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Inserção dos direitos fundamentais na história: da arbitrariedade à proteção internacional

Inserção dos direitos fundamentais na história: da arbitrariedade à proteção internacional

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A existência e a amplitude dos direitos fundamentais decorrem diretamente da aplicação do sistema de aquisição, exercício e organização do uso do poder político, pois estes aspectos nada mais são, em última análise, as suas limitações (constitucionais).

O reconhecimento dos direitos fundamentais se deu ao longo de um processo histórico, em razão de que se faz necessário o estudo dessa evolução para que se determinem alguns elementos de sua concepção atual.

Podem ser identificadas, neste ofício, algumas distinções de extrema importância, que se sucederam na história: liberdade dos antigos e liberdade dos modernos; “direitos” estamentais e direitos universais; direitos, liberdades e garantias e direitos sociais; proteção interna e proteção internacional dos direitos do homem.


1. Evolução até o Estado moderno.

A distinção entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos foi apontada por Constant em livro publicado no início do século XIX. A primeira consideraria a liberdade em determinado indivíduo na medida em que este influenciasse nas tomadas de decisões políticas; concebe a liberdade, pois, como aquela participativa dos negócios públicos. Já a liberdade dos modernos seria aquela concebida como uma esfera individual na qual o poder público não poderia intervir. Esta distinção se operou através da idéia cristã de que a liberdade é aquela liberdade interior, um poder de autodeterminação do indivíduo frente a determinados assuntos.

Esta distinção, desenvolvida neste período que se estende até a formação do Estado moderno, é de extrema importância para a concepção atual de direitos fundamentais.

Está presente na noção de liberdade dos antigos a prevalência do fator pessoal sobre o territorial, tendo surgido alguns questionamentos filosóficos, sobretudo no pensamento grego, acerca da superioridade de determinadas normas religiosas quando em conflito com normas estabelecidas por seres humanos, além da aplicação da justiça, através da prudência romana.

Com o advento da noção de dignidade da pessoa humana, surgida com o Cristianismo, trabalha-se, através da doutrina da lei injusta, o direito de resistência – o que o sistema, em momento posterior, absorve como o poder de revisão do pacto constitucional. Integram este período as concessões aos ingleses condensadas na Magna Carta de 1215[1], o que concretiza uma nítida separação entre o indivíduo e o poder público, acarretando a necessidade de se conter este poder a fim de se resguardar uma esfera individual de suas arbitrariedades.


2. Da centralização do poder ao constitucionalismo.

O Estado estamental, marcado por privilégios, vai sendo aos poucos substituído por um Estado constitucional, marcado por direitos, concedidos a todos por serem iguais. Os estamentos caracterizaram-se por se submeterem a ordenamentos jurídicos distintos, dirigidos cada um deles a semelhantes entre si, não se permitindo a mudança de um estamento para outro.

O Estado constitucional, ou o Estado de Direito, é constituído sob três pilares: (1) o princípio da igualdade, (2) o princípio da legalidade e (3) o princípio da justicialidade[2]. Repousa este sobre o primado da lei, expressão da vontade geral, consubstanciada em um modelo de democracia representativa, fusão das idéias de Montesquieu e Rousseau, e se pretende agora legitimado na soberania popular, ou nacional, fruto da doutrina do poder constituinte.

A lei deve apresentar dois caracteres essenciais: (1) generalidade e (2) abstração. A generalidade diz respeito ao aspecto subjetivo da lei: a lei deve ser dirigida a todos os indivíduos sem distinção nenhuma, garantindo, assim, um princípio de grande importância, qual seja, a igualdade. A abstração diz respeito ao aspecto objetivo da lei: a lei deve ter por conteúdo hipóteses de fato, não fatos determinados, sendo aplicada toda vez em que fatos concretos se submeterem ao conteúdo da lei, garantindo, assim, a segurança jurídico-social.

Os direitos agora consagrados pelas leis, frutos da vontade geral, não são mais simples proclamações de direitos subjetivos anteriores e superiores ao poder público, mas sim princípios objetivos e institucionais, formadores de uma nova concepção: o Estado de Direito Constitucional ou o Estado de Direito. Basta lembra o artigo 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão: “Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição”. Este é o conceito liberal de Constituição.

Passa-se, pois, paulatinamente, para o âmbito dos direitos universais, abrangendo-se as liberdades e garantias.


3. Do Estado liberal burguês à situação atual.

Ainda que se instituído o modelo democrático-representativo, havia limitações para que o indivíduo pudesse participar do processo democrático. Foi com a elaboração da idéia de nação, distinta de povo, possibilitou-se a estipulação de limitações à participação democrática.

O titular da soberania seria a nação, que representaria o povo em sua continuidade, podendo ela estipular condições para que este exercesse os direitos políticos. O principal deles era o econômico: só teria direito político possível de ser exercido aquele que possuísse determinado em propriedades. Na prática, o que se entendia era que somente se interessava por uma boa política pública aquele que “tivesse o que perder”. Tal se dava em meio à concepção individualista da época, fundada, sobretudo, na Liberdade.

Foi ao longo do século XIX, em resposta à situação da época, profundamente alterada em virtude da Revolução Industrial, que se desenvolveu o que se denomina Questão Social. Trata-se da luta pela efetivação da Igualdade, como forma de concretização dos direitos universais já previstos nas leis, mas restritos a uma parcela da sociedade munida financeiramente.

A opção pela democracia representativa tornou necessária, ainda no sentido de efetivação dos direitos fundamentais, a luta pelo sufrágio universal, fragilizando o argumento censitário frente ao princípio da igualdade. Pretendia-se garantir a representação nos órgãos de poder normativo para a implementação dos direitos sociais.

Alguns movimentos marcam reações relativas à Questão Social: o Catecismo Positivista de Comte, em 1850; a Doutrina Social da Igreja, através da Encíclica papal Rerum Novarum do Papa Leão XIII, em 1891; o Trabalhismo inglês, também do final do séc.XIX, que se propunha um canal direto dos trabalhadores nos órgãos representativos, através de seu Partido Trabalhista.

Foram, pois, as manifestações sociais determinantes para a emergência do que se denomina “momentos de conscientização” dos direitos fundamentais. Pode-se perceber que são eles fruto de um processo histórico que se desenvolve até os dias atuais. Sobre os direitos sociais, afirma Sérgio Resende de Barros, que estes, “por serem categoriais, não são menos humanos que os outros direitos humanos, pois todos os homens os possuem – tanto quanto os direitos individuais – dentro de uma universalidade relativa – proporcional aos meios individuais e sociais disponíveis – que o Estado a todos garante, sem discriminação por privilégio arbitrário. Por isso, pelo mesmo motivo (a relatividade da universalidade), é desacerto excluir dos direitos humanos os direitos sociais por não ser ‘genuinamente’ universal. Vale dizer: por ter sua universalidade relativa a uma condição, como ser empregado, consumidor, idoso, mulher, menor, deficiente físico, etc.”[3].

Analisando-se os direitos fundamentais na atualidade, pode-se determinar algumas tendências no seu processo de formação: (1) diversificação do rol dos direitos; (2) acentuação da sua dimensão objetiva, em conexão com garantias institucionais; (3) reconhecimento de um conteúdo positivo, inclusive nos direitos de liberdade, acarretando também a atuação da Administração na concretização e efetivação dos direitos; (4) produção de efeitos também entre os particulares.

Alcançam, pois, os direitos fundamentais, nesta fase, o seu sentido mais amplo, incluindo as liberdades e garantias e os direitos sociais.


4. Direitos fundamentais e regimes políticos no século XX.

O desenvolvimento dos direitos fundamentais se deu, até o momento, “no interior das instituições representativas e procurando, de maneira bastante variada, a harmonização entre direitos de liberdade e direitos econômicos, sociais e culturais”[4].

É o que se pode notar até o momento, através de uma maior participação dos cidadãos tanto no processo de formação das normas instituidoras e limitadores de direitos, pelo que se convencionou denominar democracia representativa, até o controle da produção dessas leis, através de parâmetros dados pela Constituição, através do controle de constitucionalidade, principalmente o difuso.

No entanto, a opção por determinado regime político (liberal, autoritário ou totalitário) acarreta tratamento distinto dos direitos fundamentais, se é que não os suprime. Essa é a razão pela qual atualmente acentua-se a dimensão objetiva desses direitos, conectando-os com as suas garantias institucionais.

Caberia uma breve distinção entre totalitarismo e autoritarismo, uma vez que esta não se reduz ao grau de liberdade atribuída aos indivíduos.

“A criação do conceito de totalitarismo nasceu da necessidade de identificar a nova forma de regime que surgiu no século XX, não-enquadrável nas antigas designações de ‘despotismo’ ou de ‘tirania’, de tal modo que a palavra nasceu da coisa. A coisa corresponde à instituição de regimes que visam a sujeitar a sociedade nos moldes de um Partido-Estado, cujo chefe é fundamental, seja no sentido da referida constituição do Partido-Estado, seja no estabelecimento de laços emotivos com as massas, a partir de uma figura carismática. Daí a afirmação de que os regimes totalitários têm características revolucionárias, ao contrário do tradicionalismo, ou das várias formas despóticas.

“Por sua vez, o regime autoritário – produto também das condições políticas vigentes no século XX – caracteriza-se, negativamente, por menor investimento em todas as esferas da vida social; pela inexistência de uma simbiose entre Partido e Estado, sendo o primeiro, quando existente, dependente do último; pelas restrições à mobilização das massas. Um dos traços básicos do autoritarismo consiste na relativa independência que preserva a sociedade em relação ao Estado: a autonomia de algumas instituições, em especial as religiosas, e de uma esfera privada de pensamento e de crença, embora apenas tolerada. O autoritarismo tende a ser mais conservador, ligado às tradições do passado, enquanto os regimes totalitários buscaram, nesse mesmo passado, seus elementos míticos e heróicos, como é o caso das lendas germânicas sobre os heróis guerreiros, ou dos tempos gloriosos do Império e da pax romana”[5].

A existência e a amplitude dos direitos fundamentais decorrem diretamente da aplicação do sistema de aquisição, exercício e organização do uso do poder político, pois estes aspectos nada mais são, em última análise, as suas limitações (constitucionais).


5. Universalização e internacionalização dos direitos fundamentais.

Ao mesmo tempo em que se encaminha para uma concepção universal dos direitos fundamentais, em razão do interesse de todas as correntes – e não somente a liberal – nesses direitos, ela é limitada pela irredutibilidade de sensibilidade e valorações, com base religiosa ou não, provocadora de uma multiplicidade de entendimentos conceituais.

A noção de uma concepção universal dos direitos fundamentais – communis opinio – é apresentada na atualidade como uma possível fundamentação desses direitos humanos fundamentais, em substituição à fundamentação desses direitos unicamente na natureza humana – os direitos naturais[6].

O fundamento da communis opinio, no entanto, encontra limites que se apresentam claramente na realidade dos fatos. Sobre esse fundamento para os direitos fundamentais, manifesta-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “bom seria se realmente houvesse essa communis opinio. Mas ela não existe quanto a tais direitos, exceto no chamado “Ocidente” ou entre os “ocidentalizados”. Numerosas culturas como a hindu, a chinesa e também a islâmica – observa Jorge Miranda –, não aceitam direitos do Homem; alguns apenas deveres. Assim a maioria dos povos contemporâneos não cultiva a concepção de que os seres humanos são dotados de direitos inerentes à sua qualidade de seres humanos, mas outras, de modo que inexiste o acordo básico, a communis opinio invocada”[7].

Assim, quando o sistema interno de proteção dos direitos fundamentais é ineficiente (Estados autoritários ou totalitários), para Jorge Miranda, “torna-se possível reforçar e, se necessário, substituir, em parte, o sistema de proteção interna por vários sistemas de proteção internacional de direitos do homem”[8].

Alcança-se, dessa forma, a proteção internacional aos direitos fundamentais, somada à interna, ou em sua substituição.


Bibliografia consultada.

Barros, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte, Del Rey, 2003.

Fausto, Boris. O pensamento nacionalista autoritário. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Aspectos de direito constitucional contemporâneo. São Paulo, Saraiva, 2003.

____________________. Curso de direito constitucional. 26ªed., São Paulo, Saraiva, 1999.

____________________. Direitos humanos fundamentais. 4ªed., São Paulo, Saraiva, 2000.

Israel, Jean-Jacques. Direito das liberdades fundamentais. Barueri, Manole, 2005.

Lopes, José Reinaldo; Queiroz, Rafael Mafei Rabelo; Acca, Thiago dos Santos. Curso de história do direito. São Paulo, Método, 2006.

Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004.

Mendes, Gilmar Ferreira; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012.

Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 9ªed., São Paulo, Atlas, 2001.

Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20ªed., São Paulo, Malheiros, 2002.


NOTAS

[1] Sobre o documento, afirma Sérgio Resende de Barros que “embora fosse já uma carta irradiante de liberdades, a Magna Carta não era ainda uma pura declaração de direitos, unilateralmente proclamada. Era o pacto, bilateralmente aceito, em que principiou a composição final dos deveres com direitos das forças políticas mais antigas – rei, clero, nobreza, burguesia – que governavam o Reino Unido da Grã-Bretanha e ainda hoje o governam, embora noutras proporções de participação, agora compostas com as novas forças sociais surgidas da Revolução Industrial e evolução agrária (....) A Magna Carta é um verdadeiro código medieval”, Direitos humanos, p.343.

[2] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos humanos fundamentais, p.104.

[3] Cf. Direitos humanos..., p.438.

[4] Jorge Miranda, p.25.

[5] Cf. Boris Fausto, O pensamento…, pp.7 e s..

[6] Sobre o fundamento para os direitos humanos fundamentais, afirma Manoel Gonçalves que “desde logo, entretanto, salta aos olhos que esse fundamento não parece ser o que presume a Constituição. Com efeito, o texto em exame parece indicar – na referência a direitos advenientes de tratados – que um direito pode surgir como fundamental por força da vontade dos signatários de um acordo internacional... Nada habilitaria o intérprete a discutir se tal direito adveniente de tratado é ou não é fundamental em função de sê-lo ou não sê-lo em sua natureza”, Aspectos do direito..., p.282.

[7] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do direito..., pp.282 e s..

[8] Jorge Miranda, p.30.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUENO, Octávio Ginez de Almeida. Inserção dos direitos fundamentais na história: da arbitrariedade à proteção internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3697, 15 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24124. Acesso em: 23 abr. 2024.