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A boa-fé objetiva na interpretação dos negócios jurídicos

A boa-fé objetiva na interpretação dos negócios jurídicos

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O consenso da doutrina assinala que a boa-fé objetiva, ainda que referida a noções de preservação da confiança e de lealdade entre as partes que entram em relações jurídicas, não assume significado unívoco e o conteúdo dos deveres que dela decorrerão para cada parte somente se podem determinar à vista de elementos concretos.

Resumo: Busca investigar o papel do princípio da boa-fé objetiva na interpretação dos negócios jurídicos. Por meio do cotejo aos argumentos da doutrina que se debruça sobre os significados da boa-fé no direito privado brasileiro e português, este trabalho se volta para as possibilidades existentes para o intérprete do direito na aplicação do princípio da boa-fé aos casos concretos.

Palavras-chave: Boa-fé. Interpretação. Negócio jurídico. Contrato. Direito privado.

Sumário: Introdução. 1. Sobre a Interpretação do Direito. 2. A Boa-Fé no Direito Brasileiro. 2.1. Os Sentidos da Boa-Fé. 3. A Boa-Fé na Interpretação dos Negócios Jurídicos. Conclusão.


Introdução

“O direito é um dinamismo”, afirma Grau (2002, p. 111), em seu Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Justamente porque não é a sociedade que existe em função dele, o direito, mas ele que existe em função da sociedade, Grau (2002, p. 111) pondera que “o direito é um nível da realidade social”. “E a realidade social é o presente; o presente é vida – e vida é movimento”. Com tais palavras, busca o autor construir o rechaço que faz ao costume, ainda muito presente na comunidade jurídica, de o direito (nesse caso, a lei) ser interpretado segundo a vontade do legislador[1].

Embora se deva reconhecer que o citado autor tinha motivação íntima razoavelmente distante da que inspirou os autores do novo Código Civil brasileiro (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), não se pode afastar de todo a idéia de que o trabalho realizado por esses últimos em muito contribuiu para a materialização do processo de contínua adaptação e evolução do direito civil pátrio.

Essencialmente, esse resultado, outrora identificado como a abertura do sistema de direito privado (MARTINS-COSTA, 1999, p. 75), tornou-se possível por meio da positivação de cláusulas gerais, com significados fluidos e, a priori, indeterminados, que desvendam importantes caminhos para que os intérpretes empreendam função criadora e promovam a diuturna renovação semântica e pragmática[2] dos textos normativos civis.

É patente a importância dessa transformação do direito positivo brasileiro, que ganhou, com cláusulas gerais como a do respeito à função social do contrato, à probidade e à boa-fé, importantes ferramentas para que melhores decisões sejam proferidas acerca dos conflitos que assolam o Poder Judiciário.

Este trabalho pretende investigar o papel que desempenha uma dessas cláusulas gerais – a boa-fé – na interpretação dos negócios jurídicos, em franca exegese do art. 113 do Código Civil[3]. Para tanto, far-se-á um breve estudo sobre a própria interpretação do direito, para, então, passar à apreensão do sentido que assume a boa-fé no direito privado quando serve de pauta para a interpretação de negócios jurídicos.


1 Sobre a Interpretação do Direito

Maximiliano (1998, p. 9) ensina que interpretar é “explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”. No que tange à interpretação do direito, alguns teóricos sugerem que a descoberta dos significados das normas jurídicas se confunde com a própria aplicação do direito.[4]

Betti (2007, p. 5-15) sustenta, no que se refere à comparação entre interpretação e aplicação do direito, que a interpretação promove aplicação do direito quando (i) o sujeito a quem se dirige a norma dela extrai o significado (“apreciação parcial”) e observa-a em sua ação ou, (ii) inocorrendo essa “observância espontânea”, a autoridade competente para coercitivamente submeter o destinatário da norma a sua observância (“um terceiro imparcial, que é o órgão de jurisdição”), interpreta-a (“apreciação vinculante”) e determina seu cumprimento.

Ainda segundo Betti (2007, p. 62-67), embora a interpretação jurídica pelo órgão de jurisdição seja aplicação do direito, não constitui criação do direito, no sentido de que esse intérprete esteja livre para determinar o significado da norma jurídica que deflui do preceito interpretado. Na verdade, o intérprete judicante estaria vinculado às demais normas jurídicas do ordenamento, aos valores e princípios nele incrustados, de forma que sua atividade nunca se dá sem parâmetros ou mesmo sem vinculação prévia, como costuma ocorrer na atividade criadora exercida por quem detém competência legislativa originária.

A idéia de que a interpretação jurídica realizada pelo órgão de jurisdição é essencialmente vinculada é reafirmada por Betti (2007, p. 79-82) também nos casos em que os critérios, valores, padrões de conduta social que sejam ou devam ser levados em consideração para a decisão judicial sejam razoavelmente indeterminados. Segundo o jurista italiano, o elemento orientador da interpretação, que serve à redução da discricionariedade ampla do juiz é a cláusula geral de coerência racional que deve ter o ordenamento, em abstrato. Assim é que duas situações em tudo idênticas devem receber o mesmo tratamento pelo magistrado, não lhe sendo admitida, seja a criação de uma norma jurídica específica – e distinta – para cada caso, como se órgão legislativo fosse, seja o recurso ao juízo de oportunidade e conveniência que cabe, por exemplo, ao administrador público.

Em direção convergente a Betti caminha Grau ao responder se a interpretação do direito é uma ciência ou uma prudência. De plano, o autor rechaça a ideia de que a interpretação do direito seja uma ciência, pois, ao contrário desta, ela não se volta para tudo aquilo que ainda não foi descoberto, no intuito de compreender aquilo que não foi ainda compreendido. A interpretação jurídica se preocupa, sim, com o sentido prático que terá o resultado de sua atividade, com a melhor adequação entre esse resultado e a situação a que se aplica, os objetivos a que visa (GRAU, 2002, p. XIV e 86-90).

Grau (2002, p. 88) conclui que interpretar o direito é atuar segundo uma “lógica da preferência”, em contraposição à “lógica da consequência”, eis que a lógica jurídica envolve a escolha de uma dentre várias possibilidades corretas, resultados de correspondentes interpretações igualmente possíveis, apenas tidas como mais ou menos justificáveis. “A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação. Por isso, a alternativa verdadeiro/falso é estranha ao direito; no direito há apenas o aceitável (justificável)” (2002, p. 88). E em razão de haver mais de uma solução justificável para cada caso é que não se pode afirmar que há somente uma única solução correta, seja qual for a situação. Pode-se dizer, apenas, que há a solução mais justificável, mais plausível (2002, p. 90).

Depreende-se daí que as demais soluções, menos plausíveis, estariam em posição menos privilegiada por força da configuração fática ou jurídica, isto é, da conjuntura em que o direito é interpretado/aplicado[5] ou mesmo dos componentes da estrutura do ordenamento jurídico, como princípios e valores, positivados ou não. Tudo estaria a depender, portanto, da interpretação que é dada ao conjunto dos elementos relevantes para cada caso (elementos do texto normativo e elementos do fato concreto). É importante perceber que a descoberta desses elementos, bem como a atribuição de maior ou menor relevância a cada um deles, envolve um processo de escolha, portanto está intimamente ligada ao intérprete. Assim é que, tendo acesso ao relato de uma situação, o intérprete seleciona partes desse relato e lhes atribui valor conforme ache conveniente, na crença de que, assim o fazendo, melhor solução trará ao caso. E ele procederá da mesma forma ao se deparar com o texto normativo que se aplica à situação.

Essas ilações podem sugerir que a interpretação jurídica está sujeita a movimentos ou escolhas arbitrárias por parte do intérprete. Embora não seja razoável supor que a ocorrência da arbitrariedade pode ser eliminada, parece ser possível estabelecer mecanismos de controle sobre a interpretação, de modo que decisões arbitrárias sejam evitadas. Por exemplo, fixada a premissa de que a interpretação jurídica é vinculada ao sistema de direito (BETTI, 2007, p. 79-82), pode-se buscar meios de tornar a atividade do intérprete o mais imparcial possível. Nessa seara, Habermas (1992, p. 94, apud GRAU, 2002, 100-101) oferece interessantes orientações para o juiz, que aparentemente podem ser aplicadas à interpretação do administrador público:

“na aplicação (Anwendung) das normas, que se faz sempre desconsiderando o contexto, a imparcialidade do juízo não é alcançada simplesmente se nos perguntamos o que todos, naquela circunstância, poderiam querer, mas sim se tomarmos sob a devida conta, de modo pertinente, todos os aspectos relevantes que caracterizam a situação. Para poder decidir quais normas devemos aplicar a um determinado caso – normas que podem sempre entrar em conflito entre si e que se deve dispor em ordem de importância à luz de certos princípios – necessitamos primeiro esclarecer se a descrição da situação é efetivamente exauriente e pertinente (angemessen) em relação a todos os interesses afetados”.

Tomados esses cuidados, será ainda necessário ao intérprete ter em conta a disciplina legal da interpretação jurídica, adotada em muitos ordenamentos, inclusive o brasileiro. Observando o fenômeno, Betti (2007, p. 79-82) identifica que essa disciplina visa a traçar balizas para a atividade do intérprete. Em última análise, trata-se de regras preceptivas das quais a atividade interpretativa do sujeito que a realiza não se pode afastar. Com tais normas, o legislador busca atingir, com maior eficácia, os objetivos por ele traçados ao positivar determinadas normas. Ao reconhecer a importância da atividade interpretativa das normas jurídicas para o alcance/concretização dos fins almejados com as normas postas, o legislador elabora normas de interpretação, que põem balizas ou diretivas destinadas ao alcance daqueles fins (GRAU, 2002, p. 171-187)[6].

E parece que o intérprete está diante de uma norma desse tipo quando se depara com o citado art. 113 do Código Civil. Porém, para delimitar o alcance dessa norma interpretativa, primeiro se deve perquirir sobre o sentido do termo “boa-fé”, que ali se pôs.


2 A Boa-Fé no Direito Brasileiro

Preliminarmente, há uma distinção a ser feita entre as modalidades subjetiva e objetiva da boa-fé. A primeira, afirmam os doutrinadores, tem que ver com um estado psicológico[7] do sujeito de direito cuja conduta se examina – daí a designação subjetiva à boa-fé. Manifesta-se ela na crença que tem o sujeito de atuar conforme a lei, sem lesar a outrem, muitas vezes por ignorar a real situação jurídica em que se encontra. (ROSENVALD, 2005, p. 80-81; NEGREIROS, 2006, p. 120) Assim, por exemplo, a boa-fé mencionada no art. 1.201 do Código Civil: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.”

No que se refere à boa-fé objetiva, trata-se de conceito que, embora não seja recente no ordenamento jurídico pátrio, eis que se encontrara presente na parte primeira do Código Comercial (art. 131, 1[8]), somente contou com ambiente favorável à sua plena aplicação aos litígios já na metade do século XX. Nem mesmo a codificação civil de 1916, posterior, portanto, ao diploma comercial, absorveu a boa-fé objetiva na forma como constava nesse último. Nesse tocante, esclarece Martins-Costa (1999, p. 207) que “a pretensão da plenitude, a preocupação com a segurança, certeza e clareza (no sentido de precisão semântica) que marcam a obra de Beviláqua não permitiram espaço para a inserção de cláusulas gerais e, por isso, a boa-fé ficou restrita às hipóteses de ignorância escusável, em matéria de direito de família e no tratamento da proteção possessória.” E continua, afirmando que a ausência de espaço para o desenvolvimento do direito dos comerciantes, como ocorrera na Alemanha, e, consequentemente, a consolidação da boa-fé objetiva no sistema jurídico brasileiro de então decorrera da incipiência da classe dos comerciantes e da forte intervenção estatal na economia, que tolhia ainda mais o crescimento da atividade negocial no país. (MARTINS-COSTA, 1999, p. 207)

Cordeiro (2005, p. 415-425) demonstra que, também na Alemanha, o desenvolvimento do instituto da boa-fé ocorreu em compasso com a evolução do direito comercial. Registra o autor que, naquele país, após a entrada em vigor do BGB (Bürgerliches Gezetsbuch), em 1900, mas não por causa dela, a boa-fé objetiva ganhara força na doutrina, sem, porém, encontrar correspondente aceitação nas decisões judiciais. O autor afirma que essa força vem, originalmente, da consolidação dos tribunais comerciais alemães no século XIX, que remonta a período anterior ao BGB. Com muito pouca base científica – na verdade, com base essencialmente tópica – os tribunais comerciais da Alemanha iniciaram a aplicação da boa-fé objetiva, seja como condicionante do modo de exercício de posições jurídicas, seja como fórmula de interpretação de contratos, seja, ainda, como norma geral de conduta, independente da vontade das partes (CORDEIRO, 2005, p. 314-319).

Martins-Costa (1999, p. 209) acrescenta que essa relação entre a boa-fé objetiva e o direito comercial deve-se ao fato de o direito comercial ser um “direito flexível”, que se apresenta como um direito “muito mais fortemente ligados aos usos, à prática cotidiana de uma atividade específica, setorializada – e não de uma atividade quase que omnicompreensiva dos vários setores da existência humana, como é a atividade civil.” Essa característica denota sua maior fluidez, em comparação com o direito civil, que não o deixa preso a valores e princípios mais complexos e engessados na sociedade do que aqueles necessários à “dinamicidade intensa” da prática comercial (MARTINS-COSTA, 1999, p. 209).

É justamente por essa qualidade que o direito comercial acaba por impulsionar mudanças na disciplina civilista, manifestando, no Brasil, a “contaminação do direito geral pelo especial por um princípio [a boa-fé objetiva] presente desde a gênese do direito especial.” (FORGIONI, 2007, p. 127) Esse fato é sintomático no que diz respeito à boa-fé objetiva, mas há também razões outras para a inclusão desse princípio no Código Civil de 2002 – razões essas ligadas aos anseios de promover grande abertura do sistema de direito civil (MARTINS-COSTA, 1999, p. 75). Na conjuntura jurídico-cultural que se apresentava à época da segunda codificação, foi possível dar grande primazia às cláusulas gerais, como a função social do contrato, a boa-fé e a probidade, permitindo, assim, maior permissividade às mudanças da compreensão social acerca do tratamento dos diversos temas jurídicos (MARTINS-COSTA, 1999, p. 75). A idéia expressa pelos autores do projeto de novo Código Civil era de que o diploma fosse a “lei básica” e, portanto, comportasse “‘modelos abertos’, a fim de permitir a evolução e a obra da interpretação, quer dos autores, quer da jurisprudência.” (MARTINS-COSTA, 1999, p. 75). Assim também se fortaleceria a atividade criadora dos juízes, que passaria a incorporar reiteradamente ao sistema codificado novos princípios e normas aplicáveis às situações por ele disciplinadas (MARTINS-COSTA, 1999, p. 75).

Chega-se, aqui, ao ponto em que é necessário perquirir sobre o significado da boa-fé objetiva para prosseguir no exame de sua função no âmbito da interpretação do negócio jurídico.

2.1 Os Sentidos da Boa-Fé

Cordeiro (2005, p. 18) observa que a boa fé é conceito que não se pode definir, sem perda de sua riqueza e alcance reais. Fluida, ela existe desde a formulação da Ciência do Direito pelos jurisconsultos romanos e, desde então, vem fazendo parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais com um ou outro significado, conforme a “ordem sócio-jurídica” em que se apresenta. “A boa fé traduz um estádio juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa ordem sócio-jurídica.” (CORDEIRO, 2005, p. 18)

Cordeiro (2005, p. 41-48) ressalta o caráter tópico da boa-fé objetiva, que, embora criticada por sua vagueza ou indeterminação de sentido, assume papel importantíssimo nos sistemas jurídicos contemporâneos, pois possibilita a decisão e, portanto, a resolução de problemas jurídicos aos quais o ordenamento positivado não oferece resposta adequada. É semelhante a posição de Martins-Costa (1999, p. 355), que estuda a aplicação das cláusulas gerais, como a boa-fé objetiva, sob o ponto de vista da tópica jurídica, de modo que se possa abrir a interpretação do direito civil para conceitos cuja determinação se faz diante de casos concretos, por meio da utilização de lugares-comuns que assumem, em uma ou outra situação, distintos significados. É, em síntese, o rechaço ao “raciocínio lógico-dedutivo” e ao “método axiomático”, que partem da premissa de que o direito constitui um sistema fechado, avesso a influências externas ou a modelos e conceitos abertos que admitam maior amplitude para a atividade criadora do intérprete. Assertivamente, remarca a autora que “se utilizado o raciocínio lógico-dedutivo e o método axiomático, estarão as cláusulas gerais condenadas a permanecer emudecidas, num inútil e eterno limbo.” (MARTINS-COSTA, 1999, p. 355).

Pode-se perceber, desde já, que não é possível atribuir à boa-fé objetiva um sentido unívoco, abstrato e aplicável, a priori, a qualquer situação apresentada. Em primeiro lugar, faz-se necessária a presença de elementos concretos, que orientem o intérprete (MARTINS-COSTA, 1999, p. 412-413). O significado da boa-fé só pode ser extraído mediante sua aplicação em uma situação com contornos determinados (sejam eles reais ou hipotéticos).

Não obstante, a doutrina é uníssona em atribuir algumas características à boa-fé objetiva, isto é, aos comandos que ela dá aos indivíduos, ainda que na condição de um conceito vago[9]. Assim é que, para Martins-Costa (1999, p. 412), a boa-fé objetiva agrega noções de lealdade, retidão, honestidade, qualificando uma norma de comportamento leal, probo. Nos dizeres da autora, a boa-fé objetiva “é norma nuançada – mais propriamente constitui um modelo jurídico – na medida em que reveste de variadas formas, de variadas concreções, ‘denotando e conotando, em sua formulação, uma pluralidade de elementos entre si interligados numa unidade de sentido lógico’.” (MARTINS-COSTA, 1999, p. 412).

Negreiros (2006, p. 122-123) pondera que, no campo contratual, o significado jurídico do princípio da boa-fé é o de um padrão de conduta imposto aos contratantes, com a finalidade de promover a recíproca cooperação dirigida ao fim de alcançar o “efeito prático” que está na base de justificação da existência jurídica do contrato. Por sua vez, Rosenvald (2005, p. 92) sustenta que a boa-fé se traduz no respeito à confiança mútua depositada pelas partes na concretização do negócio, tornando-se “verdadeiro alicerce da convivência social”.

O sentido de proteção à confiança mútua das partes (Rosenvald, 2005, p. 92) é reproduzido por Forgioni, ao abordar a boa-fé objetiva sob a perspectiva do direito mercantil. A seu turno, Requião (2003, p. 32) associa esse significado à informalidade característica do direito comercial. Uma vez que dispensa o rigor formal para a realização dos negócios jurídicos, esse ramo do direito assenta na boa-fé um princípio de crucial relevância. Vale citar, por oportuno, observação de Martins (2001, p. 69) que, em exame ao art. 131, n.º 1, do Código Comercial identificou na lei a finalidade de “resguardar a boa-fé das partes contratantes (...), pois a boa-fé, característica das operações mercantis, serve para dar maior rapidez e segurança aos atos de comércio.”

Interessa apontar, aqui, que, especificamente na seara comercial ou empresarial, ressalta um significado um tanto distinto da boa-fé incidente sobre os negócios jurídicos celebrados sob a disciplina desse corpo específico de normas. Consideradas as características do direito mercantil, em que se acentua historicamente a presença de uma lógica própria,[10] distinta daquela pertinente ao direito civil, deve haver um tratamento distinto dos negócios celebrados segundo suas regras, em comparação com aquele dispensado aos negócios submetidos ao direito civil.

É da natureza de uma economia de mercado que “qualquer comerciante – e isso é mais do que reconhecido por nosso direito positivo – lev[e] em conta o ‘padrão de normalidade’ do mercado (prática, usos e costumes) para pautar o seu comportamento, para calcular a jogada da contraparte, diminuindo o fator risco e, portanto, aumentando a eficiência da sua atuação e do sistema como um todo.” (FORGIONI, 2007, p. 107).

A boa-fé objetiva no direito mercantil ou empresarial, portanto, não pode ser compreendida completamente – ou seja, de acordo com o espírito desse ramo do direito, plasmado nas necessidades de rapidez e segurança– se não for referida aos usos e costumes comerciais, sob pena de perder seu sentido e utilidade dentro desse ramo do direito (FORGIONI, 2007, p. 127-130).[11]


3 A Boa-Fé na Interpretação dos Negócios Jurídicos

Adentrando a questão final desse trabalho, há que se verificar, então, como se porta o intérprete diante da cláusula geral de boa-fé objetiva, incrustada como preceito normativo que tem a atividade hermenêutica por objeto (art. 113 do Código Civil).

Alves (2003, p. 12), um dos autores do projeto do Código Civil em vigor, de pronto identifica que, sendo da boa-fé objetiva que trata o referido art. 113, o complexo de “deveres secundários ou instrumentais” que ela impõe às partes que integram o negócio é de naturalmente externo à avença e faz com que a interpretação assuma função ora integradora, ora limitadora, conforme prescreva o cumprimento de certos deveres ou a abstenção de determinadas condutas às partes.

O caráter externo dos deveres instrumentais é de relevo, pois determina o ponto de vista em que se deve pôr o intérprete para observar a relação obrigacional e fixar os deveres a cada parte. Por isso, interessante é a exposição de Cordeiro (2005, p. 554) a respeito do assunto, segundo a qual, tendo como premissa que o contrato é a seara de interesses divergentes, quando não contrapostos, as normas disciplinadoras de deveres acessórios ou de lealdade não podem ter um referencial contratual, isto é, só podem vir de fora do contrato, pois são estranhos à contratação e às partes.[12]

Martins-Costa (1999, p. 429-430), ao utilizar a boa-fé objetiva como critério hermenêutico-integrativo, põe em dúvida até que ponto o resultado dessa interpretação é determinado pela boa-fé, uma vez que percebe haver resultados que decorrem unicamente da interpretação integradora.

Para resolver essa inquietação, Martins-Costa (1999, p. 429-430) propõe que a interpretação integradora deva manter seu foco na vontade manifestada pelas partes na conclusão do negócio, “não abrangendo, por consequência, as mesmas situações atingidas pelo princípio da boa-fé, o qual traça uma órbita bem mais ampla, assumindo, por vezes, função limitadora de direitos [...] e alcançando todos os momentos e fases do vínculo, desde o seu nascimento até o adimplemento de deveres e obrigações.”

Martins-Costa (1999, p. 429-430) entende que a boa-fé, em sua função hermenêutico-integrativa, acompanha o desenvolvimento da obrigação durante todo o seu percurso, orientando as partes acerca dos comportamentos que devem ter para que assegurem o cumprimento daquela, em atenção ao fim para que foi constituída, e da maneira menos gravosa para cada parte, dentro, obviamente, do âmbito normativo por elas estipulado. Em referência ao papel do juiz, sua tarefa é a de compreender a obrigação em sua totalidade, percebendo o “sentido total da regulação” negocial, expresso pelas normas contratuais e pelos demais “módulos valorativos do sistema” (princípios da auto-vinculação, auto-responsabilidade, função social, equilíbrio e boa-fé), e, por meio da aplicação dessa última, preencher o conteúdo do negócio deixado em branco pelas partes, no que se refere às mais variadas condutas possivelmente praticáveis no curso do contrato, de forma que esse preenchimento permita a consecução do fim econômico-social do negócio jurídico examinado (MARTINS-COSTA, 1999, 430-432).

Nesse sentido, portanto, arremata Martins-Costa (1999, p. 437) que a boa-fé objetiva “é noção técnico-operativa que se especifica, no campo de função ora examinado [função hermenêutico-integrativa], como o dever do juiz de tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança incumbente às partes contratantes, por forma a não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para o qual foi criado.”

A posição de Rosenvald (2005, p. 93), embora mais singela em seu arcabouço dogmático, alinha-se com a defendida por Martins-Costa. Para ele, no campo da interpretação negocial, a boa-fé desempenharia as funções de “aclarar o sentido das estipulações contratuais” (“função interpretativa”) e de “explicitar os deveres de comportamento do credor e devedor, ainda que não previstos no contrato ou na norma” (“função integrativa”).

Em essência, Rosenvald parece sugerir que as funções desempenhadas pela boa-fé, em suas acepções interpretativa e integrativa, têm lugar em momento subsequente à aferição da intenção comum consubstanciada na declaração de vontade das partes, como prescreve o art. 112 do Código Civil[13]. Dessa forma, após o intérprete chegar à conclusão de que lhe faltam elementos para definir, com clareza e isenção de dúvidas, qual ação deve adotar, deve ele recorrer à boa-fé como forma de preenchimento dessas lacunas de sentido ou de norma.

O elemento mais relevante dessa percepção de Rosenvald parece ser a tentativa de conciliar o princípio da boa-fé objetiva com a liberdade das partes para definir os termos em que se dará o negócio jurídico, assim prestigiando a autonomia privada, valor fundamental ao Direito Privado. Com isso, tem-se a vantagem de evitar os efeitos negativos que podem advir da invasão, pelo órgão jurisdicional, do âmbito dos negócios jurídicos reservado à autonomia das partes, conforme parece desejar parte da doutrina, que admite semelhante intervenção judicial para, em nome da boa-fé contratual, promover equidade ou distribuição de riquezas entre as partes por meio de expedientes de justiça distributiva.

No campo da problemática que envolve a aplicação do art. 113 do Código Civil, tem-se que a questão central da interpretação dos negócios jurídicos conforme a boa-fé está na possibilidade de intervenção judicial sobre o conteúdo desses negócios. Se o Direito de outrora não admitia a alteração dos pactos após sua celebração, devendo as partes cumpri-los fielmente até sua extinção, em prestígio à autonomia privada – “o contrato faz lei entre as partes” –, a admissão de controle judiciário do conteúdo dos contratos “pressupõe o abandono, também no Direito Privado, da autonomia, como mero dogma formal, e a sua substituição pela regra da autonomia efectiva.” (CORDEIRO, 2005, p. 654). Isso quer dizer que a boa-fé permite ao juiz intervir no conteúdo do contrato, “reequilibrando-o” sempre que identificar que uma das partes pode ter experimentado “aparência de autonomia” ao manifestar sua decisão ou vontade de celebrar o negócio jurídico. Isso se revela, característica e sintomaticamente, nos contratos de adesão ou, entre os portugueses, nas condições negociais gerais e nos contratos pré-formulados, casos em que apenas uma das partes formula todas as cláusulas contratuais e, não admitindo discussão de qualquer de seus termos, faculta à contraparte o direito de mera aceitação ou recusa do contrato. (CORDEIRO, 2005, p. 654 e 659).

Não obstante, no que tange à interpretação dos negócios jurídicos conforme a boa-fé na seara do direito empresarial, ganham relevo as pretensas relativizações da autonomia privada e do princípio do pacta sunt servanda, especialmente quando feitas em nome de uma justiça distributiva, pois tais procedimentos vão contra a lógica reinante no mundo empresarial e tendem a criar mais problemas do que soluções para seus participantes.

É o que se depreende de considerações feitas por Forgioni (2007, p. 111-148), ao revelar o temor de que muitas das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 (função social do contrato, boa-fé objetiva, revisão por onerosidade excessiva etc.) transformem-se em perigosa “consumerização” do direito mercantil, a contribuir para a redução da necessária previsibilidade das relações comerciais, por meio da abertura que se procedeu a que magistrados apliquem desmedida “justiça” às relações contratuais, sem que seja dada a devida importância aos princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda.

Em referência específica à adoção do princípio da boa-fé objetiva no direito brasileiro, pondera Forgioni (2007, p. 133):

“Nessa perspectiva, o comportamento honesto não implica gasto, mas sim economia, tanto para o agente (que atuará conforme as regras) quanto para o mercado como um todo, que tenderá a diminuir a incidência de custos de transação pelo aumento do grau de certeza e previsibilidade. E assim deve ser para o direito, porque a sanção prevista desestimula o comportamento infrator. Por fim, a boa reputação deve ser realmente adquirida pelo agente, mas também o impele ao cumprimento das regras do mercado (i. e., ao respeito, à confiança e à boa-fé) em um prudente e profícuo círculo vicioso.”

No entanto, nefastas seriam as conseqüências da má aplicação do mesmo princípio:

“Um ponto merece ser destacado, porque sua incorreta compreensão pode gerar distorções: no sistema de direito comercial, a boa-fé permite e estimula a eficiência do agente econômico ao mesmo tempo que exige (para o bem do tráfico mercantil) seja adotado o comportamento típico dos ‘comerciantes cordatos’, como dizia Cairu. No direito comercial, o respeito ao princípio da boa-fé não pode levar, em hipótese alguma, a uma excessiva proteção de uma das partes, sob pena de desestabilização do sistema. Afinal, como dissemos, o ‘erro de cálculo’ do agente é um instrumento que premia a eficiência de outro. No processo de interpretação dos contratos mercantis, a boa-fé não pode ser confundida com eqüidade ou com ‘consumerismo’, erro em que incidem vários autores não habituados à dinâmica de mercado.” (IDEM, p. 134).


Conclusão

Entendida a interpretação do direito como uma atividade que vivifica o texto posto legislativo ou o texto de negócios jurídicos, viu-se que a renovação conceitual promovida pelo novo Código Civil muito contribui para um melhor tratamento dos problemas jurídicos que, em uma sociedade tão culturalmente díspar e economicamente desigual, não podem sê-lo de maneira uniforme.

Aberto o sistema de direito civil, por meio de cláusulas gerais como a da boa-fé, verdadeiros lugares-comuns, segundo a tópica, ou modelos jurídicos, na terminologia de Miguel Reale, cabe à cultura jurídica sedimentar as bases sobre as quais cada tema será tratado, o que constitui tarefa cujo sucesso está a depender da interação dialética entre a sociedade e os sujeitos legitimados a decidir no Estado brasileiro (quer sejam decisões políticas, tomadas por agentes políticos, quer sejam decisões judiciais, proferidas pelos órgãos jurisdicionais).

O consenso da doutrina assinala que a boa-fé objetiva, ainda que referida a noções de preservação da confiança e de lealdade entre as partes que entram em relações jurídicas, não assume significado unívoco e o conteúdo dos deveres que dela decorrerão para cada parte somente se podem determinar à vista de elementos concretos, isto é da análise de situações específicas.

Por isso, é natural supor que, nos diferentes “ramos” do direito, terá a boa-fé objetiva formas também distintas de serem aplicadas à interpretação das relações jurídicas subordinadas a esses específicos conjuntos normativos. É o que se observou com a aplicação da boa-fé na interpretação de negócios empresariais, procedimento no qual a referência aos usos e costumes mercantis se mostrou essencial, para evitar sérios prejuízos ao funcionamento do mercado e, em decorrência, perdas para toda a sociedade.

Nesse derradeiro ponto, vale citar exemplo de bom tratamento de institutos criados a partir do princípio da boa-fé objetiva, quando aplicados a ramos do direito com lógicas distintas. Trata-se de passagem da obra de Cordeiro (2005, p. 655-658) em que o autor comenta a experiência alemã de disciplinar os contratos de adesão com uma lei elaborada a partir da sedimentação de soluções jurisprudenciais anteriores, assentes essencialmente na boa-fé, e que se provou muito adequada àquela sociedade. Menciona o autor que o AGBG,[14] de 1976, contém previsões, em seus §§ 10 e 11, de cláusulas reputadas nulas – as constantes do último dispositivo, absolutamente; enquanto as do primeiro, a depender do juízo do órgão jurisdicional ao apreciar o caso –, mas esses dispositivos não se aplicam aos contratos de adesão (“condições negociais gerais”) firmados com comerciantes, no exercício de sua atividade, ou a instituições de direito público. Segundo o autor, “entendeu-se que, nesse caso, a limitação à autonomia privada poderia ser excessiva; além de que, em tal eventualidade não se verifica, em igual grau, a ignorância e a inexperiência que justificam a protecção dispensada ao interveniente débil.” (CORDEIRO, 2005, p. 657).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTI, Emilio. A interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. Trad. por Karina Jannini, São Paulo: Martins Fontes, 2007.

CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2007.

FORGIONI, Paula A. “Interpretação dos negócios empresariais”. In: Fernandes, Wanderley (coord.) Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 15.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 17.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998.

ALVES, José Carlos Moreira. “O novo código civil brasileiro: principais inovações na disciplina do negócio jurídico e suas bases romanísticas”. In: Revista Jurídica, n.º 305, Porto Alegre: Notadez, 2003, p. 7-23.

NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. V. 1, 25.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003.

ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. V. 1, 3.ª ed., São Paulo: Atlas, 2003.


Notas

[1] E continua Grau (2002, p. 112), ponderando ser impossível pretender enclausurar os textos jurídicos no contexto social em que surgiram – e de cujos valores e outras particularidades se nutriram para serem redigidos como o foram – negando-lhes a utilidade de se adaptarem continuamente a novas realidades, novas necessidades e novos anseios. Segundo ele, ainda, isso ocorreria mais caracteristica e emblematicamente com a interpretação do texto constitucional.

[2] Sirvo-me, aqui, das noções de semântica e pragmática trazidas da semiótica para o estudo sobre as normas por FERRAZ JR (2007, p. 123-132). Segundo essa concepção, a semântica, representando as “normas em relação ao objeto normado”, revelaria a matéria ou facti species da norma, bem como o limite espacial de sua incidência e o tempo ou vigência da norma (FERRAZ JR, p. 126-128). Já a pragmática refere-se às “normas em relação à sua função”, o que se identifica pelo efeito que as normas provocam ou visam provocar sobre os sujeitos (FERRAZ JR, p. 129-132).

[3] “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

[4] Grau (2002, p. 53-70) argumenta que a interpretação de textos jurídicos não se faz a esmo, mas em vista de um caso (hipotético ou concreto); então, a interpretação desses textos é também a interpretação dos fatos desse caso, do relato desses fatos; cf. também Betti (2007, passim).

[5] Cf. nota de rodapé nº 1, acima, sobre o entendimento de Grau.

[6] Nas palavras de Grau (2002, p. 172): “Ora, quando o juiz forma o próprio convencimento, livre de qualquer vínculo com a própria iniciativa, ele deduz da ordem ou do sistema de normas, extraído da experiência, um critério de julgamento apto a atribuir ao sujeito do seu exame o predicado mais conveniente. Quando, ao contrário, é vinculado por uma regra legal, não é livre para formar, segundo as máximas comuns de experiência ou de hermenêutica, o próprio convencimento sobre a existência do fato a ser provado ou sobre o sentido do preceito a se aplicado, mas deve observar o limite ou a diretiva que ela lhe impõe.”  E, mais adiante: “A vantagem da disciplina legal da interpretação está em circunscrever à margem mais estreita possível a incerteza e a incompletude da tarefa hermenêutica e, com elas, o perigo de uma pluralidade indefinida de interpretações diferentes, divergentes umas das outras.” (Grau, 2002, p. 174).

[7] Nesse sentido, cf. Martins-Costa (1999, p. 412), Cordeiro (2007, p. 415-425), Rosenvald (2005, p. 79-81) e Negreiros (2006, p. 119-122).

[8] “Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;”

[9] Porém, essa indeterminação não afasta a força normativa do princípio da boa-fé objetiva, embora ele demande referência a situações práticas para se ver condensado (MARTINS-COSTA, 1999, p. 412-413). Considerando todos esses caracteres (impossibilidade de fixar, a priori, qual o significado da valoração a ser procedida com a utilização da boa-fé objetiva e o fato de tratar-se ela de norma cujo conteúdo é preenchido levando-se em conta as circunstâncias concretas do caso), aponta Martins-Costa (1999, p. 412-413): “é, incontroversamente, regra de caráter marcadamente técnico-jurídico, porque enseja a solução dos casos particulares no quadro dos demais modelos jurídicos postos em cada ordenamento, à vista das suas particulares circunstâncias.”

[10] Essa lógica é devida, primordialmente, à reiterada e natural recorrência dos comerciantes aos usos e costumes de determinada praça (e, em alguns casos, também de determinado ramo comercial, ao lado dos usos e costumes específicos de outros ramos do comércio), isto é, a regras informais que os contratantes esperam não serem frustradas (FORGIONI, 2007, p. 97-107).

[11] Assim é que, para Forgioni (2007, p. 127-128), “a boa-fé no direito comercial não desempenha apenas uma função moral, desconectada da realidade dos negócios e fundada em valores outros que não a busca do melhor funcionamento do mercado. Ao contrário, reforça as possibilidades de confiança dos agentes econômicos no sistema, diminuindo o risco. A boa-fé – agora, em todo o direito privado – é um catalisador da fluência das relações no mercado.” No mesmo sentido, propõe que “a boa-fé vem relacionada ao uso e ao costume da praça, ou seja, ela é objetiva e não pinçada no íntimo dos partícipes da avença” (FORGIONI, 2007, p. 129), ligando-se “umbilicalmente aos usos e costumes comerciais, dando-lhes força.” (FORGIONI, 2007, p. 130).

[12] Cordeiro (2005, p. 649-650) demonstra que sua compreensão sobre o papel da boa-fé no cumprimento de obrigações contratuais é de que as partes devem cumpri-las tendo em vista o fim que possuem as prestações realizadas dentro do escopo maior do contrato. “A boa fé não contemporiza, pois, com cumprimentos formais; exige, numa atitude metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização material dos escopos visados.” (CORDEIRO, 2005, p. 649) Busca-se, em essência, com a aplicação da boa-fé à realização das prestações devidas, evitar, por meio da imposição de deveres acessórios, que o devedor cause prejuízo ao credor ou, ainda, seja onerado excessivamente, sem que tal onerosidade seja proveitosa ao alcance do fim buscado pelas partes no contrato. (CORDEIRO, 2005, p. 650)

[13] “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

[14] Sigla da expressão alemã Gezets zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Geschäftsbedingungen. Em tradução livre: lei aplicável ao direito das condições negociais gerais.


Abstract: This paper aims to investigate the role of the principle of good faith in the construction of agreements. By analyzing the arguments presented in the literature dedicated to the study of the meanings of good faith in Brazilian and Portuguese Private Laws, this explores the possibilities facing the interpreter when she tries to apply the principle of good faith to concrete situations.

Keywords: Good faith. Bona fide. Construction. Agreements. Contracts. Private Law.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Danilo Takasaki. A boa-fé objetiva na interpretação dos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3436, 27 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23111. Acesso em: 19 abr. 2024.