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Controle de convencionalidade: os direitos humanos como parâmetro de validade das leis

Controle de convencionalidade: os direitos humanos como parâmetro de validade das leis

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O controle de convencionalidade não se confunde com o controle de constitucionalidade, tampouco se aplica de forma subordinada ou mesmo subsidiária. Sua natureza é complementar.

"O erro não se torna verdade por se difundir e multiplicar facilmente. Do mesmo modo, a verdade não se torna erro pelo fato de ninguém ver".  

(Gandhi)

Resumo: Este trabalho aborda do tema controle de convencionalidade das leis, tendo como objetivo a compreensão dos aspectos dessa espécie de controle de validade dos atos normativos. A pesquisa parte da doutrina sobre o tema, seu conceito e tratamento na jurisprudência da Corte Interamericana de direitos, bem como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e demais cortes constitucionais latino-americanas. A seguir, pela distinção entre o controle de convencionalidade e o controle de constitucionalidade, é possível compreender com clareza os elementos fundamentais e característicos do primeiro. Passa-se à a análise dos fundamentos constitucionais para a sua aplicação no direito brasileiro, consideradas as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional 45/2004, especialmente no que diz respeito à posição hierárquica dos tratados sobre direitos humanos no ordenamento jurídico. Conclui-se que o controle de convencionalidade é essencial ao Estado de Direito, figurando o respeito aos direitos humanos como verdadeiro parâmetro de validade da produção normativa nacional.

Palavras-chave: CONVENCIONALIDADE, CONSTITUCIONALIDADE, CONTROLE, VALIDADE, DIREITOS HUMANOS.

Sumário: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I. CONCEITO DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. Capítulo II. DISTINÇÃO ENTRE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. Capítulo III. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS. Capítulo IV. A POSIÇÃO DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NA CR 88 – A TEORIA É COMPATÍVEL COM NOSSO ORDENAMENTO?Capítulo V. MODALIDADES DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. Capítulo VI. OS PARÂMETROS DO CONTROLE: BLOCO DE CONVENCIONALIDADE. Capítulo VII. ESTUDO DO CASO “GUERRILHA DO ARAGUAIA”.CONCLUSÃO.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objeto o controle de convencionalidade das leis, espécie de controle de validade dos atos normativos que ainda não consta dos manuais nacionais de Direito Constitucional em geral, que têm se dedicado somente ao controle de constitucionalidade. De fato, poucas são as obras já publicadas na Brasil que abordam o controle de convencionalidade, sendo certo que o primeiro autor a enfrentar o tema foi Valério de Oliveira Mazuolli, em monografia de doutoramento defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no ano de 2009 e publicada em 2010[1].

No âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a obrigação de controlar a convencionalidade foi declarada pela Corte Interamericana em 26 de setembro de 2006, quando do julgamento do caso “Almonacid Arellano e Outros contra Governo do Chile”, onde se afirmou que “o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos”.

Trata-se de formulação pretoriana, pela qual os Estados signatários do Pacto de São José da Costa Rica, em sua produção legislativa, têm a obrigação de adequar a sua produção legislativa às obrigações internacionais pertinentes à proteção dos direitos humanos das quais sejam signatários, sob pena de responsabilidade internacional. Fala-se em convencionalidade porque o paradigma de controle não é a constituição nacional, mas o texto das convenções internacionais a que o Estado se obrigou a cumprir, no que diz respeito à garantia dos direitos humanos.

Cumpre destacar a relevância do tema para o Direito Constitucional, pois, embora se adotem os direitos humanos como paradigma de controle (e não o texto da própria Constituição), o fato é que se trata de uma espécie de controle de validade das normas do ordenamento jurídico, com fundamento no respeito aos direitos humanos. Portanto, para a sua aplicação, é imperiosa a existência, na Carta Constitucional, de autorização para esse exercício.

Nessa seara, ganha importância a discussão acerca da natureza jurídica e da posição hierárquica dos tratados sobre direitos humanos no ordenamento jurídico nacional, tema que tem sido objeto de grande discussão no meio acadêmico e jurídico, em especial após a promulgação da emenda constitucional 45/2004, com destaque para a oscilação de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consideradas as relevantes decisões do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n° 466.343/SP e do HC 87.585/TO, no ano de 2008.

Embora o fenômeno somente tenha sido observado recentemente pela doutrina nacional, o amparo jurídico para a sua existência é mais antigo, remontando à entrada em vigor da própria Convenção Americana, em 18 de julho de 1972, ao passo que, em nosso ordenamento, encontra fundamento no próprio texto original da Constituição da República de 1988, em especial no seu artigo 5º e parágrafos, com relevante alteração após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004.

Desse modo, após estabelecidas as premissas do controle de convencionalidade, bem como identificados os fundamentos constitucionais de sua aplicação em nosso ordenamento jurídico, passaremos à identificação das suas características no direito nacional, além das diferentes espécies de controle, bem como do âmbito de seu exercício (difuso e concentrado, interno e externo).

Analisaremos, também, o parâmetro de controle, buscando responder à seguinte pergunta: a convencionalidade diz respeito somente aos textos das convenções e tratados, ou também deve ser observada a jurisprudência manifestada pelas cortes internacionais?

Finalmente, merece destaque o estudo do caso Guerrilha do Araguaia, no qual o Brasil foi recentemente condenado pela Corte Interamericana de Direitos, consoante constou do parágrafo 177 da sentença, onde se afirmou que “não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento”.

Busca-se, desse modo, uma maior compreensão do tema controle de convencionalidade, bem como os parâmetros em que deve ser exercido em nosso ordenamento e o verdadeiro alcance desse instituto, cujo fundamento é a efetividade e a máxima proteção dos direitos humanos.


CAPÍTULO I – CONCEITO DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

O controle de validade das leis, em sua abordagem tradicional, adota por paradigma a compatibilidade entre a norma legal e o texto constitucional, tema estudado no âmbito da teoria do controle de constitucionalidade, dentro do Direito Constitucional. Trata-se da aferição da compatibilidade entre o ato normativo e os limites formais e materiais impostos pela norma fundamental do ordenamento jurídico, sem o que a lei, mesmo que vigente, reputa-se inválida por vício de inconstitucionalidade.

Por sua vez, a temática do controle de convencionalidade somente ganhou relevo, no que diz respeito continente americano, a partir do julgamento do caso “Almonacid Arellano e Outros contra Governo do Chile” pela Corte Interamericana, em 26 de setembro de 2006. Da referida decisão, merece destaque a afirmação, constante do considerando 124, no sentido de que “o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos”.

Nesse sentido, observa-se que o controle de convencionalidade, nos termos da formulação pretoriana da Corte Interamericana, adota por paradigma a compatibilidade entre a norma legal nacional e as obrigações concernentes à proteção dos direitos humanos que um país se obrigou a respeitar por meio de tratados ou convenções internacionais, como é o caso da Convenção Americana.

No Brasil, o tema foi tratado pela primeira vez em monografia de doutoramento de Valerio de Oliveira Mazzuoli[2]. O pioneiro autor conceitua o controle de convencionalidade como uma forma de compatibilização entre as normas de direito interno e os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país[3]. Trata-se, portanto, de um controle de validade das normas nacionais, tendo por parâmetro não o texto constitucional, mas os compromissos internacionais assumidos em matéria de proteção aos direitos humanos.

Cumpre ressaltar que, embora os direitos humanos muitas vezes também possuam proteção constitucional, a convencionalidade é uma espécie diferente de controle, para além da constitucionalidade das leis, como será abordado minuciosamente em capítulo próprio. Isso porque o paradigma de proteção, em cada caso, é distinto, em razão do caráter subsidiário do Direito Internacional e do princípio pro homine, pelo qual as convenções sobre o tema somente têm aplicação quando a proteção do Estado nacional é insuficiente e, ainda assim, no que forem mais benéficas à proteção individual.

Portanto, o controle que compõe o tema desse estudo não se aplica quando a norma for incompatível com a Constituição, por si só, o que configuraria caso de inconstitucionalidade. De fato, uma lei somente será inconvencional quando, apesar de válida perante o texto constitucional, incutir em vício de invalidade por ser incompatível com os compromissos internacionais do país no que diz respeito á proteção de direitos humanos.

Deve-se observar que esse controle possui caráter complementar em relação à própria Constituição, uma vez que a proteção aos direitos humanos é fundamento do Estado Constitucional de Direito, de sorte que um país, quando firma compromisso visando à proteção da pessoa humana, nada mais faz do que reforçar essa proteção ao indivíduo, de modo a sempre garantir a aplicação da norma mais benéfica à dignidade individual, desígnio que se imiscui com a própria ideia contemporânea de Constituição.

Destarte, propõe-se a seguinte conceituação: o controle de convencionalidade é espécie de controle de validade de normas, complementar ao controle de constitucionalidade, pelo qual se verifica a adequação entre a legislação nacional e os compromissos internacionais assumidos pelo país perante a comunidade internacional para proteção dos direitos humanos.


Capítulo II. DISTINÇÃO ENTRE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Conforme vimos no capítulo anterior, o controle de convencionalidade é uma espécie de controle de validade de normas. Assim, para melhor compreensão do primeiro instituto, mostra-se relevante uma abordagem comparativa com o tradicional controle de constitucionalidade, traçando-se as convergências e divergências entre as duas formas de controle.

Nos termos da lição de Alexandre de Moraes, não se pode destituir o controle de constitucionalidade do ideal de supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, dos conceitos de rigidez constitucional e de proteção aos direitos fundamentais[4]. Nesse sentido, observa-se que o fundamento do controle é a ideia de que a produção normativa do Estado, por estar subordinada à norma constitucional, não poderá contrariá-la ou negar vigência ao seu texto, sob pena de invalidade, o que garante a unidade do sistema e a soberania representada pela constituição.

No que tange ao controle de convencionalidade, seu fundamento de validade está na proteção aos direitos humanos, podendo-se falar, inclusive, em supremacia dos direitos humanos sobre a normatividade interna. Cumpre destacar que essa supremacia não conflita, em momento algum, com a supremacia da Constituição nacional, uma vez que a própria ideia de constitucionalismo possui como fundamento intrínseco a garantia dos direitos fundamentais, como restou explícito, inclusive, da proposição de Alexandre de Moraes, acima referida.

Nesse sentido, esclarecedora a lição de Dalmo de Abreu Dallari acerca do alcance da expressão “direitos humanos”, quando afirma tratar-se de uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Para o ilustre autor, esses direitos são considerados fundamentais porque, sem eles, a pessoa humana não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente de vida, sofrendo óbice à sua própria existência[5]. De fato, a proteção aos direitos fundamentais é indissociável da Constituição, de modo em que não há de se falar em inconstitucionalidade quando uma norma amplia garantias fundamentais, seja essa norma legal ou seja um tratado internacional.

Estabelece-se, portanto, a fundamental distinção entre os dois controles: enquanto o primeiro tem por fundamento a supremacia da Constituição, o segundo tem como princípio fundamental a proteção aosdireitos humanos, no que esta estiver mais bem garantida pelos tratados internacionais de direitos humanos do que pelo texto constitucional, por si só.

Ademais, enquanto o controle de constitucionalidade tem por objetivo a unidade do ordenamento, retirando a validade das leis que contradizem a norma fundamental do sistema, o que se observa com relação à convencionalidade é um caráter complementar. Significa dizer que, enquanto a Constituição compõe o vértice da pirâmide normativa, servindo de fundamento para a unidade e coerência do ordenamento, o caráter das convenções de direitos humanos visa à garantia dos direitos humanos, pela exclusão de qualquer norma que, ainda que subsistente após um controle de mera constitucionalidade, implique em afronta a obrigações internacionais de caráter humanista.

É o que também afirma Mazzuoli, para quem “o controle de convencionalidade é um plus em relação ao seu controle de constitucionalidade”[6]. Nesse sentido, como bem identificou o autor, o filtro referente à convencionalidade das normas somente tem aplicação quando a proteção do tratado é mais ampla que aquela do texto constitucional, ou seja, quando houver conflito entre a norma e a convenção sobre direitos humanos. Conforme ensina o autor, a compatibilidade do direito doméstico com as convenções de direitos humanos é complementar do controle de constitucionalidade (e nunca subsidiário), tendo por finalidade a compatibilização vertical das normas domésticas, para adaptar ou conformar as leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado (na área de direitos humanos), que criam deveros no plano internacional com reflexos práticos no direito interno[7].

Portanto, verifica-se com clareza que, enquanto o controle de constitucionalidade tem por finalidade a garantia de unidade e coerência do ordenamento jurídico, a função do controle de convencionalidade é complementar, implicando em um reforço à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humano.

Deste ponto já se pode extrair a terceira distinção, pois, enquanto o controle de constitucionalidade estabelece limites formais e materiais para toda a produção normativa do Estado, extirpando as normas contrárias tanto ao procedimento de criação de leis quanto ao conteúdo material da constituição, o controle de convencionalidade tem natureza unicamente material, afastando a validade das normas infraconstitucionais que, em seu conteúdo, representem violação de direitos humanos, apesar de não implicarem em afronta direta ao texto constitucional (daí porque se fala em inconvencionalidade e não inconstitucionalidade).

É nessa questão, aliás, que se afasta qualquer proposição no sentido de que o controle de convencionalidade poderia violar a Constituição. Isso porque, tratando-se de um controle material, sua aplicação somente tem o condão de ampliar a proteção à pessoa humana. Assim, do mesmo modo que a lei infraconstitucional pode contrariar a constituição para expandir direitos e garantias, também pode o tratado internacional ampliar a proteção, para além da Constituição, sem que isso implique em uma violação, não havendo que se falar em violação do texto constitucional.

Finalmente, quanto ao seu âmbito, vale anotar que o controle de constitucionalidade é sempre nacional, enquanto o controle de convencionalidade pode ser tanto nacional quanto internacional, no primeiro caso ensejando a declaração de invalidade da lei e, na segunda hipótese, dando margem à eventual responsabilidade internacional pelo descumprimento de compromissos assumidos pelo país. Assim, enquanto o controle de constitucionalidade tem por órgão máximo a corte constitucional nacional, é possível que o controle de convencionalidade seja atribuído a cortes supranacionais, como é o caso da Corte Interamericana, responsável pelo respeito aos direitos humanos no âmbito do continente americano.

Nesse ponto, estabelecidas as principais distinções entre as duas espécies de controle, a continuidade da análise torna oportuno o exame da jurisprudência da Corte Interamericana sobre o tema. Desse modo, poderemos compreender os fundamentos da origem pretoriana do instituto, com o objetivo de esclarecer mais aspectos de sua natureza e de sua aplicação como parâmetro de validade normativa, sendo certo que a comparação com o controle de constitucionalidade estará presente ao longo de todo o estudo.


Capítulo III. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS

A origem do controle de convencionalidade no continente americano deve-se, em grande parte, à decisão da Corte Interamericana de Direitos, quando do julgamento do caso “Almonacid Arellano e Outros contra Governo do Chile”, em 26 de setembro de 2006, embora antes desse julgamento já houvesse fundamentos jurídicos para o exercício desse controle[8].

O referido caso foi submetido à Corte em 11 de julho de 2005, originado pela denúncia número 12.057, recebida em 15 de setembro de 1998. A demanda teve por fundamento a ocorrência de violação de direitos humanos em prejuízo dos familiares de Luis Alfredo Almonacid Arellano, pela falta de investigação e punição, pelo Chile, dos responsáveis pela sua execução extrajudicial no ano de 1973, no início da ditadura, além da falta de reparação adequada dos familiares, encontrando óbice na lei chilena de anistia adotada em 1978.

Na ocasião do julgamento, a Corte Interamericana concluiu, em síntese, que o assassinato de Almonacid Arellano fez parte de uma política de Estado de repressão a setores da sociedade civil, exemplo do grande conjunto de condutas ilícitas similares que se produziram durante essa época, configurando violação às regras básicas do direito internacional e crime contra a humanidade.

Assim, considerado o descumprimento pelo Estado de se obrigar a adequar seu direito interno à convenção americana, pela manutenção do Decreto-lei 2.191 (lei da anistita chilena), o Estado do Chile violou direitos e garantias judiciais de proteção judicial, em prejuízo dos familiares da vítima, descumprindo os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e violando os artigos 8.1 e 25 do mesmo tratado[9].

Da referida decisão, merece destaque o disposto no parágrafo número 124, onde foi feita referencia expressa à obrigação do Estado de controlar a convencionalidade das leis internas. Transcreve-se, em tradução livre (do espanhol para o português:

124.A Corte está ciente de que os juízes e tribunais internos estão sujeitos ao império da lei e, por isso, estão obrigados a aplicar as disposições vigentes do ordenamento jurídico. Contudo, quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus Juízes, como parte do aparato do Estado, também se submetem a ela, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam comprometidos pela aplicação de leis contrárias ao seu objeto e finalidade, e que desde sua origem carecem de efeitos jurídicos. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécia de “controle de convencionalidade” entre as normas jurídicas internas que aplicam e os casos concretos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação do mesmo pela Corte Americana, intérprete final da Convenção Americana. (grifei)

Como se vê, em sua primeira referência ao controle de convencionalidade, a Corte Americana fez menção expressa à existência de uma obrigação por parte do próprio aparato estatal, inclusive de seu Poder Judiciário e seus juízes, de controlar a convencionalidade das leis internas, reputando-se sem efeito desde a origem aquelas normas que violem as disposições da Convenção Americana, da qual a Corte Americana é a intérprete final.

Dessa afirmativa, observa-se claramente a existência de dois âmbitos no controle de convencionalidade: nacional e internacional, o primeiro exercido pelo próprio Estado signatário da Convenção, enquanto o segundo é realizado pela Corte Americana, destacando-se a prevalência do segundo sobre o primeiro, nos termos da jurisprudência da Corte.

Nesse mesmo sentido, a jurisprudência da Corte foi reiterada por ocasião do julgamento dos casos “Cantuta contra Perú”, de 29 de novembr0 de 2006 (parágrafo 173) e no caso “Boyce e otros contra Barbados”, de 20 de novembro de 2007 (parágrafo 78)[10].

Por sua vez, mais detalhes sobre a forma de exercício do controle de convencionalidade podem ser extraídos do caso “Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) contra Perú”, consoante os termos do parágrafo 128, mais uma vez em tradução livre para o português:

128.Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes também se submetem a ela, o que os obriga a velar para que o efeito útil da convenção não seja obstruído ou anulado pela aplicação de leis contrárias às suas disposições, objeto e finalidade. Em outras palabras, os órgãos do Poder Judiciário devem exercer não só um controle de constitucionalidade, mas também “de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, observados os limites de suas respectivas competências e das normas processuais correspondentes. Essa função não deve se limitar às manifestações ou atos dos demandantes em cada caso, mas não implica que esse controle deve ser exercido sempre, sem considerar outras ações formais e materiais admissíveis e tal.

Nesse caso, vê-se que a Corte faz menção ao controle de convencionalidade exercido “de ofício” pelo Poder Judiciário nacional, independentemente de provocação anterior ou de caso concreto em curso ou já decidido pela Corte Internacional, com a ressalva de que devem ser observados os procedimentos legais e as normas de competência do ordenamento de cada Estado.

De fato, implica em dizer que o controle de convencionalidade não se limita aos casos levados à Corte Interamericana ou à jurisprudência internacional e que, na forma desse entendimento, os juízes nacionais podem (e devem) observar e controlar a convencionalidade das normas legais em sua atuação, utilizando o texto da prórpia convenção como parâmetro de validade das normas do ordenamento, respeitadas, por questão de legalidade e competência, as regras nacionais pertinentes à sua atuação.

Destarte, consoante os aspectos delineados pela jurisprudência da Corte Interamericana de direitos, verifica-se que o controle de convencionalidade é exercido em âmbito nacional e internacional, no primeiro caso, nos termos das regras de competência de cada país, sendo a invalidade o principal efeito da inconvencionalidade, que implica na ausência de efeitos jurídicos, desde a sua origem, das normas nacionais que obstruam ou contrariem os dispositivos da convenção sobre direitos humanos.

Digno de nota, também, que o uso reiterado da expressão “quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana” pela Corte Interamericana em seus julgados permite inferir que o controle de convencionalidade somente possui lugar nos tratados que versem sobre direitos humanos, pois essa é a espécie de tratado na qual se enquadra a Convenção Americana. Isso porque, como visto no início deste trabalho, é o caráter fundamental dos direitos humanos que justifica a sua prevalência, por princípio, sobre as demais normas do ordenamento jurídico de ordem infraconstitucional[11].

 


Capítulo IV. A POSIÇÃO DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NA CR 88 – A TEORIA É COMPATÍVEL COM NOSSO ORDENAMENTO?

Vimos que a teoria do controle de convencionalidade é uma realidade no âmbito da jurisprudência da Corte Interamericana de direitos, para quem a aferição da compatibilidade entre o ordenamento jurídico nacional e os tratados internacionais sobre direitos humanos é uma obrigação não só do governo, mas de todo o Estado, inclusive do próprio Poder Judiciário.

Contudo, deve-se ter em mente que a própria Corte faz referência, no julgamento do caso “Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) contra Perú”[12] ao fato de que o exercício dessa atividade pelo Judiciário nacional observa os limites de competência estabelecidos na legislação nacional (sem afastar, repise-se, eventual responsabilidade internacional pelo descumprimento da convenção).

Nesse contexto, faz-se necessária uma análise do da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, pois tal esclarecimento é requisito imprescindível para o prosseguimento na análise dos contornos nacionais de nosso estudo sobre o controle de convencionalidade das leis.

Trata-se de tema polêmico, sendo digna de nota a oscilação do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, onde ainda não há consenso sobre o assunto. Em decisão histórica, proferida em 3 de dezembro de 2008 (HC 87.585/TO e RE 466.343/SP) por 5 votos a 4, o STF mudou seu posicionamento, passando a admitir que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm valor hierárquico prevalente sobre a legislação nacional.

Na ocasião, onde se questionava a impossibilidade da prisão civil pela aplicação do Pacto de San José da Costa Rica, duas correntes lideraram os debates: de um lado, vencedora na ocasião do julgamento e capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, a tese da supralegalidade dos tratados, situados em posição intermediária entre a Constituição e a produção normativa nacional; enquanto a tese minoritária foi proposta pelo Ministro Celso de Mello, no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos teriam valor de norma materialmente constitucional.

Cumpre destacar que a questão está longe de ser pacificada, mesmo porque dois ministros não participaram da votação, mas a importância histórica da decisão reside em que, ainda que não haja consenso sobre a natureza constitucional ou infraconstitucional desse tipo de tratado, houve significativo avanço em relação à jurisprudência anterior do STF, que colocava em nível de equivalência a legislação ordinária e todos os tratados internacionais (mesmo que sobre direitos humanos)[13].

Assim, temos que a predominância dos tratados de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional já é a posição dominante no STF, embora ainda haja dúvidas, na corte constitucional, acerca da natureza desses tratados, se constitucional ou supralegal. Não há dúvidas, entretanto, de que a matéria ainda será tema de grande discussão na jurisprudência nacional, de modo que se faz necessária a análise dos dispositivos constitucionais pertinentes.

A discussão sobre a natureza dos tratados de direitos humanos na doutrina pátria apresenta divisão desde a promulgação da Constituição de 1988. O cerne da controvérsia reside na redação do parágrafo 2º do art. 5º da CR, constante do capítulo I (dos direitos e deveres individuais e coletivos) do título II (dos direitos e garantias fundamentais):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (grifos nossos)

Posteriormente, com a finalidade de trazer luz à controvérsia inaugurada acerca da natureza desses tratados, o legislador constituinte derivado acrescentou, por meio da EC 45/2004, um parágrafo 3º ao art. 5º da CR, com a seguinte redação:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (grifei)

Ocorre que, ao invés da esperada pacificação da matéria, o que se verificou foi a persistência da controvérsia na doutrina, pois não esclareceu com precisão a situação das três situações no que diz respeito aos tratados internacionais sobre direitos humanos: 1) tratados anteriores à vigência da EC 45/04; 2) tratados posteriores à EC 45/04, ratificados pelo quorum qualificado do parágrafo 3º e, portanto, equivalentes às emendas constitucionais; 3) tratados posteriores à EC 45, mas ratificados pelo procedimento comum, sem utilização do parágrafo 3º.

Pela análise do texto constitucional, data vênia alguns entendimentos que buscam diferenciar a situação do primeiro e do terceiro caso (tratados ratificados pelo quorum simples, antes ou depois da vigência da EC 45/04), adotamos aqui a posição de Mazzuoli quanto à equivalência entre as duas situações. Isso porque o §3º do art. 5º não cria uma obrigação de que os tratados de direitos humanos sejam aprovados pelo quorum qualificado. Ao revez, o dispositivo constitucional autoriza essa ratificação qualificada, mas sem determinar que o Congresso o faça, de modo que está criando uma categoria nova de tratados[14].

Por sua vez, não restam dúvidas de que os tratados de direitos humanos, quando aprovados em cada casa do Congresso nacional, em dois turnos, pela maioria qualificada de 3/5 dos votos de seus membros, serão equivalentes a emendas constitucionais, o que implica dizer que terão natureza de norma material e formalmente constitucional, uma vez que, assim com as próprias emendas constitucionais, têm o condão de até mesmo reformar a constituição.

Adotada essa premissa, verifica-se que, quanto aos tratados aprovados sem a maioria qualificada do parágrafo 3º do art. 5º, a alteração do texto constitucional teve o mérito de reforçar o caráter prevalente dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional (e sobre os demais tratados internacionais), implicando em reflexos na jurisprudência do próprio STF, como visto acima, pela superação da tese anterior de equivalência entre as convenções de direitos humanos e a legislação ordinária.

Nesse sentido, importa transcrever o seguinte trecho do voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento do HC87.585:

Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.(...) a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE nO SO.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. (...) Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos.

Contudo, também merece destaque a posição adotada pelo Ministro Celso de Mello, amparado por doutrina de escol, para quem os tratados de direito internacional sobre direitos humanos, ainda que ratificados por quorum simples, possuem natureza de norma materialmente constitucional, integrando o bloco de constitucionalidade, uma vez que o §2º da CR representa cláusula de abertura de direitos, com a finalidade de proteger os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, transcrevo o seguinte trecho do voto do ilustre Ministro Celso de Mello, também no julgamento do HC87.585:

“Reconheço, no entanto, Senhora Presidente, que há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE (“Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”, vol. I/513, item n. 13, 2ª ed., 2003, Fabris), FLÁVIA PIOVESAN (“Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 51/77, 7ª ed., 2006, Saraiva), CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, p. 16/18, 2005, Manole) e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Curso de Direito Internacional Público”, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC nº 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.

De toda sorte, o que se verifica do contexto acima traçado é que, especialmente em virtude da promulgação da EC 45, não há mais dúvidas quanto à prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre toda a produção normativa infraconstitucional, seja pelo caráter de equivalência de emenda constitucional dos tratados aprovados pela sistemática do §3º da CR, seja pelo caráter supralegal (ou materialmente constitucional, conforme a posição do Ministro Celso de Mello) dos demais tratados de direitos humanos em vigor, por decorrência do §2º da Constituição da República.

Como se vê, a teoria do controle de convencionalidade possui fundamentação fortemente ancorada no texto constitucional, não restando dúvidas quanto à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se, de fato, de teoria que complementa a ideia de supremacia da constituição, como reforço das garantias fundamentais e da dignidade humana.


Capítulo V. MODALIDADES DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

O controle de convencionalidade, consoante visto nos capítulos anteriores, pode ter âmbito nacional (quando realizado por órgãos do próprio Estado) ou supranacional (caso levado a efeito por uma corte internacional).

Isso porque, conforme restou assentado anteriormente, já não se pode negar que, no contexto atual, a validade da legislação já não depende apenas de sua compatibilidade com a Constituição da República, pois é imperiosa a sua adequação, também, às convenções internacionais de proteção aos direitos humanos.

No âmbito do controle nacional de convencionalidade, deve-se ter em mente a existência das duas categorias de tratados internacionais sobre direitos humanos em nosso ordenamento, conforme debatido no capítulo anterior, em razão do procedimento especial de recepção inaugurado por meio do §3º do art. 5º da CR, acrescentado pela EC45/04.

Quando um tratado é aprovado por essa sistemática, com quorum qualificado e, portanto, natureza equivalente à de emenda constitucional, admitem-se no controle de convencionalidade todos os instrumentos pertinentes ao controle de constitucionalidade, inclusive as ações constitucionais, pois a convenção, nesse caso, tem natureza de norma formal e materialmente constitucional. Desse modo, o controle de convencionalidade das referidas normas poderá ser tanto difuso, quando realizado na via de exceção, quanto concentrado, tomando-se para tanto as ações diretas de defesa da constituição.

Por sua vez, nos tratados apenas materialmente constitucionais (ou supralegais), que são aqueles que, apesar de versarem sobre direitos humanos, não foram submetidos à aprovação por quorum qualificado do §3º do art. 5º da CR, o controle jurisdicional de convencionalidade será sempre difuso, não sendo possível a utilização da via concentrada, em razão da falta de natureza formalmente constitucional.

Nesse sentido, magistral a lição de Mazzuoli[15], que ensina:

Em suma, todos os tratados que formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que um Estado é parte servem como paradigma ao controle de constitucionalidade/convencionalidade, com as especificações que se fez acima: a) tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado (equivalentes às emendas constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente, do controle difuso) de convencionalidade, cabendo, v.g., uma ADI no STF a fim de invalidar norma infraconstitucional com eles incompatível; b) tratados de direitos humanos que têm somente “status de norma constitucional” (não sendo “equivalentes às emendas constitucionais” dada a não aprovação pela maioria qualificada do art. 5º, §3º) são paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade, o qual pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal num caso concreto. Nesse último caso, os juízes e tribunais se fundamentam em tais tratados (de status constitucional) para declarar inválida uma lei que os afronte, da mesma maneira que se fundamentam na Constituição (no controle difuso de constitucionalidade) para invalidar norma infraconstitucional que contra o Texto magno vem a se insurgir.

O pioneiro autor nacional a tratar sobre o tema, como se vê no trecho acima, bem identificou a existência de duas modalidades de controle jurisdicional de convencionalidade, qual seja, o controle difuso e o concentrado. Cumpre destacar que, no caso do controle concentrado, sempre haverá um concomitante controle de constitucionalidade, ante a natureza também formalmente constitucional da convenção. Isso se explica porque as cortes judiciais nacionais, dentre elas as cortes constitucionais, estão autorizadas a realizar tanto um controle quanto o outro.

Não há que se falar, nesse caso, em controle apenas de constitucionalidade, pois o que existe é um controle concomitante, realizado pela Corte Constitucional. Ocorre que, nessas situações, o controle de constitucionalidade ocorrerá em instância definitiva, enquanto a convencionalidade ainda poderá ser submetida a outra instância de apreciação, de caráter supranacional, razão pela qual pode-se falar em controle de constitucionalidade/convencionalidade nesse caso específico.

Finalmente, por serem os tratados internacionais sobre direitos humanos considerados pressupostos de validade das normas infraconstitucionais, tanto para a jurisprudência da Corte Interamericana quanto do STF[16], também mostra-se possível a realização do controle preventivo de convencionalidade, nos mesmos moldes do controle preventivo de constitucionalidade, que diz respeito à fase de tramitação dos projetos de lei, por meio das comissões parlamentares ou mesmo mediante veto presidencial.

É possível, dessarte, identificar com clareza as modalidades do controle de convencionalidade em nosso ordenamento, dividindo-se em controle supranacional (quando realizado pela Corte Interamericana) ou nacional, com a subdivisão deste último preventivo (quando político) ou repressivo (quando jurisdicional). Por sua vez, o controle jurisdicional (e nacional) de convencionalidade comporta exercício tanto pela via difusa (quando em matéria de exceção, perante qualquer juiz ou Tribunal competente para a demanda) quanto pela via concentrada (quando houver aprovação do tratado internacional na forma do §3º do art. 5º da CR).


Capítulo VI. OS PARÂMETROS DO CONTROLE: BLOCO DE CONVENCIONALIDADE

Estabelecidos diversos dos aspectos do controle de convencionalidade, bem como constatada a sua existência e aplicabilidade em nosso ordenamento, mostra-se oportuno um exame mais detido sobre os parâmetros do controle de convencionalidade.

De fato, a matéria chegou a ser tangenciada no capítulo III, quando transcritas as decisões dos casos “Almonacid Arellano e Outros contra Governo do Chile” e “Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) contra Perú”, mas pareceu mais adequado deixar a análise do tema para momento posterior ao estudo dos traços nacionais do controle de convencionalidade (inclusive em termos doutrinários e jurisprudenciais).

Isso porque, ao contrário do que pode parecer em leitura superficial, deve-se observar que a Corte Interamericana, em sua jurisprudência, faz referência ao controle tendo por fundamento não só o texto da convenção americana sobre direitos humanos (Pacto de São José da Costa Rica), mas também os textos dos demais pactos de direitos componentes do sistema americano interamericano (desde que ratificados pelo país em questão) a própria jurisprudência da Corte Internacional, tanto em casos concretos como em suas opiniões consultivas[17].

Trata-se de conclusão que decorre da própria natureza do controle de convencionalidade, que diz respeito à garantia e proteção da pessoa humana. Nesse sentido, quando da realização do controle, especialmente na sua aplicação aos casos concretos, deve-se considerar não somente o texto literal do tratado, mas buscar a verdadeira efetivação da proteção aos direitos humanos, que compõe a finalidade última do sistema de proteção (e do próprio Estado de Direito).

Nesse sentido, deve-se cuidar para que não haja uma “nacionalização do controle de convencionalidade”, o que implicaria em fazer um leitura do tratado à luz da legislação infraconstitucional. Isso porque, ao controlar o respeito às obrigações de direitos humanos, especialmente na modalidade judicial, o intérprete do texto do tratado internacional não pode retirá-lo do contexto em que foi produzido, devendo levar em consideração, portanto, todo o corpo normativo que forma a convenção, bem como a jurisprudência internacional da Corte Interamericana sobre a convenção.

Importa dizer, de fato, que a adequação e compatibilização que constitui o controle de convencionalidade não pode implica em uma “nacionalização do tratado”, pois a norma internacional não pode ser retirada do contexto em que foi celebrada, em uma leitura nacionalista de seu conteúdo, o que poderia esvaziar o próprio sistema de proteção.

Ao contrário, o que se verifica é que os tratados de proteção à pessoa humana assumem caráter complementar em relação à Constituição nacional, ampliando o seu aspecto protetivo para que, a partir desse conjunto, que inclui a jurisprudência da Corte Constitucional e da Corte Internacional, faça-se uma nova leitura da legislação infraconstitucional, comparada com o que pode ser chamado de um bloco de convencionalidade.

Reside aí a importância do controle de convencionalidade para a prevalência e proteção dos direitos humanos, pois se a norma é internacional, sua interpretação não pode desconsiderar o contexto de sua formação, de modo que o verdadeiro sentido da norma de proteção aos direitos humanos em sua efetividade, considerada, portanto, a jurisprudência da corte internacional para a aferição de validade da norma nacional, e nunca o texto da norma nacional (infraconstitucional) como parâmetro de interpretação do tratado.

Cumpre destacar que não se deve falar em violação de soberania, uma vez que o controle de convencionalidade não se aplica a qualquer tratado internacional, mas somente àqueles que asseguram a proteção aos direitos humanos, sendo decorrência da própria boa-fé a conclusão de que, se um Estado se compromete internacionalmente com uma norma de proteção à pessoa humana, não há que se falar em posterior violação dessa postura, pois tal violação implicaria não em um ato de soberania, mas em verdadeira violação pelo Estado à soberania nacional, que não pode admitir retrocessos em matéria de direitos humanos.

O tema é certamente polêmico, pois implica na relativização de diversos conceitos tradicionais relacionados à soberania estatal, mas o que se deve observar é que, de fato, a noção de soberania estatal merece uma releitura sob a perspectiva pós-moderna, para que seu significado se aproxime mais da ideia de soberania do Estado de Direito.

Cabe observar, ainda, que a questão acerca da legitimidade da Corte Interamericana como intérprete maior do controle de convencionalidade ainda não foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, mas a matéria não tardará a alcançar a nossa Suprema Corte, tendo em vista a recente condenação de nosso país no julgamento do caso “Guerrilha do Araguaia”, que compõe o tema de estudo do próximo capítulo.


Capítulo VII. ESTUDO DO CASO “GUERRILHA DO ARAGUAIA”

Conforme visto na parte final do capítulo anterior, o governo brasileiro foi objeto de recente condenação pela Corte Interamericana de Direitos, em razão da falta de apuração dos crimes contra a humanidade praticados no episódio conhecido como “guerrilha do Araguaia”[18]. O caso ganha relevo porque a sentença da Corte Interamericana foi proferida após decisão do STF, proferida em 29 de abril de 2010 na Ação de Descumprimento número 153, onde se afirmou a constitucionalidade da lei brasileira nº 6.683/78, sob o fundamento de que “a Lei de Anistia representou, em seu momento, uma etapa necessária no processo de reconciliação e redemocratização do país” e que “não se tratou de uma autoanistia”

Desde o início, é fácil notar a semelhança entre este caso e aquele que deu origem à própria teoria do controle de convencionalidade no âmbito da Convenção Americana, quando da condenação do governo do Chile pela falta de apuração da execução extrajudicial de Almonacid Arellano, com fundamento em lei de anistia chilena, datada do ano de 1978.

Ademais, em ambos os casos, foi oferecida (e parcialmente superada) defesa preliminar com fundamento na falta de competência temporal da Corte Interamericana, pois os fatos teriam ocorrido anteriormente ao reconhecimento da jurisprudência da Corte pela jurisdição nacional. Trata-se de argumento que não pode prosperar, como bem reconheceu a Corte, nos termos do parágrafo 12 e 13 da decisão (grifei):

12. O Estado alegou a incompetência da Corte Interamericana para examinar supostas violações que teriam ocorrido antes do reconhecimento da competência contenciosa do Tribunal. Esse reconhecimento foi realizado “sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998”. Não obstante, o Brasil reconheceu a jurisprudência da Corte, no sentido de que pode conhecer das violações continuadas ou permanentes, mesmo quando iniciem antes do reconhecimento da competência contenciosa do Tribunal, desde que se estendam além desse reconhecimento, mas enfatizou que é inequívoca a falta de competência da Corte para conhecer das detenções arbitrárias, atos de tortura e execuções extrajudiciais ocorridas antes de 10 de dezembro de 1998.

13. A Comissão afirmou que, em virtude das datas de ratificação da Convenção Americana e do reconhecimento da competência contenciosa do Tribunal por parte do Estado, a demanda se refere unicamente às violações dos direitos previstos na Convenção Americana que persistem depois desse reconhecimento de competência, em razão da natureza continuada do desaparecimento forçado ou que são posteriores a esse reconhecimento. Desse modo, afirmou que a Corte tem competência para conhecer das violações apresentadas na demanda.

No caso, a violação diz respeito ao à detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985). Nesse sentido, considerando-se que se trata de crime de desaparecimento forçado, praticado pelo Estado Brasileiro e até a presente data ainda não esclarecido, a Corte adotou como fundamento o caráter continuado da violação de direitos humanos que, de fato, justifica a sua competência para o feito.

Ademais, nos termos do parágrafo 18, afirmou a Corte que:

18. Além disso, o Tribunal pode examinar e se pronunciar sobre as demais violações alegadas, que se fundamentam em fatos que ocorreram ou persistiram a partir de 10 de dezembro de 1998. Ante o exposto, a Corte tem competência para analisar os supostos fatos e omissões do Estado, ocorridos depois da referida data, relacionados com a falta de investigação, julgamento e sanção das pessoas responsáveis, inter alia, pelos alegados desaparecimentos forçados e execução extrajudicial; a alegada falta de efetividade dos recursos judiciais de caráter civil a fim de obter informação sobre os fatos; as supostas restrições ao direito de acesso à informação, e o alegado sofrimento dos familiares. (grifei)

Fixada a competência da Corte Interamericana e os limites da demanda nos termos acima (crimes de caráter permanente e violações continuadas referentes ao direito de informação pela violações de direitos humanos), merece destaque a afirmação constante do parágrafo 49 da sentença (grifei):

Em numerosas ocasiões, a Corte Interamericana afirmou que o esclarecimento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas obrigações internacionais, em virtude da atuação de seus órgãos judiciais, pode levar este Tribunal a examinar os respectivos processos internos, inclusive, eventualmente, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana[19], o que inclui, eventualmente, as decisões de tribunais superiores. No presente caso, não se solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria do pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento No. 153 (infra par. 136), mas que este Tribunal realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana. Consequentemente, as alegações referentes a essa exceção são questões relacionadas diretamente com o mérito da controvérsia, que podem ser examinadas por este Tribunal à luz da Convenção Americana, sem contrariar a regra da quarta instância. O Tribunal, portanto, desestima esta exceção preliminar.

Como se vê, esse trecho do julgado expressa exatamente aquilo que por nós foi afirmado nos capítulos II e V deste trabalho, no sentido de que uma das principais distinções entre o controle de convencionalidade e o controle de constitucionalidade está no parâmetro de controle. Ou seja, quando do exame de convencionalidade, não se examina a compatibilidade da norma com a Constituição, mas o descumprimento de obrigações internacionais quanto ao respeito de direitos humanos.

Nesse sentido, o parágrafo 126 sintetiza os limites e os objetos do julgamento:

126. No presente caso, a responsabilidade estatal pelo desaparecimento forçado das vítimas não se encontra controvertida (supra pars. 116 e 118). No entanto, as partes discrepam a respeito das obrigações internacionais do Estado, decorrentes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, que, por sua vez, reconheceu a competência contenciosa deste Tribunal em 1998. Desse modo, a Corte Interamericana deve decidir, no presente caso, se a Lei de Anistia sancionada em 1979 é ou não compatível com os direitos consagrados nos artigos 1.1, 2, 8.1 e 25 da Convenção Americana ou, dito de outra maneira, se aquela pode manter seus efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado obrigou-se internacionalmente a partir da ratificação da Convenção Americana.

Na mesma linha, o parágrafo 136 implica no reconhecimento de que a lei de anistia, por impedir o esclarecimento dos crimes contra a humanidade sob julgamento, não pode produzir efeitos por vício de inconvencionalidade. Transcreve-se:

Em virtude dessa lei, até esta data, o Estado não investigou, processou ou sancionou penalmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar, inclusive as do presente caso. Isso se deve a que “a interpretação da Lei de Anistia absolve automaticamente todas as violações de direitos humanos que tenham sido perpetradas por agentes da repressão política”.

Nos termos do parágrafo 177 e 180, restou salientada a necessidade de que o Brasil realize o Controle de convencionalidade da lei de anistia, considerando-se o princípio da responsabilidade internacional em relação à obrigações internacionais voluntariamente contraídas:

177. No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos sus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno.

188.Com base nas considerações acima, a Corte Interamericana conclui que, devido à interpretação e à aplicação conferidas à Lei de Anistia, a qual carece de efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, nos termos antes indicados (particularmente, supra par. 171 a 175), o Brasil descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado. Adicionalmente, o Tribunal conclui que, pela falta de investigação dos fatos, bem como da falta de julgamento e punição dos responsáveis, o Estado violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado, em detrimento dos seguintes familiares das vítimas: (...).

Por fim, a Corte Interamericana declarou, dentre outras medidas, que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, não podendo seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

Como se vê, trata-se do primeiro caso prático em que o Brasil se vê condenado por não realizar adequadamente, mesmo na última instância nacional, a convencionalidade de normativo legal infraconstitucional. Nesse sentido, será preciso aguardar um novo pronunciamento do STF acerca do tema, sobre o qual inexiste pronunciamento de nossa Corte Constitucional. Contudo, consideradas as disposições dos parágrafos 2º e 3º do artigo 5º da CR, na linha do que foi examinado no capítulo IV do presente trabalho e, à luz da própria jurisprudência do HC 87.585, julgado em 2008, é de se esperar que a suprema corte nacional adote a posição da Corte Interamericana, como, aliás, tem sido a postura das demais cortes constitucionais latino-americanas.

Nesse sentido, inclusive, bem aponta Mazzuoli[20] que, em decisão de 26 de novembro de 2010, no caso “Cabrera Gracia e Montiel Flores Vs. Mexico”, a Corte Interamericana afirmou com veemência o caráter obrigatório do controle de convencionalidade, citando, inclusive, a jurisprudência de diversas cortes constitucionais de países componentes do Pacto de São José (Costa Rica, Bolívia, República Dominicana, Bolívia, Peru, Argentina e Colômbia), conforme transcrito pela Corte a partir do parágrafo entre os parágrafos 225 e 232 da sentença (grifos meus, para destaque):

225 Este Tribunal ha establecido en su jurisprudencia que es consciente de que las autoridades internas están sujetas al imperio de la ley y, por ello, están obligadas a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado es Parte de un tratado internacional como la Convención Americana, todos sus órganos, incluidos sus jueces, también están sometidos a aquél, lo cual les obliga a velar por que los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermados por la aplicación de normas contrarias a su objeto y fin. Los jueces y órganos vinculados a la administración de justicia en todos los niveles están en la obligación de ejercer ex officio un “control de convencionalidad” entre las normas internas y la Convención Americana, evidentemente en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes. En esta tarea, los jueces y órganos vinculados a la administración de justicia deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.

226. Así, por ejemplo, tribunales de la más alta jerarquía en la región se han referido y han aplicado el control de convencionalidad teniendo en cuenta interpretaciones efectuadas por la Corte Interamericana. La Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica ha señalado que: debe advertirse que si la Corte Interamericana de Derechos Humanos es el órgano natural para interpretar la Convención Americana sobre Derechos Humanos […], la fuerza de su decisión al interpretar la convención y enjuiciar leyes nacionales a la luz de esta normativa, ya sea en caso contencioso o en una mera consulta, tendrá –de principio- el mismo valor de la norma interpretada.  

227. Por su parte, el Tribunal Constitucional de Bolivia ha señalado que: En efecto, el Pacto de San José de Costa Rica, como norma componente del bloque de constitucionalidad, est[á] constituido por tres partes esenciales, estrictamente vinculadas entre sí: la primera, conformada por el preámbulo, la segunda denominada dogmática y la tercera referente a la parte orgánica. Precisamente, el Capítulo VIII de este instrumento regula a la C[orte] Interamericana de Derechos Humanos, en consecuencia, siguiendo un criterio de interpretación constitucional “sistémico”, debe establecerse que este órgano y por ende las decisiones que de él emanan, forman parte también de este bloque de constitucionalidad. Esto es así por dos razones jurídicas concretas a saber: 1) El objeto de la competencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos; y, 2) La aplicación de la doctrina del efecto útil de las sentencias que versan sobre Derechos Humanos.

228. Asimismo, la Suprema Corte de Justicia de República Dominicana ha establecido que: en consecuencia, es de carácter vinculante para el Estado dominicano, y, por ende, para el Poder Judicial, no sólo la normativa de la Convención Americana sobre Derechos Humanos sino sus interpretaciones dadas por los órganos jurisdiccionales, creados como medios de protección, conforme el artículo 33 de ésta, que le atribuye competencia para conocer de los asuntos relacionados con el cumplimiento de los compromisos contraídos por los Estados partes[21].

229. De otro lado, el Tribunal Constitucional del Perú ha afirmado que: La vinculatoriedad de las sentencias de la C[orte Interamericana] no se agota en su parte resolutiva (la cual, ciertamente, alcanza sólo al Estado que es parte en el proceso), sino que se extiende a su fundamentación o ratio decidendi, con el agregado de que, por imperio de la [Cuarta Disposición Final y Transitoria (CDFT)] de la Constitución y el artículo V del Título Preliminar del [Código Procesal Constitucional], en dicho ámbito la sentencia resulta vinculante para todo poder público nacional, incluso en aquellos casos en los que el Estado peruano no haya sido parte en el proceso. En efecto, la capacidad interpretativa y aplicativa de la Convención que tiene la C[orte Interamericana], reconocida en el artículo 62.3 de dicho tratado, aunada al mandato de la CDFT de la Constitución, hace que la interpretación de las disposiciones de la Convención que se realiza en todo proceso, sea vinculante para todos los poderes públicos internos, incluyendo, desde luego, a este Tribunal.

230. Dicho Tribunal también ha establecido que:se desprende la vinculación directa entre la Corte Interamericana de Derechos Humanos y este Tribunal Constitucional; vinculación que tiene una doble vertiente: por un lado, reparadora, pues interpretado el derecho fundamental vulnerado a la luz de las decisiones de la Corte, queda optimizada la posibilidad de dispensársele una adecuada y eficaz protección; y, por otro, preventiva, pues mediante su observancia se evitan las nefastas consecuencias institucionales que acarrean las sentencias condenatorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos para la seguridad jurídica del Estado peruano.

231. La Corte Suprema de Justicia de la Nación de Argentina ha referido que las decisiones de la Corte Interamericana “resulta[n] de cumplimiento obligatorio para el Estado Argentino (art. 68.1, CADH)”, por lo cual dicha Corte ha establecido que “en principio, debe subordinar el contenido de sus decisiones a las de dicho tribunal internacional”[22]. Igualmente, dicha Corte Suprema estableció “que la interpretación de la Convención Americana sobre Derechos Humanos debe guiarse por la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos” ya que se “trata de una insoslayable pauta de interpretación para los poderes constituidos argentinos en el ámbito de su competencia y, en consecuencia, también para la Corte Suprema de Justicia de la Nación, a los efectos de resguardar las obligaciones asumidas por el Estado argentino en el Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos”.

232. Además, la Corte Constitucional de Colombia ha señalado que en virtud de que la Constitución colombiana señala que los derechos y deberes constitucionales deben interpretarse “de conformidad con los tratados internacionales sobre derechos humanos ratificados por Colombia”, se deriva “que la jurisprudencia de las instancias internacionales, encargadas de interpretar esos tratados, constituye un criterio hermenéutico relevante para establecer el sentido de las normas constitucionales sobre derechos fundamentales”.


 CONCLUSÃO

Como se vê, o controle de convencionalidade já é uma realidade no âmbito da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, tratando-se de teoria que, ademais é plenamente compatível com o ordenamento constitucional brasileiro, em especial por aplicação do disposto nos parágrafos 2º e 3º da Constituição da República.

Trata-se de espécie de controle cujo fundamento é o respeito aos direitos humanos e da soberania do Estado de Direito, sendo certo que, tornando-se signatário de uma convenção sobre direitos humanos, não se pode admitir o retrocesso de um Estado no sentido de justificar-se que um governo nacional promova ou mesmo tolere a prática ou a manutenção dos efeitos de graves violações de direitos humanos em seu território, à revelia dos compromissos internacionais assumidos. De fato, deve-se observar que tal retrocesso é que implicaria em afronta à ordem constitucional, pois é dela que deriva a proteção da dignidade humana como fundamento da República.

Verifica-se, ademais, que essa espécie de controle não se confunde com o controle de constitucionalidade, tampouco se aplica de forma subordinada ou mesmo subsidiária ao referido controle. Ao contrário, a natureza do controle de convencionalidade é complementar. Isso implica dizer que, aliado a todo o sistema constitucional de limitação da produção de normas jurídicas, que tem caráter formal (limites de competência e procedimento) e material (limites relativos ao conteúdo da norma infraconstitucional), existe também um limite formal material de convencionalidade[23].

Destaca-se, nesse ponto, que o referido limite de convencionalidade não se limita ao texto dos tratados firmados, tampouco se interpreta com fundamento na legislação nacional, o que configuraria uma indevida “nacionalização do texto do tratado ou convenção”. Exatamente por isso que se fala em complementaridade do sistema, rejeitando-se eventual uso da expressão subsidiariedade[24].

Importa em dizer que o parâmetro de controle da convencionalidade não se limita ao texto da convenção, mas engloba todo o corpo que se pode denominar “bloco de convencionalidade”, integrado por todos os tratados de direitos humanos que compõe o sistema interamericano (desde que ratificados pelo país), além da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos (no que diz respeito ao Sistema Americano) e até mesmo seus pareceres consultivos.

De fato, não respeitar tais parâmetros implicaria em fazer um controle de legalidade do tratado, postura incompatível com o que foi decidido pelo próprio STF no âmbito do HC87.585, onde restou assentado que as obrigações de direitos internacionais sobre direitos humanos pairam sobre o sistema infraconstitucional, quer venha a prevalecer sua natureza materialmente constitucional (posição do Ministro Celso de Mello, à qual nos filiamos), quer se adote a teoria do voto condutor (Min. Gilmar Mendes), no sentido da supralegalidade de tais obrigações.

Nesse sentido, verifica-se que a chave da questão está na própria sistemática pela qual se realiza o controle, com base no princípio pro homine, uma vez que o sistema internacional de garantias se combina ao sistema constitucional de proteção aos direitos humanos, complementando-se de forma a se extrair um corpo normativo de proteção máxima aos direitos humanos, que resulta na análise da produção legislativa constitucional por meio de uma lente que combina ambos os controles, de constitucionalidade e de convencionalidade. Assim, garante-se a soberania do Estado Constitucional de Direito, que só pode ser classificado dessa forma quando garante o respeito à dignidade humana.


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Notas

[1] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Direito Interno. Saraiva. 2010.

[2] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Direito Interno. Saraiva. 2010.

[3] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011 – p. 73.

[4] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16ªed. São Paulo: Atlas, 2004. P. 598.

[5] DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania, 1993, p. 472, apud RAMOS, André de Carvalho.

[6] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011 – p. 137.

[7] Idem, pps. 132-133.

[8] Segundo Mazzuoli, op cit., p. 84, a obrigação de controlar a convencionalidade das leis remonta à entrada em vigor da Convenção Americana, em 18 de julho de 1978, nos termos do seu art. 74,2, embora a primeira menção expressa da Corte a esse controle só tenha ocorrido no referido julgado (Almonacid contra Chile), no ano de 2006.

[9] Conclusão constante do parágrafo 129 da decisão do caso Almonacid contra Chile, disponível em espanhol na página virtual da Corte Americana < http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm>, acesso em maio de 2012.

[10] JINESTA, ERNESTO. “Control de Convencionalidad Ejercido por los Tribunales y Salas Constitucionales". P. 5.

[11] Sobre o tema do controle de validade do ordenamento jurídico em face dos tratados internacionais comuns, ou seja, que versam sobre matéria outra que não a proteção de direitos humanos, Mazzuoli (op. cit.) afirma possuírem caráter de supralegalidade, dando origem ao que o ilustre autor denomina “controle de supralegalidade”. A matéria, contudo, foge ao enfoque do presente trabalho, bastando para o momento a conclusão de que o controle de convencionalidade se limita aos tratados sobre direitos humanos, cujo fundamento, como visto nos capítulos I e II, remonta ao caráter fundamental desses direitos.   

[12] Parágrafo 128, parte final, conforme estudado no capítulo III desta monografia.

[13] Sobre os fundamentos do posicionamento anterior do STF: RE344585/RS.

[14] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011 – pps. 66/69.

[15] Op. cit, pp. 153.

[16] Jurisprudência abordada nos capítulos III e IV.

[17] JINESTA, ERNESTO. “Control de Convencionalidad Ejercido por los Tribunales y Salas Constitucionales". Pps. 9/10.

[18] Caso “Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) contra Brasil”

[19] Cf. Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros) versus Guatemala. Mérito. Sentença de 19 de novembro de 1999. Série C No. 63, par. 222; Caso Escher e outros, supra nota 27, par. 44, e Caso Da Costa Cadogan, supra nota 35, par. 12.

[20] Op. cit, pps. 88/90.

[21] Resolución No. 1920-2003 emitida el 13 de noviembre de 2003 por la Suprema Corte de Justicia de República Dominicana.

[22] Sentencia emitida el 23 de diciembre de 2004 por la Corte Suprema de Justicia de la Nación, República Argentina (Expediente 224. XXXIX), “Espósito, Miguel Angel s/ incidente de prescripción de la acción penal promovido por su defensa”, considerando 6.

[23] Mazzuoli, op cit., p. 167.

[24] Mazzuoli, op cit., p. 136.


ABSTRACT: This work approaches the theme of conventionality control, seeking to understand this kind of control on the validity of normative acts. Research starts with an approach on the literature and the jurisprudence of the Inter-American Court of Rights, the Brazilian Supreme Court and the constitutional courts in Latin America. Study proceeds with the distinction between conventionality control and the constitutionality control, to understand the elements and characteristics of the first. The analysis goes with the constitutional legitimacy for this control, considering the 1988 Brazilian Constitution and the Constitutional Amendment 45/2004, especially with regards to the hierarchical position of human rights treaties in the legal system. The conclusion is that the conventionality control is essential to the Rule of Law, figuring the respect to human rights as a real parameter to the production and validity of the national laws.

Keywords: CONVENCIONALITY, CONSTITUTIONALITY, CONTROL, VALIDITY, HUMAN RIGHTS.



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LEITE, Marcos Thadeu Alvarenga. Controle de convencionalidade: os direitos humanos como parâmetro de validade das leis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3635, 14 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24711. Acesso em: 19 abr. 2024.