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A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito

A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito

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A própria denominação conferida ao Brasil pelo constituinte originário de 1988 revela seu modelo de organização estatal, bem como a opção política de sua forma de governo.

Sumário: 1. Introdução – 2. Federalismo – 2.1 Noções preambulares sobre o federalismo norte americano: modelo que inspirou o Brasil – 2.2 Notas sobre o Federalismo brasileiro – 3. A Separação dos Poderes nas Constituições brasileiras – um breve passar de olhos – 4. Estado Democrático de Direito – 4.1 Forma democrática de governo – 4.2 Estado de Direito – 5. Conclusões – 6. Referências.


1.  Introdução

A própria denominação conferida ao Brasil pelo constituinte originário de 1988 revela seu modelo de organização estatal, bem como a opção política de sua forma de governo.

Por ser república, os contornos democráticos da Constituição devem ser evidentes, especialmente no tocante à Separação de Poderes (ou funções) que, evitando a sua concentração nas mãos de um ou alguns, impede um eventual desvirtuamento do texto constitucional, já que como lembrado por Bobbio (2010, p. 146) todo aquele que detém o Poder tende a dele abusar. Essa característica denota uma “horizontalidade” no trato das funções republicanas, tanto que o texto da nossa Lei Fundamental assevera serem os poderes independentes e harmônicos entre si (art. 2º).

Seguindo o ideal republicano, a forma de escolha dos membros integrantes dos Poderes do Estado deve restar em sintonia com os princípios que regem uma democracia representativa (art. 14 e ss.), de modo a conferir legitimidade a essa representação, além de haver o pleno respeito aos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas (art. 5º).

Pelo viés federativo, vê-se que a organização do Poder do Estado além de ser desconcentrada (característica própria de uma república, como se percebe pela Separação dos Poderes), é também descentralizada, restando o Poder distribuído em quatro esferas federativas diversas: a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios. Sendo que em uma federação as competências de cada unidade federada devem ser previstas Constitucionalmente[1].

Nesse sentido, nos tópicos abaixo serão abordadas algumas das principais características do nosso federalismo, bem como da evolução constitucional da Separação de Poderes como dado a evidenciar que nem sempre fomos efetivamente uma república, para ao final tratarmos do Brasil como um Estado democrático de direito.


2. Federalismo

2.1 Noções preambulares sobre o federalismo norte americano: modelo que inspirou o Brasil

A história da formação de um Estado norte americano foi marcada pelas discussões acerca da necessidade ou não da união das 13 antigas colônias britânicas na América sob uma única voz de comando. O fato é que para garantir a independência conquistada pós 1776, as antigas colônias firmaram um tratado entre si a fim de criar uma confederação com o objetivo básico de preservar suas soberanias.

Nessa conformação muitos problemas de cunho político-administrativo e de relacionamento interestatal surgiam, como bem destacado por Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 797):

Cada entidade componente da confederação retinha a sua soberania, o que enfraquecia o pacto. As deliberações dos Estados Unidos em Congresso nem sempre eram cumpridas, e havia dificuldades na obtenção de recursos financeiros e humanos para as atividades comuns. Além disso, a confederação não poderia legislar para os cidadãos, dispondo, apenas, para os Estados. Com isso não podia impor tributos, ficando na dependência da intermediação dos Estados confederados. As deliberações do Congresso, na prática, acabavam por ter a eficácia de meras recomendações. Não havia, tampouco, um tribunal supremo, que unificasse a interpretação do direito comum aos Estados ou que resolvesse juridicamente diferenças entre eles.

A confederação estava debilitada e não atendia às necessidades de governo eficiente comum do vasto território recém-libertado.

Diante desse quadro, nasce o movimento pela concepção de um Estado federalizado, que pretendia afastar a idéia da formação de várias confederações de Estados, no intuito de promover uma unificação de todos os 13 Estados independentes sob um único governo central, preservada a autonomia de cada um deles, sendo, contudo, reservada a soberania ao País que se formaria de sua união: os Estados Unidos da América (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 57).

Os federalistas, na defesa de suas idéias unificadoras, passaram a expor as vantagens de um governo republicano uno, diminuindo, por conseqüência, suas atuais (da época) imperfeições: a) a distribuição e divisão de poderes, com a introdução da doutrina dos freios e contrapesos ao legislativo; b) a instituição de tribunais com juízes inamovíveis; e c) o voto a proporcionar a representação dos cidadãos nas legislaturas por meio de deputados por eles escolhidos. (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 54).

A par disso, sustentavam os federalistas que para se garantir a perenidade da União que se propunha, seria necessária a existência de um governo forte e enérgico, especialmente no tocante:

a) À atribuição das funções ao governo federal (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 142), a saber: a.1) defender todos os seus membros; a.2) proteger a paz da república contra convulsões interiores e ataques externos; a.3) regular o comércio interno e com as nações estrangeiras; e a.4) dirigir as relações comerciais e políticas com as referidas nações; e

b) Ao grau de poder, eminentemente bélico, necessário à execução dessas mesmas funções (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 142-143): b.1) levantar tropas; b.2) construir e equipar frotas; b.3) prescrever leis para governar umas e outras; b.4) dirigir as suas operações; e b.5) prover a sua sustentação.

Noutro turno, os federalistas diziam que a Constituição proposta poderia ser considerada sob duas perspectivas: a) a primeira levaria à reflexão acerca da soma de poder que ela conferiria à União e retiraria dos Estados; e b) a segunda quanto à distribuição desse mesmo poder entre os diferentes ramos que comporiam o governo unificado[2].

No que toca ao primeiro questionamento, os autores federalistas, HAMILTON, MADISON e JAY, aduziam que se desequilíbrio houvesse, a balança penderia em favor dos Estados-membros e não da União. Nesse sentido, assim argumentavam:

Para nos convencermos de que os governos dos Estados hão de levar sempre a melhor do governo-geral, basta que os comparemos quanto à sua dependência recíproca – quanto ao grau da sua influência pessoal, quanto aos poderes que lhes são respectivamente confiados, quanto à predileção e apoio provável da parte do povo e, finalmente, quanto à vontade e meios de resistir às medidas da autoridade rival e de neutralizar-lhes o efeito.

Ao mesmo tempo em que os governos dos Estados podem ser considerados como partes constituintes e necessárias do Governo Federal, não pode este ser tido por essencial à organização ou à ação deles.

O presidente dos Estados Unidos não pode ser eleito sem o concurso das legislaturas, que devem ter sempre grande parte na sua nomeação, e às vezes tudo.

O Senado há de ser absoluta e exclusivamente eleito pelas legislaturas dos Estados. Mesmo a Câmara dos representantes, ainda que imediatamente tirada do povo, há de ser quase sempre escolhida debaixo da influência desta classe de homens que o seu crédito faz nomear membros das legislaturas dos Estados.

Assim, as duas partes principais do Governo Federal deveram mais ou menos a sua existência ao favor dos governos dos Estados, e ficaram por este motivo constituídas numa espécie de dependência, que mais facilmente as disporá a um excesso de condescendência que à usurpação. Pelo contrário, os membros dos governos dos Estados jamais deveram a sua nomeação à ação direta do Governo Federal e raríssimas vezes à influência local dos seus membros (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 287-288).

Corroborando esse pensamento, Tocqueville[3] já dizia que o Governo dos Estados-membros é a regra, é o direito comum, já o Governo Federal é a exceção, na clara menção de que as competências da União não invadiriam as destinadas aos Estados em razão da autonomia preconizada pela Federação norte americana. Não obstante esse discurso federalista de preservação das competências estaduais, o fato é que o federalismo dos EUA não escapou ao processo de dilatação dos poderes federais e da consequente diminuição das competências estaduais, sendo que nas palavras de Bernard Schwartz “os Estados acabarão como simples relíquias de outrora florescente sistema federativo.”[4]

Elemento importante do modelo federativo norte americano é a figura do Senado. Sobre o tema o “autor federalista” destaca, dentre outros, os seguintes pontos: a) as condições para que possa ter lugar a qualidade de Senador; b) a nomeação dos senadores pelas legislaturas dos Estados; c) a igualdade de representação no Senado; d) os poderes confiados ao Senado. Passemos a vê-los:

a)  As condições para que possa ter lugar a qualidade de Senador: o Senador, diferentemente dos representantes da Câmara, devem ter no mínimo 30 anos de idade e 9 anos de cidadão. “Esta diferença funda-se na natureza das funções dos senadores, que exigem mais instrução e mais estabilidade de caráter. É necessário que quem as desempenhar tenha chegado à idade em que aquelas duas qualidades se acham mais freqüentemente reunidas.” (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 374)

b) A nomeação dos senadores pelas legislaturas dos Estados: além de favorecer a uma melhor escolha, confere, ao mesmo tempo, uma influência maior aos Estados na formação do governo federal, que, diante da independência política do Senado, procurará formar com os governos estaduais um laço útil à consecução de seus projetos de governo. (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 375)

c) A igualdade de representação no Senado:

A igualdade de representação é o resultado evidente de uma transação entre as pretensões encontradas dos grandes e pequenos Estados; e, por conseqüência, pequena discussão pode exigir. Se é verdade que entre homens reunidos em corpo de nação cada distrito deve ter parte no governo, em proporção da sua grandeza, e que entre Estados soberanos e independentes, unidos por uma simples liga, os diferentes membros que a compõem, ainda que desiguais em grandeza, devem ter igual porção de influência nas assembléias comuns, não foi sem razão que em uma república composta, que a alguns respeitos se aproxima do governo federativo, apartando-se em outros das suas máximas, se propôs seguir ao mesmo tempo, na composição da legislatura, os princípios da igualdade, e os da proporcionalidade da representação.

(...)

Note-se que a igualdade de votos, concedida a cada Estado, é ao mesmo tempo o reconhecimento constitucional da porção de soberania que se lhes deixa e o meio de sustentá-la (...)

Outra vantagem que resulta da mesma disposição é ser ela um obstáculo demais à admissão das más leis. Com efeito, sendo tal a organização da legislatura, nenhuma lei pode passar: primeiro, sem a cooperação da maioria do povo; segundo, sem a da maioria dos Estados. (grifos nossos) (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 375-376)

d) Os poderes confiados ao Senado: além de defender o povo dos erros da Câmara dos representantes, o Senado teria o dever (e o poder) de defender o “povo dos seus próprios erros e ilusões momentâneas.”[5] Além dessa função, o Senado tem o poder de aconselhar e consentir, contando que se manifestem nesse sentido pelo menos 2/3 dos seus senadores presentes, que o Presidente dos Estados Unidos conclua tratados internacionais (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 388). Além disso, detém o Senado o poder de julgar o Presidente em caso de impeachment (HAMILTON, MADISON e JAY, 2003, p. 394).

Por fim, ao tratar do Chefe máximo da federação, como dito anteriormente, a Constituição dos EUA efetivamente criou a figura do Presidente da República, em oposição à idéia de um monarca, tendo estabelecido sob um viés eminentemente democrático (para a época) seu modo de escolha e a duração do seu governo.

Com efeito, a regra que disciplina a escolha do presidente tem por fundamento uma eleição indireta (por isso se disse “democrático para a época”): no caso, o povo vota em um corpo de representantes/eleitores (extraídos da sociedade civil) ad hoc que, por sua vez, sufragará o presidente dos Estados Unidos.

Quanto às características inerentes ao cargo de Presidente dos Estados Unidos, destacam-se: a) é eleito para um mandato de 04 anos, sendo reelegível enquanto o povo o julgar digno de sua confiança[6]; b) está sujeito a acusação e julgamento, podendo incorrer em perda do cargo, ou em outra penalidade cominada pela lei nos casos de traição, malversação do dinheiro público ou outro crime qualquer; c) a prerrogativa de vetar leis e atos normativos, votados e discutidos nas duas casas do Congresso, não sendo, contudo, absoluta a decisão presidencial, podendo o referido bill ser discutido pela segunda vez no Congresso e adquirir força de lei se reunir 2/3 dos votos da legislatura; d) de igual modo, o Presidente é comandante-chefe do exército e da marinha dos Estados Unidos, assim como das guardas nacionais dos Estados, quando forem chamadas ao serviço da União; e) tem também o direito de perdoar os crimes cometidos contra o Estado, enquanto a acusação não estiver intentada; f) além de ser encarregado da fiel execução das leis e da nomeação para os empregos da administração pública (HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 413).

Sendo essas algumas das principais características da Federação norte americana, voltemos nossa atenção ao modelo brasileiro, ainda que sucintamente.

2.2 Notas sobre o Federalismo brasileiro

De início, é de se destacar que a principal diferença entre os movimentos federalistas norte americano e brasileiro é o fato de que no primeiro criou-se um governo central por meio da incorporação das “soberanias” e de parte das competências das 13 antigas colônias, na época já independentes do domínio inglês, perfazendo uma federação de modelo centrípeto ou contrípeto; já o modelo brasileiro trilhou caminho inverso. Nossa federação centrifugou[7] as competências do governo central – já que até a proclamação da república o Brasil era um Estado (Império) unitário, subdivido em províncias, com o monarca como seu chefe supremo[8] –, para os Estados-membros. De modo que se se pudesse atribuir um defeito ao federalismo dos EUA, este seria um desproporcional fortalecimento dos Estados membros no âmbito interno, ao passo que no Brasil, o principal defeito seria o desproporcional enfraquecimento dos Estados-membros se comparados com a União.

Não obstante o comentário acima, o fato é que a partir de 1891[9] até os dias atuais o Brasil adotou a federação como forma de organização política interna, sendo que o art. 60, § 4º, I[10] da atual CF/88 alça à condição de clausua petrea[11] a forma federativa de Estado[12].

Assim, como já apontado, o art. 1º da nossa Lei Fundamental preceitua ser o Brasil uma República Federativa, formada indissoluvelmente pela união dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, sendo que as suas competências[13] estão constitucional e expressamente previstas nos artigos 21, 22, 23, 24, 25, 30 e 32, § 1º, a fim de que não haja nem conflitos, nem desperdício de esforços e recursos em face da existência de mais de uma ordem jurídica incidente sobre o mesmo território e sobre as mesmas pessoas (MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p. 799).

Relativamente às competências, pode-se dizer que o Brasil adotou um modelo de repartição simultaneamente horizontalizado e verticalizado, isto é: há, respectivamente, tanto competências exclusivas (horizontais) próprias a cada um dos entes federativos quanto competências concorrentes (verticais), próprias a alguns entes federativos concomitantemente, sendo que nesse último caso as matérias legislativas de ordem geral são destinadas à União e as envolvendo peculiaridades locais restam afetadas aos Estados, município e Distrito Federal.

Em que pese essa dupla orientação federativa adotada pela Constituição de 1988, percebe-se facilmente uma hipertrofia das competências da União em detrimento das competências dos demais entes federados, como dito no início deste tópico. Exemplo claro desta afirmação são as competências legislativas da União consignadas no art. 22 (incisos de I a XXIX)[14].

No tocante à tributação, ponto de fulcral relevância na busca de um equilíbrio federativo, nossa Constituição em seu art. 24, I diz ser competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal legislar sobre direito tributário, financeiro e econômico. Ocorre que a competência tributária fixada na Constituição destina à União a maior gama da capacidade tributária ativa, como se vê pela leitura dos artigos 148 (empréstimo compulsório), 149 (contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas) e 153 (imposto de importação - II, imposto de exportação - IE, imposto de renda - IR, imposto sobre produtos industrializados, imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valore mobiliários - IOF, imposto sobre a propriedade territorial rural - ITR e imposto sobre grandes fortunas -IGF), o que, por si só, não permite que se alcance o mencionado equilíbrio federativo.

Em agravamento à situação, é de se destacar que o principal tributo de competência dos Estados-membros (imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, art. 155, II), está quase que exaustivamente disciplinado no próprio texto constitucional (art. 155, § 2ª e ss.), extirpando-lhes de fato, por via reversa, a competência para tratar do tema.

Nada obstante as peculiaridades da nossa Federação, deve-se ter em mente que as características geográficas e culturais do Estado brasileiro exigem, bem ou mal, que nossa forma político-organizativa se funde no federalismo[15]. Sendo esse, em linhas gerais o nosso modelo.


3. A Separação dos Poderes nas Constituições brasileiras – um breve passar de olhos

A separação dos poderes constitui-se numa das fases do processo de limitação jurídica do poder político. No caso, a disputa sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do Poder do Estado concerne ao processo de (des)concentração das funções típicas que competirão a quem exercer o Poder supremo em um dado território: o Poder de elaborar as leis, de impor o seu cumprimento e o de julgar, com base nelas, o grau de correção das condutas praticadas.

Com efeito, a clássica teoria da Separação dos Poderes, hoje consolidada senão em todos, mas na grande maioria dos Estados Democráticos, tem como patrono Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède e Montesquieu, que no século XVIII, ao escrever O Espírito das Leis fixou os pilares que ainda hoje sustentam o edifício dos Estados contemporâneos.

Referido autor, que adota como paradigma a Constituição da Inglaterra, desenvolve n’O Espírito das Leis o fundamentos do pensamento acerca da necessidade de se retirar das mãos de um único homem ou de um grupo de homens a concentração de todos os Poderes ínsitos ao Estado, a fim de, fugindo à tirania e à opressão, buscar a liberdade, que consistiria basicamente em fazer tudo o que as leis permitem. Nesse sentido assevera os “porquês” da necessidade de se separar o poder de fazer leis, do de executá-las e do de julgar as condutas de acordo com elas:

A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabelecem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[16] (grifo nosso) (MONTESQUIEU, 2009, p. 86)

Por sua vez, a evolução constitucional brasileira nos mostra que desde a Constituição Imperial de 1824 até a atual Constituição de 1988 se adota, ainda que formalmente[17], o modelo de Separação dos Poderes, com algumas particularidades a depender da época de vigência da Ordem Constitucional, como se observará a seguir.

Sob a perspectiva da Separação dos Poderes, a Constituição Imperial de 1824 tem como principal característica a sua tetrapartição, com a instituição do Poder Moderador, muito similar ao Poder Prerrogativo do modelo lockeano, assim dispondo em seu Título 3º:

TITULO 3º

Dos Poderes, e Representação Nacional.

Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição offerece.

Art. 10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

Art. 11. Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador, e a Assembléa Geral.

Art. 12. Todos estes Poderes no Imperio do Brazil são delegações da Nação.

A Constituição republicana de 1891, por sua vez, consolida o modelo da tripartição dos poderes asseverando em seu artigo 15 que “São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si.”

Redação próxima a essa se vê no art. 3º da Constituição de 1934, de curta duração: “São órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si.”

Com a Constituição de 1937 – embora não contenha dispositivo específico tratando do tema, como as anteriores – mantêm-se formalmente (simuladamente) a Separação dos Poderes. Todavia, em face do seu cunho autoritário, mudanças substanciais foram efetivadas na estrutura orgânica de distribuição do “Poder” no Estado nacional: primeiramente, é bom que se diga que, muito embora o Poder legislativo continuasse bicameral (art. 38, § 1º), o Senado fora dissolvido por força do seu art. 178, assim permanecendo durante todo o período de sua vigência; em segundo lugar, havia previsão de que o Presidente da República poderia dissolver a Câmara dos Deputados (art. 75, b) e nesses casos, bem como nos períodos de recesso do Parlamento, teria a competência de expedir decretos-lei sobre matéria de competência legislativa da União (art. 13); e por fim, o parágrafo único do art. 96 da Carta previa que as decisões do Poder Judiciário que declarassem a inconstitucionalidade de leis, que a juízo do Presidente da República fossem necessárias ao bem-estar do povo e aos interesses nacionais, poderiam ser submetidas novamente ao exame do Parlamento, por ordem do chefe do Poder executivo, a fim de serem confirmadas por dois terços de votos em cada uma das Câmaras. Nesse caso as decisões do Tribunal ficariam sem efeito e o ato normativo voltaria a viger[18].

Assim disposto, na prática o Poder supremo estava concentrado nas mãos do Presidente da República, muito embora, topograficamente, pudesse se encontrar no texto de 1937 a previsão de existência de três poderes no Estado brasileiro ainda que não fossem eles nem independentes nem harmônicos entre si.

Restaurando o regime democrático, a Constituição de 1946 volta a prever expressamente a harmônica tripartição dos Poderes em seu artigo 36: “São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si”; conferindo, deste modo, estabilidade política ao Estado nacional por quase duas décadas.

Já em 1967, em face da revolução militar de 1964, instaura-se uma nova ordem constitucional ditatorial que perdurou por outras duas décadas. Referida Constituição fez constar expressamente em seu texto a Separação dos Poderes, corolário da República, quando asseverou no art. 6º que o legislativo, o executivo e o judiciário eram Poderes independentes e harmônicos entre si. Todavia, o processo de escolha do Presidente da República não era tão democrático assim, bem como não refletia a disposição do artigo 1º, §1º daquele diploma: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.” Ora, se todo o poder emana do povo, fórmula legitimatória de atribuição do Poder estatal a um determinado governo, o mesmo deveria ser transmitido por meio de sufrágio direto dos cidadãos. Contudo, o art. 76 da Carta de 1967 previa que o Presidente seria eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão pública e mediante votação nominal. Não fosse isso, e talvez a previsão de censura (art. 8º, VII), a Separação dos Poderes não sairia tão lacerada em razão do “golpe” sofrido com a tomada do Poder pelos militares. Ocorre que, dentre outros considerandos[19], para “assegurar a continuidade da obra revolucionária”, o Presidente da República, no referido regime militar, tendo ouvido o Conselho de Segurança Nacional, editou o Ato Institucional nº 5 (AI 5)[20], de dezembro de 1968, que pôs fim à Separação de Poderes e limitou de forma severa direitos e garantias fundamentais do povo brasileiro.

A partir desse momento histórico a Separação de Poderes (e própria democracia) tornou-se simplesmente um simulacro a fim de pseudo-legitimar a atuação do governo revolucionário, eis que de fato concentrava todos os Poderes, ou a sua maior parte (o que já era mais do que suficiente para se constituir um governo ditatorial), nas mãos do Presidente da República que poderia decretar o recesso do Poder legislativo em todas as três esferas, assumindo, juntamente com os Governadores ou Interventores e com os Prefeitos, as referidas competências nas respectivas unidades federativas.

Ademais, todos os atos praticados de acordo com o AI 5 e seus atos complementares encontravam-se excluídos de apreciação judicial, o que de uma só vez reduziu as competências do Poder judiciário como legítimo integrante da tripartite ordem Estatal e aumentou exponencialmente a liberdade de atuação do Poder executivo.

Por fim, suprimindo-se todas as limitações ao poder de atuação do Estado previstas na Constituição, ou seja: fazendo letra morta de todas as garantias e direitos previstos na Lei Fundamental da época, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional (art. 90, §§ 1º e 2º) – o que na prática não significava mais “segurança” para a população –, poderia suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Menos de um ano depois da edição do AI 5, na escuridão do recesso Parlamentar decretado pelo Ato Complementar nº 38, de 13 de dezembro de 1968, em 17 de outubro de 1969 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 1 à Constituição de 1967[21], que embora tenha preservado a redação original do art. 6º da Constituição de 1967, que tratava da tripartição harmônica dos Poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário), manteve expressamente a previsão da eleição indireta para o Chefe do Poder executivo (art. 74) e principalmente, no seu art. 182, a vigência do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 e dos demais Atos posteriormente baixados, o que retirava qualquer força normativa do preceito político e democrático do mencionado art. 6º, chancelando com mão de ferro a rigidez e a tirania do regime revolucionário que se instalara no país.

Vinte anos depois que a Constituição de 67 c/c a EC nº 1/69 foi outorgada, houve a reabertura democrática com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 (CF/88) que, como já referido, efetivamente adotou a Separação dos Poderes na sua clássica formatação tripartite, tal qual consta da redação do seu art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Embora inquestionável a alteração do nosso regime de governo com a adoção da democracia como bússola a nortear o Estado, há quem questione a Separação dos Poderes adotada pela Constituição de 1988, sobretudo no que tange à invasão das competências do Poder legislativo pelo Poder executivo: o caso das Medidas Provisórias, com previsão constitucional no art. 62 e §§, da CF/88.

É lição que se extrai de J. J. Gomes Canotilho o fato de a teoria da Separação dos Poderes trazer naturalmente consigo princípios informadores de sua relevância jurídico-constitucional, dentre os quais está o princípio normativo autônomo que – embora repila uma separação orgânica rígida sem que uma eventual sobreposição de funções (legislativo e judiciário exercendo funções executivas, executivo e legislativo exercendo funções judicantes e executivo e judiciário exercendo funções legislativas) venha a representar a ruptura do modelo separatista – sustenta a higidez da perfalada separação no respeito incondicional ao núcleo essencial dos limites de competência fixados na Constituição para cada um dos Poderes.

Desse modo, o referido autor português cita expressamente o caso do Brasil em torno das medidas provisórias, que segundo ele são “actos provisórios com valor legislativo editados pelo Presidente que é, simultaneamente, chefe de Estado e chefe de Governo” (CANOTILHO, 2003, p. 252, nota de rodapé 17). Tal, no seu ponto de vista, não se coadunaria com a Separação de Poderes, sob o viés do princípio normativo autônomo, pois o Poder executivo violaria o núcleo essencial de competências do Poder legislativo.

Sobre o tema, buscando conferir contornos menos drásticos ao caso específico, Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 156) assim se posicionam:

Inicialmente formulado em sentido forte – até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam.

Nesse contexto de “modernização”, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editadas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade.

Nesse mesmo sentido, e adotando como exemplo o próprio exercício de funções legislativas pelo executivo, tendo por base a edição de Medidas Provisórias, Ferreira Filho (2010, p. 163), ao discorrer sobre a interpenetração dos Poderes, parece não enxergar no mencionado caso qualquer ofensa ao núcleo essencial dos limites de competência, mas, ao contrário, afirma que modernamente a especialização funcional do Estado não pode traçar ditas competências em compartimentos estanques e incomunicáveis. Aliás, relembra o autor, que o próprio Montesquieu reconhecia a necessidade de uma comunicabilidade entre os Poderes, de modo inclusive a permitir a perenidade da própria separação. Com efeito, alude que a especialização “inerente” à Separação de Poderes é meramente relativa, consistindo numa predominância no desempenho de uma função, mas que, secundariamente, cada Poder deve estar apto a colaborar no desempenho de outras funções, teoricamente alheias à sua esfera de competências originárias.

Em tal pensamento, é acompanhado por Alexandre Aragão[22] que informa não existir “uma separação de poderes”, mas “muitas”, variáveis segundo cada direito positivo e momento histórico diante do qual nos colocamos. Eis que se se subtrair o “caráter dogmático e sacramental” impingido à clássica Separação dos Poderes, ela poderá ser colocada, sem qualquer prejuízo, em seus devidos termos: consubstanciação de uma divisão das atribuições do Estado entre distintos órgãos, que terão por conseqüência uma proficiente divisão de trabalho e, concomitantemente, configurarão empecilho à perniciosa concentração das funções estatais. E complementa aduzindo que o Princípio da Separação dos Poderes não pode conduzir à assertiva de que cada um dos respectivos órgãos exercerá tão só e necessariamente uma das três funções habitualmente consideradas – legislativa, executiva e judicial; não se podendo, ademais, dele inferir que todas as funções do Estado devam sempre se subsumir a uma das tradicionais espécies classificatórias.

Não se pode deixar de mencionar que o Capítulo IV do Título IV da Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação no que concerne não à clássica Separação de Poderes, mas à Separação de Funções Estatais: a figura das Funções Essenciais à Justiça – FEJ.

Sob a perspectiva acima tratada, mas sem se apartar da separação aqui tratada, Moreira Neto[23] propõe um outro modelo: modelo este que afasta o sentido originário da Separação de Poderes para atrair ao cenário do chamado “neoconstitucionalismo” o sentido da Separação das Funções Estatais. Dentre ditas funções estão as chamadas funções partidariamente descomprometidas, também chamadas de funções neutrais[24].

Segundo afirma, podem ser identificadas cinco espécies de funções neutrais constitucionalmente independentes, dentre as quais se destacam as definidas como essenciais à justiça, “categorizadas como de controle, zeladoria e promoção de interesses juridicamente qualificados de toda natureza, cometidas, respectivamente, conforme a especificidade dos interesses, a quatro complexos orgânicos distintos: ao Ministério Público, à Advocacia de Estado, à Advocacia e à Defensoria Pública (...)” (MOREIRA NETO, 2011, p. 91)

Sob esse viés, caracteriza as FEJ como funções exercidas no Estado que não necessariamente pertenceriam ou se veriam inseridas, como de fato não pertencem nem se inserem, a nenhuma das outras funções (executiva, legislativa e judiciária) exercidas pelo ou no Estado.


4. Estado Democrático de Direito

Iniciaremos nossas linhas tendo por base o Estado cujo modelo foi adotado pela Constituição brasileira de 1988, tal qual inscrito na segunda parte do art. 1º: “A República Federativa do Brasil (...) constitui-se em Estado Democrático de Direito”.

Note-se que a expressão utilizada pelo nosso Constituinte adjetiva o Estado brasileiro com duas importantes qualidades: o fato de ser democrático, bem como de estar submetido ao direito. Mas o que isso significa? Um Estado democrático não é obrigatoriamente um Estado de direito? Um Estado de direito não pressupõe um Estado democrático? Com efeito, se as respostas a essas perguntas fossem afirmativas (sim, um Estado democrático é ao mesmo tempo um Estado de direito; e, sim, um Estado para ser de direito deve pressupor ser, de igual modo, democrático) nossa Constituição seria duplamente redundante já que ambas as expressões (Democrático e de Direito) trariam consigo além do seu significado próprio o significado inerente à outra expressão[25]. Nesse sentido, pode-se dizer que o constituinte de 1988 não se fez redundante nem, por conseguinte, utilizou palavras inúteis[26] quando afirmou o que resta inscrito em seu art. 1º[27].

Mas, retrocedendo ao primeiro questionamento, o que significa para o Estado ser Democrático de Direito[28]?

4.1 .Forma democrática de governo

Para se compreender a democracia representativa que hoje impera na maior parte dos países Ocidentais, mister observarmos, ainda que de modo breve, a “evolução taxonômica” do governo do povo no decorrer da história.

Na antiguidade clássica a democracia era tida, por Aristóteles, como a forma viciada do “governo da multidão”[29], ao passo que o seu similar virtuoso, que governa no interesse geral da multidão, era a república. Modernamente, outras tipologias das espécies de governo ainda consideradas clássicas são as de Maquiavel e de Montesquieu, que se encontram bem condensadas na seguinte passagem de Bobbio (2010, p. 104-105):

No Príncipe, Maquiavel as reduz a duas, monarquia e república, compreendendo no gênero das repúblicas tanto as aristocráticas quanto as democráticas, com base na consideração de que a diferença essencial passa entre o governo de um só, de uma pessoa física, e o governo de uma assembléia, de um corpo coletivo, sendo a diferença entre uma assembléia de otimates e uma assembléia popular menos relevante, porque ambas, à diferença da monarquia onde a vontade de um só é lei, devem adotar algumas regras, como a do princípio de maioria, para alcançar a formação da vontade coletiva. Montesquieu retorna a uma tricotomia, diversa porém da aristotélica: monarquia, república, despotismo. Diversa no sentido de que combina a distinção analítica de Maquiavel com a distinção axiológica tradicional, na medida em que define o despotismo como o governo de um só mas “sem lei nem freios”, em outras palavras como a forma degenerada da monarquia. Além do mais, Montesquieu acrescenta um novo critério de distinção, o critério com base nos “princípios”, isto é, com base nas diversas molas (ressorts) que induzem os sujeitos a obedecer: a honra nas monarquias, a virtú nas repúblicas, o medo no despotismo. Este critério faz pensar nas diversas formas de poder legítimo segundo Weber. Tal como Montesquieu (mas sem nenhuma influência direta), Weber individualiza os diversos tipos de poder distinguindo as diversas possíveis posturas dos governados diante dos governantes: a diferença entre um e outro está no fato de que Montesquieu se preocupa com o funcionamento da máquina do Estado, e Weber com a capacidade que têm os governantes e seus aparatos de obter obediência. A novidade da tipologia de Montesquieu com respeito às duas precedentes [refere-se à de Aristóteles e a de Maquiavel] depende da introdução da categoria do despotismo, tornada necessária pela exigência de dar maior espaço ao mundo oriental, para o qual a categoria do despotismo havia sido forjada pelos antigos.

Como se observa, as tipologias variam sem, contudo, observar qualquer critério minimamente científico, descrevendo exclusivamente ou a realidade histórica vivenciada pelos seus retratadores, ou a realidade que eles entendiam como desejável. Tanto que o termo “República” na visão de Aristóteles era a versão virtuosa do governo da multidão; ao passo que tanto em Maquiavel quanto em Montesquieu a “República” traduzia-se na forma de governo que congregava numa única espécie a aristocracia e da democracia (esta última já vista sob a ótica da virtude), excluindo-se a monarquia.

Já com Rousseau (2000, p. 48), o termo “República” denotava significação diversa das três tipologias anteriores: para ele “República” era todo o Estado regido por leis, independentemente da forma de sua administração, pois só o interesse público (res publica) governava. Em seu modo de ver, todo o governo legítimo seria republicano e por República ele poderia denominar uma aristocracia, uma democracia, ou até mesmo uma monarquia, desde que todos os governos fossem guiados pela vontade geral, que é a lei – a República seria, então, a denominação roussoneana para o Estado de direito.

Ainda em Rousseau (2000, p. 71-72), vemos que ao tratar da democracia no Capítulo IV do Contrato Social, embora a entenda como uma forma de governo perfeita, digna de um Estado de Deuses e não de homens, levanta diversas dificuldades no que toca à prática do seu exercício no Estado moderno (da época), tais como: a) impossibilidade do estabelecimento de comissões sem alterar a forma do governo; b) só seria possível em Estados territorialmente muito pequenos e com poucos cidadãos; e c) nesses Estados haveria de predominar a simplicidade nos costumes além de imperar uma isonomia de classes e fortunas. Por ser, no modo de ver de Rousseau, quase impossível a reunião de todas essas qualidades em um único Estado, a democracia seria a governo mais propício às guerras civis e agitações intestinas, já que não existiria outro que tendesse tão forte e incessantemente à mudança de forma, nem que requeresse mais vigilância e coragem na sua manutenção.

Tão dura oposição talvez ainda hoje subsistisse em sentido, acaso permanecêssemos presos ao conceito, como ocorreu em Rousseau, da democracia como “democracia direta”, tal qual funcionava o “governo das multidões” na antiguidade clássica. Ocorre que justamente pela impossibilidade prática[30] de utilização do processo ínsito à democracia direta, se tornou viável o recurso à chamada democracia indireta ou representativa[31] (na qual existirá, por conseqüência, um governo representativo[32]), que hoje impera nos Estados efetivamente democráticos.

Antes, contudo, de se passar à contemporaneidade, de bom tom se mostra verificar o pensamento dos founding fathers dos EUA acerca da democracia e da República, já que foi justamente nesse país onde se resolveu o problema da liberdade democrática, como lembrado por Alexis de Tocqueville.

Com efeito, é fato que os fundadores dos EUA não quiseram que se confundisse a República por eles pretendida com a democracia dos antigos. A respeito desta última, o juízo dos federalistas muito se aproxima ao dos mais ferrenhos antidemocratas, como se vê pelo trecho a seguir reproduzido:

Eis por que as democracias desse gênero têm sempre oferecido o espetáculo da dissensão e da desordem; porque esta forma de governo é incompatível com a segurança pessoal e com a conservação dos direitos de propriedade, e porque os Estados assim governados têm geralmente tido existência tão curta e morrido morte violenta. (grifos nossos) (HAMILTON, MADISON e JAY 2003, p. 64)

 Ocorre que a forma de governo que o “autor federalista” chamou de democracia “desse gênero”, seguindo a lição clássica, era a democracia direta. Noutro turno, por República os federalistas entendiam o “governo representativo” [33], exatamente a forma de governo que hoje a comunidade internacional chama de democracia, sem necessitar do complemento “representativa”. Vê-se, mais uma vez, uma quarta utilização diferente para o termo República, ao passo que a democracia é, como em Rousseau, vista tão somente como a democracia direta não mais possível de se ver adotada em Estados complexos como eram os Estados modernos (da época) e como se mostrava ser os EUA, especialmente por sua extensão territorial e população[34], já no momento do seu nascimento.

O fato é que, especialmente após a adoção do modelo “republicano” (democrático representativo) pelos EUA, consolidou-se de forma definitiva o sentido da expressão soberania popular, bem como, e em razão disto, afastou-se a legitimidade para o exercício do Poder político do Estado de uma justificação divina, perenizando-a na vontade expressa pelo povo por meio do sufrágio em seus representantes.

Na Europa o desenvolvimento das idéias democráticas, até o advento da primeira guerra mundial, coincide com o fortalecimento dos Estados representativos nos principais países daquele continente e com o seu desenvolvimento interno, tanto que a tipologia das tradicionais formas de governo foi aos poucos simplificada tendo-se por norte tão somente a contraposição entre as democracias e as autocracias. Deste modo, o Estado representativo europeu passa a conhecer um processo de democratização sustentado por dois pilares: a) a ampliação do direito de voto até se alcançar o sufrágio universal (masculino e feminino); e b) o desenvolvimento do “associacionismo político” até a formação dos partidos de massa e o reconhecimento de sua função pública. (BOBBIO, 2010, p. 152-153)

Nesse contexto histórico de mudanças (soberania popular, ampliação do direito de voto, formação de partidos de massa etc.), Dallari (1995, p. 128) nos informa, em síntese, que os princípios que passam a nortear os Estados democráticos de hoje[35] são basicamente três: a) supremacia da vontade popular, que se relaciona à participação popular no governo, tanto no que toca à representatividade, quanto ao direito de voto e aos sistemas eleitorais e partidários; b) preservação da liberdade, a significar o poder dos cidadãos de dispor de suas pessoas e de seus bens, sem a interferência do Estado, desde que suas condutas não violem direitos alheios; e c) igualdade de direitos, que é a proibição de discriminações econômicas ou sociais no pleno exercício e gozo dos direitos pelos cidadãos.

Noutro turno, imperativo registrar, que a “entrega” do Poder por parte do povo aos seus representantes, como fórmula principal para a constituição contemporânea de um governo democrático, não se dá de forma exaustiva; parcela dessa autoridade soberana não será repassada aos governantes, os quais restarão a ela submetidos, já que tal autoridade da mesma forma que os designa pode, se necessário, destituí-los do exercício do Poder (BURDEAU, 2005, p. 45). Nesse mesmo sentido Maluf (1995, p. 243), sustentando que o ideal democrático exige que a representação seja tanto limitada quanto revogável, pontua “que a nação transfira aos seus representantes o exercício do poder de soberania, mas a conserve em essência, de maneira que possa recuperá-la a qualquer momento em que estiverem em jogo os interesses vitais, a paz e o bem-estar do povo”.

 Neste caso, contudo, salvo na hipótese de revolução popular, como tem ocorrido recentemente no mundo árabe (embora nesses países não se viva uma democracia nos termos aqui postos), com o movimento denominado “Primavera árabe”, há todo um procedimento a ser observado (ampla defesa e o contraditório) para a destituição dos governantes do poder, no caso de cometimento de crimes de responsabilidade (já que no Presidencialismo não há o chamado “voto de desconfiança”, próprio do parlamentarismo). E normalmente tal procedimento não é conduzido diretamente pelo povo, mas por seus representantes eleitos, ainda no pleno exercício da democracia representativa.

Não resta dúvida, porém, que a pressão popular e a atuação dos demais atores sociais são fatores relevantes para a tomada de decisões dessa natureza no âmbito do Estado – seja ele visto sob a ótica do Executivo ou do Legislativo ou até mesmo do Judiciário –, tal qual ocorreu no episódio mais marcante de nossa recente jornada democrática com o movimento dos “caras-pintadas” que protestou fortemente exigindo o impeachment do Presidente Fernando Affonso Collor de Mello[36].

4.2.Estado de Direito

Abordemos, nesse segundo momento, o Estado de Direito: o Estado de Direito surge para impor limites ao Poder exercido pelo governante, especialmente o monarca absolutista, eis que não se usava observar as leis por ele mesmo criadas[37]. Assim, o Estado de Direito pode ser caracterizado como aquele no qual o Estado se encontra submetido ao direito por ele criado[38] e conseqüentemente à lei[39], ambos entendidos como reflexo e expressão da vontade geral.

Nesse sentido, García-Pelayo[40] informa que a lei a que se referiu acima não é “qualquer lei”, mas aquela cujo conteúdo normativo se subsuma à idéia de legitimidade, justiça, dos fins e valores aos quais deve servir o Direito, ou seja: valores que expressem normas ou princípios que a lei não possa violar, sob pena de não ser “lei conforme o Direito” e descaracterizar, por conseguinte, o Estado sob essa adjetivação.

Relativamente aos aspectos fundamentais de um Estado de Direito, temos na doutrina de Ernst Wolfgang Böckenförde, trazida por Mendes, Coelho e Branco (2008, p.42), esclarecedora lição, qual seja: a) estar apartado de “qualquer idéia ou objetivo transpessoal do Estado”, ou de qualquer outra conceituação Divina no que concerne à sua origem. O Estado de Direito está a serviço do interesse comum de todos os indivíduos que compõem uma comunidade; b) ter como objetivo do Estado a garantia da liberdade, segurança e propriedade das pessoas, propiciando, assim, o “autodesenvolvimento dos indivíduos”; e c) “a organização do Estado e a regulação das suas atividades obedecem a princípios racionais, do que decorre em primeiro lugar o reconhecimento dos direitos básicos da cidadania”, tais como a liberdade, igualdade, predominância da lei, existência de representação popular etc..

Ademais, Bobbio[41] acrescenta que o Estado de direito é o Estado dos cidadãos, onde o indivíduo tem não só direitos privados, como ocorria no Estado absolutista, mas direitos públicos, ou seja, direitos em face do próprio Estado.

Por outro lado, interessante destacar o entendimento de Paulo Bonavides (1995, p. 190) para quem o Estado de Direito não é nem forma de Estado nem forma de governo, mas sim um “statu quo” institucional que reflete a confiança depositada nos governantes pelos cidadãos, como garantidores dos direitos e liberdades fundamentais do homem e da sociedade.

Por derradeiro, e sem destoar das doutrinas anteriormente declinadas, colacionamos o posicionamento de Burdeau (2005, p. 43-44), que ao reafirmar a submissão do Poder do Estado ao Direito, já que este último legitima juridicamente aquele Poder, sustenta que essa submissão não significa a paralisação do governante, nem a inviabilização de sua independência e iniciativa na execução do seu mister, mas que, ao contrário, resulta do fato de os governantes não poderem ser contrários à idéia de direito válida no grupo social que representam. Esse seria o significado do Estado de Direito.


5. Conclusões

Consoante consignado por Mendes, Coelho e Branco, as características geográficas e culturais do Brasil mostram que nosso país necessita conformar-se como uma federação de modo a desenvolver-se adequadamente, superando as eventuais desigualdades regionais por meio da atuação de um governo local. Acrescentam, por outro lado, ser o federalismo um componente de segurança democrática, já que o poder na federação é exercido não somente horizontalmente (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas também verticalmente, com competências exclusivas e concorrentes distribuídas entre os entes federados, União, Estados (e Distrito Federal) e, no nosso modelo, Municípios[42].

Mais a frente viu-se ser o modelo da separação de poderes (ou funções do Estado) aquele responsável por evitar um desvirtuamento no caminhar democrático de uma nação. É que a concentração dos poderes nas mãos um só (ou de um único grupo) o torna autoritário, já que não há qualquer sorte de controle que se possa exercer a fim de podar eventuais excessos ou abusos no seu exercício.

Tal afirmação é facilmente constatável na história do Brasil, ao comparar-se, especialmente, o período compreendido entre os anos de 1964 até 1984 e os anos de 1985 em diante. É que durante o governo dos militares muitas limitações ao exercício horizontalizado do poder foram impostas às instituições republicanas. Os Poderes Legislativo e Judiciário estavam sob controle direto do Poder Executivo que podia “fechar” o primeiro e impedir que seus atos fossem analisados pelo segundo. Essa foi a realidade vivenciada mormente após a edição do Ato Institucional nº 5, transcrito, em parte, na nota de rodapé n. 20.

Tal realidade foi ultrapassada com a redemocratização do país em 1988 e o efetivo retorno da repartição dos poderes, de fato e de direito: a limitação do poder do Estado, repartido em três poderes, mas dividido quatro funções (executiva, legislativa, judiciária e essencial à justiça), e a sua submissão ao direito auxiliou a fixação do regime democrático em nossa sociedade.

O estudo aqui desenvolvido também nos autoriza a concluir que a limitação do Poder por meio do direito dependerá, ao fim e ao cabo, da concepção sobre as relações recíprocas entre governantes e governados: o equilíbrio entre a liberdade do cidadão e autoridade do seu representante, sem que isso implique, de modo algum, em sacrifício daquela em relação a esta, em outras palavras será imprescindível para a real caracterização do Estado de direito que haja a observância pelos governantes dos direitos dos governados e a consciência destes últimos tanto dos seus direitos quanto dos seus deveres perante o Estado e a sociedade[43].

De outra monta, e agora sob a ótica da democracia, procedendo rápida análise de alguns dos dispositivos da Constituição brasileira de 1988, chega-se à conclusão que tais normas se subsumem aos princípios relacionados por Dallari (1995, p. 128): a) princípio da supremacia da vontade popular, b) princípio da preservação da liberdade, e c) princípio da igualdade de direitos[44]– embora se saiba que a prática democrática traduz-se num aprendizado diário e que não bastam diretrizes legais, ainda que Constitucionais, para imbuir no espírito do povo e do próprio Estado a força cogente de seus preceitos, mas sim o seu efetivo exercício por parte dos seus destinatários, o que só se alcança com anos/décadas de constante prática.

Assim, conjugando-se os dois adjetivos, “democrático” e de “direito”, conclui-se que a profundidade significativa conferida ao Estado suplanta em muito a que este possuiria se fosse exclusivamente democrático ou exclusivamente de direito. Destarte, é-nos autorizado afirmar que o Estado democrático de direito é aquele regido e submetido por normas jurídicas que reflitam os ideais de justiça e os valores aos quais deve servir o Direito, buscando conferir um equilíbrio entre a liberdade do cidadão e a autoridade do Estado, sendo que a referida autoridade é conferida ao Estado por meio do sufrágio universal e do voto direto e secreto para ser exercida em nome e em benefício do seu verdadeiro titular, o povo.


6. Referências

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Notas

[1] Agregando outras características às acima aduzidas, Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 801) trazem à baila uma conceituação abrangente de Estado federal, à qual nos filiamos: “É correto afirmar que o Estado Federal expressa um modo de ser do Estado (daí se dizer que é uma forma de Estado) em que se divisa uma organização descentralizada, tanto administrativa quanto politicamente, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central e os locais, consagrada na Constituição Federal, em que os Estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão.”

[2] Relativamente a esse ponto, já o abordamos ao tratar da separação de poderes e da influência da doutrina de Montesquieu sobre o pensamento federalista norte-americano.

[3] Apud HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª ed., 1999, p. 308.

[4] Apud HORTA, 1999, p. 308.

[5] HAMILTON, MADISON e JAY op. cit., p. 382.

[6] “No sistema norte-americano não se estabeleceu, de início, a proibição de reeleições para períodos imediatos. Contra essa omissão houve expressa manifestação de JEFFERSON, que observou que a possibilidade ilimitada de reeleições daria caráter vitalício à investidura, e daí seria fatal que se passasse à hereditariedade. Mantido o silêncio constitucional, criou-se a praxe de um máximo de dois períodos consecutivos para cada presidente, o que foi respeitado até o período de Franklin Roosevelt, que, valendo-se das circunstâncias da guerra, foi eleito para um terceiro período consecutivo. Esse fato despertou reação e fez com que se aprovasse uma emenda constitucional, incorporada à Constituição em 27 de fevereiro de 1951, estabelecendo o limite máximo de dois períodos consecutivos.” (DALLARI, 1995, p. 205-206)

[7] “A preferência do constituinte federal por determinada concepção de Estado Federal e a atuação desses fatores extraconstitucionais irão conduzir, de forma convergente ou não, ao tipo real de organização federal em determinado momento histórico. Se a concepção do constituinte inclinar-se pelo fortalecimento do poder federal, teremos o federalismo contrípeto, que George Scelle chamou de federalismo por agregação ou associação; se, ao contrário, a concepção fixar-se na preservação do poder estadual emergirá o federalismo centrífugo ou por segregação, consoante a terminologia do internacionalista francês.” (HORTA, 1999, p. 304-305)

[8] Constituição Imperial de 1824:

“Art. 1. O IMPERIO do Brazil é a associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha á sua Independencia.

Art. 2. O seu territorio é dividido em Provincias na fórma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.

(...)

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.”

[9] Constituição de 1891:

“Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.”

[10] Constituição de 1988:

 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

(...)

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado”.

[11] No julgamento da ADI 2.024-2, DJ de 01-12-2000, o Ministro Sepúlveda Pertence observou, tratando justamente da imutabilidade da forma federativa prevista na Constituição de 1988, que esta “não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou, e como o adotou.” Isto porque, como bem apontado por Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 798), embora haja traços gerais e típicos do federalismo, não há um modelo único de Estado federal, eis que, de acordo com as suas peculiaridades, esse modelo sofre alterações a fim de se adequar àquelas idiossincrasias.

[12] Quase todas as Constituições anteriores também adotaram fórmula de imutabilidade similar à adotada pela CF/88 no art. 60, § 4º, I, salvo a de 1937: Constituição de 1891 – art. 90, §4º; Constituição de 1934 – art. 178, §5º; Constituição de 1946 – art. 217, §6º; Constituição de 1967 – art. 50, §1º; EC 1/69 – art. 47, §1º.

[13] “A importância da repartição de competências reside no fato de que ela é a coluna de sustentação de todo o edifício constitucional do Estado Federal. A organização federal provém da repartição de competências, pois a repartição vai desencadear as regras de configuração da União e dos Estados, indicando a área de atuação constitucional de cada um.” (HORTA, 199, p. 309)  

[14] Esse rol não é exaustivo: vide art. 48 da CF/88.

[15] Sobre esse tema em específico, Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 802) discorrem com lucidez: “Os Estados assumem a forma federal tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Um território amplo é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e de paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes.

O federalismo tende a permitir a convivência de grupos étnicos heterogêneos, muitas vezes com línguas próprias, como é o caso da Suíça e do Canadá. Atua como força contraposta a tendências centrífugas.

O federalismo, ainda, é uma resposta à necessidade de se ouvirem as bases de um território diferenciado quando da tomada de decisões que afetam o país como um todo. A fórmula opera para reduzir poderes excessivamente centrípetos.

Aponta-se, por fim, um componente de segurança democrática presente no Estado federal. Nele o poder é exercido segundo uma repartição não somente horizontal de funções – executiva, legislativa e judiciária –, mas também vertical, entre Estados-membros e União, em benefício das liberdades públicas.”

[16] Discorrendo sobre essa mesma passagem, Mendes, Coelho e Branco informam em sua obra que: “A partir dessa enfática formulação, cujas origens são mais antigas do que se possa imaginar, o princípio da separação dos poderes adquiriu o status de uma forma que virou substância no curso do processo de construção e de aprimoramento do Estado de Direito, a ponto de servir de pedra de toque para se dizer da legitimidade dos regimes políticos, como se infere do célebre artigo XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, onde se declara que não tem constituição aquela sociedade em que não estejam assegurados os direitos dos indivíduos, nem separados os poderes estatais.” (MENDES, 2008, p. 155)

[17] Nos períodos ditatoriais, representados pelas Constituições de 1937, 1967 c/c o Ato Institucional nº 5 de 1968, e pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969 (que é considerada por muitos uma nova Constituição), a previsão da Separação de Poderes, explícita ou implicitamente, constava de seus textos, por isso a expressão acima “ainda que formalmente”. Todavia, as demais disposições constitucionais existentes nas mencionadas Cartas Políticas a enfraqueciam de tal maneira que, na prática, o Poder estatal restava concentrado nas mãos do titular do Poder executivo, como se verá adiante.

[18] Por ironia, encontra-se certa semelhança na ratio desse instituto da Constituição de 1937 com o chamado recall judicial dos EUA, de cunho eminentemente democrático. A diferença básica e crucial é que neste o povo, por meio de votação, superava a decisão do Tribunal, já no brasileiro, o Presidente, com mão de ferro, superava o Judiciário e fazia prevalecer o seu entendimento. Sobre o recall judicial ver Dallari, 1995, p. 131-132.

[19] “Considerandos” do AI 5:

“CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);

CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;

CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966);

CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição,

Resolve editar o seguinte ATO INSTITUCIONAL

[20] Por sua importância história, se transcreverá alguns dos dispositivos do AI 5 que versavam direta ou indiretamente sobre o tema ora em análise:

“Art. 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.

Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

(...)        

Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

(...)

Art. 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do art. 152 da Constituição.

(...)

Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.” (grifos nossos)  

[21]OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e

CONSIDERANDO que, nos têrmos do Ato Complementar nº 38, de 13 de dezembro de 1968, foi decretado, a partir dessa data, o recesso do Congresso Nacional;

CONSIDERANDO que, decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo Federal fica autorizado a legislar sôbre tôdas as matérias, conforme o disposto no § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968;

CONSIDERANDO que a elaboração de emendas a Constituição, compreendida no processo legislativo (artigo 49, I), está na atribuição do Poder Executivo Federal;

CONSIDERANDO que a Constituição de 24 de janeiro de 1967, na sua maior parte, deve ser mantida, pelo que, salvo emendas de redação, continuam inalterados os seguintes dispositivos: (...);

CONSIDERANDO as emendas modificativas e supressivas que, por esta forma, são ora adotadas quanto aos demais dispositivos da Constituição, bem como as emendas aditivas que nela são introduzidas;

CONSIDERANDO que, feitas as modificações mencionadas, tôdas em caráter de Emenda, a Constituição poderá ser editada de acôrdo com o texto que adiante se publica,

PROMULGAM a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967 (...)”.

[22] ARAGÃO, Alexandre dos Santos. O controle da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal à luz da Teoria dos Poderes Neutrais, item III. jul./set. 2003.

[23] MOREIRA NETO, 2011, p. 71-95.

[24] Sobre o tema, Aragão leciona: “No advento da Revolução Francesa, acreditava-se que apenas os órgãos da soberania popular, ou seja, os mandatários eleitos, poderiam levar a vida em sociedade a bom termo. Logo, porém, foi verificada a necessidade da criação de órgãos estatais com autonomia de gestão e independência funcional para, fora do círculo político-eleitoral, controlar e equilibrar as relações entre os titulares dos cargos eletivos para assegurar a observância dos valores maiores da coletividade. Surgiram, então, os poderes neutrais do Estado, que abrangem realidades díspares, desde as cortes constitucionais às agências reguladoras independentes, passando pelos tribunais de contas, conselhos com sede constitucional, etc.

O que há em comum a todos estes órgãos, que, sem dúvida possuem escala de autonomia variável, é o (1) caráter não eletivo do provimento dos seus titulares, (2) a natureza preponderantemente técnica das suas funções e (3) a independência, ou seja, a ausência de subordinação aos poderes políticos eletivos do Estado como forma de propiciar o (4) exercício imparcial das suas funções em relação aos diversos interesses particulares que estiverem em jogo, aos interesses do próprio Estado do qual fazem parte e à vontade majoritária da sociedade tal como expressa por seus representantes.

Estes poderes neutrais do Estado, infensos ao menos imediatamente às mudanças político-eleitorais, longe de serem antinômicos à democracia em razão da possibilidade de contradição com as forças políticas majoritárias, asseguram o pluralismo no seio do Estado sem retirar totalmente os poderes do Chefe do Poder Executivo e do Poder Legislativo. São, com efeito, uma feliz combinação do pluralismo com o princípio majoritário.

A Teoria dos Poderes neutrais não é nova, devendo grande parte da sua construção a BENJAMIN CONSTANT e a CARL SCHMITT. Todavia, a sua importância só veio a ser notada com maior intensidade pela pena da mais moderna doutrina alemã, sobretudo através de FICHTMÜLLER, italiana, com destaque para MICHELA MANETTI e SILVIA NICCOLAI, e espanhola, na qual JOSÉ MANUEL SALA ARQUER merece especial citação por seu pioneirismo, que livraram a Teoria dos Poderes neutrais das concepções autoritárias que permearam a sua origem, transformando-a em importante instrumento para a compreensão da complexidade estatal e social em que vivemos.” (ARAGÃO, O controle da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal à luz da Teoria dos Poderes Neutrais, item II, jul./set. 2003)

[25] Canotilho, ao tratar do Estado Constitucional, informa que suas duas grandes qualidades são ser um Estado democrático e de direito, mas, por outro lado, confirma que essas qualidades surgem muitas vezes separadas, chancelando a afirmação acima de que uma característica não pressupõe necessariamente a outra, senão vejamos: “O Estado Constitucional, para ser um estado com as qualidades identificadas pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de direito democrático. Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático. Estas duas qualidades surgem muitas vezes separadas. Fala-se em Estado de direito, omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático silenciando a dimensão de Estado de direito. Esta dissociação corresponde, por vezes, à realidade das coisas: existem formas de domínio político onde este domínio não está domesticado em termos de Estado de direito e existem Estados de direito sem qualquer legitimação em termos democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito.” (2003, p. 93)

[26] Segundo Enterría e Fernández “No hay una palabra vana en la Constitución y todas ellas, como meros ‘princípios’, como enunciado de ‘valores constitucionales’, como expresión de sentido a tener en cuenta en la interpretación, tienen valor normativo directo. Podrá discutirse su alcance, que, obviamente, tendrá que ser distinto, nunca ese valor normativo.” (ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. Madrid: Civitas, 10ª ed., 2000, v. 1, p. 110)

[27] Corroborando esse entendimento, Miguel Reale também afirma não concordar com os juristas que consideram os termos Estado de Direito e Estado Democrático de Direito como sinônimos. Diz ele que tal entendimento não lhe parece admissível na hermenêutica jurídica, especialmente a Constitucional, pois em regra termos novos deverão corresponder a novas interpretações. (REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das ideologias. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2)

[28] Reale (1998, p. 2), ao tratar do significado da expressão, assim leciona: “Pela leitura dos Anais da Constituinte infere-se que não foi julgado bastante dizer-se que somente é legítimo o Estado constituído de conformidade com o Direito e atuante na forma do Direito, porquanto se quis deixar bem claro que o Estado deve ter origem e finalidade de acordo com o Direito manifestado livre e originariamente pelo próprio povo, excluída, por exemplo, a hipótese de adesão a uma Constituição outorgada por uma autoridade qualquer, civil ou militar, por mais que ela consagre os princípios democráticos.

Poder-se-á acrescentar que o adjetivo ‘Democrático’ pode também indicar o propósito de passar-se de um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade. ‘Estado Democrático de Direito’, nessa linha de pensamento, equivaleria, em última análise, a ‘Estado de Direito e de Justiça Social’. A meu ver, esse é o espírito da Constituição de 1988 (...).”

[29] A tipologia de governo adotada por Aristóteles (2009, p. 92-93) leva em conta dois elementos: a) o número de governantes; e b) se se governa buscando o interesse geral (virtuoso) ou o interesse exclusivo daqueles que detém o poder (corrompido ou viciado). Nesse sentido, os tipos de governo são assim classificados: a) governo de um só homem: virtuoso – realeza / viciado – tirania; b) governo de vários: virtuoso – aristocracia / viciado – oligarquia; c) governo da multidão: virtuoso – república / viciado – democracia.

[30] “A impossibilidade prática de utilização dos processos da democracia direta, bem como as limitações inerentes aos institutos de democracia semidireta, tornaram inevitável o recurso à democracia representativa, apesar de todas as dificuldades já reveladas para sua efetivação. Na democracia representativa o povo concede um mandato a alguns cidadãos, para, na condição de representantes, externarem a vontade popular e tomarem decisões em seu nome, como se o próprio povo estivesse governando” (DALLARI, 1995, p. 132).

[31] Para aprofundamento no tema “sistema representativo”, conhecendo os posicionamentos acerca das doutrinas da “duplicidade” e da “identidade”, ver Bonavides (1998, p. 201-227).

[32] Sobre o governo representativo Jorge Miranda (2005, p. 46) pontua: “Governo representativo significa a forma de governo em que se opera uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder – aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos da colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental). E é uma forma de governo nova em confronto com a monarquia, com a república aristocrática e com a democracia direta, em que inexiste tal dissociação.”

[33] “Uma república, quero dizer, um governo representativo, oferece um ponto de vista diferente e promete o remédio que se deseja. Examinemos as suas diferenças com relação a uma pura democracia e compreenderemos ao mesmo tempo a natureza do remédio proposto e a eficácia que ele deve tirar da União.

A república aparta-se da democracia em dois pontos essenciais: não só a primeira é mais vasta e muito maior o número de cidadãos, mas os poderes são nela delegados a um pequeno número de indivíduos que o povo escolhe.

O efeito dessa segunda diferença é de depurar e argumentar o espírito público, fazendo-o passar para um corpo escolhido de cidadãos, cuja prudência saberá distinguir o verdadeiro interesse da sua pátria e que, pelo seu patriotismo e amor da justiça, estarão mais longe de o sacrificar a considerações momentâneas ou parciais.

Num tal governo é mais possível que a vontade pública, expressa pelos representantes do povo, esteja em harmonia com o interesse público do que no caso de ser ela expressa pelo povo mesmo reunido para esse fim.” (grifos nossos) (HAMILTON, MADISON e JAY 2003, p. 64)

[34] “Outra circunstância que favorece mais as repúblicas federativas que as democracias é que as primeiras podem compreender maior número de cidadãos e um território mais vasto que as últimas; e é precisamente esta circunstância que torna os planos dos facciosos menos temíveis naquelas.” (HAMILTON, MADISON e JAY 2003, p. 65)

[35] Bonavides resume todas as características da democracia indireta em um único parágrafo, abaixo reproduzido, verbis: “A moderna democracia ocidental, de feição tão distinta da antiga democracia, tem por bases principais a soberania popular, como fonte de todo o poder legítimo, que se traduz através da vontade geral (a volonté générale do Contrato Social de Rousseau); o sufrágio universal, com pluralidade de candidatos e partidos; a observância constitucional do princípio da distinção de poderes, com a separação nítida no regime presidencial e aproximação ou colaboração mais estreita no regime parlamentar; a igualdade de todos perante a lei; a manifesta adesão ao princípio da fraternidade social; a representação como base das instituições políticas a limitação de prerrogativas dos governantes; o Estado de direito, com a prática e proteção das liberdades públicas por parte do Estado e da ordem jurídica, abrangendo todas as manifestações de pensamento livre: liberdade de opinião, de reunião, de associação e de fé religiosa; a temporariedade dos mandatos eletivos e, por fim, a existência plenamente garantida das minorias políticas, com direitos e possibilidades de representação, bem como das minorias nacionais, onde estas porventura existirem.” (grifos nossos) (1998, p. 274)

[36] Em trecho extraído do site http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_collor.htm, em consulta realizada em 12 de janeiro de 2012, há a seguinte passagem sobre o momento histórico do impeachment do Presidente Collor: “Em 1992 foi denunciada na imprensa a existência de um esquema de corrupção no governo, comandado por Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial de Collor. A CPI instalada para investigar as denúncias encerraria seus trabalhos recomendando o afastamento de Collor da presidência. Respaldada por maciço apoio popular, a abertura do processo de impeachment foi proposta, então, pelos presidentes da Associação Brasileira da Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e aprovada pela Câmara dos Deputados em 29 de Setembro de 1992. Afastado do cargo após a votação na Câmara, Collor foi substituído interinamente pelo vice-presidente Itamar Franco. Em 29 de dezembro renunciou à presidência da República, horas antes de ser condenado pelo Senado por crime de responsabilidade, perdendo seus direitos políticos por oito anos. Itamar Franco assumiu, assim, definitivamente a presidência da República.” (grifos nossos)

[37]“No Estado de Direito, a Administração só pode agir, em obediência à lei, esforçada nela e tendo em mira o fiel cumprimento das finalidades assinadas na ordenação normativa. Como é sabido, o liame que vincula a Administração à lei é mais estrito que o travado entre a lei e o comportamento dos particulares.

Com efeito, enquanto na atividade privada pode-se fazer tudo o que não é proibido, na atividade administrativa só se pode fazer o que é permitido. Em outras palavras, não basta a simples relação de não-contradição, posto que, demais disso, exige-se ainda uma relação de subsunção. Vale dizer, para a legitimidade de um ato administrativo é insuficiente o fato de não ser ofensivo à lei. Cumpre que seja praticado com embasamento em alguma norma permissiva que lhe sirva de supedâneo (...)”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed., 1991. p. 301.)

De certo modo essa idéia também é veiculada em Aristóteles, ainda que necessitando de lapidação, o que veio a ocorrer com o passar dos séculos. Afirmava o filósofo que a soberania só restaria nas mãos do governante (chamado magistrado) quando a lei não pudesse se explicar de modo claro. A fora isto, a própria lei seria soberana, e assim o sendo deveria sujeitar a todos, inclusive o governante [esta última afirmação, grifada, é inferência nossa] (ARISTÓTELES, 2009, p. 101).

[38] “O Estado está adstrito ao seu próprio Direito positivo, seja este qual for, por uma necessidade lógica de coerência e de coesão social.” (MIRANDA, 2005, p. 216)

[39] Constituição de 1988:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).” (grifos nossos)

[40] GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformanciones del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza, 1977, p. 52.

[41] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, tradução Carlos Nelson Coutinho, 1992, p. 61.

[42] Vide nota de rodapé n. 16.

[43] MIRANDA, 2005, p. 217.

[44] Nesse sentido, seguem alguns dos artigos que refletem o espírito democrático reintroduzido na vida nacional pela Constituição de 1988: a) princípio da supremacia da vontade popular encartado nos artigos 1º caput, I, II, III, IV, V e parágrafo único, 14 caput, I, II, III e §§ 1º, 2º, 3º; b) princípio da preservação da liberdade encartado nos artigos 3º caput, I, 5º caput, II, IV, VI, IX, X, XI, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XX, XXII, XXVII, XXX, XXXIX, XLV, LIV, LXI, LXII, LXIII, LXVI, LXVII, LXVIII, LXXI e LXXIII; c) princípio da igualdade de direitos encartado nos artigos 3º caput, III, IV, 5º caput, I, V, VIII, XIV, XVI, XXIX, XXXII, XXXIII, XXXIV, XXXVII, XLVIII, LI, LIII, LIV, LV, LVII, LXXIII, LXXIV, LXXVI, LXXVII, LXXVIII e 19 caput, III.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. A República Federativa do Brasil e o Estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3398, 20 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22839. Acesso em: 20 abr. 2024.