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A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90

A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90

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A jurisprudência pátria deve tomar as normas do Decreto n. 3.298/99 com reservas, de modo a permitir a reserva de vagas a deficientes físicos quando, aplicado o percentual sobre o número de vagas, tal número resultar em no mínimo 0,5. Do contrário, não pode haver reserva de vagas.

1 - INTRODUÇÃO

 O presente artigo visa a esclarecer a controvérsia acerca do percentual de vagas reservadas aos portadores de necessidades especiais em concursos públicos. Conforme é de conhecimento de todos, nossa Constituição Federal de 1988 prevê, em seu Art. 37, VIII, que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

 Pois bem, a norma infraconstitucional que regulamenta o tema em âmbito federal (Lei n. 8.112/90), que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, preconiza, em seu Art. 5º, § 2º, que “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. (g.n.)

 A controvérsia é levantada quando, ao se aplicar tal percentual sobre o número de vagas para determinado cargo, tem-se como resultado número fracionário. Tais situações vêm sendo solucionadas de forma divergente nos diferentes Tribunais Pátrios e, tendo em vista tal divergência, foi elaborado este breve estudo, visando a esclarecer essa controvérsia.

 Nos últimos tempos, a busca cada vez maior de uma parcela da sociedade pela aprovação em concursos públicos e o posterior exercício do cargo público faz com que o tema em questão seja digno de relevância, daí a importância do estudo das questões jurídicas controversas que circundam essa temática. Comprova esse fato a diversidade de instituições de ensino que vêm se dedicando à preparação de candidatos para a almejada aprovação em concursos públicos.

 A controvérsia em apreço é causada, em grande parte, pela ausência de técnica legislativa mais apurada – que ocorre com freqüência –, fato esse que será demonstrado no presente artigo.

 Buscar-se-á responder, resumidamente, à seguinte questão: qual é o posicionamento mais consentâneo com os princípios constitucionais no que diz respeito à reserva de vagas a portadores de necessidades especiais?

 De início, serão feitas considerações sobre o princípio da igualdade e o conceito das ações afirmativas, e em seguida discorrer-se-á sobre os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, chegando-se, por fim, ao cerne do tema, com a menção a julgados de nossos Tribunais Pátrios sobre a questão.


2 – DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

 A ideia de igualdade, como categoria jurídica de suma importância, emergiu como princípio jurídico fundamental nas cartas constitucionais editadas logo após as revoluções do final do Século XVIII. Foi através dos eventos revolucionários ocorridos nos Estados Unidos e na França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, que contemplava a ideia de que a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, afastando-se distinções ou privilégios, e o aplicador deve fazê-la incidir de forma neutra nas diversas situações que lhe são colocadas.

 A concepção de igualdade jurídica, meramente formal, criada com a finalidade de extinguir os privilégios típicos do antigo regime e para cessar as discriminações baseadas na linhagem, consolidou-se como ideia-chave do constitucionalismo do século XIX e prosseguiu por considerável parte do século XX.

 Conforme explica Guilherme Machado Dray (1999):

o princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa medida intoleráveis.

 Na visão dos pensadores da escola liberal, seria suficiente a mera inclusão da igualdade como direito fundamental para que essa fosse garantida no ordenamento constitucional.

 Não obstante, a ideia de uma igualdade meramente formal, que tinha como sustentáculo o princípio geral da igualdade inserido na lei, começou a ser posta em xeque a partir do momento em que se verificou que a igualdade de direitos em termos formais não se mostrava, por si só, suficiente para conferir aos socialmente desfavorecidos as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Não mais se mostrava coerente tratar a questão sob o enfoque de igualdade de oportunidades, e sim sob o enfoque da igualdade de condições.

 A noção de igualdade formal (ou estática), então, dá lugar ao novo conceito de igualdade “substancial”, fazendo surgir a ideia de “igualdade de oportunidades”, o que veio a servir de base para iniciativas que visavam ao menos diminuir as desigualdades econômicas e sociais.

 Em nosso país, o princípio da igualdade (ou isonomia), base de um Estado democrático de Direito, está previsto em diversos dispositivos constitucionais, determinando a necessidade de tratamento igualitário nas mais diferentes situações (Art. 5º, caput, e inciso I; Art. 7º, XXX, XXXI, XXXII, XXXIII e XXXIV; Art. 150, II etc.).

 Na repetição do princípio da isonomia, preocupou-se o legislador não só com a igualdade meramente formal (perante a lei), mas também com a igualdade material, prescrevendo vedações materiais em razão de critérios inadmissíveis pelo Direito, como é bom exemplo o disposto no Art. 7º, XXX ao XXXII (nesses dispositivos, não se está assegurando, apenas, a igualdade perante a lei – formal -, mas sim vedando práticas materiais atentatórias da igualdade, em razão de critérios tais como raça, cor, idade, sexo e outros).

 Porém, importante lembrar que o princípio da igualdade não se descuida de situações específicas, vale dizer, não tem por fim estabelecer um tratamento igualitário entre os indivíduos, sem atentar-se para as desigualdades existentes entre estes. Pedro Lenza (2011) traz importantes lições sobre o tema:

Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, uma vez que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei. Em busca por uma igualdade substancial, muitas vezes idealista, reconheça-se, eterniza-se na sempre lembrada, com emoção, Oração aos Moços, de Rui Barbosa, inspirado na lição secular de Aristóteles, devendo-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Cabe lembrar, entretanto, que o grande desafio consiste em determinar até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade.

 O grande constitucionalista Celso Antônio Bandeira de Mello buscou responder à questão estabelecendo diferentes parâmetros, em sua monografia acerca do tema princípio da igualdade. No citado trabalho, ele estabelece três questões que merecem atenção, a fim de se aferir o respeito ou desrespeito ao aludido princípio. Qualquer inobservância a uma dessas questões conduz inevitavelmente a uma ofensa à isonomia. São tais pontos, pois, os seguintes:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados’. Esses critérios podem servir de parâmetros[1].

 Diante das considerações até então esboçadas, é de se concluir que o princípio da igualdade não veda tratamento diferenciado entre pessoas que guardem distinções de raça, de idade, de sexo, de condição econômica etc., desde que haja justificativas razoáveis para o estabelecimento da distinção (aqui, a aplicação do princípio da razoabilidade – sobre o qual serão feitas considerações oportunamente – como limite à imposição de restrições ao princípio constitucional da igualdade; enfim, o princípio constitucional da igualdade pode sofrer restrições no tocante à cor, à raça, à idade etc., desde que tais restrições sejam razoáveis, isto é, desde que sejam necessárias, adequadas e na medida certa).

 A título exemplificativo, em concursos públicos são admitidas restrições impostas por lei, que venham estabelecer tratamento diferenciado entre os candidatos, desde que as atribuições do cargo justifiquem a discriminação (estabelecimento de idade máxima para o ingresso no cargo de agente de polícia; abertura de concurso público somente para as mulheres, para o cargo de agente penitenciário numa prisão feminina, etc.). Essas restrições, frise-se, deverão estar estabelecidas em lei, e não somente no edital do concurso, pois o edital de concurso, ato administrativo infralegal, não dispõe de competência para impor restrições a direito previsto na Constituição.


3 – DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

 O país que primeiro adotou as políticas sociais denominadas “ações afirmativas” foram os Estados Unidos da América. Inicialmente, tais ações foram criadas como meios de se extinguir – ou pelo menos atenuar – a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Em um segundo momento, tais políticas foram estendidas às mulheres, e a outros grupos menos favorecidos, como os índios e os deficientes físicos.

 Essas políticas não só visam o combate às manifestações flagrantes de discriminação, mas também àquelas discriminações de fato, baseadas em fatores culturais, já infiltrados na sociedade.

 A concepção das ações afirmativas representa, acima de tudo, uma mudança de postura do Estado, que sai de uma posição de neutralidade, e se coloca em uma posição mais atuante, positiva, visando a diminuir as desigualdades e, com isso, promover a justiça social.

 Nos últimos anos, vêm surgindo no país diversas iniciativas no ordenamento jurídico brasileiro que podem ser compreendidas como “ações afirmativas”. Tais iniciativas, na grande parte das vezes apresentadas como projetos de lei por algum parlamentar, externam medidas que visam a amenizar uma situação de desigualdade de determinados grupos de pessoas. Exemplo dessas iniciativas é o estabelecimento de cotas reservadas para negros em universidades públicas.

 Trata-se de verdadeiras “medidas compensatórias” que têm por finalidade a preservação do princípio da igualdade.

 A importância do tema em apreço afigura-se patente, em especial na realidade brasileira – maculada pela flagrante desigualdade social. Tal abordagem também se mostra relevante na medida em que traz ao campo das ciências jurídicas ricas discussões envolvendo o Direito Comparado, tendo em vista que o instituto das “ações afirmativas” é originário do Direito Norte-americano, sendo contemplado posteriormente por outros ordenamentos jurídicos. Em seu berço, ganharam o nome de affirmative actions, enquanto na Europa foram batizadas como discrimination positive (discriminação positiva) e action positive (ação positiva).

 Segundo David Araujo e Nunes Júnior [2]:

(...) o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições.

 Dentro dessa linha de ações afirmativas, no Brasil, o Governo Federal, através da Medida Provisória nº 213, de 10.09.2004, instituiu o PROUNI – Programa Universidade para Todos, que foi regulamentado pelo Decreto n. 5.493/2005. Tal MP foi objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.314 e 3.379, ainda pendentes de julgamento, mas já convertida na Lei n. 11.096/2005, alterada pela Lei n. 11.128/2005.

 O Art. 1º da citada lei prevê que o programa é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. No Art. 2º, está disposto que a bolsa é destinada: “I – a estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; II - a estudante portador de deficiência, nos termos da lei; III - a professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica”.

 A reserva de vagas, em concursos públicos, para portadores de deficiência física, também constitui esse conjunto de ações afirmativas adotadas pelo legislador pátrio. Acerca do tema, Mônica de Melo assim discorre:

Desta forma, qualquer concurso público que se destine a preenchimento de vagas para o serviço público federal deverá conter em seu edital a previsão das vagas reservadas para os portadores de deficiência. Note-se que o artigo fala em até 20% (vinte por cento) das vagas, o que possibilita uma reserva menor e o outro requisito legal é que as atribuições a serem desempenhadas sejam compatíveis com a deficiência apresentada. Há entendimentos no sentido de que 10% (dez por cento) das vagas seriam um percentual razoável, à medida que no Brasil haveria 10% de pessoas portadoras de deficiência segundo dados da Organização Mundial de Saúde[3].

 Como já dito acima, medidas como essa buscam preservar o princípio da igualdade, mas não se almeja unicamente a igualdade formal, e sim, precipuamente, a igualdade material.


3  DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

 Os princípios constitucionais exercem papel fundamental em um ordenamento jurídico, tendo em vista que agem como ponto de referência ao julgador, no momento da interpretação das regras constitucionais e infraconstitucionais.

 O princípio em questão guarda estreita relação com os demais princípios presentes em nosso ordenamento, tais como o princípio da isonomia e o princípio da legalidade. Antes de se discorrer de forma mais aprofundada sobre o princípio da proporcionalidade, é oportuno discorrer-se sobre sua origem e evolução ao longo da história, seu fundamento e natureza, e sua concepção atual.

3.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO AO LONGO DA HISTÓRIA

 A origem e aceitação do princípio da proporcionalidade estão estreitamente relacionados ao crescimento dos direitos e garantias individuais, constatado a partir do surgimento do Estado de Direito Europeu.

 A origem do princípio em questão pode ser relacionada aos séculos XII e XVIII, época em que na Inglaterra ganhavam força teorias jusnaturalistas, que defendiam que o homem possui direitos inerentes a sua natureza, direitos esses até mesmo anteriores ao surgimento do Estado, e, que, por tal razão, merecem estrita observância. Pode-se apontar como marco histórico desse contexto a elaboração da Magna Carta Inglesa, de 1215, a qual previa que "O homem livre não deve ser punido por um delito menor, senão na medida desse delito, e por um grave delito ele deve ser punido de acordo com a gravidade do delito", conforme ensina GUERRA FILHO (2000).

Posteriormente, no Século XVIII, momentos históricos importantes marcaram a ascensão dos direitos fundamentais, como a declaração Bill of Rights, da Virgínia (EUA) em 1776, que foi tomada como modelo para a elaboração de várias outras declarações estaduais.

Em momento posterior (1789), com fundamento nos ideais jusnaturalistas, foi elaborada na França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, marco importante da Revolução Francesa.

 Ainda nessa época, o italiano Beccaria invocou a aplicação da proporcionalidade da pena em casos de condenações pelo cometimento de delitos.

 É certo que, em um primeiro momento, os conceitos de proporcionalidade estavam mais associados ao Direito Penal, entretanto, no século XIX, tal princípio começa a exercer influência sobre o Direito Administrativo. A constitucionalização do mesmo, porém, somente veio ao fim da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha. Visando proteger os direitos fundamentais, a Corte Constitucional alemã, receosa dos possíveis abusos do legislador, trouxe o princípio da proporcionalidade ao âmbito do Direito Constitucional.

 Nas lições de STEINMETZ (2001), “rapidamente, essa nova leitura do princípio da proporcionalidade cruzará a fronteira tedesca, sendo incorporada pela jurisprudência constitucional de inúmeros países e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.

 Assim, com a influência do direito germânico, outros países da Europa passaram a conceber o princípio da proporcionalidade em âmbito constitucional.

 Nos Estados Unidos, o princípio em questão foi acolhido sob o nome de princípio da razoabilidade.

 No Brasil, o princípio da proporcionalidade mostra-se mais tímido, valendo ressaltar que não se encontra disposto explicitamente na atual Constituição, e, por longa data não mereceu atenção dos doutrinadores. Não obstante tal fato, ressalta o professor GUERRA FILHO (2001) que o princípio da proporcionalidade, até o presente momento, não atingiu os âmbitos dos Direitos Constitucional e Administrativo, mas deixa claro que o presente momento mostra-se propício para tal tarefa.

3.2   FUNDAMENTO E NATUREZA DO PRINCÍPIO

 Indubitavelmente, o princípio da proporcionalidade representa uma dimensão concretizadora da supremacia do interesse da coletividade sobre o interesse do próprio Estado. Isso significa dizer que o Estado está sujeito a um limite jurídico ao editar determinada norma.

 A respeito do tema, o professor PAULO BONAVIDES (2002) que, por sua vez, afirma:

Em nosso ordenamento constitucional não deve a proporcionalidade permanecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico, prestante, protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo à defesa dos direitos e liberdades constitucionais. De tal sorte que urge, quanto antes, extraí-lo da doutrina, da reflexão, dos próprios fundamentos da Constituição, em ordem a introduzi-lo, com todo o vigor no uso jurisprudencial.

 Pode-se observar, dessa forma, que o princípio da proporcionalidade ganha status constitucional, salvaguardando o cidadão contra eventuais excessos do Estado.

 Importante ressaltar que o conteúdo jurídico-material do princípio em questão tem como raiz a ideia de que a Constituição possui supremacia hierárquico-normativa em um ordenamento jurídico. E, considerando que a proporcionalidade é um princípio implícito em um Estado de Direito, tal instituto acaba por ganhar status de garantia fundamental que busca concretizar os valores consagrados na Constituição. Representa, sem dúvida, um reconhecimento do postulado de que o Direito não se encerra na lei.

 Sobreleva notar que em qualquer ordenamento jurídico há necessidade de se adotarem balizadores de conflitos entre outros direitos também vivos e presentes. Em outras palavras, qualquer Estado de Direito necessita de ferramentas que permitam um balanceamento de direitos, pois são inevitáveis.os conflitos entre estes nas diversas situações concretas que se apresentam.

 GUERRA FILHO (2000) assim discorre quanto a esse ponto:

(...) a opção do legislador constituinte brasileiro por um Estado Democrático de Direito, com objetivos que na prática se conflitam, bem como pela consagração de um elenco extensíssimo de direitos fundamentais, co-implica na adoção de um princípio regulador dos conflitos na aplicação dos demais e, ao mesmo tempo, voltado para a proteção daqueles direitos.

 Ao expor a doutrina de Karl Larenz, COELHO (1997) esclarece:

(...) utilizado, de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos – muito embora possa aplicar-se, também, para dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios –, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico (...).

 Indubitavelmente, diante do acima exposto, o princípio da proporcionalidade afigura-se como princípio jurídico regulador dos conflitos entre direitos fundamentais e outros princípios previstos na Constituição Federal.


4  A QUESTÃO DA RESERVA DE VAGAS, NOS CONCURSOS PÚBLICOS, AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS

 O ordenamento jurídico pátrio prevê reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais nos concursos públicos para ingresso nos órgãos da Administração Pública Direta e Indireta. Tal percentual, nos concursos públicos, deve ser reservado aos portadores de necessidades especiais, o que é garantido pela Constituição Federal, especificamente no Art. 37, VIII, que assim preleciona: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

 A Lei n. 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, em seu Art. 5º, § 2º, diz que esse percentual será de até 20%, senão vejamos a redação do citado dispositivo legal: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.

 Ocorre que, em concursos realizados hodiernamente, os órgãos da União, bem como das autarquias e fundações públicas, vêm reservando percentual superior ao acima citado (20%), o que vem a levantar controvérsia no mundo jurídico, por ferirem princípios constitucionais, bem como prejudicarem os candidatos não portadores de necessidades especiais que muitas vezes são preteridos em face de tal entendimento.

Não obstante o Estado deva adotar medidas para atender a parcelas menos privilegiadas da população (as chamadas “ações afirmativas”) - como, no caso, os portadores de necessidades especiais, justamente pelo fato de estes últimos encontrarem maiores dificuldades para conseguir vagas no concorrido mercado de trabalho – é notório o fato de que em alguns casos a reserva de vagas vem sendo feita de forma desproporcional.

 Nesses casos, não está a Administração Pública igualando os desiguais na medida de suas desigualdades, conforme mandam os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade, muito pelo contrário.

 Atentos a tal situação, nossos Tribunais vêm aplicando entendimentos diversos sobre o tema, causando controvérsia no mundo jurídico.

 Dada a importância do tema, na obra Direito Administrativo Descomplicado, os ilustres autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo assim discorrem sobre o tema:

Outra situação que pode causar alguma perplexidade, já enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, ocorre quando temos um concurso público em cujo edital estejam previstas muito poucas vagas, uma ou duas vagas, por exemplo.

Em casos que tais, pode o edital deixar de reservar vaga para deficientes?

Antes de respondermos à indagação acima formulada, é necessário registrar que existe uma lei federal genérica (não é uma lei que trate especificamente de matéria administrativa) que "dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social (....) e dá outras providências". Trata-se da Lei 7.853/1989. Embora essa lei não fale absolutamente nada sobre reserva de vagas para deficientes em concursos públicos, o Decreto 3.298/1999, a pretexto de "regulamentá-la", criou uma regra, de forma autônoma, reservando um mínimo de cinco por cento das vagas dos concursos públicos em geral para deficientes (Art. 37). O mesmo artigo do Decreto 3.298/1999 determina, ainda, que, se a aplicação desse percentual de cinco por cento resultar em número fracionado, "este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente".

Ora, se essa regra, criada pelo decreto, de elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente for aplicada sempre, em um concurso com uma única vaga, seria ela reservada para deficientes, não haveria nenhuma vaga não-reservada! Atento a esse fato, e à regra constante da Lei 8.112/1990, que fixa em vinte por cento o limite máximo de vagas a serem reservadas, o Supremo Tribunal Federal, em um caso concreto de um concurso público cujo edital previa ao todo duas vagas, decidiu que nenhuma precisaria ser reservada para deficientes...

Segundo a Corte Suprema, a reserva de uma vaga para deficientes, nesse caso, ultrapassaria o limite máximo legal de vinte por cento. Não seria possível, assim, obedecer à regra, criada pelo Decreto na 3.298/1999, de aplicar o percentual mínimo de cinco por cento sobre as duas vagas existentes e elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente, porque isso resultaria na reserva de uma vaga, o que, no caso concreto, significaria reservar cinqüenta por cento do total de vagas previstas no edital. Assim, entendeu o Tribunal Maior que deve prevalecer a interpretação do texto constitucional que preserve "a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário (CF, Art.. 37, II), consubstanciando exceção a separação de vagas para um determinado segmento"...

Com base nesse entendimento, o STF considerou válido o edital de concurso para o preenchimento de duas vagas que não reservou nenhuma para deficientes. Entendeu a Corte Suprema que reservar uma vaga, ou seja, cinqüenta por cento das vagas existentes, implicaria majoração indevida dos percentuais legalmente estabelecidos (MS 26310/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 20.09.2007. Grifos nossos)[4]

 Observa-se, pois, que o Decreto n. 3.298/1999, visando a regulamentar a problemática da reserva de vagas aos portadores de deficiência física, acabou por trazer dispositivo flagrantemente desproporcional, pois prevê em seu Art. 37, § 2º, que, nos casos em que, ao se aplicar o percentual de 5% sobre o número de vagas, eventuais números fracionários devem ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente. A desproporcionalidade de tal norma mostra-se mais patente quando se depara com situações em que há apenas uma vaga. Ora, se esse instituto for aplicado tal qual está redigido, chegar-se-ia ao despropósito de reservar a única vaga a portadores de necessidades especiais, o que de forma alguma pode ser admitido, por distorcer completamente a política pública de inclusão social.

 É certo que, caso se desconsiderasse qualquer número fracionário, para que fosse reservada ao menos uma vaga para deficientes físicos o concurso deveria oferecer no mínimo 20 vagas. Entretanto, não é esse o entendimento que aqui se defende. O entendimento que se mostra mais consentâneo com o princípio da proporcionalidade é o de que, ao se aplicar o percentual previsto no edital sobre o número de vagas oferecidas, somente os números fracionários iguais ou superiores a 0,5 (zero vírgula cinco) deverão ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente; os números inferiores ao citado valor, dessa forma, deverão ser desconsiderados.

 Importante trazer à baila o voto do Min. Gilson Dipp no RMS 18669/RJ:

Assim sendo, seguir a orientação da Corte de origem, de que apenas com a nomeação de 10 (dez) candidatos pode um deficiente ocupar uma vaga, é ignorar a norma contida nos dispositivos acima transcritos, bem como o princípio da relativização da isonomia, chegando à absurda conclusão de que para assegurar 01 (uma) vaga ao candidato deficiente, levando em conta o percentual de 5%, o concurso teria, necessariamente, que oferecer pelo menos 20 (vinte) vagas. Não é esse o escopo protetivo nas normas aplicáveis ao caso.

Isto significa dizer que o impetrante, primeiro colocado entre os deficientes físicos, deve ocupar uma das vagas ofertadas ao cargo de Analista Judiciário – especialidade Odontologia, para que seja efetivada a vontade insculpida no Art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. Entenda-se que não se pode considerar que as primeiras vagas se destinam a candidatos não-deficientes e apenas as eventuais ou últimas a candidatos deficientes. Ao contrário, o que deve ser feito é a nomeação alternada de um e outro, até que seja alcançado o percentual limítrofe de vagas oferecidas pelo Edital a esses últimos[5]

 Verifica-se, pelos argumentos expostos, que a regra contida no citado decreto deve ser tomada com reservas, de modo a preservar os princípios constitucionais da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade. Vejamos um importante julgado que expressa o entendimento aqui defendido:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO DEFICIENTE. RESERVA DE VAGAS. PERCENTUAL QUE RESULTA EM NÚMERO FRACIONADO. ARREDONDAMENTO. CRITÉRIO. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA PELO TRIBUNAL. CESSAÇÃO DA EFICÁCIA DA MEDIDA LIMINAR. PERDA DE OBJETO DA APELAÇÃO QUE VISA EXCLUSIVAMENTE À REVOGAÇÃO DA MEDIDA LIMINAR.

1. A fração inferior a 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser desconsiderada. Precedente.

2. A fração igual ou superior 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser arredondada para 1 (um) inteiro. Precedente.

3. O percentual de vagas reservadas aos candidatos deficientes deve incidir sobre o total de cargos efetivamente providos, e não especificamente sobre o número de vagas disponibilizadas em cada convocação.

4. Havendo reserva de 5% das vagas para portadores de deficiência, não é ilegítima a nomeação de apenas um deficiente entre os dezessete candidatos já nomeados pela Administração.

5. A confirmação da sentença denegatória da segurança implica automática cessação da eficácia da medida liminar concedida pelo Juízo a quo, tornando prejudicada a apelação que visa exclusivamente à sua revogação.

6. Apelação da impetrante não provida. Apelação da União prejudicada.[6]

Entendimento idêntico foi adotado no julgamento de Mandado de Segurança impetrado perante a Justiça Federal, in verbis:

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - DEFICIENTE FÍSICO. RESERVA DE VAGA EM CONCURSO PÚBLICO: PERCENTUAL IGUAL OU SUPERIOR A 0,5 EM FACE DO REDUZIDO NÚMERO DE VAGAS OFERECIDO - ARREDONDAMENTO PARA UM INTEIRO - CONVOCAÇÃO PARA COMPROVAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E, COMPROVADA, CONSEQÜENTE NOMEAÇÃO.

1. A Constituição Federal (Art. 37, inciso VIII) garantiu a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, reservando à lei a definição do percentual e dos critérios de admissão.

2. Explicitada no edital do certame a observância à reserva legal de percentual de 5% da vagas para deficientes físicos, a existência de vagas disponíveis, cujo percentual aplicado signifique número de vagas para deficientes igual ou superior a 0,5 deve, em nome da interpretação finalística da norma constitucional, ser aplicada em ordem a arredondar para um inteiro o número de vaga destinada a deficientes.

3. A só informação da deficiência quando da inscrição no concurso é suficiente para que, aprovado o candidato, ele seja convocado para comprovar a sua deficiência e a sua aptidão para o exercício do cargo, mesmo em face da sua deficiência, observada a sua compatibilidade com a natureza das atribuições e atividades do cargo a que aspira.

4. Segurança concedida [7].

 É oportuno mencionar, ainda, outro julgado em que tal entendimento também foi aplicado:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGOS DO QUADRO DE PESSOAL DO TRF/1ª REGIÃO E SEÇÕES JUDICIÁRIAS. DEFICIENTE FÍSICO.

APROVAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO EM 21º LUGAR. INSUFICIÊNCIA DE VAGAS PARA GARANTIR A NOMEAÇÃO DE DEFICIENTES FÍSICOS. SEGURANÇA DENEGADA.

1. O item 9 do Edital de Concurso nº 13/96-TRF/1ª Região assegurou às pessoas portadoras de deficiência o direito de participar do certame, para as categorias funcionais cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, reservando aos deficientes 5% (cinco por cento) das vagas para cada categoria. Na aplicação desse percentual, utilizar-se-á arredondamento para o número inteiro imediatamente inferior, em frações menores de cinco décimos e para a imediatamente superior, em frações maiores ou iguais a cinco décimos.

2. O item 9.6 do mencionado Edital estabeleceu que os candidatos deficientes e habilitados que excederem do número de vagas a eles reservadas serão convocados, para efeito de ingresso, obedecendo-se à ordem de classificação geral.

3. Concorrendo para a Subseção Judiciária de Ilhéus, o impetrante foi aprovado e classificado em 21º lugar.

4. Naquela subseção judiciária foi oferecida apenas uma vaga, surgindo mais duas vagas posteriormente, sendo nomeados os três primeiros candidatos aprovados, obedecendo-se à ordem de classificação.

5. Tendo em conta o número de vagas surgidas até então, não se atingiu a quantidade mínima a ser reservada para os deficientes aprovados naquela localidade, razão pela qual não há qualquer abuso ou ilegalidade a serem reparados via mandado de segurança.

6. Segurança denegada[8].

 É certo que a Corte Suprema Brasileira, no Recurso Extraordinário nº 227.299, esboçou entendimento que se coaduna com a literalidade do Decreto Federal n. 3.298 de 20/12/1999, ao entender que mesmo nos casos em que haja número fracionário, qualquer que seja este dever-se-á reservar vagas a deficientes físicos. É oportuna a menção ao teor do voto do Ministro Ilmar Galvão, relator do citado Recurso Extraordinário:

A Lei federal nº 7.853/89 estabeleceu normas gerais sobre o exercício de direitos individuais e sociais por pessoas portadoras de deficiências, determinando, na alínea d do inciso III do seu artigo 2º, que ao Poder Público cabe adotar legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em benefício dos deficientes nas entidades da Administração Pública.

 No âmbito federal, a Lei nº 8.112/90, no § 2º do artigo 5º, dispõe que serão reservadas, para pessoas portadoras de deficiência, até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas em concursos públicos.

Mais recentemente, o Decreto nº 3.298, de 20/12/99, regulamentando a Lei nº 7.853/89, veio disciplinar, na Administração federal, esse direito, assegurando um mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas para portadores de deficiência e explicitando, no Art. 37, § 2º, que, no caso do percentual resultar em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.

A Administração Pública municipal de Divinópolis, por meio da Lei Complementar nº 09/92, estabeleceu uma reserva de 5% das vagas oferecidas nos concursos públicos aos portadores de deficiência, sem regular, entretanto, a situação dos resultados fracionados.

De ter-se, em face da obrigatoriedade da reserva de vagas para portadores de deficiências, que a fração, a exemplo do disposto no Decreto nº 3.298/99, seja elevada ao primeiro número inteiro subseqüente, no caso 01 (um), como medida necessária a emprestar-se eficácia ao texto constitucional, que, caso contrário, sofreria ofensa.

Registre-se, por fim, que o artigo 37, inc. VIII, da Carta Magna assegura aos portadores de deficiências percentual de cargos e empregos públicos na Administração, sendo, dessa forma, o número total de cargos e empregos o dado a ser considerado quando da abertura de concursos públicos, para a reserva de vagas a deficientes físicos.

Ante o exposto, meu voto conhece do recurso e lhe dá provimento[9].

 Tal posicionamento, entretanto, foi revisto pela Suprema Corte no Mandado de Segurança 26310/DF, merecendo menção o brilhante voto do Exmo. Ministro Marco Aurélio, in verbis:

Reconheço a existência de precedente deste Plenário agasalhando a tese sustentada pelo impetrante. No Recurso Extraordinário nº 227.229-1/MG, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, a Corte defrontou-se com situação concreta em que, oferecidas oito vagas, a percentagem de cinco por cento prevista na legislação local como própria à reserva de vagas aos portadores de deficiência desaguou em quatro décimos. Prevaleceu a óptica da necessidade de sempre conferir-se concretude ao inciso VIII do Art. 37 da Constituição Federal. Presente esteve, conforme o voto do relator que se encontra às fls. 32 e 33, o disposto no Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89. O tema, porém, merece reflexão, reexaminando-se o entendimento que acabou por prevalecer, até mesmo com meu voto.

A regra é a feitura de concurso público, concorrendo os candidatos em igualdade de situação – inciso II do Art. 37 da Carta da República. O inciso VIII do mesmo artigo preceitua que ‘a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão’. A Lei nº 7.853/89 versou a percentagem mínima de cinco por cento e a Lei nº 8.112/90 veio a estabelecer o máximo de vinte por cento de vagas reservadas aos candidatos portadores de deficiência física.

Ora, considerando o total de vagas no caso – duas -, não se tem, aplicada a percentagem mínima de cinco ou máxima de vinte por cento, como definir vaga reservada a teor do aludido inciso VIII. Entender-se que um décimo de vaga ou mesmo quatro décimos, resultantes da aplicação de cinco ou vinte por cento, respectivamente, sobre duas vagas, dão ensejo à reserva de uma delas implica verdadeira igualização, olvidando-se que a regra é a não distinção entre candidatos,sendo exceção a participação restrita, consideradas vagas reservadas. Essa conclusão levaria os candidatos em geral a concorrerem a uma das vagas e os deficientes, à outra, majorando-se os percentuais mínimo, de cinco por cento, e máximo, de vinte por cento, para cinqüenta por cento. O enfoque não é harmônico com o princípio da razoabilidade.

Há de se conferir ao texto constitucional interpretação a preservar a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário, consubstanciando exceção a separação de vagas para um certo segmento. A eficácia do que versado no Art. 37, VIII, da Constituição Federal, pressupõe campo propício a ter-se, com a incidência do percentual concernente à reserva para portadores de deficiência sobre cargos e empregos públicos previstos em lei, resultado a desaguar em certo número de vagas, e isso não ocorre quando existentes apenas duas. Daí concluir pela improcedência do inconformismo retratado na inicial, razão pela qual indefiro a ordem[10]. (grifos nossos).

 Assim ficou disposta a ementa do citado julgado:

CONCURSO PÚBLICO - CANDIDATOS - TRATAMENTO IGUALITÁRIO. A regra é a participação dos candidatos, no concurso público, em igualdade de condições. CONCURSO PÚBLICO - RESERVA DE VAGAS - PORTADOR DE DEFICIÊNCIA DISCIPLINA E VIABILIDADE. Por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade consideradas as existentes, afastada a possibilidade de, mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas.

 Poder-se-ia defender, contudo, a tese de que a Constituição, na verdade, exige que sejam reservadas aos portadores de necessidades especiais as vagas de cargos e empregos públicos, e não as vagas a serem disponibilizadas em concursos públicos. Por essa linha de entendimento, ao se realizar um determinado concurso público, a Administração Pública deveria realizar um levantamento do número de servidores portadores de deficiência física e não portadores de deficiência física que ocupam determinado cargo e, então, divulgar as vagas de modo a adequar o percentual de vagas a cada um desses grupos. Assim, caso em um órgão as 10 vagas de certo cargo estejam preenchidas por não-portadores de necessidades especiais e no concurso almeja-se disponibilizar outras 10 vagas, bem como o percentual a ser reservado é de 10%, dever-se-ia reservar 02 vagas para portadores de necessidades especiais. Isso porque esse número de vagas (duas) corresponde a vinte por cento do total de vagas do cargo em questão (vinte), e não do total de vagas daquele concurso que será realizado (dez).

 Esse, inclusive, foi o entendimento manifestado pelo Ministro Cezar Peluso, no Mandado de Segurança nº 25.074, no qual ele concluiu:

 “o que assegura a Constituição é que os portadores de deficiência têm direito de ocupar determinado número de cargos e empregos públicos, considerados em cada quadro funcional, segundo percentagem que lhes reserve a lei, o que só pode apurar-se no confronto do total de cargos e dos empregos, e não, é óbvio, perante o número aleatório de vagas que se ponham em cada concurso”[11].

Mas a adoção desse entendimento encontra obstáculos, tendo em vista que o Decreto 3.298/99, ao dispor sobre a reserva de vagas aos portadores de deficiência, prevê o mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas nos concursos públicos, ou seja, não prevê que esse percentual de 5% (cinco por cento) deve ser aplicado sobre o total de vagas de cargos e empregos públicos. Vale trazer à colação a redação dos citados dispositivos que comprovam o acima dito:

Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.

§ 1º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.

 Ora, não se pode extrair uma porcentagem de cargos de forma arbitrária, considerando que o citado decreto dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos.

 Aliás, é oportuno mencionar que o Estado de Minas Gerais, atento a tal questão, cuidou de regrar, de forma acertada, através da edição da Lei Estadual n. 11.867 de 28 de fevereiro de 1995, os casos em que o percentual de reserva, ao ser aplicado sobre o número de vagas, resulta em número fracionário, e ao fazê-lo acabou por coroar o entendimento aqui defendido, senão vejamos:

"Art. 1º - Fica a Administração Pública direta e indireta do Estado obrigada a reservar 10% (dez por cento) dos cargos ou empregos públicos, em todos os níveis, aos portadores de deficiência.

§ 1º - Sempre que a aplicação do percentual de que trata este artigo resultar em número fracionário, arredondar-se-á a fração igual ou superior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro subseqüente e a fração inferior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro anterior."

A legislação mineira acima colacionada mostra-se mais consentânea com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, e, por tal razão, deveria ser tida como referência à União. Destarte, o Decreto n. 3.298/99 merece modificação, com vistas a por fim ao debate que ora é travado e que, inclusive, motivou o presente trabalho.

 O Ilmo. Desembargador Wander Marotta, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, vem fazer coro ao entendimento aqui defendido, sendo oportuna a menção de seu voto proferido na Apelação Cível nº 1.0024.08.093524-0/002:

Neste caso, nós temos quatro candidatos e essa análise, em tese, dos dispositivos legais, é feita de forma aparentemente simples, como se expôs . A questão complica-se na aplicação concreta, específica, para um determinado concursos dessas regras e desses percentuais.

Na espécie, nós temos quatro vagas e, assim, se deferimos uma delas para deficiente, nós estaremos reservando a eles 25% das vagas, acima, portanto, da norma geral, que foi editada pela União, na Lei 8112, de 20% .

Mais do que isso, se nós reduzirmos e passarmos, como se estivéssemos analisando um concurso com apenas duas vagas, nós teríamos 0,20%, ao invés de 0,4% teríamos o percentual de 0,2%, e, portanto, o mesmo raciocínio que se aplica a 0,4%, aplicar-se-ia a 0,2% e, num concurso com duas vagas, nós teríamos reservas de 50% das vagas para o deficiente.

E, num concurso em que há uma só vaga, o que é muito comum, basta dizer que as prefeituras fazem, a toda hora, este tipo de concurso com apenas uma vaga para admitir, por exemplo, um médico, um psicólogo, uma assistente social, qual seria o percentual das vagas? Essa vaga teria sempre que ser do deficiente?

O mesmo acontece nos cartórios estaduais, abre-se para eles concurso com apenas uma única vaga, então, nós teríamos 0,10% e, aplicando o mesmo raciocínio, chegaríamos ao resultado de que, no caso de uma vaga, ela deve ser do deficiente. Então, faríamos um concurso apenas para os deficientes? Não aceitaríamos os candidatos não deficientes? Como se vê, este raciocínio da reserva absoluta de vagas pode levar, em casos concretos, ao absurdo e nos sabemos que a interpretação não deve ser feita para levar ao absurdo. Certamente, foi por isso, que o Supremo Tribunal Federal, ultrapassando uma jurisprudência anterior daquela Corte, explicitada num acórdão relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, no RE 227229, por coincidência, de Minas Gerais, ultrapassando, repito, este precedente, acabou por decidir, mais recentemente, num acórdão do Mandado de Segurança 263105, do Distrito Federal, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido restritivo de que " por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade, consideradas as existentes, afastada a possibilidade de mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas, ou seja, a Suprema Corte abriu a possibilidade de aplicação dos percentuais que a lei admite. No caso, temos a lei de Minas Gerais admitindo um percentual de 10%, é possível aplicação do percentual de 10% desde que não haja ultrapassagem do limite mínimo ou do limite máximo do concurso.

Por estas razões é que, embora compreendendo os fundamentos daqueles que tem entendimento em contrário, no sentido de que deve prevalecer a ação afirmativa posta na intenção da Constituição Federal, é que peço vênia ao eminente Des. Relator para divergir da conclusão alcançada por S. Exa., tendo em vista que, no caso concreto, a adoção deste entendimento implicaria em reserva de vagas de 25%, ultrapassando em muito e colocando em condição de desigualdade, que a Lei e a Constituição não querem, deficientes e não deficientes.

Peço vênia, portanto, para dar provimento ao recurso de apelação, a fim de declarar a inexistência da reserva de vagas para deficientes, neste específico concurso, embora haja a previsão editalícia, e determinar a nomeação da Apelante[12].

 Vale lembrar que tal entendimento foi acompanhado pelo Ilmo. Desembargador André Leite Praça, valendo trazer à baila um trecho de seu voto:

Ademais, a aplicação do Decreto Federal que determina o arredondamento para o número inteiro subseqüente, poderia gerar a preterição do candidato não portador de deficiência, melhor colocado em relação ao candidato deficiente, quando o concurso oferecer apenas uma vaga, o que não se pode admitir.


5  OS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE, PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE NA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA

 Os Tribunais Pátrios vêm invocando os citados princípios de forma recorrente diante das diferentes questões que lhes são postas; os dois últimos (proporcionalidade e razoabilidade) ainda de maneira pouco mais tímida, se comparados ao primeiro. Interessante o julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal – 1ª Região, em que se considerou desarrazoada ou desproporcional a eliminação de candidata em concurso público porque o atestado médico por ela apresentado não estava condizente com a regra do edital. A ementa assim ficou disposta:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO REALIZADO PELA ECT. CARTEIRO. ATESTADO MÉDICO QUE DECLARA APTIDÃO DA CANDIDATA PARA ATIVIDADES FÍSICAS. 1. É desprovida de razoabilidade a eliminação de candidata de concurso público (carteiro I), cujo edital exigia a apresentação de atestado médico que constasse a aptidão para a realização do teste de "robustez física e aptidão física", uma vez que o atestado que ela apresentou declarava a ausência de patologias que a impediam de "executar atividades físicas habituais".

2. Pelo visto, o aludido atestado declarou a aptidão da candidata para atividades físicas, como é o caso de teste físico em concurso público.

3. Ademais, é sabido que, na maior parte das vezes, os atestados médicos nem sempre são redigidos nos exatos termos do edital, e nem por isso deixam de atender ao fim a que se destinam. Os profissionais da área médica redigem seus laudos com termos próprios, segundo critérios pessoais, sem atentar para o que exige o regulamento do certame, acreditando ser suficientes para atender ao pleito do paciente.

4. Dessarte, afasta-se dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade a eliminação da candidata, ao fundamento de que o seu atestado não estava condizente com a regra do certame.

5. A eliminação da candidata representa excesso de formalismo, o que não se harmoniza com o objetivo do concurso, que é selecionar o candidato que obtenha o melhor desempenho.

6. Acresce anotar, de outro lado, que o candidato deveria, à época, ter sido orientado, de forma adequada e correta, para apresentar outro atestado médico, medida que poderia ter evitado o ingresso desta ação.

7. Apelação da impetrante provida, para garantir-lhe o prosseguimento no certame, com vistas à realização dos testes de robustez e aptidão física, mediante a apresentação de novo atestado, nos termos exigidos pelo edital, contemporâneo à data do teste a ser realizado[13].

 Em outro julgado, também proferido pelo Tribunal Regional Federal – 1º Região, considerou-se atentatória ao princípio da razoabilidade o ato administrativo que eliminou candidata de concurso público ao argumento de que a mesma não compareceu a reunião de informação de cronograma de exames médicos. Veja-se a ementa do citado julgado:

CONCURSO PÚBLICO. OFICIAL DE CHANCELARIA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.

1. Viola o princípio constitucional da razoabilidade, e não tem amparo na lei e nem no edital, o ato administrativo que eliminou a candidata do concurso, em razão de não ter ela comparecido à reunião de informação do cronograma dos exames médicos, sendo certo que os realizou todos, dentro do prazo do edital, e pelos médicos indicados pela Administração.

2. Tendo o início do exercício do cargo sido obstado por ato ilegal da autoridade impetrada, é devida a remuneração respectiva, a título de indenização, com desconto apenas de vencimentos que ele eventualmente tenha recebido no período pelo exercício de algum outro cargo público inacumulável[14].

É oportuno fazer referência a outro julgado, desta feita do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em que foram invocados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade para majorar o valor fixado pelo juízo a quo a título de dano moral.

“CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DE INSTITUIÇÃO FINACEIRA. APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DEFEITUOSA. INCLUSÃO INDEVIDA DE NOME DE CLIENTE EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO DO DANO MORAL. FIXAÇÃO DE VALORES ATRELADOS AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. 1. Tendo havido quitação de contrato de financimento (CREDUC), injustificável a inclusão do nome da autora em cadastro de inadimplentes (SISCOMEX), sendo devida a reparação pelo dano moral experimentado. 2. 1. Indenização modicamente fixada pela r. sentença, sendo majorada, a fim de representar valor consentâneo aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Fixação em observância a precedentes fixados”.

(AC - APELAÇÃO CIVEL Nº 331008, Processo 1999.51.01.022000-2/RJ, QUARTA TURMA. Data Decisão: 28/04/2004 Documento: TRF-200121676, DJU - Data::27/05/2004 - Página::129, Desembargador Federal ROGERIO CARVALHO).

 Ao se analisar os julgados em que são utilizados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, questão que inevitavelmente se levanta é a seguinte: se ao Judiciário é permitido decidir as diversas situações com base no que se diz “razoável” ou “proporcional”, qual é a medida para se evitar a arbitrariedade? A resposta a essa questão passa pelos limites à subjetividade do julgador.

 Em um primeiro momento, é de se salientar que os princípios em apreço mostram-se como importantes ferramentas que se prestam à solução justa das lides, elidindo atos emanados da Administração que se afigurem desproporcionais e irrazoáveis. A segurança jurídica é muito mais protegida quando se abre a possibilidade de o Judiciário revisar atos injustos, desproporcionais ou irrazoáveis, do que o obrigando a seguir estritamente as leis. Por outro lado, quando no ordenamento é conferida grande elasticidade de aplicação dos citados princípios, mais liberdade terá o julgador, o que acarreta maior risco de ocorrerem arbítrios.

 Os princípios referidos, portanto, devem ser adotados cum grano salis, não podendo se prestar ao mero voluntarismo judicial. Entretanto, não se pode cogitar da hipótese de total ausência de uma margem de um juízo subjetivo ou discricionário do julgador, isso porque no Direito sempre haverá lacunas (mesmo porque o legislador não consegue cercar todas as situações que surgem e a lei deve se revestir de generalidade, buscando regrar as situações mais rotineiras).

 Tal campo de subjetividade, entretanto, se é permitido pelo ordenamento jurídico, também é por ele delimitado, valendo trazer a lume os esclarecimentos de Ana Paula de Barcellos[15] a respeito do tema:

“os princípios, para além de seu núcleo, estabelecem as fronteiras de um largo campo de atuação possível, dentro de cujos limites as opções políticas podem ser consideradas legítimas”.

 Nessa tarefa de aplicar os princípios para decidir determinada questão, o magistrado deverá analisar a situação nos âmbitos abstrato (das normas vigentes no sistema) e concreto (considerando as particularidades da situação), valendo-se dos princípios referidos, que conferem plasticidade ao ordenamento jurídico.

 Nesse contexto, é oportuna a menção ao julgamento da ADI 2.010, em que o Supremo Tribunal Federal foi instado a analisar se era confiscatória a criação de alíquota progressiva de contribuição previdenciária para servidores públicos federais ativos. As alíquotas aumentavam conforme o rendimento do servidor e, para rendimentos considerados mais elevados (superiores a R$ 2.500,00), chegavam ao patamar de 25% (vinte e cinco por cento). Esse patamar, para alguns, já seria confiscatório por si só, mas, para outros, poderia ser considerado dentro dos limites de razoabilidade. Acerca desse caráter confiscatório, o Colendo Tribunal assim se manifestou na ADC 8-MC:

A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (as União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou rendimentos do contribuinte (STF, Tribunal Pleno, ADC-MC 8/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13.10.1999, DJ 04.04.2003, p. 38).

 Observa-se, pois, que o princípio da vedação ao efeito de confisco, tão ensinado no campo do Direito Tributário, é expresso em cláusula aberta ou conceito jurídico indeterminado, cabendo ao prudente arbítrio do juiz, em cada caso que lhe for submetido, avaliar a existência ou não de confisco, valendo-se da razoabilidade, o que reforça a importância de tal princípio em nosso ordenamento jurídico.

 Assim, o princípio da razoabilidade não merece a atenção somente do Direito Administrativo – foco do presente artigo – mas se estende a outros campos do Direito, dado que confere plasticidade à ordem jurídica, afastando a aplicação dura e meramente gramatical do texto da lei, situação esta que se mostraria insustentável em qualquer sistema.

 Em outras palavras, o magistrado não pode ficar encarcerado entre os limites do texto legal, tendo em vista que “não é plausível aceitar a ideia de que a aplicação do Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do processo de aplicação”[16].

 Ao interpretar as leis, o julgador constrói um significado, e nessa tarefa deverá ele considerar que aquele dispositivo legal está inserido em um sistema de princípios e enunciados superiores, aos quais não se pode negar vigência. Nesse contexto, é oportuno mencionar um trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, proferido no Recurso Extraordinário n. 140265/SP, que com maestria assim dispôs:

“ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrando o indispensável apoio, formalizá-la”.

 É inegável, pois, que o magistrado, ao julgar determinada situação, o faz com determinada carga de subjetividade, dando a solução que lhe pareça mais justa, dentro dos princípios presentes no ordenamento jurídico.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A celeuma produzida pelo dispositivo constitucional que prevê percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência ainda se faz presente em nosso ordenamento jurídico. A determinação contida no Art. 37, § 2º, do Decreto n. 3298/99, conforme exposto ao longo deste artigo, mostra-se em desacordo com os princípios constitucionais da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, justamente por gerar situações em que o percentual máximo de reserva de vagas, estabelecido pela Lei n. 8.112/90, é extrapolado, vindo a desvirtuar a previsão constitucional inserta para atender uma parcela da população que encontra maiores dificuldades no mercado de trabalho.

 Por essas razões, a jurisprudência pátria deve se alinhar no sentido de tomar as normas do Decreto n. 3.298/99 com reservas, de modo a permitir a reserva de vagas a deficientes físicos quando, aplicado o percentual sobre o número de vagas, tal número resultar em no mínimo 0,5 (zero vírgula cinco). Do contrário, não pode haver reserva de vagas.

 A melhor solução à questão, todavia, seria a alteração do citado dispositivo infraconstitucional (Decreto n. 3.298/99), contemplando o entendimento defendido no presente trabalho, tal qual o fez a legislação mineira a respeito do tema, à qual também se fez referência.

 Como foi mencionado no presente artigo, ao legislador, com frequência, falta técnica legislativa mais apurada, gerando conflitos nas situações concretas – e esse é o caso do Decreto n. 3.298/99 –, chegando-se até mesmo à situação de se reservar a única vaga de um determinado cargo para portadores de necessidades especiais, em total prejuízo dos candidatos que concorrem às vagas sem qualquer benefício.

 Não se defendeu aqui, contudo, que as ações afirmativas devem ser atenuadas ou mitigadas. Pelo contrário, elas representam verdadeiro avanço da sociedade, na medida em que promovem a inclusão de grupos antes relegados ao esquecimento – seja por razões culturais ou sócio-econômicas. Não obstante tal fato, essa inclusão deve ser feita de forma equilibrada, dentro dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.

 E o entendimento que se mostra mais consentâneo com tais parâmetros é aquele que prevê a reserva de vagas quando, após a aplicação do percentual de reserva de vagas, chega-se a um número igual ou superior a 0,5.

 Espera-se que o presente artigo tenha contribuído para o robustecimento da corrente jurisprudencial que caminha no sentido desse entendimento, a fim de que sejam evitadas situações injustas com pessoas que muitas vezes realizam grande dispêndio de recursos objetivando a aprovação em um concurso público.


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_______. Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.

_______. Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

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Notas

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 21, e desenvolvimento, p. 23-43.

[2] Curso de Direito Constitucional, 6. Ed., 2002, p. 93.

[3] MELO, Mônica. O Princípio da Igualdade à luz das Ações Afirmativas: o Enfoque da Discriminação Positiva. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 6, nº 25, out./dez., 1998.

[4] ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 16.ed. Método, p. 275.

[5] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 18669/RJ, número de registro 2004/0104990-3, julgado em 07/10/2004, Relator: Ministro Gilson Dipp.

[6]Apelação em Mandado de Segurança 2003.34.00.006102-3/DF. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Acórdão publicado em 27/07/2007, DJ, p. 69.(Grifos nossos).

[7] Mandado de Segurança nº 2002.01.00.023464-4/DF. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FERNANDO MATHIAS. Acórdão publicado em 16/09/2003, DJ p.26. Grifos nossos.

[8] Mandado de Segurança nº 1998.01.00.082294-4/DF, Rel. Juiz Jirair Aram Meguerian, Acórdão publicado em 24/02/2000, DJ p.04. Grifos nossos.

[9] Recurso Extraordinário nº 227.299-1 MG, Rel. Ministro. Ilmar Galvão, DJ de 06.10.2000

[10] STF, Mandado de Segurança 26310/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO; Julgamento: 20/09/2007; Órgão Julgador: Tribunal Pleno, extraído do site www.stf.jus.br

[11] Mandado de Segurança nº 25.074 MC, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 22.10.2004

[12] Apelação Cível n° 1.0024.08.093524-0/002, Comarca de Belo Horizonte. Relator: Exmo. Sr. Des. Edivaldo George dos Santos - Relator para o Acórdão: Exmo Sr. Des. Wander Marotta, extraída do site www.tjmg.jus.br.

[13] Apelação em Mandado de Segurança 2006.38.00.029001-1/MG, Relator: Desembargador Federal Fagundes de Deus, Quinta Turma, Data da Decisão 18/05/2011, publicada no e-DJF1 p.67 de 30/05/2011.

[14] Apelação em Mandado de Segurança nº 1999.01.00.102881-0/df, Relatora Desembargadora Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues, Sexta Turma, Data da Decisão 05/08/2002, publicada no DJ p.606 de 23/08/2002

[15] BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. 1. Ed. Rio de Janeiro. Renovar, 2005.

[16] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 24.


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ZICA, Bruno Junio Bicalho. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3501, 31 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23592. Acesso em: 19 abr. 2024.