes. O véu tem por finalidade retirar qualquer conhecimento desnecessário das partes, tanto com relação a elas mesmas como com relação aos demais participantes, que tenda a dar origem a preconceitos ou que denotem desigualdades entre elas. As informações presentes são somente aquelas necessárias para que a deliberação transcorra em um nível racional[11]. Nesse passo, as partes ficam posicionadas simetricamente umas em relação às outras de maneira que nenhuma delas tenha qualquer tipo de vantagem em relação à outra. O autor destaca com relação à posição original que não parece haver forma melhor de elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica a partir da ideia fundamental de sociedade como um sistema permanente e equitativo de cooperação entre cidadãos considerados livres e iguais[12]. Nessas condições de equidade é que se escolhem os princípios de justiça orientadores das principais instituições políticas e sociais e que se alcança o consenso sobreposto.

Como explica Rawls, o véu da ignorância desempenha um papel fundamental na manutenção da estabilidade de uma concepção política de justiça. Assim como a filosofia moral kantiana pretende retirar do sujeito moral autônomo quaisquer valores que possam influenciar na escolha de suas decisões individuais – em Kant esse objetivo é alcançado por meio da construção da ideia de Imperativo Categórico –, a teoria política rawlsiana concebe o véu da ignorância como forma de legitimar moralmente a formulação dos princípios de justiça. A ideia essencial é garantir as condições de justiça procedimental, sobretudo a igualdade e liberdade, como meio para que a deliberação possa alcançar um resultado substantivo justo. Nessas condições de equidade é que se escolhem os princípios de justiça orientadores das principais instituições políticas e sociais e que se alcança o consenso sobreposto.

II. 2. A Ideia de Consenso Sobreposto e os Limites da Razão Pública

O consenso sobreposto designa o modo como as diversas doutrinas razoáveis incompatíveis entre si podem alcançar um acordo razoável acerca da concepção política de justiça. É com base no consenso sobreposto que a sociedade democrática bem-ordenada de justiça como equidade pode estabelecer e preservar a unidade e a estabilidade, considerando o pluralismo razoável que é inerente a essa sociedade[13]. Em razão disso que o consenso sobreposto trata da concepção política de justiça sem se estender às questões morais abrangentes. A ideia de consenso sobreposto é inerente às condições estabelecidas pelo liberalismo político. Ora, se o liberalismo político pressupõe uma sociedade formada por diversas doutrinas abrangentes, cada qual expoente de uma concepção moral distinta e racional, tanto quanto se pode verificar em função de uma concepção política de justiça, é natural que esse pluralismo seja característica fundamental da sociedade bem-ordenada.

É certo, contudo, que o consenso deve ser justificado por aquilo que o autor chamou de “razão pública” (public reason). Ou seja, é a razão pública um limitador na escolha dos princípios de justiça e princípios constitucionais essenciais[14]. O autor concebe a ideia de razão pública como um dos fundamentos para a ordem constitucional democrática (RAWLS, 2001, p. 173):

(...) [a razão pública] explicita no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes entre si. Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a ideia de razão pública.  

Rawls ainda elenca os seguintes aspectos para a razão pública (RAWLS, 2001, p. 173):

(1) As questões políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargo público); (3) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussão de normas coercitivas a serem decretadas na forma da lei legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

O objeto da razão pública é bem delimitado por Rawls, compreendendo os elementos constitucionais essenciais – tais como os direitos e as liberdades básicas – e as questões de justiça básica – distribuição de recursos e divisão de deveres na sociedade. A partir dessa delimitação, o projeto rawlsiano pretende retirar do debate sobre estas questões fundamentais à ordem democrática qualquer argumento embasado unicamente em uma doutrina abrangente particular. É importante observar que Rawls desvenda com a ideia de razão pública os limites para a deliberação sobre os problemas mais relevantes da democracia, restringindo o campo dos possíveis argumentos a serem utilizados pelos cidadãos. Somente valores políticos devem resolver questões fundamentais, tais como liberdades e direitos constitucionais. O conteúdo da razão pública é formado, portanto, pela própria concepção política de justiça, na medida em que especifica certos direitos e liberdades fundamentais. É essencial que uma concepção política liberal inclua, além de seus princípios de justiça, princípios de argumentação e critérios para a exposição de informações pertinentes às questões políticas. São diretrizes para que a deliberação sobre questões políticas possa ser direcionada sempre aos princípios de justiça. Portanto, os valores políticos liberais podem, segundo Rawls , ser reunidos em duas categorias (RAWLS, 1993, p. 224):

a. The first kind—the values of political justice—fall under the principles of justice for the basic structure: the values of equal political and civil liberty; equality of opportunity; the values of social equality and economic reciprocity; and let us add also values of the common good as well as the various necessary conditions for all these values. b. The second kind of political values—the values of public reason—fall under the guidelines for public inquiry, which make that inquiry free and public. Also included here are such political virtues as reasonableness and a readiness to honor the (moral) duty of civility, which as virtues of citizens help to make possible reasoned public discussion of political questions.

O projeto deliberativo rawlsiano é, por assim dizer, um projeto delimitado pela ideia de razão pública, na medida em que os temas constitucionais e as questões básicas de justiça somente podem ser discutidos tendo como pano de fundo os valores políticos que podem ser diretamente resguardados pela razão pública[15] [16].  

O que define a escolha justa dos princípios é exatamente o procedimento marcado por uma situação de equidade entre as partes, sem nenhum critério prévio, conforme descrito na posição original. A autonomia das partes deliberantes, representantes dos cidadãos, é configurada na ausência de determinação externas ou estabelecimentos de princípios prévios à deliberação. O autor diferencia autonomia racional de autonomia plena. A autonomia racional é ocupada pelos representantes dos cidadãos em situação de igualdade na posição original. A autonomia plena aparece em um segundo momento e se refere aos cidadãos submetidos aos princípios escolhidos por eles mesmos. Essa submissão é natural e decorre do reconhecimento dos princípios de justiça escolhidos. Com base nessa diferenciação entre duas categorias de autonomia é possível identificar dois momentos distintos na estrutura da teoria da justiça rawlsiana. O primeiro momento é anterior aos princípios de justiça, o qual precede certos conhecimentos dos indivíduos sobre suas condições e interesses pessoais, e sobre o qual Rawls estabelece o consenso sobreposto para a escolha dos princípios de justiça. No segundo momento, com os princípios já estabelecidos, a vida política em sociedade é guiada pela ideia de razão pública. Ou seja, já em sociedade, os cidadãos somente podem defender seus projetos políticos por meio de argumentos legitimamente reconhecidos pelos demais, conforme os critérios estabelecidos pela razão pública. 

II. 3. Os Princípios de Justiça e a Concepção de Democracia Substantiva

Em Liberalismo, Rawls pretende responder a duas questões fundamentais: (I) procura identificar qual a concepção de justiça mais adequada para especificar os termos equitativos de cooperação entre cidadãos livres e iguais, e membros cooperativos de uma sociedade durante a vida toda; (II) considerando o fato do pluralismo razoável, é preciso verificar quais seriam os fundamentos da tolerância entre doutrinas abrangentes razoáveis.

Para responder à primeira pergunta, é preciso que a justiça como equidade identifique os princípios de justiça que possam servir como diretrizes para a forma como as instituições básicas devem realizar os valores de liberdade e igualdade. É preciso, assim, mostrar como os princípios de justiça propostos são mais aptos a organizar a estrutura básica da sociedade em função dos valores da liberdade e igualdade. Os dois princípios que, segundo Rawls, podem expressar de forma mais adequada o conteúdo da justiça e garantir a cooperação social são (RAWLS, 1993, p. 5-6):

a. Each person has an equal claim to a fully adequate scheme of equal basic rights and liberties, which scheme is compatible with the same scheme for all; and in this scheme the equal political liberties, and only those liberties, are to be guaranteed their fair value. b. Social and economic inequalities are to satisfy two conditions: first, they are to be attached to positions and offices open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they are to be to the greatest benefit of the least advantaged members of society[17].

O primeiro princípio é priorizado em relação ao segundo e estabelece liberdades essenciais ao indivíduo. Essas liberdades não são absolutas e podem ser cotejadas com outras liberdades essenciais. Até pela ordem dos princípios, percebe-se que, garantidas as liberdades básicas igualmente para todos, admite-se desigualdades desde que vinculadas à posição e cargos abertos a todos, e desde que traga maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. Rawls elenca as liberdades fundamentais como sendo a liberdade de pensamento e consciência; liberdades políticas; liberdade de associação; integridade física e psicológica da pessoa; direitos e liberdades abarcados pelo Estado de Direito. É justamente nas liberdades fundamentais que se incluem as necessidades básicas materiais das pessoas que garantem a sua autonomia.

O segundo princípio trata da justiça distributiva por meio da igualdade de oportunidades para todos. Rawls o chama de princípio da diferença. Tendo como ponto de partida a igualdade, o princípio da diferença requer que qualquer forma de desigualdade estabelecida ou referendada por uma ação estatal deva promover a máxima vantagem dos menos favorecidos[18]. Por ser uma teoria voltada para a estrutura básica da sociedade e suas principais instituições, os princípios fundamentais devem estar previstos na Constituição, por ser a mais importante das instituições.

São esses, portanto, os princípios de justiça como equidade que formam o conteúdo de uma concepção política de justiça. Essa concepção tem três características centrais: (I) é aplicada à estrutura básica de uma sociedade, entendida como o conjunto de instituições políticas, sociais e econômicas que se relacionam entre si e compõem uma democracia constitucional; (II) a concepção política não se confunde com nenhuma doutrina abrangente, mas, pelo contrário, ela expressa um módulo – uma concepção autossustentável – que se encaixa em várias doutrinas abrangentes razoáveis, em convívio na sociedade e por ela reguladas; (III) o seu conteúdo é composto por certas ideias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade, que compreende as instituições políticas de um regime constitucional e as interpretações sobre essas instituições (RAWLS, 1993, p. 11-15).

A deliberação democrática, segundo o projeto rawlsiano, é ancorada, em última análise, nos princípios de justiça como equidade. São estes princípios que formam o conteúdo de uma concepção política de justiça a ser aplicada à estrutura básica da sociedade. E são também esses princípios que devem funcionar como um último grau de justificação para as ações individuais de cidadão autônomos. Nesse sentido, o que confere o caráter democrático à deliberação é a possibilidade de que os cidadãos fundamentem suas ações em termos que possam ser aceitos por outros cidadãos igualmente livres e racionais[19]. Em outras palavras, a deliberação é democrática quando baseada em uma concepção pública de justiça, em que os membros deliberantes são pessoas morais livres e iguais. A questão que se põe é saber como garantir essas condições deliberativas propostas pelo filósofo como um pressuposto do procedimento racional de justificação. O autor responde que, como em um círculo virtuoso, esses mesmos princípios devem servir como base da formação da sociedade e propõe algumas instituições necessárias à estabilidade de uma sociedade bem ordenada, quais sejam (RAWLS, 2011, p. LXV):

a) O financiamento de campanhas eleitorais e formas de assegurar que informações públicas sobre questões de política pública se encontrem acessíveis (VIII, §12-3). A prescrição desses arranjos (e dos que se seguem) é meramente uma indicação daquilo que é necessário para garantir que representantes eleitos e outras autoridades possam ser suficientemente independentes de interesses econômicos e sociais particulares e para proporcionar o conhecimento e as informações com base nos quais políticas públicas possam ser formuladas e avaliadas de forma inteligente por cidadãos que empregam a razão pública. b) Certa igualdade equitativa de oportunidades, em especial com relação à educação e ao treinamento profissional. Sem essas oportunidades, não é possível que as pessoas de todos os segmentos da sociedade participem dos debates da razão pública ou contribuam para as políticas econômicas e sociais. c) Uma distribuição decente de renda e riqueza que satisfaça a terceira condição do liberalismo: todos os cidadãos devem conter os meios polivalentes necessários para capacitá-los a tirar proveito de forma inteligente e efetiva de suas liberdades fundamentais. d) A sociedade entendida como empregador de última instância mediante a estrutura geral ou local de governo e mediante outras políticas sociais e econômicas. Encontrar-se destituído de um sentido de segurança de longo prazo e de oportunidades de trabalho e ocupação que deem satisfação corrói não apenas o sentido de autorrespeito dos cidadãos, como também o de que são membros da sociedade, em vez de se perceberem simplesmente como aprisionados por ela. Esta percepção gera desprezo por si próprio, amargura e ressentimento. e) Garantia de assistência básica à saúde para todos os cidadãos.

Em seguida Rawls afirma que essas instituições são pré-requisitos mínimos de uma sociedade para operacionalizar um procedimento deliberativo delimitado pela razão publica. Ou seja, a ideia de razão pública propõe um modo de caracterizar a estrutura e o conteúdo das bases fundamentais da sociedade que seja apropriado a deliberações políticas.       

Com efeito, o modelo de democracia deliberativa trazido pelo autor se caracteriza por ser substantivo uma vez que além de tratar do processo de deliberação, estabelece também princípios substantivos que servem para verificar se o procedimento atingiu um resultado justo. Na verdade, a deliberação serve para indicar a melhor forma de aplicação desses princípios e, por consequência, é por eles restringida. Através de procedimentos deliberativos orientados pela razão pública, os princípios de justiça podem ser aplicados à estrutura básica da sociedade e guiar a interação entre as instituições que a compõe, e a dos cidadãos autônomos com essas instituições básicas.


III. A Democracia Deliberativa Procedimental de Jürgen Habermas

Visando superar a falta de legitimidade democrática constatada na Teoria Crítica[20], Habermas trabalha um modelo de democracia deliberativa procedimental. O projeto tem sua essência na superação do modelo substantivo de sociedade justa, sugerindo as condições comunicativas necessárias para que os membros envolvidos possam decidir em um procedimento constante e modificável acerca do melhor projeto político para a sociedade. O modelo democrático habermasiano é construído, em linhas gerais, a partir da conjugação dos seguintes elementos: (I) uma estrutura deliberativa de caráter democrático; (II) um sistema de direitos e liberdades fundamentais; (III) um princípio normativo do discurso, apto a guiar a formação da opinião e da vontade no Estado.

Em Between Facts and Norms, mais uma vez, o consenso é trazido ao debate na filosofia. As ideias de pluralismo razoável e de doutrinas abrangentes são também pressupostos para o projeto democrático habermasiano (HABERMAS, 1996). O pluralismo político e cultural são temas centrais que perpassam por inúmeros trabalhos de Habermas, tanto na filosofia política quanto na filosofia do direito. No entanto, de forma distinta daquela proposta por John Rawls, Habermas busca dar conta da problemática sobre o consenso a partir de uma proposta democrático-deliberativa que se funda na sua concepção sobre o agir comunicativo[21].

O grande desafio habermasiano é buscar conciliar as liberdades individuais, características de sujeitos morais autônomos, com o princípio democrático. Uma ordem jurídico-normativa (direito) somente poder ser legitimada na medida em que fornece condições necessárias para que sujeitos morais autônomos possam ter consideradas as suas posições políticas individuais para a formação da vontade e da opinião políticas do Estado.

Habermas desloca a legitimidade do direito para a dimensão da liberdade comunicativa tangenciada por um sistema de direitos alcançado através do procedimento deliberativo. A liberdade comunicativa envolve a possibilidade de o cidadão defender a sua posição política em meio à deliberação pública, através do uso público da razão. Essa liberdade é expressão da autonomia política de cada indivíduo para levar ao debate público as razões que entende como suficientes e legítimas para defender sua concepção sobre o bem comum. A função do direito, nesse ponto, consiste na regulamentação dos procedimentos deliberativos de formação da opinião e da vontade coletiva, coordenando as razões que podem ser legitimamente defendidas pelos seus participantes (HABERMAS, 1996, p. 119):

Communicative freedom exists only between actors who, adopting a performative attitude, want to reach an understanding with one another about something and expect one another to take positions on reciprocally raised validity claims. (…) Communicatively acting subjects commit themselves to coordinating their action plans on the basis of a consensus that depends in turn on their reciprocally taking positions on, and intersubjectively recognizing, validity claims. From this it follows that only those reasons count that all the participating parties together find acceptable.

Habermas traça os contornos da estrutura de uma democracia deliberativa com intuito de delimitar as dimensões entre a autonomia privada e a autonomia pública. A teoria do direito ao longo do século XIX promoveu uma separação essencial entre essas duas dimensões. Os direitos subjetivos dos quais são titulares os indivíduos no âmbito de sua autonomia privada foram associados ao reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito moral. Com efeito, no pensamento jurídico-filosófico do século XIX, o direito privado estava legitimado na autonomia moral da pessoa enquanto sujeito de direitos inalienáveis ligados à propriedade, à vida e à liberdade. Os diplomas legais, para serem considerados legítimos, deveriam garantir a inviolabilidade dos direitos inerentes à pessoa humana. A autonomia da vontade conferia ao individuo um espaço de liberdade para tomar decisões que afetassem sua vida privada, sem que pudesse sofrer qualquer forma de interferência jurídico-estatal em sua escolha particular. Na estrutura em que estava inserido esse sistema de direitos, os direitos subjetivos compunham poderes concedidos aos indivíduos pelo ordenamento jurídico-positivo. O círculo da legitimidade-legalidade era fechado com o fundamento de validade do exercício dos direitos subjetivos respaldado no próprio direito positivo. Dessa forma, a legitimidade ficava adstrita aos limites da legalidade.

O primeiro passo dado por Habermas na redefinição da estrutura conceitual e funcional dos direitos subjetivos consiste na realocação do indivíduo dentro de uma sociedade em que há a colaboração entre sujeitos que reconhecem uns aos outros na qualidade de indivíduos livres e iguais. Nesse ponto, os direitos não se referem a indivíduos isolados em posições atomistas, sem qualquer relação entre si. Pelo contrário, o sistema de direitos é concebido para indivíduos que convivem em uma mesma sociedade, e formam uma determinada estrutura social. O problema aqui é definir como um sistema de direitos pode ser construído a partir do consenso entre indivíduos com interesses particulares e objetivos políticos distintos. As teorias contratualistas, para Habermas, não apresentaram respostas suficientes para essa questão na medida em que não ofereceram uma explicação razoável para a transição ao Estado de Direito através do contrato social[22].

A resposta para o desafio da produção do consenso é dada por Habermas através da construção racional de um sistema de direitos. O direito é concebido de forma racional, de maneira a ser aceito e reconhecido pela sociedade. Essa construção racional do direito se dá, em um primeiro momento, por meio da comunicação e participação do cidadão, de forma a garantir-lhe a autodeterminação[23]. Nesse sentido, a sociedade como um todo deve ser estruturada de forma a reconhecer todos os seus atores. O reconhecimento é justamente o aceite recíproco dos participantes, e só é possível por meio de sistemas inclusivos de constituição da vontade[24]. Assim, o cerne da legitimidade de um Estado Democrático de Direito, para o filósofo, está no procedimento de criação das decisões em todos os âmbitos[25]. A tensão entre faticidade e validade, inerente ao fenômeno jurídico somente pode ser superada, para Habermas, por meio da construção racional do direito, em que a relação dialógica entre cidadãos livres e iguais possa se ver refletida, institucionalmente, na formação da vontade jurídico-política do Estado.

Em sua construção teórica, o filósofo alemão concilia a autonomia privada ou o direito subjetivo, garantido pelos direitos humanos com a autonomia pública resultante da soberania popular. Sob outro prisma, seria uma conciliação da tradição liberal e da tradição comunitarista. Como se sabe, os liberais entendem os direitos na sociedade democrática moderna com a função de resguardar as liberdades negativas do indivíduo. Os limites da soberania popular seriam os direitos fundamentais da pessoa. Para os comunitaristas o Estado deve proporcionar a auto-organização social para que defina os seus próprios padrões éticos. A auto-organização se dá por meio de um processo democrático e os interesses individuais devem estar de acordo com os valores da comunidade. Pela definição percebe-se a incompatibilidade entre os liberais e os comunitaristas. Retornando ao primeiro ponto, Habermas sustenta que, para ser legítimo, o direito deve resguardar as liberdades individuais garantidas pela autonomia privada, com a participação ativa do cidadão nas decisões políticas, garantidora da autonomia pública. Essa conciliação proposta pelo autor se daria por meio do discurso público racional de forma que os cidadãos sejam autores das leis, mas destinatários das liberdades individuais fundamentais por eles mesmos escolhidas (LEITE, 2008, p. 98):

A função do Estado, na teoria discursiva do direito, é assegurar as liberdades públicas concernentes à participação dos cidadãos nas decisões públicas e, ao mesmo tempo, a inviolabilidade do núcleo fundamental de liberdades privadas estipulado no sistema de direito.

No capítulo IV de Between Facts and Norms, o autor diferencia a legitimidade do processo de normatização e a legitimidade do exercício do poder político, apesar de ambos serem cooriginários e interligados. O poder político seria constituído pelo direito e o direito, para ser duradouro, precisaria da instrumentalização do poder político. A partir daí surge a necessidade de se organizar o Estado. Conforme mencionado acerca da conexão entre liberais e comunitaristas, o filósofo, ao tratar da relação interna entre direito e política, afirma que os direitos subjetivos somente podem ser determinados por meio de organismos que tomem decisões obrigatórias para a coletividade. Por outro lado, essas decisões somente são obrigatórias pela forma jurídica que as revestem. As decisões do Estado de direito devem ser legitimadas pelo direito corretamente estatuído. Em outras palavras, o caratér legitimatório estatal depende de um direito que tem aceitação racional por parte de todos os membros da sociedade, numa formação discursiva da opinião e da vontade.

Habermas entende que uma comunidade jurídica formada por pessoas livres e iguais constitui direitos fundamentais por eles deliberados, o que entende ser o nascedouro da socialização horizontal dos cidadãos. A criação do Estado como estabilizador desse sistema faz com que a socialização horizontal com a atribuição de direitos recíprocos, passe a ser uma relação vertical institucionalizada entre indivíduo e Estado. A soberania do povo passa a ser exercida por meio de corporações e comunidades de foros que compõem uma esfera pública de deliberação. Em resumo, a teoria do filósofo alemão busca conciliar os direitos fundamentais com a soberania popular por meio da ação comunicativa, pilar da democracia deliberativa.


IV. A Ética do Discurso e a Reconciliação entre Autonomia Moral e Sistema de Direitos

Na teoria da justiça rawlsiana, o pluralsimo moral, decorrente da diversidade cultural de uma sociedade democrática, é superado, ao menos em tese, em dois momentos distintos por meio de artificios diferentes. Ainda durante a posição original, o pluralismo é contornado pela ideia de consenso sobreposto e pela confiança de Rawls em um equilíbrio reflexivo entre as doutrinas morais abrangentes. Já durante a dinâmica política em sociedade, a pluralismo torna-se um desafio na medida em que cada cidadão possui, agora, conhecimento sobre seus projetos de vida pessoais, bem como sobre suas  concepções religiosas e filosóficas abrangentes. Como proposta de solução para esse impasse, o modelo delibeartivo rawlsiano se funda sobre a ideia de razão pública para defender o chamado fato do pluralismo razoável. O trunfo da teoria rawlsiana está em delimitar a deliberação pública tão-somente ao seu objeto particular, que é o essencialmente político em uma sociedade, a sua estrutura básica. Os argumentos considerados legítimos para a deliberação pública são aqueles que podem ser justificados com base na razão pública e que, por isso, são imunes a doutrinas morais abrangentes. 

Uma das dificuldades encontrada na leitura da teoria da justiça de Rawls consiste em identificar um modelo para a diferenciação daquilo que é considerado objeto propriamente da moral e que, portanto, é relegado ao espaço de autonomia privada de cada indivíduo. Em outras palavras, o problema se encontra na distinção entre o político e o moral, ou seja, entre aquilo que pode ser regulamentado na vida em sociedade – a legalidade pública – e o que está sujeito apenas ao espaço de julgamento moral individual. No centro dessa importante distinção está a própria ideia de legitimidade do direito. Uma vez que o direito se pretende legítimo, é preciso que ele possa ser estruturado de forma a garantir tanto um conjunto de normas públicas para o convívio social, quanto a preservação do espaço de autonomia privada de cada cidadão. Para tanto, Habermas concebe uma ética do discurso como aparato teórico a fim de coompreender o problema da legitimidade do direito.

A estrutura da ética do discurso habermasiana está dividida em duas dimensões complementares. A primeira delas especifica as condições para tornar possível um acordo racional legítimo. Nesse sentido, o procedimento dialógico para conferir validade a normas sociais deve envolver todos aqueles possivelmente afetados pela norma. Todos devem ter iguais oportunidades para desempenharem seus papeis no processo discursivo, livres de qualquer pressão externa, isto é, desconstrangidos de qualquer força política ou econômica. Assim como já dissemos anteriormente, essa é a condição de liberdade comunicativa que Habermas vê como necessária para o procedimento discursivo. Em linhas gerais, o procedimento discursivo deve reunir as condições de reciprocidade, reflexividade e assimetria entre os argumentos utilizados pelos participantes[26].

A segunda dimensão especifica, em um nível formal, o possível conteúdo desse acordo. Habermas associa a validade de uma norma com a genralização de seu conteúdo, isto é, somente pode ser considerada válida a norma que satisfaz a seguinte condição: todos os indivíduos afetados pela norma devem poder aceitar as suas consequências tal como possam ser antecipadas de forma genérica. Está justificado, assim, o princípio da universalização, como pilar da segunda dimensão da ética do discurso[27].

A conjugação entre essas duas dimensões da ética do discurso permite que Habermas estabeleça a sua linha distintiva entre o público e o privado. Somente com essa distinção fica delinaeado o objeto da deliberação pública, ou seja, aquilo que pode ser regulamentado por meio da construção de um sistema de direitos. Umponto é importante para esclarecer a delimitação da moralidade no ambito da teoria habermasiana: as decisões que devem ser deixadas para o julgamento moral de cada indivíduo somente podem ser definidas por meio de um processo de deliberação pública. Ou seja, delimitar até que ponto é legítima a regulação do Estado por meio do direito, sem que esbarre sobre o espaço de autonomia moral dos indivíduos, é uma tarefa que somente pode ser realizada através da deliberação pública. A deliberação, nesse sentido, é a chave para se compreender a legitimidade do sistema de direitos e, consequentemente, da própria democracia enquanto sistema político.      


Considerações Finais

Os projetos democráticos em Rawls e Habermas são essencialmente distintos. A justiça como equidade rawlsiana retoma, com algumas particularidades, a tradição contratualista, transferindo a ideia de estado de natureza para uma posição original hipotética. A busca pelo consenso político, dessa forma, é baseada na formulação de uma concepção política de justiça em que cidadãos dotados de duas faculdades morais – uma concepção de bem e um senso de justiça – podem estabelecer os acordos necessários para a vida em cooperação numa sociedade bem-ordenada. Os acordos que podem reger a interação entre os cidadãos, e assim também a estrutura básica institucional da sociedade, somente são justos na medida em que refletem uma concepção política de justiça razoável. Ao traçar princípios de justiça para a garantia das liberades fundamentais e igualdades substanciais, Rawls desenha um projeto de democracia substantivo, no qual a deliberação pública é ancorada em uma cultura política pública, formada por valores que expressam (ou derivam) os princípios de justiça originais.

Em Habermas, a problemática sobre o consenso nas sociedades plurais é redimensionada para a questão da legitimidade do direito moderno, que fundamenta a própria democracia constitucional. O aspecto legitimatório desponta da tensão entre validade e faticidade como característica dos ordenamentos jurídico-estatais. Habermas procura traçar o modo como um sistema de direitos pode legitimar a formação do poder político do Estado, ou seja, procura conciliar dois princípios que  sempre foram alvo de disputa na filosofia política: o princípio democrático (sobreania popular) com o princípio da autonomia da vontade. De um lado, cidadãos com projetos políticos distintos e interesses pessoais divergentes. De outro, a necessidade de que a vontade política do Estado seja uniformizada conforme um padrão democrático de legitimidade. O caminho encontrado pelo projeto democrático habermasino consiste na conciliação entre os dois princípios através do princípio do discurso, como standard da democracia deliberativa.

Os dois projetos democráticos, portanto, buscam superar a questão do pluralismo político por meio de caminhos diferentes. Para Rawls, a justiça como equidade, baseada em princípios de justiça capazes de distribuir direitos e deveres de forma justa entre indivíduos livres e iguais engajados em uma sociedade cooperativa. Para Habermas, somente um processo dinâmico ancorado na deliberação dialógica é capaz de sustentar uma democracia constitucional.  


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Notas

[1] O objeto do estudo rawlsiano é essencialmente o “político”, ou seja, uma concepção política de justiça desenhada em conformidade com as características de uma sociedade liberal. Assim explica Rawls logo nos primeiros parágrafos de O Liberalismo Político: “Perhaps I should, then, begin with a definition of political liberalism and explain why I call it ‘political’. But no definition would be useful at the outset. Instead I begin with a first fundamental question about political justice in a democratic society, namely what is the most appropriate conception of justice for specifying the fair terms of social cooperation between citizens regarded as free and equal, and as fully cooperating members of society over a complete life, from one generation to the next?” (RAWLS, 1993, p. 3). 

[2] Para Habermas, a filosofia moderna, para dar conta do fenômeno da racionalização social, ou seja, das diversas relações entre indivíduos racionais autônomos, tem de analisar a ação segundo o modelo comunicativo. Em verdade, a teoria do agir comunicativo representa o modelo habermasiano para a compreensão da interação entre indivíduos racionais que buscam o entendimento. A ação comunicativa transcende o campo do político, e apresenta-se como um projeto da filosofia da linguagem para explicar o comportamento intersubjetivo entre os cidadãos. Cf. HABERMAS, (1987).

[3] “O Liberalismo Político” (Political Liberalism), de 1993, expressa a pretensão de Rawls em sistematizar as reformulações feitas na sua “Uma Teoria da Justiça” (A Theory of Justice), de 1971, sendo marcante a ideia de transformá-la em uma doutrina política sem pretensões universalistas.

[4] A ideia de contrato social é um dos pilares do liberalismo clássico, que teve como principais expoentes autores como Grócio, Pufendorf, Locke e, de uma forma particularmente distinta, Hobbes e Rousseau. O contrato social foi, em linhas gerais, concebido como um artifício teórico para expressar o acordo capaz de superar o Estado de Natureza, em que se encontravam os indivíduos, com o objetivo de alcançar um Estado Social. O pano de fundo desse acordo era a preservação de liberdades e direitos tidos como naturais, ou seja, inerentes à condição humana, contra a expansão do poder estatal. Contudo, “O Liberalismo Político” rawlsiano marca uma profunda diferença em relação ao projeto liberal clássico. O contratualismo de Rawls não busca a legitimidade do governo, como pretendiam, sobretudo, Hobbes e Locke, mas o modo como se pensar uma teoria da justiça. Dessa forma, pode-se dizer que o objeto do contratualismo rawlsiano é essencialmente distinto daquele liberal clássico, na medida em que se dirige à postulação de princípios de justiça para uma sociedade já reconhecida como politicamente liberal.

[5] O contrato social em Rawls também se diferencia da ideia liberal clássica em outro ponto fundamental: a consideração sobre indivíduos defensores de doutrinas morais, religiosas e filosóficas diversas é o ponto de partida de Rawls para o acordo constitutivo dos princípios de justiça. Cf. WEITHMAN, (2010).

[6] Dessa forma, Rawls pretende conciliar, a partir da ideia de “consenso sobreposto” ou “consenso por sobreposição” (overlapping consensus) as diversas doutrinas abrangentes presentes em uma sociedade democrática moderna: “The aim of justice as fairness, then, is practical: it presents itself as a conception of justice that may be shared by citizens as a basis of a reasoned, informed, and willing political agreement. It expresses their shared and public political reason. But to attain such a shared reason, the conception of justice should be, as far as possible, independent of the opposing and conflicting philosophical and religious doctrines that citizens affirm.” (RAWLS, 1993 p. 9).

[7] Nesse sentido, explica Joshua Cohen:  “In such a society we have a overlapping consensus on a political conception of justice. Citizens achieve social unity because they all accept that conception and so agree to conduct the fundamentals of political argument on the shared ground that the conception makes available and to set aside for political purposes their deep, ultimate, and persistent disagreement about what we are like, what the world is like, and how best to face its demands.” (COHEN, 1996, p. 133).   

[8] Rawls alerta que a sua concepção sobre a posição original é apenas uma das muitas possíveis versões que as teorias contratualistas podem fornecer. Diferentes teorias podem conceber as partes interessadas, nessa posição hipotética, condicionadas por diferentes valores, objetivos ou crenças. Tudo depende de qual concepção sobre justiça é a adotada: “There are, as I have said, many possible interpretations of the initial situation. This conception varies depending upon how the contracting parties are conceived, upon what their beliefs and interests are said to be, upon which alternatives are available to them, and so on. In this sense, there are many different contract theories. Justice as fairness is but one of these.” (RAWLS, John,1971-1999, p. 105).

[9] O conteúdo desses princípios de justiça será adiante analisado neste trabalho.

[10] “Nevertheless, the thin theory of the good which the parties are assumed to accept shows that they should try to secure their liberty and self-respect, and that, in order to advance their aims, whatever these are, they normally require more rather than less of the other primary goods. In entering into the original agreement, then, the parties suppose that their conceptions of the good have a certain structure, and this is sufficient to enable them to choose principles on a rational basis.” (RAWLS, 1971-1999, p. 349).

[11] O “véu da ignorância” representa um dos pontos de contato da filosofia política rawlsiana com a filosofia kantiana. Mais precisamente, a ideia de imperativo categórico, para Kant, expressa um modelo de conduta em que os indivíduos devem basear-se, devendo orientar-se de modo que a sua ação individual possa ser elevada a uma máxima de comportamento universal. Com efeito, o “véu da ignorância” rawlsiano retira das partes na posição original o conhecimento sobre circunstâncias pessoais que pudessem corromper o acordo social, fazendo com que procurem um consenso baseado em valores universais. Segundo Rawls: “The idea of the original position is to set up a fair procedure so that any principles agreed to will be just. The aim is to use the notion of pure procedural justice as a basis of theory. Somehow we must nullify the effects of specific contingencies which put men at odds and tempt them to exploit social and natural circumstances to their own advantage. Now in order to do this I assume that the parties are situated behind a veil of ignorance. They do not know how the various alternatives will affect their own particular case and they are obliged to evaluate principles solely on the basis of general considerations.” (RAWLS, 1971-1999, p. 118).

[12] “We introduce an idea like that of the original position because there seems no better way to elaborate a political conception of justice for the basic structure from the fundamental idea of society as an ongoing and lair system of cooperation between citizens  regarded as  free  and equal.” (RAWLS, 1993, p. 26).

[13] “(…) the well-ordered democratic society of justice as fairness may establish and preserve unity and stability given the reasonable pluralism characteristic of it.” (RAWLS, 1993, p. 134).

[14] Rawls define a ideia de razão pública da seguinte forma: “Public reason is characteristic of a democratic people: it is the reason of its citizens, of those sharing the status of equal citizenship. The subject of their reason is the good of the public: what the political conception of justice requires of society's basic structure of  institutions, and of the purposes and ends they are to serve.” (RAWLS, 1993, p. 213). 

[15] Nesse sentido: “The point of the ideal of public reason is that citizens are to conduct their fundamental discussions within the framework of what each regards as a political conception of justice based on

values that the others can reasonably be expected to endorse and each is, in good faith, prepared to defend that conception so understood. This means that each of us must have, and be ready to explain, a criterion of what principles and guidelines we chink other citizens (who are also free and equal) may reasonably be expected to endorse along with us.” (RAWLS, 1993, p. 226).

[16] Em artigo posterior ao Liberalismo, Rawls traça, com maior precisão, os contornos sobre a ideia de razão pública: “The idea of public reason arises from a conception of democratic citizenship in a constitutional democracy. This fundamental political relation of citizenship has two special features: first, it is a relation of citizens within the basic structure of society, a structure we enter only by birth and exit only by death; and second, it is a relation of free and equal citizens who exercise ultimate political power as a collective body.” (RAWLS, 1997, p. 765-807). Diante do fato do pluralismo razoável, a razão pública expressa o consenso entre cidadãos livres e iguais, no uso de suas capacidades racionais, sobre os termos da cooperação social fundados em uma concepção política de justiça razoável.

[17] O segundo princípio sofre ligeira alteração em relação ao modo como estava formulado em Teoria: “social and economic inequalities are to be arranged so that they are both (a) reasonably expected to be to everyone’s advantage, and (b) attached to positions and offices open to all.” (RAWLS, 1971-1999, p. 53). 

[18] O princípio da diferença é explicado de forma lapidar por um dos principais críticos comunitaristas da teoria rawlsiana, Michael Sandel: “Que princípios escolheríamos para governar as desigualdades sociais e econômicas? Para nos resguardar do risco de nos ver na miséria poderíamos, em um primeiro momento, apoiar uma distribuição equânime de renda e riqueza. Mas talvez nos ocorresse a possibilidade de ter uma vida melhor, ainda que estivéssemos na base da pirâmide. Suponhamos que, ao permitir certas desigualdades, como salários mais altos para médicos do que para motoristas de ônibus, pudéssemos melhorar a situação daqueles que têm menos – aumentando o acesso dos pobres aos serviços de saúde. Ao admitir essa possibilidade, estaríamos adotando o que Rawls denomina ‘princípio da diferença’: só serão permitidas as desigualdades sociais e econômicas que visem ao benefício dos membros menos favorecidos da sociedade.” (SANDEL, 2012, p. 189).

[19] Joshua Cohen, um dos principais teóricos da temática da deliberação, expressa sua posição de forma semelhante àquela defendida por Rawls: “In such a procedure participants regard one another as equals; they aim to defend and criticize institutions and programs in terms of considerations that others have reason to accept, given the fact of reasonable pluralism and the assumption that those others are reasonable; and they are prepared to cooperate in accordance with the results of such discussion, treating the results as authoritative.” (COHEN, 1996, p.100).

[20] A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt originou-se na década de 1920, orientada pelo filósofo Max Horkheimer. Horkheimer e Marcuse escreveram uma série de artigos com críticas sistemáticas ao positivismo científico. Os Teóricos Críticos entendiam que os objetos de observação da ciência e os seus sujeitos observadores seriam socialmente constituídos e só poderiam ser analisados e interpretados em consonância com o seu contexto histórico e social. Após a Segunda Guerra Mundial, a Teoria Crítica, como uma Escola unificada, já praticamente não existia, seja pela separação dos teóricos em razão de emigração, seja pelas próprias controvérsias teóricas. Habermas deu uma nova direção à Teoria Crítica para a hermenêutica, para o pragmatismo e para a análise da linguagem.   

[21] Habermas pretende desenvolver um modelo teórico deliberativo pós-metafísico, ou seja, desvinculado de qualquer concepção metafísica para a explicação do fenômeno democrático. Para tanto, adota uma postura diferente de Rawls, baseada não em uma concepção de justiça a ser aplicada em condições políticas predeterminadas, mas sim em uma filosofia da linguagem que possa explicar os principais elementos do agir comunicativo: “One should first be aware that the theory of communicative action involves a particular view about how social coordination is effected through language. Specifically, competent speakers know how to base their interactions on validity claims that their hearers will accept or that could, if necessary, be redeemed with good reasons. As understood by participants engaged in interaction and discourse, truth claims are claims about the objective world that all human beings share, and moral claims have to do with norms for interpersonal relationships that any autonomous adult should find rationally acceptable from the standpoint of justice and respect for persons. If such claims are valid, then any competent speaker should, under suitable conditions, be able to accept the claim on the basis of good reasons. When a claim is contested, actually bringing about such rational acceptance requires actors to shift in to a discourse in which, the pressures of action having been more or less neutralized, they can isolate and test the disputed claim solely on the basis of arguments.” (REGH, 1996, p. XIV-XV).

[22] A crítica de Habermas direcionada às teorias contratualistas está inserida na sua preocupação com a busca por um fundamento de legitimidade para o direito moderno. Neste sentido, o autor deixa claro, no posfácio de Between Facts and Norms (1994), que o projeto contratualista desde Hobbes até Rawls não foi capaz de superar o problema da legitimidade nas sociedades plurais: “What grounds the legitimacy of rules that can be changed at any time by the political lawgiver? This question becomes especially acute in pluralistic societies in which comprehensive worldviews and collectively binding ethics have disintegrated, societies in which the surviving posttraditional morality of conscience no longer supplies a substitute for the natural law that was once.” (…) “From the standpoint of legal theory, the modern legal order can draw its legitimacy only from the idea of self-determination: citizens should always be able to understand themselves also as authors of the law to which they are subject as addressees. Social-contract theories have construed the autonomy of citizens in the categories of bourgeois contract law, that is, as the private free choice of parties who conclude a contract. But the Hobbesian problem of founding a social order could not be satisfactorily resolved in terms of the fortuitous confluence of rational choices made by independent actors. This led Kant to equip the parties in the state of nature with genuinely moral capacities, as Rawls would later do with parties in the original position. Today, following the linguistic turn, discourse theory provides an interpretation of this deontological understanding of morality. Consequently, a discursive or deliberative model replaces the contract model: the legal community constitutes itself not by way of a social contract but on the basis of a discursively achieved agreement grounded in religion or metaphysics.” (HABERMAS, 1996, p. 448-449).

[23] Para Habermas: “Porque esse meio de poder estatal se constitui em formas do Direito, ordenamentos políticos nutrem-se do pleito de legitimidade jurídica. É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas solicita dos seus endereçados reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer  reconhecimento. Para a legitimação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei, requerem-se, por isso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse pleito como digno de ser reconhecido.” (...) “Essa estrutura reflete-se no modo singular da validade do Direito que se situa entre a facticidade de o Estado promulgar o direito com a legitimidade da positivação jurídica através de um procedimento que se pretende racional.” (...) “O princípio da soberania do povo estabelece procedimento que a partir de suas características democráticas, fundamenta a suposição de resultados legítimos. Esse princípio expressa-se nos direitos à comunicação e à participação que garantem a autonomia pública dos cidadãos” (...) “Parto do princípio, que aqui não posso explicar em maiores detalhes, de que podem pleitear legitimamente exatamente aquelas regulamentações, com as quais todos os eventuais implicados poderiam concordar como participantes de discursos racionais. Em discursos, os participantes pretendem chegar a pontos de vista comuns, tentando convencer-se mutuamente de algo através de argumentos, enquanto que em negociações buscam um pacto quanto aos seus interesses divergentes. (No entanto, a lealdade a tais pactos, por sua vez, depende de procedimentos que, na elaboração dos compromissos, são discursivamente fundamentados.) A pressuposição do resultado legítimo precisa apoiar-se, em última instância, em um arranjo comunicativo, sendo pois, tais discursos (e negociações) o lugar em que se pode formar uma vontade racional política.” (grifo nosso) (HABERMAS, 2003, p. 122).  

[24] Para Habermas: “A força origina-se, isso sim, do poder gerado comunicativamente em meio à práxis de autodeterminação dos cidadãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma práxis através da institucionalização das liberdades públicas. A justificação existencial do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais chegam ao acordo mútuo quanto a quais devem ser os objetivos e normas que correspondam ao interesse comum.” (HABERMAS, 2002a, p. 272-273).  

[25] Nesse sentido: “O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, de checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racionais, voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe em um exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do outro e complementar-se. A política dialógica e instrumental, quando as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas, podem entrecruzar-se no medium das deliberações. Tudo depende, portanto, das condições de comunicação e procedimento que conferem força legitimatória à formação institucionalizada de opinião e da vontade. O terceiro modelo de Democracia que me permito sugerir baseia-se nas condições de comunicação sobre as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.” (HABERMAS, 2002a, p. 277).

[26] Os principais traços característicos do procedimento discursivo habermasiano são explicados de forma lapidar por Jean Cohen e Andrew Arato: “Anyone capable of speech and action, who is potentially affected by the norms under dispute, must be able to participate in the discussion on equal terms. Furthermore, the participants must be capable of altering the level of discourse in order to be in a position to challenge traditional norms that may be tacitly presupposed. In other words, nothing can or should be taboo for rational discourse – nor the preserves of power, wealth, tradition, or authority. In short, the procedural principles underlying the possibility of arriving at a consensus on the validity of a norm involve symmetry, reciprocity, and reflexivity.” (COHEN; ARATO, 1992, p. 348).    

[27] A ética do discurso habermasiana busca dar conta do problema da fundamentação de afirmações normativas. Diferentemente de Kant, que identificou no imperativo categórico a possibilidade de justificação moral das condutas individuais, o princípio do discurso assinala uma nova perspectiva: “Na ética do discurso, o método de argumentação moral substitui o imperativo categórico. É ela que formula o princípio ‘D’: as únicas normas que têm o direito de reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático. O imperativo categórico desce ao mesmo tempo na escala, transformando-se em num princípio de universalização ‘U’, que nos discursos práticos assume o papel de uma regra de argumentação.” (HABERMAS, 1991, pp. 15-16).


Abstract: This article is a review of a deliberative democratic theories of Jürgen Habermas and John Rawls by means of a comparative analysis. The two conceptions of deliberative democracy seek overcome the issue of political pluralism through different paths. For the american author, justice as fairness is based on a substantive idea of deliberative democracy founded in an hypothetical situation he created, where the representatives of the citizens, in equal conditions, imagine by principles in search of a overlapping consensus. Already the german philosopher, aiming to overcome the substantive model of fair society, suggests a system of rights able to legitimate the state power from its deliberative formation, based on the communicative conditions.

Keywords: Political Pluralism; Justice as Fairness; Deliberative Democracy.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GANEM, Fabricio Faroni; ZETTEL, Bernardo. John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3370, 22 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22657. Acesso em: 7 maio 2024.