Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/23491
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Tribunal do júri e escabinato da Justiça Militar brasileira: duas faces da mesma moeda.

Uma observação sob a ótica do princípio do juiz natural.

Tribunal do júri e escabinato da Justiça Militar brasileira: duas faces da mesma moeda. Uma observação sob a ótica do princípio do juiz natural.

Publicado em . Elaborado em .

Estuda-se a relação existente entre o princípio do juiz natural e dois institutos do Judiciário brasileiro: o tribunal do júri e o escabinato da Justiça Militar.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo convidar o leitor a observar, sob uma ótica diferente e singular, a relação existente entre o princípio do juiz natural e dois institutos do judiciário brasileiro: o tribunal do juri e o escabinato (ou escabinado), da justiça militar. Em que pese tratar-se de institutos diversos, com papéis bens distintos na estrutura jurídica nacional, buscar-se-á mostrar, neste artigo, que o escabinato e o tribunal do juri são, na verdade, duas faces da mesma moeda, no que concerne a origem histórica comum entre eles e no que tange ao princípio concebedor de ambos: o juiz natural.

Palavras-chave: Tribunal do Juri. Escabinato, da justiça militar. Origem histórica comum entre os dois institutos. Juiz Natural.

Sumário: 1. Considerações iniciais - 2. Tribunal do juri e escabinado: composição, história e procedimentos internos - a. Tribunal do juri no Brasil -  b. Escabinado no Brasil - 1) A estrutura da justiça militar no Brasil - 2) A razão de ser da justiça militar brasileira e do seu sistema escabinado  3. Principiologia do Direito: juiz natural - a. Princípios do juiz natural: conceito - 4. Tribunal do juri e escabinado, da justiça militar brasileira: duas faces da mesma moeda - a. O princípio do juiz natural no tribunal do juri brasileiro - b. O princípio do juiz natural como concebedor do sistema de escabinado adotado pela justiça militar brasileira. 5. Considerações finais - Anexo -  Referência.


1.    CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O sistema judiciário brasileiro comporta, em sua estrutura, dois institutos que, embora distintos e cada qual com papéis bem definidos na organização político-judiciária nacional, guardam entre si uma relação embrionária que os une sob o aspecto da origem histórica comum e no que tange ao princípio concebedor de ambos: o juiz natural. Estamos a falar do tribunal do juri e do escabinato (ou escabinado) da justiça militar, dois belíssimos institutos do Direito brasileiro, cuja relação íntima convidamos o leitor a analisar sob uma ótica diferente e singular, buscando concluir que, apesar de díspares em alguns aspectos, o escabinato da justiça castrense brasileira e o tribunal do juri, são, na verdade, duas faces da mesma moeda.


2.    TRIBUNAL DO JURI E ESCABINADO: composição, história e procedimentos internos.

A origem destes dois institutos se confundem no calabouço dos tempos. Na verdade, percebemos que ambos, ao lado ainda do assessorado, são, nada mais, nada menos, que variações de tribunal popular que foram adquirindo feições diferentes no decorrer dos tempos, mas que, em seu âmago, guardam a mesma essência.

O assessorado muito se assemelha ao escabinado, a grande diferença entre ambos é que os juízes togados atuam como assessores dos juízes leigos, orientando-os no que for solicitado. Este sistema não figura como tema do presente trabalho.

O tribunal do juri é um órgão colegiado constituído de um juiz togado (presidente) e juízes leigos (jurados), estes escolhidos por sorteio dentre os cidadãos. O julgamento da materialidade e autoria, neste sistema, é feito pelos juízes leigos, cabendo ao juiz togado, uma vez decidido pela condenação do réu, a mensuração da pena a ser aplicada. Quanto à etimologia da expressão juri, Gomes e Sica (2005) nos informam que esta tem sua origem no termo "juror", em referência ao “juramento” feito pelos jurados antes de iniciada a sessão de julgamento.

No escabinado, nas palavras de Marques (1961), “há, como no Júri, o recrutamento popular, o sorteio e até a divisão do julgamento. Mas, enquanto no último só o elemento popular decide sobre a existência e autoria do crime, no escabinado a responsabilidade do réu é examinada e decidida em conjunto pelos juízes leigos e juízes profissionais”. O termo escabinado refere-se a uma corte de escabinos, expressão esta que significa magistrado, apesar de que, ao longo da história, já possuiu diversas outras denotações, tais como: conselheiro municipal, intendente geral, recolhedor de impostos, membro do legislativo, membro de órgão colegiado representativo de um município, esta última até hoje utilizado na Bélgica e em Luxemburgo.

A origem dos tribunais populares – por tribunal popular deve-se entender: tribunal do juri, escabinado e assessorado - é extremamente controversa. Há pequeno grupo de autores que remontam as primeiras manifestações do tribunal popular às Diskatas, dos gregos e outra pequena representação de pesquisadores às Judices Juratis, dos romanos. Entretanto, a exiguidade de fontes primárias de pesquisa torna difícil identificar como verdadeiramente funcionavam estas duas instituições da antiguidade clássica, prejudicando a vinculação destas aos modelos atuais de participação popular na justiça. Discussões a parte, o que a grande maioria dos autores concordam é que as primeiras manifestações de tribunal popular, cuja forma muito se aproxima do que conhecemos hoje por tribunal do juri, teve sua origem na Inglaterra, a partir de 1215, quando clero e nobreza se uniram e, cansados das arbitrariedades e injustiças promovidas pelo rei João Sem Terra (John Lackland), o forçaram a assinar um documento entitulado Magna Charta Libertatum. O referido documento, que para muitos estudiosos representou o primeiro esboço de uma constituição, previa, em seus postulados 38 e 39 [1], regras que proibiam o cerceamento da liberdade do cidadão sem que o mesmo fosse legitimamente julgado pelos seus pares.

Com o passar dos anos, a linha essencial do sistema inglês de participação popular, concebido na Magna Carta, de 1215, se disseminou pelas nações europeias e, a medida que ia sendo adotado por este ou aquele Estado, foi amadurecendo e adotando feições próprias que resultaram, como vimos, em basicamente três sistemas de tribunal popular atualmente em vigência no mundo: o tribunal do juri que é considerado como o primogênito desta família, já que o modelo concebido pela Carta de 1215 era muito semelhante ao modelo hodierno do juri; o escabinado e o assessorado, lembrando que este último não será objeto do presente estudo.

a.  O TRIBUNAL DO JURI NO BRASIL

O tribunal do juri foi instituído no Brasil, pela primeira vez como órgão do poder judiciário, na Constituição Imperial de 1824, na época, com competência penal e civil. Antes disso, entretanto, em 1822, a então lei de imprensa previa o julgamento dos crimes dispostos em suas linhas por um colegiado de atuação semelhante ao juri, mas alheio à estrutura judiciária do império. Cabe ressaltar que a iniciativa do Conselho de Estado (formado para elaborar a Carta Imperial) em adotar o juri como modelo de tribunal popular, foi guiada por clara influência britânica, tanto na escolha dos procedimentos, como na adoção da forma do sobredito tribunal.

Na era republicana, o juri manteve sua presença na estrutura judiciária brasileira desde a primeira constituição, em 1891, sendo confirmado por todas as Cartas posteriores. A constituição do Estado Novo (1937), conhecida como polaca, foi a única que não instituiu o juri de forma expressa, no entanto, o referido tribunal popular funcionou a época por meio de lei ordinária. É importante ressaltar que a constituição de 1891 colocou o tribunal do juri no capítulo destinado aos direitos e garantias individuais, tendência que se manteve até a CF/88, com exceção feita à constituição de 1934, que recolocou o aludido tribunal popular no capitulo atinente à estrutura do poder judiciário, nos moldes da constituição do império. Outro ponto relevante diz respeito à competência do discutido instituto. Como vimos, o tribunal do juri inicialmente julgava crimes de imprensa (1822), logo depois, com a constituição imperial, abraçou a matéria penal e civil. E seguiu nesta trilha até 1946, quando teve sua competência resumida aos crimes dolosos contra a vida, caminho trilhado até hoje, na CF/88. Por fim, é interessante destacar que a atual Carta Magna, ao manter a previsão do juri como direito e garantia fundamental do cidadão, no Inc XXXVIIII, de seu Art 5º, sabiamente o elevou à categoria de cláusula pétrea, ex vi § 4º, Art 60, da Carta Magna de 1988, algo sem precedentes na história jurídica brasileira.

b. O ESCABINADO NO BRASIL

Enquanto, em algumas nações, o escabinado é sistema de julgamento empregado na justiça comum, aqui no Brasil, é exclusividade da justiça militar. Diante do exposto, entendo que não há como falar do escabinado no Brasil sem antes fazer um breve comentário a respeito da justiça militar brasileira, ramo especializado do judiciário pátrio, parcamente conhecido pela sociedade civil e inclusive por grande parte dos estudantes e profissionais de Direito, haja vista não ser uma disciplina contemplada nos bancos acadêmicos de graduação jurídica.

1) A estrutura da Justiça Militar no Brasil.

Segundo o Art 124, da CF/88, compete à justiça militar “processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, do que se pode, de plano, inferir que a natureza da justiça militar é exclusivamente penal.  A “lei” a que se refere o citado dispositivo da Carta Constitucional é o Decreto-lei nº 1.001, de 21 de Outubro de 1969 – Código Penal Militar, CPM - (recepcionado pela constituição) que conceitua e descreve em seu Art 9º e 10 os crimes militares em tempo de paz e em tempo de guerra, respectivamente.

A doutrina costuma classificar os crimes militares em próprios e impróprios. A primeira categoria se refere àqueles crimes que, pela sua natureza e especificidade, só podem ser praticados por militares, a exemplo temos: o motim (Art 149, do CPM), a revolta  ( Art 153, do CPM); a violência contra superior ou militar de serviço (artigos 157 a 159, do CPM); a insubordinação (artigos 163 a 166, do CPM), a deserção (artigos 187 a 194, do CPM); o abandono de posto e outros crimes em serviço (artigos 195 a 203). Os crimes militares impróprios seriam todos delitos previstos no código que são passíveis de cometimento tanto por agente militar, tanto por civil. Tanto os crimes propriamente militares, como os impropriamente militares são da competência da justiça militar.

 A justiça militar faz parte da estrutura do poder judiciário brasileiro, conforme disciplina o Art 92, da atual Constituição Federal, segundo o qual : "São órgãos do Poder Judiciário (...) VI - Os Tribunais e juízes militares". Na esfera federal, a justiça militar tem competência para julgar os crimes militares atinentes às três forças armadas - Marinha, Exército e Aeronáutica e é organizada conforme prescreve o Art 122 e 123, da CF/88.

A lei ordinária nº 8.457, de 1992, atende o mandamento constitucional disposto no  Inc II, do Art 122 e no parágrafo único do Art 124, ao definir, entre outras coisas, que, em primeira instância, a Justiça Militar Federal é intergrada pelos Conselhos de Justiça que atuam nas Auditorias Militares (total de 19 distribuídas por todo território nacional) e são constituídos por um juiz-auditor (juiz civil togado, selecionado mediante concurso público) e quatro juízes-militares, estes oficiais e preferencialmente da mesma força armada que o réu e obrigatoriamente de posto superior àquele que está em julgamento, ou, se do mesmo posto, o juiz-militar deve ser mais antigo que o réu.

A referida lei define ainda que o Superior Tribunal Militar (STM) é órgão de apelação (2ª instância) das decisões proferidas pelos Conselhos de Justiça, estabelecendo ainda sua competência para, entre outras coisas, processar e julgar originalmente: os oficiais generais das Forças Armadas, nos crimes militares definidos em lei; os pedidos de habeas corpus e habeas data; mandados de segurança próprio ou das auditorias; a revisão dos processos findos na Justiça Militar; a representação para decretação de indignidade de oficial ou sua incompatibilidade para com o oficialato. Tanto na primeira, como na segunda instâncias, os órgãos colegiados funcionam no sistema de escabinado, onde o voto dos juízes civis tem o mesmo peso do voto dos juízes militares.

No que diz respeito à Justiça Militar Estadual, que teria competência para julgar os crimes militares estabelecidos no CPM atinentes a militares das Forças Auxiliares (Corpo de Bombeiros e Polícias Militares), a constituição federal, no § 3º, do Art 125, delega à lei estadual, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a criação da Justiça Militar Estadual, que deve ser constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça ou por Tribunal de Justiça Militar  (TJM) nos estados-membros em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. Atualmente todos os estados e DF possuem justiça militar estadual no Brasil, entretanto, somente os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul possuem TJM.

Existem diferenças marcantes entre a justiça militar estadual e a da União, uma  delas reside no fato  de que a  justiça militar estadual, diversamente da federal, não julga civis que tenham cometido crimes militares, por força do § 4º, do Art 125, da CF/88, que, já na sua redação original, restringia a competência da justiça militar estadual aos militares integrantes das forças auxiliares. Outra diferença relevante, esta trazida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004 (§ 5º, do Art 125, da CF/88) teria sido a possibilidade do "juiz de direito",  integrante dos Conselhos de Justiça das Justiças Militares Estaduais, julgar isoladamente os réus pelo cometimento de crimes militares, quando a vítima for civil. Por fim, citemos ainda, como diferença entre as duas esferas da justiça militar, o aspecto relacionado à presidência dos Conselhos de Justiça, que na Justiça Militar Federal é exercida pelo oficial de maior posição hierárquica no conselho (letra b, Art 16, da lei 8.457, de 1992), enquanto que na estadual, o presidente é o Juiz-auditor, conforme prescreve a última parte do § 5º, do Art 125, da CF/88.

2) A razão de ser da Justiça Militar brasileira e do seu sistema escabinado.

"A carreira militar não é uma atividade inespecífica e descartável, um simples emprego, uma ocupação, mas um ofício absorvente e exclusivista, que nos condiciona e autolimita até o fim. Ela não nos exige as horas de trabalho da lei, mas todas as horas da vida, nos impondo também nossos destinos. A farda não é uma veste, que se despe com facilidade e até com indiferença, mas outra pele, que adere à própria alma, irreversivelmente para sempre”. Estas palavras do General Octávio Costa, bem descrevem as peculiaridades e especificidades da profissão militar, uma carreira que impõe risco de vida a seus integrantes; exige-lhes vigor físico permanente; cerceia direitos comum aos outros trabalhadores/sevidores como adicionais noturnos, horas extras, entre outros; impõe-lhes o cumprimento incondicional de ordens;  cobra  dedicação integral do militar, na medida que, por exemplo, ele pode ser acionado, no conforto do seu lar, após o horário habitual de trabalho, para entrar em ação. Como se vê, a carreira militar é quase um mundo a parte, é uma atividade que transcende ao conceito de profissão, pois interfere significativamente na vida pessoal do militar e de sua família.

A carreira militar assenta-se em dois princípios constitucionais basilares, a hierarquia e a disciplina, conforme preveem o Art 142, da CF/88 e a Lei 6.880, de 1980 que norteiam absolutamente tudo nela e reforçam a ideia da singularidade desta profissão.

E para regular instituições tão peculiares e específicas, como as Forças Armadas e Forças Auxiliares, nada mais adequado do que um conjunto de leis igualmente específicas, adequadamente moldadas para sua realidade e singularidades. Souza (2005), em uma espécie de auto sabatina, indaga-se a respeito da consequência criminal, por exemplo, no caso de um civil, qualquer que seja sua classe ou profissão, deixar o emprego ou recusar-se a cumprir uma ordem superior? Ou se dormir em serviço? Ou apresentar-se alcoolizado no local de trabalho? O próprio autor responde dizendo que não haveria nenhuma consequência penal para o civil e complementa dizendo que o militar, nas hipóteses apresentadas, cometeria crimes e estaria sujeito a penas de prisão, além de estar sujeito à perda da função pública (exclusão), se condenado a mais de dois ano. O douto juiz auditor, da justiça militar estadual gaúcha, encerra sua auto sabatina: “Quais civis juram dar a vida em sacrifício de algo? Nenhum”. Todo militar jura cumprir sua missão, mesmo com o sacrifício da própria vida. Complementando as colocações do juiz auditor, trago aspecto interessante relacionado ao porte de entorpecentes.  Enquanto, para o civil, a pena culminada para o porte de drogas deixou de ser privativa de liberdade com a nova lei de drogas, para o militar,  a pena pode chegar a reclusão de até cinco anos, conforme prescreve o Art 290, do CPM.

Da mesma forma que ocorre com o tribunal do juri, todavia por razões distintas, a existência da justiça militar no mundo é deveras combatida. São vários os argumentos contra a sua existência e fruto disso já tiveram alguns países que dela abriram mão em tempo de paz. Discussões a parte, o fato é que a justiça militar existe ainda na maioria dos países, mesmo em tempo de paz, e, dentre as nações que mantêm este ramo da organização judiciária estão países de peso, como Estados Unidos, quase a totalidade da Europa, Chile, entre outros. Todas as nações que têm uma justiça militar especializada emprestam procedimentos, funções e poderes a estes órgãos, diferentes daqueles previstos na justiça comum.  Algumas nações preenchem seus órgãos julgadores com juízes exclusivamente militares, como os EUA. Outros países adotam procedimentos curiosos, como o Chile, que possui um juiz civil encarregado de conduzir o processo investigatório e decidir sobre a materialidade e autoria do crime e um conselho de juízes militares, responsáveis por aplicar a sentença.  Enfim, independente da forma, procedimento ou composição dos órgãos julgadores da justiça militar, certo é que a razão que moveu cada uma destas nações a adotar esta organização judiciária ímpar foi uma só: permitir ao réu ser julgado por juízes íntimos da realidade e especificidades da profissão militar e, no caso de réu militar, pelos seus próprios pares.

No Brasil, a melhor forma que se encontrou para oferecer um julgamento justo e equilibrado aos crimes militares foi a adoção do escabinado na justiça militar. Este instituto permitiu àquele ramo da justiça, aliar a experiência de militares, de longa trajetória nas forças armadas ou forças auxiliares, à técnica e vivência jurídica dos juízes civis que compõe os conselhos de justiças (1ª instância), o Superior Tribunal Militar (2ª instância), ou os TJM (2ª instancia estadual no RS, SP e MG). Com isso, tem-se decisões mais justas e conectadas com a peculiar realidade da caserna. Tal ideia ganha reforço nas palavras de Moreira Alves (1998,p. 3-6),  quando diz que:

Sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando, pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas

Ainda, ratificando esta ideia, temos o pensamento de Souza (2005) a respeito da atuação dos Conselhos de Justiça e do STM:

É fundamental que os atos dos seus integrantes (integrantes das Forças Armadas e Auxiliares) sejam julgados com isenção por quem conheça, na intimidade, os diferentes fatores interferentes em suas ações (riscos, elementos psicológicos e culturais, aspectos técnicos e operacionais e os fatores criminógenos), de forma a assegurar-lhes tranqüilidade e serenidade para o desempenho de suas funções e infundir-lhes a certeza da reprimenda penal quando ultrapassarem os limites da lei. (complemento entre parênteses deste postulante).


3.    PRINCIPIOLOGIA DO DIREITO: juiz natural.

Para o douto jurista brasileiro Reale (2006, p.303), princípios são “verdades fundantes” de um dado sistema de conhecimento, se constituindo em enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções. Citando Josef Esser, o ilustre jurista brasileiro complementa, informando que, para o Direito, os princípios são eficazes, independentemente do texto legal os citar expressamente. E quando este o consagra, dá ao princípio força cogente, mas não altera a sua substância já que o princípio é um direito prévio e exterior a lei.

Diniz (2009, p. 471), citando Caio Mário da Silva Pereira, informa que, para o Direito, os princípios “são cânones que, às vezes, não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico”. Ao citar Jeanneau, (p. 472) a ilustre jurista informa que “os princípios não têm existência própria, estão ínsitos no sistema, mas é o juiz que, ao descobri-los, lhes dá força e vida.” Por fim, a autora apresenta seu próprio posicionamento (p. 477), informando que “os princípios não são preceitos de ordem ética, política, sociológica ou técnica, mas elementos componentes do direito”.

No estudo da principiologia jurídica, verifica-se polêmica dominante travada entre duas grandes forças da Filosofia do Direito, no que se refere à natureza jurídica dos princípios: a positivista e a jusnaturalista. A Escola Positivista, que neste particular tem a escola histórica como aliada (NADER 2002, p. 195), sustenta a tese de que os princípios gerais do Direito são os consagrados pelo próprio ordenamento jurídicos e, para aplicá-los, o aplicador deverá ater-se objetivamente ao Direito vigente, sem se resvelar no subjetivismo. A Escola do Direito Natural entende que os princípios do Direito são de natureza suprapositiva e constantes, são valores eternos, imutáveis e universais, portanto anteriores a qualquer ordenamento jurídico.

 Entre os próprios autores retromencionados, encontramos pontos de vistas antagônicos, tendentes à filosofia do Direito Natural ou simpáticos ao positivismo. Para dar fundamentação ao eixo temático deste artigo, faz-se mister trazer a lume ainda a concepção quântica do Direito do douto professor paulista e jusfilósofo, Goffredo Telles Jr, apud Diniz (2009, p. 48-50), a qual, muito sinteticamente, apresentaremos nas próximas linhas, já que, no que concerne à questão em debate, traz uma visão moderna da principiologia jurídica e coerente com a proposta de estudo deste postulante.

Para o destacado professor, o Direito é objeto cultural (e por Direito devemos entender todo o mosaico constituído por regras, princípios e valores adotados por uma dada sociedade) de modo que as normas jurídicas adotadas por uma determinada sociedade e por ela consideradas justas, podem representar, para outra sociedade, uma afronta à seus princípios. Desta forma o Direito seria fruto da realidade social, política e axiológica de um determinado povo. O douto mestre paulista, em crítica ao positivismo jurídico, diz que o direito objetivo é elaborado em consonância com o referencial axiológico de determinada sociedade. Todavia, este referencial se movimenta com a sociedade e, com isso, o Direito, se não o acompanhar, se tornará antiquado e, se aplicado, tenderá à injustiça, de acordo com o novo referencial axiológico adotado. Portanto, se os princípios tiverem como fundamento o próprio ordenamento jurídico, como defende a Escola Positivista, eles – os princípios - não seriam capazes de informar o legislador na elaboração de novas normas, não seriam capazes de nortear o juiz na aplicação das leis, logo a sociedade estaria sob o império de leis injustas, que não corresponderiam ao clamor de seus integrantes.

Atacando igualmente o entendimento jusnaturalista, Goffredo Telles Jr diz que os princípios não são regras imutáveis e constantes no tempo e, defendendo seu ponto de vista, diz que o Direito Natural é o direito consentâneo com o sistema ético de referência vigente em certa coletividade. O autor, em sua teoria, redenomina o Direito Natural de Direito Quântico, justificando que o Direito é fruto das movimentações de uma sociedade, atendendo às inclinações axiológicas do grupo social, espelhando seu sentimento, estado de consciência e identidade. O Direito é tido por legítimo por esta sociedade, quando quantifica  os anseios sociais, do momento que está a viver,  formando seu arcabouço de regras e princípios.  Logo, para o autor, não existiriam princípios universais, mas sim princípios que mudam junto com a sociedade e são captados por ela, com fins de atualizar (ou mesmo criar, caso ainda não as tenha) suas regras positivadas.

Por fim, queremos registrar, à título de fundamentação da proposta apresentada no presente trabalho, que devemos ter em mente o seguinte: no Direito, conforme leciona Reale (2006, p. 303) os princípios sempre serão anteriores às leis, informando a sua elaboração e aplicação, seja pelas razões apresentadas pela Escola Jusnaturalista de que os princípios são pressupostos universais e imutáveis, seja pelas razões da concepção quântica do Direito, de Goffredo Telles Jr - que no nosso sentir se reveste de maior coerência - de que os princípios variam de acordo com o referencial axiológico de cada sociedade e o momento em que ela – a sociedade - está vivendo.

 Passemos, ao próximo subtítulo, onde estudaremos o princípio do juiz natural e do devido processo legal.

a.    Princípios do Juiz Natural: conceito

Moares (2008, p. 87) diz que “a imparcialidade do judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis”. A afirmação do citado mestre constitucionalista mostra-nos uma das concepções do principio do juiz natural, que, por sua vez, é a que efetivamente nos interessa para a exploração do eixo temático deste trabalho. Entretanto, não podemos nos furtar realizar breve síntese sobre o principio em tela nas suas outras dimensões. Comecemos, citando a previsão constitucional deste belíssimo princípio:

Art 5º

(...)

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

(...)

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

Nelson Nery Jr, citado por Lenza (2009, p. 702) interpreta os sobreditos dispositivos constitucionais, informado  que “a garantia do juiz natural é tridimensional e significa que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal)por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial ”.

Nucci (2009, p. 41) informa que o princípio do juiz natural “estabelece o direito do réu de ser julgado por um juiz previamente determinado por lei e pelas normas constitucionais, acarretando, por consequência, um julgamento imparcial” e complementa dizendo que “pelas regras constitucionais, todos têm  direito a um julgador desapaixonado e justo, previamente existente”.

Lenza (2009, p. 702), ao citar Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior, informa que o conteúdo jurídico do principio do juiz natural “ pode ser resumido na inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, quer para o processo, quer para o julgamento, proibindo-se qualquer forma de designação de tribunais para casos determinados. Na verdade, o principio em estudo é um desdobramento da regra da igualdade”.

A interpretação dos dispositivos constitucionais retromencionados, por Nery,  Nucci e  Luiz Araújo, em conjunto com Vidal Serrano,  concatenam o pensamento pacífico da doutrina sobre o alcance do principio do juiz natural. Entretanto, atendendo ao interesse desta pesquisa, restringimos o estudo deste princípio à dimensão atinente à imparcialidade do juiz.

No processo penal, o princípio do juiz natural recebe uma versão mais especializada, voltada justamente para o viés que nos propusemos a abordar, recebendo a denominação de principio da imparcialidade do juiz. Malgrado parte da doutrina especializada empreste certa autonomia ao sobredito principio processual, tratando-o como princípio independente, decorrente do princípio constitucional em estudo, este postulante entende que o principio da imparcialidade do juiz, nada mais é do que o próprio princípio do juiz natural, que, analisado exclusivamente sob a dimensão da imparcialidade do juiz, dentre as três que lhes são atribuídas, recebeu o nome próprio já mencionado, por mera questão de artifício didático.

Sob esta tese, optamos por esmiuçar ainda mais o sentido do principio do juiz natural, no que diz respeito ao viés da imparcialidade do juiz, valendo-se das lições dos mestres processualistas penais que tratam sobre o princípio da imparcialidade do juiz. Ressalto, todavia que, mesmo para aqueles que defendem que o principio da imparcialidade do juiz é independe e autônomo em relação ao juiz natural, entendemos que não haverá prejuízos se utilizarmos aquele principio para aprofundar o estudo do princípio do juiz natural, já que um decorre do outro, como afirma Nucci (2009, p. 47) “o principio do juiz imparcial decorre do juiz natural, afinal, este, sem aquele não tem finalidade útil”.

Em lição sobre o princípio da imparcialidade do juiz, Nucci (2009, p. 46) informa que “é certo que o principio do juiz natural tem por finalidade, em ultimo grau, assegurar a atuação de um juiz imparcial na relação processual. Entretanto, por mais cautela que se tenha na elaboração de leis, é possível que um determinado caso chegue às mãos de um magistrado parcial. Essa falta de isenção pode decorrer de fatores variados: corrupção, amizade íntima ou inimizade capital com alguma das partes, ligação com objeto do processo, conhecimento pessoal sobre o fato a ser julgado, etc.”

Como é sabido, segundo o Art 2º da CF/88, os direitos e garantias expressos na Carta Política não excluem outros do regime e princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Neste elastério vejamos o que o Pacto de San José da Costa Rica, de 1992 – Convenção Americana sobre Direitos Humanos – do qual o Brasil é signatário, tem a contribuir nesta pesquisa sobre o juiz natural, analisado sob a dimensão específica da imparcialidade do juiz:

Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (Convenção Americana sobre Direitos Humanos)

Távora e Alencar (2011, p. 56) informam que a “a imparcialidade é entendida como característica  essencial ao perfil do juiz, consistente em não poder ter vínculos subjetivos com o processo de modo a lhe tirar o afastamento necessário para conduzi-lo com atenção”.

Vejamos a definição do princípio do juiz natural na visão do Superior Tribunal de Justiça, registrado na ementa do acórdão referente ao Habeas Corpus nº 4.931-RJ, impetrado por policiais militares, réus em processo penal militar, da Justiça Militar do Rio de Janeiro:

 “O juiz natural significa o juízo pré-constituído, ou seja, definido por lei, antes da prática do crime. Garantia constitucional que visa impedir o Estado de direcionar o julgamento, afetando a imparcialidade da decisão.” [2]


4.    TRIBUNAL DO JURI E ESCABINADO, DA JUSTIÇA MILITAR BRASILEIRA: DUAS FACES DA MESMA MOEDA.

Vimos que o Juri e o Escabinado, da justiça militar são institutos díspares quanto à organização, competência, posicionamento na estrutura do judiciário e alguns dos seus procedimentos internos. Entretanto, em que pese as dessemelhanças entre estes dois belíssimos institutos do judiciário brasileiro, não podemos perder de vista o liame embrionário que os une e vai unir para sempre. Estamos a falar da origem histórica e principiológica comum destes dois sistemas.

Como vimos em subtítulos anteriores, a Charta Magna, imposta pelos nobres e clérigos ingleses ao Rei João Sem Terra, em 1215, apresentou à sociedade medieval da sua época um inovador sistema de julgamento, onde o acusado seria julgado por pessoas iguais a ele em um Tribunal Popular devidamente institucionalizado.. Este novo modelo de julgamento, pedra bruta do que hodiernamente conhecemos por Tribunal do Juri, se disseminou por outras nações e povos em épocas diferentes da história, tomando, por vezes, feições e formas um pouco distintas do modelo original, como, por exemplo, o escabinado e assessorado, mas que, em sua essência, guardavam o mesmo objetivo uníssono que norteou a concepção do tribunal popular naquela época: garantir que os acusados tivessem um julgamento isento e imparcial, algo que, na visão daqueles homens, só seria possível se o julgamento fosse feito pelos  próprios pares do réu. Entendemos que, na verdade, em um primeiro momento, os elaboradores da Carta de 1215, buscavam apenas que o acusado tivesse direito a um julgamento, já que diante das arbitrariedade do reinado de João Sem Terra, onde homens eram presos e seus patrimônios invadidos pelo Estado sem nenhum julgamento, o mínimo que os elaboradores da Charta Magna inglesa queriam era que os acusados – que por sinal poderiam ser qualquer um deles - fossem julgados antes de terem seus direitos cassados. Depois de vencido esta concepção, foi que, naturalmente, seguindo um encadeamento lógico de pensamento,  surgiu  a questão: a quem caberia a relevante tarefa de julgar os acusados, sob égide  da  Carta feudal, ora em elaboração, – precursora das constituições do mundo ? E então, sabiamente, os nobres e clérigos decidiram pela instituição de um tribunal popular para cumprir esta elevada missão. Caro leitor, gostaríamos de deixar claro, que esta sequência – primeiro a necessidade de se exigir um julgamento, depois a instituição do juri -  não foi concluída com base em literatura ou documentação histórica pesquisada por este postulante, mas, sim, em mera inferição, fundamentada em um encadeamento lógico, como nos referimos anteriormente.

Trocando em miúdos, podemos dizer que a Magna Carta de 1215 inaugurou a positivação de dois princípios basilares do Direito: o do devido processo legal e o do juiz natural. Expliquemos.  A decisão de nobres e clérigos, nos idos de 1215, de registrar naquele documento que nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição sem um julgamento legítimo representou grande avanço para época, onde o soberano, a serviço de seus interesses e descomprometido com o bem estar de seus súditos, aplicava punições arbitrárias, encarcerava pessoas por tempo indeterminado, sem oportunizar ao acusado um julgamento justo e equilibrado. O trecho em destaque, que é a transcrição traduzida[3] da primeira parte do postulado trinta e nove da Magna Carta, é, conforme pacificamente informa a doutrina, a inovadora positivação do devido processo legal. Vejamos o que outros mestres da doutrina dizem a este respeito da origem do sobredito princípio:

A Constituição Federal de 1988 incorporou o principio do devido processo legal, que remonta à Magna Charta Libertarum de 1215, de vital importância no direito anglo-saxão. (MORAES 2008, p. 105).

O princípio do devido processo legal entra agora no direito constitucional positivo com um enunciado que vem da Magna Carta Inglesa:  “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”  (art. 5º, LIV). Combinando com o direito de acesso à Justiça (art. 5º XXXV), o contraditório e a plenitude de defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. (AFONSO DA SILVA 2009, p.154).

A origem do princípio do devido processo legal remonta à Carta Magna inglesa, de 1215, em que se estabelecia a garantia de que a aplicação da sanção só poderia ser efetuada de acordo com a lei da terra. (MIRABETE 1997, p.27).

Conforme expusemos, a exigência imposta pelos elaboradores da Magna Carta de 1215 de que o réu, para ser privado de sua liberdade, bens e direitos, deveria ser submetido a julgamento legítimo, significou inovadora positivação do principio do devido processo legal que influenciou povos e nações por todo mundo ao longo da história. No entanto, pergunta-se: o que seria um julgamento legítimo para aqueles homens que destacadamente conceberam tão importante documento ? Entendemos que a resposta está na segunda parte do postulado trinta e nove, da debatida Carta medieval inglesa, quando diz que o acusado deve ser submetido ao julgamento de seus próprios pares. Entendemos que a iluminada opção dos nobres e clérigos ingleses em adotar o Tribunal Popular, ao invés, por exemplo, de prever que o acusado fosse submetido a julgamento de um juiz singular, mesmo que este fosse do segmento social do acusado, era garantir ao réu uma maior possibilidade de se ter um julgamento equilibrado e isento, visto que diminuiria o risco de influência do monarca sobre o julgamento, já que para, fazê-lo, deveria corromper vários jurados e não somente um, caso fosse adotada a ideia do juiz singular. Esta mesma motivação levou a França pós-revolucionária a optar também pelo sistema de tribunal popular, inicialmente pelo tribunal do juri e, mais tarde, pelo escabinado, que vigora até os dias atuais. Os revolucionários de Paris, buscando evitar que a experiência traumática do regime deposto se repetisse, onde magistrados corruptos e a serviço do rei proferiam decisões tendenciosas e injustas, identificaram no sistema do tribunal do juri a maneira mais adequada de garantir um julgamento  justo, equilibrado e imparcial ao acusado. Esta mesma tendência veio a influenciar Cartas Políticas, Códigos e Declaração de Direitos por todo o mundo, dos quais podemos citar os seguintes marcos históricos: no postulado XI da Declaração de Direitos (Bill of Rights), em 1689, na Inglaterra; na emenda VII, da Carta da Declaração da Independência de 1776, dos Estados Unidos; e no Decreto, de 30 abril de 1790, na França.

Pois bem, prezado leitor, diante do exposto, perguntamos: a que principio remete a ideia de um juiz isento? Entendemos que a opção pelo julgamento feito pelos iguais, adotado pela Carta Magna do medievo britânico, é a positivação cristalina do principio do juiz natural, especificamente no que diz respeito à imparcialidade do juiz. Em outras palavras, seja o princípio do juiz natural um pressuposto universal, como acreditam os jusnaturalistas ou fruto das mudanças de referencial axiológico vividas pela sociedade inglesa de 1215, como reza a concepção quântica do Direito, de Goffredo Telles Jr, fato é que o referido princípio informou, norteou e conduziu os nobres e clérigos anglo-saxões na elaboração da última parte do postulado 39 da Charta Magna Libertarum, ao exigir que o acusado fosse julgado pelos seus próprios pares, por meio de um Tribunal Popular instituído. Desta forma entendemos que o princípio do juiz natural tem com o Tribunal do Juri e com o Escabinado uma relação de paternidade, onde o Juri seria o primogênito, desta prole. E como bom pai que o é, o princípio do juiz natural não abandona seus filhos, revisitando-os constantemente, orientando sua organização, competência e procedimentos internos nas diversas nações que os instituíram pelo mundo no decorrer da história.

 Mesmo que os postulados da citada Carta medieval inglesa não tenham sido efetivamente cumpridos por João Sem Terra, nem Henrique III, seu sucessor, conforme rezam alguns historiadores (FLORIVAL CÁRCERES, 1988, p. 122), não se pode olvidar que o gérmen do princípio do juiz natural ( e do devido processo legal) estavam definitivamente plantados no solo dos povos, germinando posteriormente em momentos e nações diferentes no decorrer da história da sociedade moderna e contemporânea.

a.    O princípio do Juiz Natural no Tribunal do Juri brasileiro

O princípio do juiz natural, como mencionamos anteriormente, vem informando, desde os idos de 1215 até os dias atuais, os diversos aspectos que circundam o instituto do tribunal do juri pelas várias nações que adotaram este sistema. No Brasil, não é difícil identificar a marca genética do juiz natural no tribunal do juri, a própria adoção do sistema de participação popular pelas Cartas Políticas brasileiras, desde o império até hoje, já é a mais autêntica expressão do princípio em tela, afinal, se a submissão do acusado ao julgamento de seus próprios pares é a manifestação mais essencial do juiz natural, sob a dimensão da imparcialidade do juiz, a adoção deste sistema pelas Constituições pátrias é a firme positivação deste princípio.   Podemos mencionar ainda, a consagração daquele instituto como cláusula pétrea da Constituição de 1988. Por fim, mas sem esgotar o assunto, podemos citar a possibilidade de recusas dos jurados por parte do réu, como uma manifestação eloquente do princípio do juiz natural, a nível procedimental, no tribunal do juri.

b.  O princípio do juiz natural como concebedor do sistema de escabinado adotado pela Justiça Militar brasileira

Acreditamos ter sido bem marcada a presença do principio do juiz natural como concebedor direto e informador atual dos tribunais populares ao longo da história. No entanto, é plausível questionar se este princípio está presente também no modelo de escabinado adotado pela justiça militar brasileira.

Em nosso sentir a composição peculiar dos Conselhos de Justiça e STM, com juízes militares (oficias militares) e juízes togados atuando lado a lado em igualdade de condições no julgamento dos crimes militares, é expressão patente da busca pela imparcialidade do juiz, na medida em que o colegiado misto de militares e civis terá todas as condições de pesar os aspectos normativos e doutrinários do crime em conjunto com todos os elementos de ordem psicológica, sociológica, técnica e operacional, inerentes a atividade militar e que permeiam o caso a ser julgado. Recapitulemos as palavras de mestres  já citados neste trabalho, a respeito da questão:  

Sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando, pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas. (MOREIRA ALVES 1998, p. 3-6)

É fundamental que os atos dos seus integrantes (integrantes das Forças Armadas e Auxiliares) sejam julgados com isenção por quem conheça, na intimidade, os diferentes fatores interferentes em suas ações (riscos, elementos psicológicos e culturais, aspectos técnicos e operacionais e os fatores criminógenos), de forma a assegurar-lhes tranqüilidade e serenidade para o desempenho de suas funções e infundir-lhes a certeza da reprimenda penal quando ultrapassarem os limites da lei. (complemento entre parênteses deste postulante) (SOUZA, 2005).

Além da manifestação do juiz natural na própria composição dos Conselhos de Justiças e STM, conforme constatado, entendemos que, da mesma forma que o juri, o escabinado traz a herança genética daquele princípio em outros aspectos, dentre os quais  podemos citar a possibilidade do réu  arguir suspeição ou impedimento  dos juízes, conforme prevê  o Art 128, a), do CPPM; a previsão de mudança dos integrantes do Conselho Permanente a cada três meses e a cada novo processo, no caso do Conselho Especial; a obrigação de que os Conselhos de Justiça sejam compostos por militares da mesma Força Armada ou Auxiliar do acusado.


5.    CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese os ataques feitos ao tribunal do juri e ao escabinado, da justiça militar, em que pese seus defeitos e anomalias, não se pode olvidar que temos, nestes institutos irmãos, de origem secular, duas das maiores jóias do Direito, a expressão mais manifesta, legítima e autêntica do elevado princípio do juiz natural e que, de forma alguma, mereceriam ser extintos ou ter suas competências reduzidas. No sentir deste postulante é inadmissível que estes institutos, tão antigos, norteados pelos mais nobres princípios do Direito, possam ter sua existências questionadas.  Como fruto dos valores culturais e axiológicos de uma sociedade, devem sim, como tudo no Direito, ser constantemente ajustados às mudanças sociais, no entanto, nunca  exterminados ou reduzidos à insignificância.

Fig 1 a sequência do escalonamento das forças auxiliares estaduais segue a mesma lógica da utilizada pelo Exército, com exceção dos postos referentes aos oficiais generais que não existem no Corpo de Bombeiros Militares e na Polícia Militar, onde o posto mais alto da carreira é o de Coronel. A simbologia efetivamente utilizada pelas Forças Auxiliares para representar o equivalente às estrelas dos oficiais, o losângulo dos Subtenentes ou as divisas dos sargentos empregadas no Exército, não foi apresentada  no quadro exemplificativo, pois cada Unidade da Federação adota figuras diferenciadas  para suas forças de segurança pública – por vezes armas cruzadas para simbolizar a estrela dos oficiais policiais militares; duas machadinhas para representar a estrela dos oficiais bombeiros militares; um triângulo ao invés do losângulo para os subtenentes; divisas retas para representar os demais praças ao invés do formato em  “v” invertido, utilizado pelo Exército e etc. Por último, cabe o seguinte esclarecimento: os graus hierárquicos dos praças são denominados graduações e os graus hierárquicos dos oficiais são chamados de postos.


REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, José. Comentário Contextual à Constituição. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

ALVES, José Carlos Moreira. A Justiça Militar da União, pelo seu novo presidente. Direito Militar - Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, n. 13,  1998.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1967). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 19 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil [sic]. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 28 de junho de 2012.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm>. Acesso em: 10 de junho de 2012.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm>. Acesso em: 10 de junho de 2012.

BRASIL. Constituição (1967). Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>.  Acesso em: 14 de junho de 2012.

BRASIL. Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1990. Estatuto dos Militares. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>. Acesso em: 16 de junho de 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. HC 4931 (1996/0045277-6 - 20/10/1997)<https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&dt_publicacao=20/10/1997&num_registro=199600452776>. Acessado em 14 de junho de 2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência. HC 106171-MC/AM <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo617.htm>. Acessado em 27 de junho de 2012.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 20 ed.: São Paulo. Saraiva, 2009.

DUFOUR, André. O Sistema da Justiça Militar canadense (áudio da palestra).  In: X SEMINÁRIO DE DIREITO MILITAR, Santa Maria-RS. Disponível em: http://www.seminariodedireitomilitar.com.br/wpcontent/uploads/2011/11/justicamilitarcanada.mp3.

FLORIVAL CARCERES. História Geral. 3ed. São Paulo: Moderna, 1988.

GOMES, Luiz Flavio Gomes e SICA, Ana Paula Zomer. O Tribunal do Júri no Direito Comparado.Disponívelhttp://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20051121153633299. Acessado em: 14 de Junho de 2012.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13 ed ver atual e amp. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II. Rio de Janeiro: Forense,  1961.

MARTINEZ, Waldo. A Justiça Militar no Chile (audio da palestra).  In: X SEMINÁRIO DE DIREITO MILITAR, Santa Maria-RS. Disponível em: http://www.seminariodedireitomilitar.com.br/wp-content/uploads/2011/11/05-caceres.mp3. Acesso em: 30 de junho de 2012.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 7. ed., rev. atual. Sao Paulo: Atlas, 1997.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal, 9.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

SILVA, José Afonso da.  Comentário contextual à constituição.  São Paulo: Malheiros, 2005.

SOUZA, Octavio Augusto Simon de. A Justiça Militar e a EC 45/20042. Juiz Corregedor-Geral da Justiça Militar e Vice-Presidente do Tribunal Militar do Estado do Rio Grande do Sul. In: II SEMINÁRIO DE DIREITO MILITAR, PROMOVIDO PELA BASE AÉREA DE SANTA MARIA E PELA III DIVISÃO DE EXÉRCITO, 2005. Disponível em:< http://www.jusmilitaris.com.br/uploads/docs/jm-ec45.pdf>. Acesso em: 14 de Junho de 2012.


[1] Fonte: http://georgelins.com/2009/08/09/a-magna-charta-de-joao-sem-terra-1215-a-peticao-de-direitos-1628-e-o-devido-processo-legal/

[2] Consultado, em 05 de junho de 2012, em:

https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&dt_publicacao=20/10/1997&num_registro=199600452776

[3] Fonte: http://georgelins.com/2009/08/09/a-magna-charta-de-joao-sem-terra-1215-a-peticao-de-direitos-1628-e-o-devido-processo-legal/


ABSTRACT: This work aims to invite the reader to observe, in a different light and natural, the relationship between the principle of natural judge and two institutes of the Brazilian judiciary: the court and the jury escabinate, military justice. Despite that it was different institutes with different roles goods in national legal structure, search will show in this paper that the escabinate court and the jury are actually two sides of the same coin, regarding the historical origin and common among them regarding the principle concebedor of both the natural judge.

Keywords: Court Jury. Escabinate, military justice. Common historical origin between the two institutes. Natural Judge.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Celso Rodrigo Lima dos. Tribunal do júri e escabinato da Justiça Militar brasileira: duas faces da mesma moeda. Uma observação sob a ótica do princípio do juiz natural.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3490, 20 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23491. Acesso em: 20 abr. 2024.