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Uso público em unidades de conservação federais: apontamentos sobre as modalidades de delegação

Uso público em unidades de conservação federais: apontamentos sobre as modalidades de delegação

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Estuda-se o uso público das unidades de conservação federais estabelecidas pela Lei nº 9.985/2000, analisando sua importância e suas peculiaridades para buscar um marco normativo a regulamentar a matéria, ainda carente de legislação própria.

A presente pesquisa promove um estudo relacionando ao uso público das unidades de conservação federais estabelecidas pela Lei nº 9.985/2000, analisando sua importância e suas peculiaridades e sempre com o afã de buscar um marco normativo a regulamentar tão importante matéria, ainda carente de legislação própria.

Todavia, antes de adentrar na proposta de critérios para escolhas das modalidades de delegação de uso público, penso ser imprescindível realizar algumas ilações sobre bens públicos, seu uso em unidades de conservação e a exploração por terceiros. Pois bem.


UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: BENS PÚBLICOS DE USO ESPECIAL

Bens públicos, consoante lição do Professor José dos Santos Carvalho Filho, “são aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam às pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, com a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas”[1].

Malgrado o traço comum que caracteriza essa classe de bens – notadamente a sua titularidade por um ente público –, o Código Civil também cuidou de tipificá-los em razão do objetivo a que se destinam, nos seguintes termos:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Os bens públicos de uso comum do povo, como o próprio dispositivo transcrito exemplifica, são os rios, mares, estradas, ruas, praças, enfim, aqueles destinados à utilização geral pela coletividade, que deles pode dispor em igualdade de condições e, em regra, sem a necessidade de prévio consentimento do Poder Público.

Já os bens de uso especial podem ser definidos como “os que se destinam especialmente à execução dos serviços públicos e, por isso mesmo, são considerados instrumentos desses serviços”.[2] Têm por característica essencial, portanto, servir como meio para a realização das finalidades institucionais dos entes públicos aos quais pertencem, atrelando-se à consecução desses objetivos.

De outro giro, o art. 2º, I, da Lei nº 9.985/2000 conceitua unidade de conservação como sendo um “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”.

Do conceito legal, dois pontos merecem destaque: o primeiro, o expresso e primordial objetivo dessas áreas protegidas, que é conservar a natureza; o segundo, não menos relevante, o fato de submeterem-se a um regime especial de administração, que varia de acordo com a categoria, a vocação e os atributos naturais que ensejaram a sua criação.

Tomando como exemplo os Parques Nacionais, categoria de unidade de conservação que possui como objetivo básico proporcionar à coletividade o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico, sua utilização pelo público não se mostra marcada pelos traços de generalidade, impessoalidade e incondicionalidade que caracterizam os bens de uso comum.[3]

Com efeito, a visitação pública nessas unidades sujeita-se a normas e restrições próprias, como, por exemplo, eventual limitação ao número máximo de visitantes ou a exigência de pagamento de ingresso. A necessidade de atendimento a essas condições legitimadoras, que podem variar caso a caso, afasta as unidades de conservação do conceito de bem de uso comum do povo, enquadrando-as, de forma induvidosa, como bens públicos de uso especial.


USO PÚBLICO EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Embora consagrada, a expressão uso público em unidades de conservação carece de estudos mais aprofundados na doutrina jurídica brasileira. Os poucos trabalhos existentes sobre o assunto limitam-se a abordar aspectos técnicos e operacionais, o que contribui para o pouco conhecimento existente sobre o tema. A fim de elucidar suas nuances jurídicas, algumas considerações afiguram-se oportunas.

Conforme já dito em linhas precedentes, o Código Civil brasileiro classifica os bens públicos, à luz dos objetivos a que se destinam, em bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Todos eles, em regra, podem ser objeto de uso pelos seus respectivos proprietários, como explica José dos Santos Carvalho Filho:

Os bens públicos podem ser usados pela pessoa jurídica de direito público a que pertencem, independentemente de serem de uso comum, de uso especial ou dominicais. Essa é a regra geral. Se os bens pertencem a tais pessoas, nada mais normal que elas mesmas os utilizem.

Não obstante, é possível que sejam também utilizados por particulares, ora com maior liberdade, ora com a observância dos preceitos legais pertinentes. O que é importante no caso é a demonstração de que a utilização dos bens públicos por particulares deve atender ao interesse público, aferido pela Administração. Daí porque inferimos que esse tipo de utilização pode sofrer, ou não, regulamentação mais minuciosa.”[4]

No que tange às unidades de conservação, chama atenção a prerrogativa conferida ao Poder Público, a teor do art. 17-M da Lei nº 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, de condicionar a fruição por particulares de “serviços administrativos prestados pelo IBAMA, inclusive os referentes à venda de impressos e publicações, assim como os de entrada, permanência e utilização de áreas ou instalações nas unidades de conservação” ao pagamento de contrapartida financeira, verdadeiro preço público, em que pese ter sido erroneamente rotulada como taxa[5] pelo art. 35, caput, da Lei nº 9.985/2000.

A cobrança de remuneração pela entrada, permanência e utilização das unidades de conservação, contudo, não configura ato vinculado, e sim discricionário. É que não existe dispositivo legal que a imponha, o que leva à conclusão de que constitui faculdade do Poder Público, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decidir se o acesso e a utilização das unidades de conservação devem sujeitar-se a cobrança.

Essa prerrogativa não é sem razão de ser: a finalidade precípua da visitação pública em unidades de conservação não é arrecadar fundos, e sim dar concretude à obrigação imposta ao Poder Público pela Constituição Federal, em seu art. 225, §1º, VI, de “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Traduz-se, ainda, no principal meio para a consecução de um dos objetivos expressos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, ao “favorecer condições e promover a educação e interpretação ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico” consoante dicção do art. 4º, XII, da Lei nº Lei nº 9.985/2000.

De fato, a visitação pública em unidades de conservação constitui o meio ideal para uma modalidade de educação ambiental que a doutrina convencionou denominar de não-formal[6], porquanto realizada fora do ambiente escolar. Sua eficiência como vetor de conscientização pública para a necessidade de preservar o meio ambiente é notável, haja vista o forte e positivo impacto que o contato direto com a natureza e a recreação ambiental operam naqueles que têm a oportunidade de visitar essas áreas protegidas, as quais concentram os atrativos naturais mais relevantes do território nacional.

Assim, o que se convencionou denominar de uso público em unidades de conservação pode ser compreendido como a fruição, pela coletividade, das comodidades franqueadas direta ou indiretamente pelo Poder Público, de forma onerosa ou não, relacionadas à entrada, permanência e utilização de áreas ou instalações de unidades de conservação com o objetivo de promover a educação ambiental e a conscientização da sociedade para a necessidade de preservar o meio ambiente mediante o turismo ecológico, a interpretação ambiental e a recreação em contato com a natureza.


A EXPLORAÇÃO POR TERCEIROS DAS ATIVIDADES E SERVIÇOS DE APOIO AO USO PÚBLICO EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Aclaradas as peculiaridades jurídicas que marcam o uso público em unidades de conservação, merece registro o fato de os serviços e atividades a ele relacionados poderem ser empreendidos tanto pelo Poder Público, de forma direta, como por terceiros autorizados, como faculta o art. 25 do Decreto nº 4.340/2002[7]: Neste último caso, o explorador se sujeita ao pagamento de contrapartida pecuniária, como reza o art. 33 da Lei nº 9.985/2000:

Art. 33. A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento, conforme disposto em regulamento.

Ao aludir tão somente à autorização, a Lei nº 9.985/2000 disse menos do que deveria, omissão que não foi sanada pelo Decreto nº 4.340/2002, que a regulamenta. Nenhum dos referidos diplomas disciplinou a contento a forma como a exploração por terceiros dos produtos, subprodutos ou serviços relacionados ao uso público em unidades de conservação poderia ser operacionalizada, relegando ao órgão gestor, em situação de patente insegurança jurídica, a escolha dos meios para sua consecução.

Numa primeira análise, esses produtos, subprodutos ou serviços relacionados ao uso público em unidade de conservação poderiam ser acomodados nas definições doutrinárias de serviço público, especialmente naquelas adotadas pela corrente essencialista, que considera como tal toda atividade que tenha por objeto a satisfação de necessidades coletivas. É essa a linha adotada por José dos Santos Carvalho Filho, que conceitua serviço público como “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”.[8]

Todavia, cotejando a diversidade de serviços que se enquadram nesse conceito com as situações concretas em que o Poder Público os considera como públicos, percebe-se que as premissas de tal definição não podem pautar a escolha do regime jurídico a ser seguido. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[9] ilustram bem a questão, ao reconhecerem que:

(...) a atividade em si não permite decidirmos se um serviço é ou não público, uma vez que há atividades essenciais, como a educação, que são exploradas por particulares sem regime de delegação, e há serviços totalmente dispensáveis, a exemplo das loterias, que são prestados pelo Estado como serviço público.

Esclarecem os referidos autores, ainda, que, no Brasil, o entendimento doutrinário dominante filia-se à corrente formalista, segundo a qual, diante da impossibilidade de se identificar um núcleo essencial relativo à natureza da atividade, só seriam considerados serviços públicos as atividades que a Constituição ou as leis assim definissem[10].

No caso dos serviços relacionados ao uso público em unidades de conservação, sua caracterização, em termos formais, como serviço público, seria essencial para se identificar as fontes normativas que disciplinarão sua delegação a terceiros, como faculta o art. 33 da Lei nº 9.985/2000. Isso porque o instituto da concessão de serviços públicos é regido pela Lei nº 8.987/1995, que estabeleceu um conjunto de regras próprias para sua operacionalização.

Ocorre que a Lei nº 9.074/1995, na mesma linha da corrente doutrinária formalista, condicionou a execução indireta de serviços públicos à edição de lei autorizativa, conforme prescrição de seu art. 2º:

Art. 2º É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios executarem obras e serviços públicos por meio de concessão e permissão de serviço público, sem lei que lhes autorize e fixe os termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento básico e limpeza urbana e nos já referidos na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios, observado, em qualquer caso, os termos da Lei no 8.987, de 1995.

Não basta, dessarte, que a lei preveja genericamente a possibilidade de delegação, sendo necessário que a possibilidade de concessão ou permissão seja expressa e tenha seus termos prefixados.

Embora o art. 33 da Lei nº 9.985/2000 permita a exploração comercial do uso público em unidades de conservação, seu laconismo, aliado ao fato de seu texto não aludir expressamente à possibilidade de concessão, não dá margem para que se possa interpretá-lo como a autorização legislativa para a concessão de serviços públicos de que trata o art. 2º da Lei nº 9.074/1995.

Por outro lado, ao contrário do que sucede com as concessões disciplinadas pela Lei nº 8.987/1995, não há como se predeterminar as comodidades que podem ser desenvolvidas a partir das unidades de conservação. Cada área protegida tem suas próprias peculiaridades, o que gera uma quantidade praticamente ilimitada de atividades possíveis, como rapel, mergulho, arvorismo, rafting, hotelaria, alimentação, comércio de suvenires, trilhas, ciclismo, entre tantas outras.

Diante de tal diversidade, não seria tecnicamente apropriado classificá-las, em função de seu ponto comum, que é o fato de serem desenvolvidas a partir de unidades de conservação, como uma espécie do gênero serviços públicos. Isso porque os serviços públicos passíveis de serem concessionados têm seus objetos, em regra, coesos e determináveis, como são exemplos a exploração de obras ou serviços federais de barragens e os serviços postais, atividades estas formalmente consideradas pela Lei nº 9.074/1995 como serviços públicos.

Em suma, considerando a impossibilidade fática de se elevar cada comodidade possível de ser oferecida em unidades de conservação ao patamar de serviço público, ou mesmo de considerá-las conjuntamente como uma espécie própria deste gênero, o mais correto é enquadrar os serviços e atividades voltados a incrementar o uso público das unidades de conservação num lócus próprio, apartado daquele reservado aos serviços públicos.

A lacuna apontada, contudo, não impede que os preceitos consignados na Lei nº 8.987/1995, pelas muitas similaridades existentes entre a concessão de serviços públicos e a delegação a terceiros da exploração das atividades relacionadas ao uso público em unidades de conservação, sejam utilizados análoga e subsidiariamente para sanar eventuais incompletudes normativas.

Foi justamente a impossibilidade formal de utilização do instituto da concessão de serviço público que levou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, enquanto órgão instituído pela Lei nº 11.516/2007 e responsável pela gestão das unidades de conservação federais, a valer-se da denominada concessão de uso, instrumento mais amplo e que, em essência, adéqua-se com mais precisão ao uso público em unidades de conservação. Segundo o festejado administrativista Hely Lopes Meirelles, a concessão de uso seria:

(...) o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que explore segundo sua destinação específica. O que caracteriza a concessão de uso e a distingue dos demais institutos assemelhados – autorização e permissão de uso – é o caráter contratual e estável da outorga do uso do bem público ao particular, para que o utilize com exclusividade e nas condições convencionadas com a Administração.

A concessão pode ser remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, mas deverá ser sempre precedida de autorização legal e, normalmente, de licitação para o contrato. Sua outorga não é nem discricionária nem precária, pois obedece a normas regulamentares e tem a estabilidade relativa dos contratos administrativos, gerando direitos individuais e subjetivos para o concessionário, nos termos do ajuste. Tal contrato confere ao titular da concessão de uso um direito pessoal de uso especial sobre o bem público, privativo e intransferível sem prévio consentimento da Administração, pois é realizado intuitu personae, embora admita fins lucrativos. É o que ocorre com a concessão de uso remunerado de um hotel municipal, de áreas em mercado ou de locais para bares e restaurantes em edifícios ou logradouros públicos.[11]

Harmonizando a concessão de uso ao caso específico do uso público em unidades de conservação, percebe-se que o seu escopo não se limita às formas mais singelas e usuais de utilização do instituto; tampouco se subsume à mera cessão do uso e gozo de áreas determinadas inseridas em unidades de conservação, o que o aproximaria de um simples contrato de locação. O objeto concessionado, em verdade, são as atividades e serviços de apoio ao uso público, sendo que a prerrogativa de uso conferida ao concessionário seria apenas um meio para a implementação daquelas.

Logo, como o que se concessiona não é o uso público, mas sim a operacionalização das atividades que o incrementarão, o mais correto seria, ao invés de aludir à já consagrada expressão concessão de uso público, falar em concessão de uso privativo de bens públicos para a realização de serviços e atividades de apoio ao uso público em unidades de conservação.

Foi com fundamento nessas premissas jurídicas que o ICMBio, no afã de executar uma de suas principais finalidades institucionais, que é “promover e executar, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam permitidas”, conforme expressamente consignado no art. 1º, “V”, da Lei nº 11.516/2007, que o criou, leva a cabo a concorrências públicas com o objetivo de selecionar empresas para a implementação e exploração das atividades relacionadas ao uso público em parques nacionais.

Em que pese o fato de o ICMBio utilizar-se do instrumento genérico da concessão de uso, é sem dúvida que a concessão da exploração do uso público em unidades de conservação carece de uma legislação própria, que lhe dê segurança jurídica e discipline suas especificidades. A existência de lei nesse sentido conferiria a robustez necessária ao procedimento. Como não existe, cabe ao aplicador, tanto área técnica quanto jurídica, interpretar as normas vigentes a fim de dar azo aos objetivos.


DA PROPOSTA DE CRITÉRIOS PARA ESCOLHA DAS MODALIDADES DE DELEGAÇÃO

Em linhas gerais, os critérios para a escolha das modalidades de delegação da exploração, por terceiros, das atividades e serviços de apoio ao uso público em unidades de conservação são constituídos por autorização de uso, permissão de uso ou concessão de uso.

Por autorização de uso entende-se o ato administrativo por meio do qual o Poder Público consente que determinado indivíduo utilize bem público de modo privativo. É ato unilateral, discricionário e precário, motivo pelo qual não gera direito de indenização para o particular quando da sua cessação. Note que autorização para uso de bem público não se confunde com autorização para a prestação de serviço público.

Por sua vez, a permissão de uso também consiste em ato unilateral, discricionário e precário para utilização de certo bem por particular. A distinção entre os institutos, todavia, não é unânime na doutrina, tendo sido demonstrada por Lucas Rocha Furtado[12], in verbis:

Em termos conceituais, são apresentados dois critérios básicos para distinguir a autorização de uso da permissão de uso.

De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro e José dos Santos Carvalho Filho, a principal distinção entre dois institutos reside no fim a ser dado ao bem, que no caso da autorização de uso seria privado, ou seja, que seria transferido o uso privativo do bem a determinado particular tendo em vista o interesse deste, ao passo que na permissão de uso ocorreria o trepasse do bem ao particular tendo por objeto a satisfação do interesse público.

Critério distinto è utilizado por Celso Antônio Bandeira de Mello e Marçal Justen Filho. Esses dois últimos autores defendem que o critério discriminatório entre os institutos residiria no prazo de utilização do bem público. No caso da autorização de uso, o bem seria utilizado por breves períodos (comícios, eventos esportivos, culturais etc.), enquanto a permissão envolveria utilização por longos períodos (bancas de jornal, quiosques, lanchonetes etc.).

Assim como Lucas Rocha Furtado, pensamos ser mais acertado o critério da distinção por prazo de utilização do bem, pois, seja um ou outro, o interesse particular é latente. Nessa linha, vejamos o que dispôs Marçal Justen Filho[13]:

Não se afigura cabível estabelecer distinção entre autorização de uso e permissão de uso fundada no interesse do particular. É problemático afir­mar que a autorização é aplicável nos casos em que o bem público se des­tina a satisfazer o interesse do autorizado e que a permissão é instrumento de produção do interesse coletivo. Em todos os casos, o particular busca realizar um interesse predominantemente não estatal, ainda que a atuação por ele pretendida deva ser compatível com o bem comum.

Assim, quem solicita autorização para promover um comício em pra­ga pública nutre interesses similares aquele que pleiteia permissão para instalar uma banca de revistas.

O ponto nodal da diferença reside na natureza transitória ou não da utilizarão pretendida pelo particular. Quanto menos transitória for a utilização pretendida, tanto maior deverá ser o grau de compatibilidade entre a fruição privativa e as necessidades coletivas.

Assim, pode-se admitir que uma instituição pleiteie autorização para realizar festividade que impeça o tráfego em uma via pública durante algu­mas horas. Mas é pouco concebível admitir permissão para instalar um restaurante numa rua e impedir o tráfego na via pública durante meses.

Importante atentar que a permissão de uso “deve ser precedida de procedimento que assegure aos possíveis interessados no uso do bem idêntica oportunidade de obter a permissão”[14]. Dessa feita, a licitação será exigível sempre que for possível e houver mais de um interessado na utilização do bem, evitando-se favorecimentos ou preterições ilegítimas, tese que se filia Justen Filho[15] quando se refere à autorização de uso e, ao mesmo tempo, não faz qualquer distinção para a permissão.

Nessa linha, o posicionamento aqui firmado diverge daquele que entende ser necessária licitação para a permissão. Impende destacar inexistir ofensa à Lei nº 8.666/93 na intelecção aqui efetuada. Para melhor entendimento, importa aclarar que o principal objetivo do Estatuto das Licitações é a obtenção de proposta mais vantajosa para a Administração, assim como garantir oportunidade isonômica a todos os particulares que queiram contratar com o Poder Público.

Por conseguinte, somente o caso concreto pode trazer os elementos indispensáveis a aferir a imprescindibilidade ou não de licitação. Se, v. g., a permissão de uso não traz qualquer vantagem financeira para a Administração ou mesmo se todos os interessados puderem obter a qualidade de permissionários para determinada atividade, não há que se falar em licitação.

Uma saída que se vislumbra para saber a existência ou não de um número maior de interessados que possa gerar competição e obrigar a elaboração de certame licitatório é a ampla publicidade. Para tanto, sugere-se a publicação de um edital de chamamento público.

Por chamamento público entende-se a comunicação do interesse da Administração em conferir a pessoas físicas que satisfaçam os requisitos definidos no edital o fornecimento de bens, a contratação de serviços ou a utilização de espaço público[16]. Portanto, a Administração adota o credenciamento para situações em que o mesmo objeto possa ser realizado simultaneamente por diversas pessoas.

Todavia, alerta-se que a ilação aqui esposada somente possui cabimento se toda e qualquer pessoa que satisfizer os requisitos tenha direito à obtenção da permissão. Na eventualidade de grande quantidade de pessoas que inviabilizem sua utilização, deverá ser feita, obrigatoriamente, a licitação.

Por sua vez, a concessão de uso público é formalizada por contrato administrativo, não precário, despontando o caráter da bilateralidade. Aqui, por se referir a atividades de maior vulto, o concessionário “assume obrigações perante terceiros e encargos financeiros elevados, que somente se justificam se ele for beneficiado com a fixação de prazos mais prolongados que assegurem um mínimo de estabilidade no exercício de suas atividades”[17].

Para maior aclaramento da questão, insta trazer ao lume definição do instituto da concessão de uso, de lavra do insigne jurista José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:

Concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público confere a pessoa determinada o uso privativo de bem público, independentemente do maior ou menor interesse público da pessoa concedente.[18]

Em remate, deve-se evitar a utilização da expressão “terceirização de serviços” para que não haja confusão com as terceirizações amplamente contestadas pelos órgãos de controle, em especial, o Tribunal de Contas da União. Por ser matéria relativamente nova e não legislada, a confusão de ideias seria inevitável.


CONCLUSÃO

Eis, em suma, breves considerações sobre o uso público e suas modalidades de delegação. Importa frisar, como se disse em linhas precedentes, que não estamos a falar em serviço público, motivo pelo qual os procedimentos licitatórios eventuais deverão ser regulamentados pela Lei nº 8.666/93, com aplicação subsidiária da Lei 8.987/1995.

Assim é que a incipiência da legislação leva o intérprete a se valer de outras normas correlatas, quando o ideal seria a edição de minuta de decreto presidencial ou até mesmo uma lei, a depender do que se almeja abraçar na referida normatização, a fim de regulamentar a concessão de uso privativo de bens públicos para a realização de serviços e atividades de apoio ao uso público em unidades de conservação, tudo com espeque no art. 33 da Lei nº 9.985/2000.

Por derradeiro, todas as considerações aqui esposadas o foram de forma abstrata. Certamente outras dúvidas surgirão com as hipóteses concretas trazidas ao lume, devendo este trabalho apenas constituir um ponto de partida para escolha das modalidades, nada impedindo que os entendimentos jurídicos e técnicos evoluam na medida em que os procedimentos forem sendo adotados.


Notas

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1237.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 551.

[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica: o regime jurídico das utilidades públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.217.

[4] CARVALHO FILHO, Op. Cit., p. 1264.

[5] Embora a distinção entre taxa e preço público refuja à questão central tratada neste Parecer, necessário esclarecer que a contrapartida pecuniária pelo ingresso em unidade de conservação não possui natureza tributária. Sem embargo, tendo em vista que esse serviço não é compulsório nem tampouco configura atividade eminentemente estatal, eis que a própria Lei nº 9.985/2000, em seu art. 33, permite sua exploração por terceiro, a única conclusão possível é que se trate de preço público.

[6] MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 525.

[7] “Art. 25 É passível de autorização a exploração de produtos, sub-produtos ou serviços inerentes às unidades de conservação, de acordo com os objetivos de cada categoria de unidade.”. (grifos nossos)

[8] CARVALHO FILHO, Op. Cit., p. 350.

[9] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 16. ed. São Paulo: Método, 2008, p. 564-565.

[10] Idem, Ibidem, p.564.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes, Op. Cit., p. 558-559.

[12] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 863.

[13] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1088.

[14] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 865.

[15] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1086.

[16] À obviedade, a contratação somente poderá ser feita se for precedida de licitação para os casos em que a Lei nº 8.666/93 preveja.

[17] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo, Atlas, São Paulo, p. 391

[18] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 14ª ed., Lumen Juris Editora, Rio de Janeiro, 2005, p. 903.


Autor

  • René da Fonseca e Silva Neto

    René da Fonseca e Silva Neto

    Procurador Federal. Coordenador Nacional de Matéria Administrativa da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes - ICMBio. Ex-Coordenador Nacional do Consultivo da PFE/ICMBio. Bacharel em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Ambiental. Coautor do livro Manual do Parecer Jurídico, teoria e prática, da Editora JusPodivm.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, René da Fonseca e. Uso público em unidades de conservação federais: apontamentos sobre as modalidades de delegação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3405, 27 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22903. Acesso em: 20 abr. 2024.