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A função do ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

A função do ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

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O ativismo judicial tem despontado nos últimos anos como solução para vários conflitos de enorme repercussão para a sociedade brasileira. Para grande parcela dessa sociedade, que não goza(va) de representatividade política, o cumprimento dos deveres constitucionais e institucionais de Juízes e Tribunais tem se afigurado como verdadeiro ato heróico.

ResumoO ativismo judicial tem despontado na atualidade como tema recorrente, especialmente pela grande relevância como tem-se apresentado no meio jurídico e político-social, em todo o mundo. A elevação do Poder Judiciário ao status de Poder de Estado, aliado ao fortalecimento do constitucionalismo no pós-guerra, revelou uma nova face de organização dos contemporâneos Estados de Direito, tornando ainda mais rigorosos os limites à atuação de suas instituições, com imposição da estrita legalidade de seus atos, ao tempo em que ampliou a interferência dos poderes entre si, de forma participativa, fiscalizadora e corretiva, com vistas a garantir a citada legalidade exigida, mas também eficiência e efetividade na prestação das obrigações estatais. Sem a pretensão de esgotar tão vasto assunto, o presente trabalho busca, portanto, abordar os principais aspectos de evolução e discussões político-sociais originadas de suas conseqüências, apontando a relevância do ativismo judicial como instrumento transformador do novo Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Judicialização da Política. Separação dos Poderes. Constituição. Poder Judiciário. Poderes Políticos. Políticas Públicas. Estado Democrático de Direito.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO 2 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ATIVISMO JUDICIAL 2.1 CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL E SUA DIFERENÇA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA 2.2 A SEPARAÇÃO DOS PODERES E O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS 2.2.1 Da Separação dos Poderes 2.2.2 Do Sistema de Freios e Contrapesos 2.3 EXPANSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO MUNDO 2.4 EVOLUÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL 3 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E O PODER CRIATIVO DAS DECISÕES JUDICIAIS  3.1 A SOBERANIA DA CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DO INTÉRPRETE NA ESCOLHA ENTRE O PREVISTO E O POSSÍVEL 3.2 HÁ NECESSIDADE DE SE IMPOR LIMITES À INTERPRETAÇÃO? 4 O PERFIL DOS PODERES POLÍTICOS NA CONTEMPORÂNEIDADE E A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CENÁRIO POLÍTICO NACIONAL 4.1 CRÍTICAS AO ATIVISMO JUDICIAL 4.2 A (IN)EFICIÊNCIA DOS PODERES POLÍTICOS JUSTIFICANDO A ASCENSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

O tema abordado no presente trabalho encontra-se no auge das discussões atuais, mostrando-se como assunto de relevante importância, sobretudo por ser essencial à compreensão do regime político adotado no País – a democracia – e a possível incompatibilidade desta com a suposta invasão da competência dos poderes Executivo e Legislativo promovido pela atividade pró-ativa do Poder Judiciário, denominada ativismo judicial.

A sociedade brasileira tem se deparado nos últimos anos, com o surgimento de uma sucessão de novos, relevantes e polêmicos direitos, advindos das liberdades previstas na Constituição Federal de 1988, mas que, tratados abstratamente na Carta Maior, são carecedores de regulamentos específicos e políticas públicas capazes de efetivar a sua realização.

O mundo tem experimentado uma veloz evolução que impõe rapidez e intensidade nas respostas às mudanças advindas desse fenômeno. Neste cenário, evidencia-se a lentidão, inércia e omissão administrativa dos poderes Legislativo e Executivo no Brasil, quanto à realização de políticas públicas que visem à garantia de direitos fundamentais e proteção da dignidade da pessoa humana de forma eficaz, tornando-se assim, inconcebível admitir o progresso do Estado Democrático de Direito idealizado na nova Constituição Federal, sem que anseios sociais decorrentes dessa evolução usufrua, com a mesma rapidez e intensidade do surgimento das questões, das necessárias respostas à solução dos conflitos originados desse dinamismo, o que torna o ativismo judicial um instrumento legítimo e hábil na persecução da eficácia da prestação estatal.

Assim sendo, faz-se necessário a análise do ativismo judicial, como instrumento próprio para se atingir a eficácia da prestação estatal de maneira harmônica e equilibrada, respeitando-se os limites constitucionais da separação dos poderes, apontando, consequentemente, os reflexos práticos que essa judicialização política tem proporcionado para a construção do novo Estado Democrático de Direito.

Logo, o presente trabalho está assim estruturado: no capítulo 2, pretende-se analisar o ativismo judicial, conceituando e apontando as diferenças básicas entre este instituto e a judicialização da política, bem como abordar os principais fatos históricos e instrumentos caracterizadores de sua origem e evolução, no mundo e no Brasil; no Capítulo 3, busca-se destacar a soberania das constituições e ascensão do Poder Judiciário como fenômenos fortalecedores da democracia, assim como, a hermenêutica constitucional e o papel do Juiz como intérprete, auxiliando no processo evolutivo e criativo do Direito, ora adequando a norma ao caso concreto, ora criando novos direitos a partir de lacunas da Lei, analisando ainda, a necessidade e conseqüências de se impor limites à hermenêutica constitucional; no Capítulo 4, serão apontadas as principais críticas dirigidas ao ativismo judicial, os possíveis motivos dessas críticas, como também o que tem contribuído para o crescimento do ativismo judicial no Brasil; por fim, no capítulo 5, será apresentada uma síntese dos assuntos abordados, onde espera-se atingir o objetivo inicial do trabalho, que é identificar a possibilidade do ativismo judicial contribuir como instrumento transformador do novo Estado Democrático de Direito.


2 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ATIVISMO JUDICIAL

2.1 CONCEITO DE ATIVISMO JUDICIAL E SUA DIFERENÇA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Por ativismo judicial entende-se uma escolha ou uma postura de um magistrado mais participativo na busca por uma hermenêutica jurídica expansiva, cuja finalidade é a de concretizar o verdadeiro valor normativo constitucional, garantindo o direito das partes de forma rápida, e atendendo às soluções dos litígios e às necessidades oriundas da lentidão ou omissão legislativa, e até mesmo executiva. Essa preponderância no exercício do magistrado justifica-se no princípio da supremacia do interesse público geral, pois a inércia deste diante da prestação estatal lenta ou omissa denega justiça à sociedade em geral.

Não se deve, entretanto, confundir o termo ativismo judicial com o instituto conhecido como judicialização, pois embora próximos, o primeiro procura extrair ao máximo o potencial da Constituição sem, contudo, invadir o palco da criação do direito. Por sua vez, na judicialização há transferência de decisão dos poderes Executivo e Legislativo para o poder Judiciário o qual passa, normalmente, dentre temas polêmicos e controversos, a estabelecer normas de condutas a serem seguidas pelos demais poderes. Significa que, algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário.

Dos vários conceitos diferenciando as terminologias empregadas acima, é de se destacar:

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2012, p. 6).

Colhe-se da lição colacionada não apenas o conceito de ativismo judicial e o que lhe diferencia da judicialização da política, mas também que a origem do Ativismo Judicial decorreu da ascensão institucional do Poder Judiciário, oriunda do novo modelo constitucional adotado, acentuadamente após a Segunda Guerra Mundial, em vários países do ocidente, onde predominam os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana em suas Cartas Políticas, elevando assim as constituições ao patamar de normas hierarquicamente supremas, o que impõe a necessidade de existência de órgãos competentes para exercer o controle de constitucionalidade das leis, que detenham autoridade de Poder, a exemplo das Cortes Constitucionais, que no Brasil é exercido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Importante salientar que, a referida ascensão política que marcou o surgimento do ativismo judicial, originou-se de fatos históricos importantes para a sua compreensão, oriundos da evolução e organização do Estado no mundo, como a doutrina da separação dos poderes e o sistema de freios e contrapesos, que serão a seguir analisados.

2.2 A SEPARAÇÃO DOS PODERES E O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS

2.2.1 Da Separação dos Poderes

A ideia de separação dos poderes remonta à antiguidade, quando Aristóteles, conceituando uma constituição mista em sua obra Política, assim expressou:

[...] constituição mista... será aquela em que os vários grupos ou classes sociais participam do exercício do poder político, ou aquela em que o exercício da soberania ou o governo, em vez de estar nas mãos de uma única parte constitutiva da sociedade, é comum a todas. Contrapõem-se-lhe, portanto, as constituições puras em que apenas um grupo ou classe social detém o poder político. (ARISTÓTELES, apud Maldonado, 2012).

A separação de poderes proposta por Aristóteles concebia um Estado composto de três funções: o deliberativo, encarregado de deliberar sobre os negócios do Estado, entregue a uma assembléia, que era dotada de competência para decidir sobre a paz e a guerra, estabelecer ou romper alianças, e ainda, fazer ou revogar leis; o executivo, exercido pelas magistraturas governamentais teria prerrogativas e atribuições a determinar em cada caso; e o judiciário, o que administra a justiça.

Na era moderna, o inglês John Locke formulou a primeira construção sistemática de uma teoria da separação dos poderes, dividindo-os em Legislativo, Executivo e Federativo. Ao primeiro, competia elaborar as leis que disciplinariam os castigos aplicados aos membros da sociedade que transgredissem suas normas; ao segundo, caberia a função de aplicar as leis aos membros da comunidade; e ao terceiro, desempenhar a função de relacionamentos com outros estados.

Em sua concepção de separação dos poderes, Locke considerava o legislativo como o poder supremo, ao qual os outros dois poderes estariam subordinados, estando o legislativo submetido apenas ao poder do povo. O poder executivo e o poder federativo, entretanto, seriam exercidos pela mesma pessoa. O que se buscava com esse método seria, essencialmente, a separação entre legislativo e executivo.

Muito embora esse modelo de tripartição de poderes não tenha contemplado expressamente o Poder Judiciário, considerando este como atividade meio do Poder Legislativo, conferiu vital importância ao Judiciário em sua sistematização das funções de Estado, conforme pode-se extrair da seguinte transcrição:

E por essa maneira a comunidade consegue, por meio de um poder julgador, estabelecer que castigo cabe às várias transgressões quando cometidas entre os membros dessa sociedade – que é o poder de fazer leis –, bem como possui o poder de castigar qualquer dano praticado contra qualquer dos membros por alguém que não pertence a ela – que é o poder de guerra e de paz –, e tudo isso para preservação da propriedade de todos os membros dessa sociedade, tanto quanto possível. [...] E aqui deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade, que deve julgar por meio de leis estabelecidas até que ponto se devem castigar as ofensas quando cometidas dentro dos limites da comunidade, bem como determinar, mediante julgamentos ocasionais baseados nas circunstâncias atuais do fato, até onde as agressões externas devem ser retaliadas; e em um outro caso utilizar toda a força de todos os membros, quando houver necessidade.[...]. (MALDONADO, 2012).

Não obstante a importância dada por Locke ao Poder Judiciário em sua teoria, as ideias do inglês não prosperaram, diante dos anseios sociais de liberdade e descontentamento com os abusos praticados pelo poder absolutista da época.

Em meados do século XVI, já despontava na França uma nova concepção de separação de poderes do Estado, onde verificava-se a existência de um Parlamento e um órgão para controlar os poderosos, delegando tarefas de julgamento:

Dentre os reinos bem governados e bem organizados de nossos tempos, conta-se a França, onde se encontram inúmeras instituições boas, das quais depende a liberdade e a segurança do rei. A principal delas é o parlamento e sua autoridade, pois quem organizou aquele reino, conhecendo as ambições e a insolência dos poderosos, e julgando necessário pôr-lhes um freio para corrigi-los e, por outro lado, conhecendo o ódio da população contra os grandes devido ao medo que esses lhe inspiravam, e pretendendo protegê-la, não quis que essa preocupação específica recaísse sobre o rei, a fim de poupá-lo de ser acusado pelos grandes de proteger o povo e de ser acusado pelo povo de favorecer os grandes. Por isso, instituiu um terceiro juiz com a função de controlar os grandes e favorecer os pequenos sem comprometer o rei. Não poderia esta instituição ser melhor nem mais prudente, sendo ela a maior razão da segurança do rei e do reino. Daí se pode extrair uma outra observação: a de que os príncipes devem fazer os outros aplicarem as punições e eles próprios concederem as graças. (MAQUIAVEL, 2004, p. 90).

Contudo, a sistematização da separação dos poderes que foi acolhida pelo mundo moderno foi a idealizada no século XVIII, também pelos franceses, que se baseava na realidade política daquela época:

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura o poder legislativo é reunido ao poder executivo, não há liberdade; porque é de temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado faça leis tirânicas, para executá-las tiranicamente.

Tampouco há liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estiver unido ao poder legislativo será arbitrário o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos; pois o juiz será  legislador. Se estiver unido ao poder executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se um mesmo homem ou um mesmo corpo de principais ou de nobres ou do povo exercesse estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou os litígios dos particulares. (MONTESQUIEU, 2009, p. 169).

Essa nova sistematização conferia ao poder de julgar o status de um dos poderes fundamentais do Estado, resgatando o modelo pregado na antiguidade por Aristóteles, mas ainda mantinha um caráter secundário ao Judiciário, conforme depreende-se da seguinte passagem:

Dos três poderes de que falamos, o de julgar é, de certa forma, nulo. Restam apenas dois: e, como precisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta de nobres é muito adequada para produzir esse efeito. (MONTESQUIEU, 2009, p. 172).

Todavia, é dessa linha de pensamento que a doutrina da separação de poderes evoluiu às formatações dos Estados contemporâneos, proporcionando não apenas uma fórmula para se controlar o poder do Estado, mas também servir de base para um sistema de organização deste, chegando ao que se chama hoje de poder uno, existindo, ao invés de separação, uma repartição das funções estatais típicas (ou básicas), equilibradas por meio de funções atípicas, como será visto mais adiante.

2.2.2 Do Sistema de Freios e Contrapesos (Checks and Balances)

O principal elemento transformador do princípio da separação dos poderes no direito contemporâneo – o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) – vem a surgir da combinação de três características: do empirismo britânico; da racionalização francesa; e do pragmatismo norte-americano.

Como ensinam John H. Garvey e T. Alexander Aleintkoff (apud MALDONADO, 2012), o balance (que se traduz em equilíbrio, contrapeso) surge na Inglaterra, a partir da ação da Câmara dos Lordes equilibrando (balanceando) os projetos de leis oriundos da Câmara dos Comuns (originados do povo), a fim de evitar que leis demagogas, ou formuladas pelo impulso momentâneo de pressões populares, fossem aprovadas. A bem da verdade, o objetivo por trás disso era conter o povo, principalmente contra atos que viessem ameaçar os privilégios da nobreza.

Outras importantes ferramentas do sistema de freios e contrapesos, também foram extraídas do modelo político inglês, são o veto e o impeachment. O primeiro, enquanto ato do Rei em cooperação e aperfeiçoamento do processo legislativo (King in Parliament), passa a exprimir a negative voice, expressando tão somente a oposição do Rei que não mais participa do processo legislativo, apenas o controla, podendo impedir que a legislação entre em vigor através do veto. O segundo – o impeachment – é mecanismo jurídico que permite o controle do parlamento sobre os atos executivos dos Ministros do Rei. O Parlamento não executa, mas controla o exercício da função executiva.

Já a racionalização francesa justifica a necessidade do bicameralismo (Câmaras Alta e Baixa), partindo de análise da “Constituição” da Inglaterra:

Sempre há num Estado pessoas distintas pelo nascimento, pela riqueza ou pelas honras: mas se se confundissem em meio ao povo e se tivessem um só voto como os outros, a liberdade comum seria para eles a escravidão e não teriam nenhum interesse em defendê-la, porque a maior parte das decisões seria contra eles.  A parte que têm na legislação deve, pois, ser  proporcional às outras vantagens de que gozam no Estado, o que acontecerá se formarem um corpo que tenha o direito de deter as ações do povo, como o povo tem o direito de deter as deles.

Assim, o poder legislativo será confiado tanto ao corpo dos nobres quanto ao corpo que será escolhido para representar o povo, e cada qual terá suas assembléias e suas deliberações à parte, e ideias e interesses separados. (MONTESQUIEU, 2009, p. 172).

Do pragmatismo norte-americano, extrai-se o “check” que, segundo o Juiz mineiro Paulo Fernando Silveira (apud MALDONADO, 2012), surgiu em 1803, quando o Justice Marshal lançou sua opinião no famoso caso Marbury x Madison, declarando a inconstitucionalidade de atos do Congresso, a seu exclusivo juízo, investido da missão constitucional que tinha o Poder Judiciário de declarar a inconstitucionalidade de leis que não guardassem harmonia com a Carta Política. Assim então, pela doutrina do Judicial Review, o Judiciário passa a controlar o abuso do poder dos outros ramos.

Como se percebe, o sistema de freios e contrapesos aparece neste cenário como forma de robustecimento do constitucionalismo, frente à rigidez da separação dos poderes pregada por diversos filósofos e cientistas políticos, o que sugere uma releitura do conceito de separação de poderes, mais condizente com a realidade atual, como se pode extrair do seguinte texto:

Com a proliferação de direitos fundamentais nas modernas Constituições e a assunção de que eles são princípios que podem colidir em casos específicos, sendo uma exigência social a máxima aplicação de cada um dos direitos fundamentais, uma nova concepção de separação de poderes é necessária. Não mais se entende que direito e política são campos totalmente separados e cuja conexão deve ser reprimida para o bom funcionamento do Estado. (PAULA, 2011, p. 273)

Distintamente da proposta de Montesquieu, o momento atual reclama um Estado menos desvinculado e afastado, ao contrário, que suas instituições sigam mais próximos e comprometidos na mesma direção, buscando uma atuação e prestação mais eficiente e equilibrada.

2.3 EXPANSÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO MUNDO

Em início do século XX o mundo experimenta uma outra grande proposta de avanço na evolução do Poder Judiciário e do constitucionalismo: a Teoria Pura do Direito, do austríaco Hans Kelsen que, apesar de ferrenho defensor do positivismo,  preconiza a Constituição como norma superior e com a qual todas as demais devem ser compatíveis, vencendo a divergência apresentada por Hesse e Lassalle no que se referia à essência e a força normativa da constituição, apresentando fundamentos para um controle formal de constitucionalidade quando, referindo-se à “particularidade que possui o Direito de regular a sua própria criação”, afirma existir uma estrutura escalonada na ordem jurídica, razão pela qual:

[...] uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. (KELSEN, 2000, p. 246-247).

Assim é que, em 1920, criava-se a Corte Constitucional Austríaca com autonomia e poderes para realizar o controle de constitucionalidade das leis, sob a égide do pensamento kelseniano.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, muitas das Cartas Políticas de várias nações conquistaram uma gama de direitos fundamentais e princípios, estes já consagrados desde a Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão na Constituição francesa, em 1789, seguidos das Constituições do México (1917) e a constituição alemã de Weimar (1919).

Ocorre que, a transição de regimes autoritários para o regime democrático, apontado como ideal para a nova era – contemplador de liberdade, segurança e diversos direitos sociais –, acabou por gerar um grande déficit no atendimento e priorização das políticas públicas decorrentes desse novo modelo constitucional, em razão do acentuado empobrecimento de várias nações, no pós-guerra, ou mesmo pela resistência política residual do substituído modelo autoritário de governo, o que contribuiu sobremaneira para o crescimento do ativismo judicial, na busca de garantir um mínimo possível de efetivação dos direitos fundamentais inseridos em seus ordenamentos.

Vê-se, desde então, em diversas partes do mundo, a criação de várias cortes constitucionais ou supremas cortes, destacando-se em questões de grande repercussão política e social, como observa-se nos exemplos abaixo:

No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment. (BARROSO, 2012).

Mais uma vez evidencia-se que a prática do ativismo judicial em diversos países pelo mundo, inclusive na América Latina, é fruto de um fortalecimento do constitucionalismo, tendo como protagonistas desse processo, as cortes constitucionais como instituições primárias de defesa da supremacia da Constituição.

2.4 EVOLUÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL

Como visto em outras partes do mundo, a Constituição brasileira promulgada em 1988 elevou a status constitucional vários direitos fundamentais e, via de conseqüência, ampliou os mecanismos de defesa destes direitos, incluindo os institutos específicos para defesas dos direitos individuais e coletivos como o mandado de segurança, o habeas-data, o mandado de injunção e o controle concentrado de constitucionalidade, a ampliação dos legitimados a proporem ações de inconstitucionalidades e, ainda, com a ampliação dos poderes do Poder Judiciário, mais especificamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Corte Constitucional Brasileira.

Nessa conjuntura, o Poder Judiciário brasileiro tem vivenciado um verdadeiro cenário ativista, conforme se aponta a seguir:

[...] caso de aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de súmula vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma conotação quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da moralidade e da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em qualquer regra constitucional ou infraconstitucional expressa.

Outro exemplo, agora de declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do Congresso, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição: o caso da verticalização. O STF declarou a inconstitucionalidade da aplicação das novas regras sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de uma ano da sua aprovação. Para tanto, precisou exercer a competência – incomum na maior parte das democracias – de declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, dando à regra da anterioridade anual da lei eleitoral (CF, art. 16) o status de cláusula pétrea. É possível incluir nessa mesma categoria a declaração de inconstitucionalidade das normas legais que estabeleciam cláusula de barreira, isto é, limitações ao funcionamento parlamentar de partidos políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho eleitoral.

Por fim, na categoria de ativismo mediante imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas, o exemplo mais notório provavelmente é o da distribuição de medicamentos e determinação de terapias mediante decisão judicial. A matéria ainda não foi apreciada a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no exterior. (BARROSO, 2012).

Inteligível, portanto, que magistrados e Tribunais brasileiros – em especial, o Supremo Tribunal Federal – não têm se furtado a realizar seu papel constitucional, protagonizando as necessárias mudanças reclamadas nessa nova ordem constitucional de realização e criação por meio de suas decisões, o que tem gerado as atuais críticas ao ativismo judicial por parte de membros dos Poderes Executivo e Legislativo, ao passo que, de outro lado, suscitado aplausos e elogios de juristas e da sociedade brasileira em geral, que vêem no ativismo judicial, a segurança de que, diante da inércia (postura admitida apenas no âmbito do Poder Judiciário) e latente lentidão ou omissão dos poderes políticos, a possibilidade de ter seus direitos efetivamente garantidos.


3. A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E O PODER CRIATIVO DAS DECISÕES JUDICIAIS

3.1 A SOBERANIA DA CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DO INTÉRPRETE NA ESCOLHA ENTRE O PREVISTO E O POSSÍVEL

Como restou evidenciado no capítulo anterior, as constituições assumiram posição soberana, de normas fundamentais e superiores em todo Estado de Direito contemporâneo, no entanto, essa soberania só atinge sua efetividade e realiza seus verdadeiros objetivos, quando o Poder Judiciário, utilizando-se da hermenêutica, consegue transformar as proposições abstratas contidas na Constituição em direitos concretos.

Assim, cabe ao Juiz a tarefa de engajamento no propósito de fazer valer as disposições constitucionais, enquanto normas que são, conforme se depreende das lições de Clèmerson Merlin Clève:

[...] a Constituição, atualmente, é o grande espaço, o grande locus, onde se opera a luta jurídico-política. O processo constituinte é um processo que se desenvolve sem interrupção, inclusive após a promulgação, pelo poder constituinte, de sua obra. A luta, que se travava no seio da Assembléia Constituinte, transfere-se para o campo da prática constitucional (aplicação e interpretação). Afirmar esta ou aquela interpretação de determinado dispositivo constitucional, defender seu potencial de execução imediata ou apontar a necessidade de integração legislativa, constituem comportamentos dotados de claríssimos compromissos ideológicos que não podem sofrer desmentido.

No Brasil contemporâneo, constitui missão do operador jurídico produzir a defesa da Constituição. A Constituição brasileira, tão vilipendiada, criticada e menosprezada, merece consideração. Sim, porque aí, nesse documento mal escrito e contraditório, o jurista encontrará um reservatório impressionante de topoi argumentativos justificadores de renovada ótica jurídica e da defesa dos interesses que cumpre, para o direito alternativo, defender. (CLÈVE, apud Amaral, 2010, p. 4).

Mas o exercício hermenêutico não se revela tão fácil e prático como desejado, na verdade, por todos. Invariavelmente, o Juiz depara-se com sérias dificuldades ao analisar lacunas legislativas. Nessa seara, a Constituição Federal de 1988, expressamente, traz em seu artigo 5º, inciso XXXV, a garantia de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, ao passo que, no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro encontra-se insculpido que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Além das lacunas legislativas, o julgador também se vê diante de outras situações de penosa resolução: o choque de direitos. Conflitos oriundos do choque de direitos têm colocado o julgador constantemente diante da árdua tarefa de escolher o melhor caminho para garantir o direito pleiteado, num cenário de fértil proliferação de direitos e, ao mesmo tempo, escassez de recursos. Assim é que, tendo por base algumas decisões do Supremo Tribunal Federal na aplicação de interpretação favorável à proteção de direitos subjetivos inalienáveis, sem considerar as limitações orçamentárias, Gustavo Amaral assim se posicionou:

A linha dos precedentes do Supremo até agora, notadamente os da lavra do Min. Celso de Mello nos parecem, d.m.v., pecar por deixar de reconhecer o princípio do uso racional dos recursos públicos, bem como por tratar da questão como e não houvesse separação entre interpretação e aplicação, bem como sem atentar para as peculiaridades do caso. Não se está a dizer que a decisão no caso foi equivocada, mas, sim, que ao formular uma solução generalista, para a qual a questão a ser respondida é o contraste entre um direito subjetivo inalienável e um interesse financeiro subalterno, a decisão enuncia uma regra de decisão que acaba por tornar simples ou rotineira a decisão de casos até então difíceis. O Supremo Tribunal Federal falhou em separar os dois campos, da interpretação e da aplicação, acabando por enunciar um critério de direito-a-qualquer-custo. (AMARAL, 2010, p. 170-171).

Amparando-se no dever constitucional já apontado acima, através do inciso XXXV do artigo 5º da Carta Maior, além de outros princípios de igual importância, justifica o ministro Celso de Mello, em discurso proferido no Supremo Tribunal Federal, que a prática de ativismo judicial tem se dado naquela Corte moderadamente e com excepcionalidade, em casos de necessidade:

[...] práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. (MELLO, 2012).

Com efeito, cada vez mais Juízes e Tribunais têm demonstrado em suas fundamentações um reconhecimento da lentidão ou omissão do Poder Público em cumprir com suas obrigações, colocando em risco vários direitos fundamentais, ainda que subjetivos, o que, consequentemente, traduzem-se em comportamento ofensivo aos mandamentos constitucionais.

3.2 HÁ NECESSIDADE DE SE IMPOR LIMITES À INTERPRETAÇÃO?

A passagem do Estado Liberal para um Estado de Direito, com a conseqüente adoção de normas cada vez mais abertas, pautadas na principiologia constitucional, pressupõe uma verdadeira transferência de atribuições entre os poderes. Se antes ao Legislativo cumpria a detalhada previsão normativa de regras fechadas e inflexíveis, de modo que era dispensável qualquer atividade hermenêutica do julgador, agora atribui-se a este, o papel de dizer o direito no caso concreto, interpretando as previsões constitucionais abstratas e amoldando-a ao contexto em que a lide encontra-se inserida, o que implica a necessidade de uma atuação intelectiva maior do Poder Judiciário, que considere aspectos valorativos e políticos atinentes a cada caso.

O Judiciário, assim, deixa de ser a mera boca da lei, para assumir a responsabilidade de esclarecer o direito efetivamente, materializando o conteúdo vago dos princípios.

Assim admitindo, não se estaria vulgarmente considerando que o Poder Judiciário goza de discricionariedade na aplicação do direito, nos mesmos moldes da discricionariedade administrativa, limitada aos critérios da conveniência e oportunidade, haja vista o elevado grau de dificuldade com a qual depara-se o julgador constantemente, na avaliação de situações não contempladas expressamente, nem no texto constitucional, nem na legislação infraconstitucional. Nesse sentido, Mauro Cappelletti aponta como de elevada importância a contribuição dada pelos Juízes ao processo de interpretação do direito, quando, ao mesmo tempo, revelam sua capacidade criadora:

Os principais criadores do direito (...) podem ser, e freqüentemente são, os juízes, pois representam a voz final da autoridade. Toda vez que interpretam um contrato, uma relação real (...) ou as garantias do processo e da liberdade, emitem necessariamente no ordenamento jurídico partículas dum sistema de filosofia social; com essas interpretações, de fundamental importância, emprestam direção a toda atividade de criação do direito. As decisões dos tribunais sobre questões econômicas e sociais dependem da sua filosofia econômica e social, motivo pelo qual o progresso pacífico do nosso povo, no curso do século XX, dependerá em larga medida de que os juízes saibam fazer-se portadores duma moderna filosofia econômica e social, antes de que superada filosofia, por si mesma produto de conciliações superadas. (CAPPELLETTI, 1993).

Apesar do reconhecimento da importância atribuída à interpretação realizada pelos Juízes, Cappelletti não defende uma discricionariedade sem limites, como se pode depreender de outra passagem de sua obra, a seguir transcrita:

Quando se afirma, como fizemos, que não existe clara oposição entre interpretação e criação do direito, torna-se contudo necessário fazer uma distinção, como dissemos acima, para evitar sérios equívocos. De fato, o reconhecimento de que é instrínseco em todo ato de interpretação certo grau de criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade e assim de escolha –, não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais. (CAPPELLETTI, 1993, pp. 23-24).

Também Lênio Streck indica a necessidade de exigência de fundamentação relacionada ao direito fundamental que cada cidadão tem a uma resposta correta (adequada à Constituição), asseverando:

[...] embora o juiz seja uma pessoa com convicções e história de vida, a limitação ao seu subjetivismo e a sua parcialidade se dá justamente no impedimento de uma fundamentação que extrapole os argumentos jurídicos e na obrigatoriedade de se construir a decisão com a argumentação participada das partes, que, como partes contraditoras, possam discutir a questão do caso concreto, de modo que a decisão racional se garanta em termos de coerência normativa, a partir da definição do argumento mais adequado ao caso. Assim, o objetivo é garantir que um juiz, mesmo com suas convicções, não apresente um juízo axiológico, no sentido de que todos os cidadãos comunguem da mesma concepção de vida, ou que os valores ali expostos na sentença vinculem normativamente todos os demais sujeitos do processo. (STRECK, 2011, pp. 396-397).

E prossegue, referindo-se à produção de súmulas vinculantes como tentativa de antecipar a possibilidade de interpretação de fatos ainda inexistentes:

A hermenêutica não nega que um texto (um enunciado lingüístico) tenha vários significados. Não se nega a vagueza e a ambigüidade da linguagem. Não é essa a discussão. O problema é que as posturas analíticas (onde se insere a dogmática jurídica lato sensu) consideram possível esgotar os significados dos textos in abstracto (por isso, o semantic sense). Por isso, a proliferação dos verbetes e a cultura da estandardização do direito. As súmulas vinculantes são um exemplo privilegiado dessa tentativa semântica de abarcar os sentidos antes da aplicação. (STRECK, 2011, pp. 397-398).

Apoiando-se em proposições gadamerianas, Lênio Streck afirma que a legitimidade das decisões judiciais reside na possibilidade de uma participação política, ou seja, de participação dos atores da vida social, na fiscalização e controle dos sentidos articulados na interpretação praticada pelos julgadores, combatendo o solipsismo, e não como proibição de interpretar, conforme se vê:

[...] a hermenêutica é um poderoso remédio contra teorias que pretendam reivindicar um protagonismo solipsista do judiciário.

Esse fator, entretanto, não pode ser entendido como uma “proibição de interpretar” (sic) ou, tampouco, como uma tentativa de tornar o judiciário um “poder menor” (sic). Na verdade, se trata exatamente o contrário. É justamente porque o judiciário possui um papel estratégico nas democracias constitucionais contemporâneos – concretizando direitos fundamentais, intervindo, portanto, quase sempre na delicada relação entre direito e política – que é necessário pensar elementos hermenêuticos que possam gerar legitimidade para as decisões judiciais, a partir de um efetivo controle do sentido que nelas é articulado. Vale dizer, a hermenêutica possibilita aos participantes da comunidade política, meios para questionar a motivação das decisões de modo a gerar, nessas mesmas motivações, um grau muito mais elevado de legitimidade. (STRECK, 2011, p. 296).

Possivelmente o controle citado por Streck pode ser (como tem sido) praticado através de audiências públicas que precedem julgamentos de relevante interesse social, realizados no STF, demonstrando que a sociedade não só pode fiscalizar, mas também participar do processo hermenêutico, haja vista o objetivo final da realização dessas audiências ser, exatamente, o interesse que aquela Corte tem em antever a manifestação popular sobre o tema posto.

Vê-se, dessa forma, diante da complexidade das decisões buscando a pacificação do conflito de direitos (ou princípios) que, não com o intuito de limitar o poder de interpretação do julgador, mas na conjugação de fatores que tornem viável a transformação do previsto em possível, e buscando a melhor solução para o caso concreto, o intérprete deve, sempre, atuar com cautela na aplicação da hermenêutica constitucional, mas nunca tímido o suficiente, a ponto de comprometer a efetivação do ideal constitucional de buscar-se a devida resposta com vistas à tutela dos interesses de fundamental importância na esfera jurídico-social, tampouco fazendo da hermenêutica, campo para aplicação de discricionariedades subjetivistas, carregadas de vontades, desejos e preferências pessoais.


4 O PERFIL DOS PODERES POLÍTICOS NA CONTEMPORÂNEIDADE E A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CENÁRIO POLÍTICO NACIONAL

4.1 CRÍTICAS AO ATIVISMO JUDICIAL

As críticas mais freqüentemente dirigidas ao ativismo judicial consistem na alegação de violação à separação dos poderes, atentar contra o primado da soberania popular ou, em discussões mais filosóficas e científicas, nos riscos do solipsismo. Porém, como este último já restou discutido e explicado nas lições de Lênio Streck, em tópico próprio sobre a hermenêutica, cabe agora a análise dos dois primeiros argumentos que, por serem menos providos de exercício científico, acabam por ter uma disseminação maior.

No que se refere ao argumento de que o ativismo judicial estaria violando a separação dos poderes, ao analisar a evolução histórica da posição do Poder Judiciário na organização do Estado contemporâneo, aliado ao crescimento do constitucionalismo mundial, não há porque continuar recorrendo a esse discurso, haja vista não se falar mais em separação de poderes nos dias atuais, mas sim, de um poder uno, comprometido – que deveria estar – com a realização das políticas públicas idealizadas na Carta Política Brasileira de 1988, e defensor de uma democracia forte e participativa.

Com extrema clareza e objetividade, o constitucionalista Luís Roberto Barroso demonstra, em suas lições, a importância dispensada ao direito constitucional antes de 1988, e após a promulgação da atual Carta Magna:

[...] ao longo da história brasileira, sobretudo nos períodos ditatoriais, reservou-se ao direito constitucional um papel menor, marginal. Nele buscou-se, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce. A Constituição de 1988, com suas virtudes e imperfeições, teve o mérito de criar um ambiente propício à superação dessas patologias e à difusão de um sentimento constitucional, apto a inspirar uma atitude de acatamento e afeição em relação à Lei Maior. (BARROSO, apud Amaral, 2010, p. 2).

É de se extrair de tal pensamento que, nos tempos atuais não cabe mais falar em “separação dos poderes” com a rigidez como se falava na época do Estado Liberal, onde o poder da força superava o poder do direito, e a população era excluída de qualquer mecanismo de participação das decisões políticas, o que só veio a mudar após a inserção dos direitos fundamentais no texto constitucional e a crescente preocupação com a ampliação e a facilitação do acesso à justiça, o que serve para fortalecer, cada vez mais, a democracia.

Ainda com relação à rígida separação dos poderes que alguns críticos do ativismo judicial insistem em preservar, pronunciou-se o ministro do STF, Cezar Peluso, no relatório do julgamento da ADI 3367:

[...] em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais defendeu a ideia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada uma das funções estatais. Antes, chegou a fazer referência a mecanismos de relacionamento mútuo entre os poderes, a fim, precisamente, de lhes prevenir abusos no exercício. (PELUSO, 2012).

E no mesmo relatório, cita Zaffaroni para justificar que a tradução do pensamento de Montesquieu, ao contrário do que dizem, apontava para uma separação dos poderes de forma, tanto participativa, quanto fiscalizadora e corretiva:

Não há em Montesquieu qualquer expressão que exclua a possibilidade dos controles recíprocos, nem que afirme uma absurda compartimentalização que acabe em algo parecido com ‘três governos’ e, menos ainda, que não reconheça que no exercício de suas funções próprias esses órgãos não devam assumir funções de outra natureza. (ZAFARRONI, apud Peluso, 2012).

A bem da verdade, as críticas acerca de suposta violação a uma separação dos poderes que já nem existe mais, parte, estranhamente, dos Poderes Legislativo e Executivo que, invariavelmente, exercem funções atípicas como se típicas e comuns para eles fossem, a exemplo das medidas provisórias, por parte do Executivo, e os julgamentos de seus pares, realizados pelo Legislativo.

Quanto ao suposto atentado contra o primado da soberania popular, ou seja, (i)legitimidade do Poder Judiciário para decidir questões de larga repercussão política e social, a acusação reside no fato de não serem os ministros das cortes superiores, bem como os magistrados federais e estaduais, eleitos pelo voto direto para ocuparem seus cargos, além de não passarem pela periodicidade de escolha eleitoral. Mais uma vez, Luís Roberto Barroso, com lição irretocável, rebate tais argumentos:

[...] o Judiciário tem características diversas da dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados, com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. (BARROSO, apud Almeida, 2011).

Desse ponto de vista parece não ser muito coerente a crítica formulada sobre ilegitimidade dos membros do Poder Judiciário, até mesmo pelo fato de o ingresso no Poder Judiciário estar condicionado a critérios constitucionais, que foram pré-estabelecidos na Constituição pelo legislador constituinte e, assim sendo, gozarem da legitimidade conferida pela soberania popular direta conferida a estes últimos.

Destaca-se, ainda, que as decisões judiciais estão subordinadas ao duplo grau de jurisdição, o que garante às partes a possibilidade de submeter sentenças que não os favoreçam a uma reapreciação por órgão colegiado, e este, sempre composto de Juízes que – além da experiência que deve ser comprovada e notório saber jurídico –, após passarem por escolha concorrida em uma lista, são nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, sendo que, nos tribunais superiores, ainda são avaliados pelo Congresso Nacional. Ora, basta um breve raciocínio para compreender que, se os membros do Congresso Nacional e os Chefes do Executivo são eleitos pelo voto direto, e exercem suas funções em favor do povo que os elegeu, estarão eles, então, legitimando os membros do Judiciário, ainda que indiretamente, ao avaliarem e nomearem estes para exercer sua funções de julgadores.

Dessa forma, não há como desprezar a imensa e imprescindível contribuição do Poder Judiciário para o fortalecimento da democracia, ao contrário, deve-se, sim, considerar que este Poder goza de legitimidade popular, o que se corrobora com os argumentos a seguir expostos:

A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia significa soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes. (BARROSO, apud Almeida, 2011).

As tensões aventadas por Barroso surgem – em não raros os momentos – quando a interpretação literal da idéia de maioria tende a ser utilizada para satisfazer interesses de determinados grupos ou instituições, em detrimento de minorias quase sempre sem representação política. Então, do legítimo ideário democrático constitucional, deve ser extraída a proteção dos valores e direitos fundamentais, mesmo que contrariando a vontade circunstancial de quem tem maioria de votos. Nesse sentido, Vicente Paulo de Almeida registra que:

A democracia baseia-se nos princípios do governo da maioria, respeitando os direitos individuais e os direitos das minorias. A democracia sujeita os governos ao Estado de Direito e assegura que todos os cidadãos recebam a mesma proteção legal e que os seus direitos sejam protegidos pelo sistema judiciário. Os governos democráticos exercem a autoridade por meio da lei e estão eles próprios sujeitos aos constrangimentos impostos pela lei. Nas democracias, é o povo quem detém o poder soberano sobre o poder legislativo e o executivo. (ALMEIDA, 2011).

E arremata com Robert Alexy (apud Almeida, 2011), quando apresenta a proposição “Todo poder estatal provém do povo”, concebendo, não só o Legislativo, mas também o Tribunal Constitucional, como legitimado para representar o povo: o Parlamento, politicamente; o Tribunal Constitucional, argumentativamente. No entanto, em razão da característica política proeminente da representação parlamentar, continua com advertência de Alexy:

[...] Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico de que aquela pelo parlamento. O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, mas, em nome do povo, contra seus representantes políticos. (ALEXY, apud Almeida, 2011).

Outro ponto a destacar como forma de participação do povo nas decisões judiciais, são as audiências públicas realizadas nas Cortes Superiores, onde representantes dos vários setores da sociedade são chamados a se manifestarem, contribuindo assim, de forma legal, democrática e participativa, com a resolução de conflitos que apresentem relevância para a sociedade.

Destas lições colhe-se que, na construção da democracia, base incontestável do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário revela-se importante nível de acesso do cidadão às instâncias do poder, possibilitando, numa sociedade plural como as democráticas, que grupos não possuidores de representatividade influam nas decisões políticas de seu país, e tenham seus direitos amparados, ainda que contrariando interesses majoritários, que nem sempre se traduzem em maiores.

4.2 O GRAU DE (IN)EFICIÊNCIA DOS PODERES POLÍTICOS JUSTIFICANDO O ATIVISMO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A humanidade contemplou neste último século, uma veloz mudança nos governos de diversas nações pelo mundo, culminando com a democratização de vários Estados que viram-se obrigados a se amoldar em um sistema globalizado, exigindo de suas administrações muito mais eficiência do que se demandava no passado. O Brasil, que há até poucos anos era qualificado como país de terceiro mundo, hoje encontra-se no patamar de país emergente, ocupando lugar de destaque e importância no cenário político e econômico mundial.

No entanto, o que se tem visto no cenário político nacional, em matéria de políticas públicas e sociais, é uma atuação débil dos poderes políticos. As liberdades democráticas aliadas à globalização, têm produzido um mercado voraz, com um crescente consumismo, que tem fortalecido cada vez mais os poderosos grupos econômicos e políticos, aumentando ainda mais a desigualdade social, relegando a população de mais baixa renda a uma importância momentânea: a eleitoreira. Crescem e multiplicam-se as carências, na mesma medida em que crescem e multiplicam-se, apenas, as promessas e os discursos. Leis defasadas, incondizentes com o avanço da sociedade e do mercado; falta de efetividade das políticas públicas, relegando a um plano secundário até mesmo direitos fundamentais; escândalos estourando dia após dia no meio político; são apenas alguns dos exemplos que se destaca para ilustrar o quadro político-social que ainda predomina no Brasil.

Tudo isso revela um pacto não cumprido, que acaba por desencadear uma cobrança. Mas, se os Poderes Políticos não cumprem a parte deles no contrato social, então resta quem para socorrer a sociedade?

Não importa a relação – seja ela privada ou pública – as discussões têm sempre acabado no âmbito do Poder Judiciário que, cumprindo com seu dever constitucional de não excluir de sua apreciação “lesão ou ameaça a direito”, tem despertado no meio político, reações negativas, como se a omissão fosse a regra, e não a ação.

Após encaminhar para o Senado o anteprojeto de reforma do Código Penal, o ministro do STJ, Gilson Dipp (DIPP, 2012), que presidiu a comissão de reforma, declarou que: “[...] o ativismo judicial, em especial o exercido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), decorre da falta de discussão de certos temas polêmicos pelo parlamento”. A reação de Dipp decorreu da falta de disposição demonstrada pelos parlamentares para enfrentamento dos debates polêmicos, com o fim de agilizar a votação da proposta de reforma daquela Lei. Para o ministro, o Código Penal pode ser considerado a lei mais importante depois da Constituição, por “delimitar o poder de intervenção do estado no que há de mais sagrado à pessoa – sua liberdade corporal”.

Enquanto falta ânimo aos parlamentares para deliberar sobre discussões polêmicas acerca de temas de altíssima relevância para a sociedade, o mesmo não se pode dizer de sua disposição para propor e discutir temas envolvendo aumento de verba de gabinetes, redução dos dias destinados à votação de propostas (Projeto de Resolução nº 149/2012), entre outros projetos que não favorecem a sociedade brasileira.

E não é apenas no Congresso Nacional que se vê esse comportamento, no âmbito estadual, a blindagem política[1] vem beneficiando chefes do Executivo, com dispositivos das constituições locais que exigem autorização prévia das Assembleias Legislativas, em votação por dois terços, para que o STJ possa examinar denúncias, processar e proceder a julgamentos. Preocupada com a visível blindagem das forças políticas aos governadores nas ações por crime de responsabilidade, a Ordem dos Advogados do Brasil já ingressou com vinte e uma Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com pedido de cautelar, para impugnar a exigência de autorização prévia previstas nas constituições estaduais.

Voltando ao Congresso Nacional, parlamentares propõem Emenda Constitucional (PEC 03/2011), alterando o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal, conferindo ao Parlamento o poder de vetar decisões do Judiciário.

Tal proposta tem sido duramente criticada pela maioria dos juristas e doutrinadores, bem como órgãos e instituições de defesa dos interesses da sociedade brasileira, como por exemplo, a OAB Nacional que, em entrevista, seu presidente, Ophir Cavalcante (CAVALCANTE, 2012), criticou duramente a PEC 03/2011. Para Cavalcante, “Esse projeto cria sério conflito entre os poderes. O Judiciário não pode ser objeto de controle do Legislativo. Se for aprovado, haverá desequilíbrio em prejuízo da sociedade [...]”. Na mesma entrevista, outros juristas e magistrados foram ouvidos, tendo o ministro do STJ, Gilson Dipp, afirmado: “Essa PEC é um acinte. Trata-se de uma reação motivada pela própria omissão do Congresso. O Judiciário só se manifesta quando é provocado, não age espontaneamente”.

Uma das características básicas atribuídas doutrinariamente à jurisdição é, exatamente, a inércia. De acordo com esse princípio, materializado nos artigos 2º do Código de Processo Civil e artigo 24 do Código de Processo Penal, o Judiciário só se manifestará a respeito de um caso, mediante provocação, diferente dos demais Poderes da República, que deveriam atuar mediante a existência de aspirações sociais, independente de provocação direta, mas não o fazem.

Em palestra proferida pelo ministro do STF, Ricardo Lewandowski (LEWANDOWSKI, 2012), no 11º Congresso Goiano da Magistratura, realizado em 26/10/2012, o ministro assim se pronunciou: "O grande protagonista social do século 21 é o Poder Judiciário. Na inércia dos dois Poderes -Legislativo e Executivo -, o Judiciário vai lá e resolve".

Ao citar recentes decisões do STF visando, justamente, proteger direitos fundamentais, Lewandowski reforçou um aumento de importância na prática não apenas do Supremo, mas de todo o Judiciário que, segundo ele, ocupa, cada vez mais espaços, antes reservados à atuação dos Poderes Executivo e Legislativo:

É o caso de decisões que garantem internações, acesso a remédios, proteção dos idosos, dos adolescentes, das pessoas com deficiência", enumerou. "Grandes temas que deveriam ser solucionados pelo Congresso acabam chegando ao Judiciário. O homem comum descobriu que tem direitos e descobriu também que ele pode bater à porta do Judiciário. (LEWANDOWSKI, 2012).

E ainda, manifestando sua preocupação com o acúmulo de processos nas mãos do Judiciário, o ministro do STF asseverou: "Justiça que tarda, falha. O que a sociedade espera é uma pronta prestação jurisdicional".

Corroborando as palavras do ministro, a pesquisa Justiça em Números (CNJ, 2012), comprovou a crescente demanda no Judiciário. Segundo os dados colhidos na pesquisa, até final de 2011 existiam a espantosa marca de noventa milhões de processos judiciais pendentes no Brasil. Diante de um quadro desses, ainda se vê o legislativo brasileiro propor que o Judiciário siga seus passos, deixando de cumprir com seu dever constitucional de apreciar e oferecer solução para os conflitos a ele dirigidos.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por ser um assunto extremamente controverso, afinal, está em cena uma discussão que coloca em confronto os poderes estatais de uma nação democrática, não se espera esgotar o tema apresentado neste trabalho. Entretanto, buscou-se aqui atingir ao máximo possível, os objetivos gerais e específicos, para responder à questão apresentada: é possível visualizar a efetivação de políticas públicas garantidoras do Estado Democrático de Direito sem falar em Judicialização da Política?

Antes de expor qualquer conclusão, vale tecer algumas considerações.

O ativismo judicial tem despontado nos últimos anos como solução para vários conflitos de enorme repercussão para a sociedade brasileira. Para grande parcela dessa sociedade, que não goza(va) de representatividade política, e há muito tempo não vê um comportamento político pautado no compromisso ético e moral que deve permear todo campo da atividade pública, o cumprimento dos deveres constitucionais e institucionais de Juízes e Tribunais tem se afigurado como verdadeiro ato heróico (tome-se como exemplo, o posicionamento da mídia e opinião pública em relação à postura do ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Ação Penal 470 – mensalão).

Por outro lado, essa postura tem sido duramente criticada no meio político, econômico e até mesmo religioso, a ponto de ser proposta pelo Legislativo, emenda constitucional objetivando poderes para o Congresso Nacional rever atos do Poder Judiciário que os mesmos considerem extrapolar os limites da competência judiciária. De um lado, uma sociedade carente da realização de políticas públicas eficientes, que garantam os direitos constitucionais previstos na Carta Política de 1988, com destaque para os direitos fundamentais; do outro lado, políticos preocupados em representar grupos específicos, legislando pontualmente nos assuntos de maior interesse econômico ou político, sem grandes compromissos com os direitos sociais de uma população extremamente castigada por uma desumana distribuição de renda e riquezas.

Contudo, este fenômeno não deve ser visto como um mal excessivo para o Estado, ou como solução única para os problemas que afligem a sociedade, mas sim, como mecanismo de estabilidade e equilíbrio entre os Poderes da República, fortalecendo as discussões democráticas que busquem as melhores soluções possíveis para os conflitos apresentados.

O fortalecimento do constitucionalismo e do Poder Judiciário foi um fenômeno de fundamental importância para que o Brasil alcançasse a posição que ocupa hoje no cenário internacional. Prova disso foi o recente ingresso do País no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o que demonstra o reconhecimento de suas instituições públicas por aquela organização.

Os atos praticados pelo Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, devem ser visto como função pedagógica, que tem agido no vácuo deixado pelo Legislativo e Executivo, contribuindo para amenizar o descrédito e a sensação de abandono instalados nos cidadãos, em razão da lentidão e omissão dos poderes políticos.

Logo, se há incomodo por parte dos Poderes Políticos, deve-se compreender que as finalidades dos comandos constitucionais estão sendo cumpridas pelos membros do Judiciário, que não podem se furtar de oferecer as respostas buscadas pela sociedade, e que esse infortúnio pode ser minimizado, ao passo que os demais poderes exerçam com maior eficiência, suas funções e competências.

Válido salientar ainda que, grande parte das decisões judiciais em matéria política têm caráter condicionado, temporal, até que o Poder competente se manifeste, fazendo respeitar assim, a competência do Poder originariamente responsável pela matéria. Além disso, nem todos os julgamentos realizados no Supremo Tribunal Federal caracterizam prática de ativismo por aquela Corte, embora muitos deles poderiam – e até deveriam – ter sido solucionados através da iniciativa legislativa ou do executivo.

A verdade é que muitas das críticas lançadas contra o ativismo judicial não possuem força suficiente para prosperar, caindo no campo do discurso vazio, que não empolga nem recebe apoio de uma sociedade que tem experimentado a efetivação de muitas das políticas públicas idealizadas na Constituição, ainda que não de sua competência, pelo Judiciário.

Assim dito, e agora respondendo à questão levantada neste trabalho, pode-se afirmar que: o que se chama de ativismo judicial em tom de crítica, nada mais é do que o devido cumprimento das atribuições conferidas ao Poder Judiciário pela Constituição e demais normas que compõem o sistema legal brasileiro, não configurando nenhum extravasamento de  suas atribuições. Nem ativismo, propriamente dito, menos ainda, judicialização da política. Ao contrário, referido comportamento traduz a sua necessária e indispensável participação na tarefa de construir o direito de mãos dadas com os demais poderes do Estado, acelerando-lhes os passos quando necessário, contribuindo, sim, com a transformação e aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito.

“Da mihi factum, dabo tibi jus.”


REFERÊNCIAS

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Nota

[1] (OAB, 2012) Matéria publicada com o título: Blindagem política impede Justiça de processar governadores.


ABSTRACT: The judicial activism has emerged today as a recurring theme, especially the highly relevant as it has been presented in the legal, political and social, around the world. The elevation of the status of the judiciary branch of State, together with the strengthening of constitutionalism in post-war revealed a new face for the organization of contemporary states of law, making it even more stringent limits on the performance of their institutions, with the imposition of strict legality of their actions, the time that expanded the powers of interfering with each other, in a participatory manner, inspection and corrective, in order to ensure the legality quoted required, but also efficiency and effectiveness in the delivery of state obligations. Without pretending to exhaust such a vast subject, this paper seeks, therefore, address the key aspects of evolution and socio-political discussions arising from its consequences, indicating the relevance of judicial activism as an instrument for transforming the new democratic state.

KEYWORDS: Judicial Activism. Legalization of Politics. Separation of Powers. Constitution. Judiciary. Political powers. Public Policy. Democratic State.


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SOUZA, Valdelio Assis de. A função do ativismo judicial no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24257. Acesso em: 24 abr. 2024.