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Atual juridicidade dos pisos salariais legalmente fixados em múltiplos do salário mínimo

Atual juridicidade dos pisos salariais legalmente fixados em múltiplos do salário mínimo

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As leis fixadoras de pisos salariais em múltiplos do mínimo são inconstitucionais.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar a atual situação jurídica dos pisos salariais legalmente fixados em múltiplos do salário mínimo, ante a vedação constitucional constante no art. 7º, IV, da CF/88 e o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 151, que declarou inconstitucional o piso salarial dos técnicos em radiologia previsto no art. 16 da Lei 7.394/85.


EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO SOBRE A MATÉRIA

Inicialmente, cumpre destacar que a fixação de pisos salariais em múltiplos do salário mínimo não representa apenas uma exclusividade dos técnicos em radiologia cujo diploma normativo foi objeto de julgamento pelo STF, sendo este também o caso dos pisos fixados para categoria dos engenheiros e dos médicos, conforme se infere, respectivamente, das Leis 4.950-A/66 e 3.999/61:

Lei 4.950-A/66

[..]

Art . 5º Para a execução das atividades e tarefas classificadas na alínea a do art. 3º, fica fixado o salário-base mínimo de 6 (seis) vêzes o maior salário-mínimo comum vigente no País, para os profissionais relacionados na alínea a do art. 4º, e de 5 (cinco) vezes o maior salário-mínimo comum vigente no País, para os profissionais da alínea b do art. 4º.

Lei 3.999/61

Art. 5º Fica fixado o salário-mínimo dos médicos em quantia igual a três vêzes e o dos auxiliares a duas vêzes mais o salário-mínimo comum das regiões ou sub-regiões em que exercerem a profissão.

A questão não suscitava maiores polêmicas até o advento da Constituição Federal de 1988, ocasião em que a Lei Fundamental estipulou a vedação do salário mínimo para qualquer fim, a teor do seu art. 7º, IV:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (grifos não constantes no original)

Em um primeiro momento, despontou no cenário jurídico o entendimento de que não havia inconstitucionalidade em se fixar o salário profissional em múltiplos do mínimo, sob o argumento de que a intenção do Legislador Constitucional teria sido evitar a inibição da livre fixação do salário mínimo pela sua utilização como fator de reajuste em várias espécies de contratos e obrigações, inclusive as comerciais, multas administrativas e serviços, já que sua majoração funcionaria, nestes casos, como fator inflacionário.

Assim, entendeu-se inicialmente que o espírito da norma constitucional teria sido afastar a vinculação do salário mínimo para fins estranhos à relação capital e trabalho.

Esse era o entendimento de Alice Monteiro de Barros:

“Não há qualquer atrito desta lei com o art. 7º, IV, da Constituição de 1988 quanto à proibição de vinculação ao salário mínimo. Ora, o que o texto constitucional veda é que o salário mínimo seja utilizado como fator de indexação em cláusulas contratuais de conteúdo econômico, refletindo de forma maléfica na inflação.”

No mesmo sentido, se manifestava Mauricio Godinho Delgado:

“É comum aos diplomas regulamentadores de profissões específicas fixarem o salário profissional mediante o parâmetro de certo montante de salários mínimos, como acima exemplificado. Essa tradicional conduta legislativa não se choca como disposto no art. 7º, inciso IV, da CF/88, conforme já exposto. Tem prevalecido o entendimento de que a proibição à utilização do salário mínimo como medida de valor (vedação à “...sua vinculação para qualquer fim”) dirige-se ao campo exterior ao Direito do Trabalho, não inviabilizando seu uso como critério de preservação contínua do valor real do salário efetivo do obreiro...”

Valentin Carrion comungava do mesmo entendimento e citava em sua obra precedente do Supremo Tribunal Federal adotando tal linha interpretativa:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – RECEPÇÃO DA LEI N 5.584/1970 PELA ATUAL CONSTITUIÇÃO – ALCANCE DA VEDAÇÃO DA VINCULAÇÃO DO SALÁRIO-MÍNIMO CONTIDA NA PARTE FINAL DO ARTIGO 7º, IV, DA CARTA MAGNA – VINCULAÇÃO DA ALÇADA AO SALÁRIO-MÍNIMO – Não tem razão o recorrente quando pretende que, em face do disposto no artigo 5º, LV e § 1º, da Constituição Federal, esta constitucionalizou o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, não mais admitindo decisões de única instância, razão por que não foi recebida pela nova ordem constitucional a Lei nº 5.584/1970. A vedação da vinculação do salário-mínimo contida na parte final do artigo 7º, IV, da Constituição não tem sentido absoluto, mas deve ser entendida como vinculação de natureza econômica, para impedir que, com essa vinculação, se impossibilite ou se dificulte o cumprimento da norma na fixação do salário-mínimo compatível com as necessidades aludidas nesse dispositivo, bem como na concessão dos reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo. A vinculação do valor da alçada ao salário-mínimo, para estabelecer quais são as causas de pequeno valor e que, portanto, devem ser decididas com a presteza de rito simplificado e com decisão de única instância ordinária, não se enquadra na finalidade a que visa a Constituição com a vedação por ela prevista, razão por que não é proibida constitucionalmente. (STF – RE 201.297 – DF – 1ª T. – Rel. Min. Moreira Alves – DJU 05.09.1997)

Deve-se frisar, contudo, que a norma objeto do julgamento acima transcrito (Lei 5.584/70) tinha conteúdo processual, vinculando o salário mínimo para fins de definição do rito procedimental a ser observado, não guardando qualquer relação com reajustes de natureza econômica ou correção automática dos salários.

Examinando especificamente a controvérsia atinente à vinculação para fins de salários profissionais, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho firmou o entendimento de que a fixação em múltiplos do mínimo não encerrava inconstitucionalidade, apenas caracterizando a afronta à Constituição na hipótese de lei que estipulasse expressamente a correção automática dos salários pelo reajuste do mínimo:

OJ SDI-2, Nº 71. Ação Rescisória. Salário Profissional. Fixação. Múltiplo de Salário Mínimo. Art. 7º, IV, da CF/88. A estipulação do salário profissional em múltiplos do salário mínimo não afronta o art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, só incorrendo em vulneração do referido preceito constitucional a fixação de correção automática do salário pelo reajuste do salário mínimo. (Alterada no DJU 22.11.2004)

A orientação consagrada no referido verbete se mostrava um tanto quanto complexa, haja vista que, ao fixar o piso em múltiplos do mínimo findava por propiciar uma correção automática do salário profissional, sempre que aquele fosse reajustado pelo governo.

Justamente diante da clareza de tal dificuldade e da clareza do texto constitucional, o Pretório Excelso veio a firmar o entendimento de que o salário mínimo não pode ser fixado como fator de indexação para qualquer fim que provoque reflexos econômicos, ainda que no âmbito trabalhista, para possibilitar uma política governamental que o estipule de forma livre, sem interferências ou receios de majoração por temor de reflexos ou reajustes em cadeia.

Com efeito, a primeira demonstração da posição de nossa Corte Superior adveio da edição da Súmula Vinculante n. 4:

STF, SÚMULA VINCULANTE Nº 4 - Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial (DO de 09/05/2008)

Posteriormente, o STF decidiu, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que o art. 16, da Lei 7.394/1985 (piso salarial dos técnicos em radiologia) não foi recepcionado pela Constituição Federal em vigor no atual ordenamento jurídico, conferindo, contudo, efeitos ex nunc à decisão para preservar os efeitos até ali produzidos por razões de segurança jurídica, desindexando o valor monetário da data do trânsito em julgado à correção do mínimo:

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Direito do Trabalho. Art. 16 da Lei 7.394/1985. Piso salarial dos técnicos em radiologia. Adicional de insalubridade. Vinculação ao salário mínimo. Súmula Vinculante 4. Impossibilidade de fixação de piso salarial com base em múltiplos do salário mínimo. Precedentes: AI-AgR 357.477, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 14.10.2005; o AI-AgR 524.020, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 15.10.2010; e o AI-AgR 277.835, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJe 26.2.2010. 2. Ilegitimidade da norma. Nova base de cálculo. Impossibilidade de fixação pelo Poder Judiciário. Precedente: RE 565.714, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 7.11.2008. Necessidade de manutenção dos critérios estabelecidos. O art. 16 da Lei 7.394/1985 deve ser declarado ilegítimo, por não recepção, mas os critérios estabelecidos pela referida lei devem continuar sendo aplicados, até que sobrevenha norma que fixe nova base de cálculo, seja lei federal, editada pelo Congresso Nacional, sejam convenções ou acordos coletivos de trabalho, ou, ainda, lei estadual, editada conforme delegação prevista na Lei Complementar 103/2000. 3. Congelamento da base de cálculo em questão, para que seja calculada de acordo com o valor de dois salários mínimos vigentes na data do trânsito em julgado desta decisão, de modo a desindexar o salário mínimo. Solução que, a um só tempo, repele do ordenamento jurídico lei incompatível com a Constituição atual, não deixe um vácuo legislativo que acabaria por eliminar direitos dos trabalhadores, mas também não esvazia o conteúdo da decisão proferida por este Supremo Tribunal Federal. 4. Medida cautelar deferida. (ADPF 151 MC, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 02/02/2011, DJe-084 DIVULG 05-05-2011 PUBLIC 06-05-2011)

Percebe-se da leitura da ementa supra transcrita que o STF entendeu que, embora a lei deva ser declarada ilegítima, os critérios estabelecidos por ela devem continuar sendo aplicados, até que sobrevenha norma que fixe nova base de cálculo, seja lei federal, editada pelo Congresso Nacional, sejam convenções ou acordos coletivos de trabalho, ou, ainda, lei estadual, editada conforme delegação prevista na Lei Complementar 103/2000.

Contudo, percebe-se, ainda ter restado assentado que os critérios de tais leis serão conservados com congelamento da base de cálculo, de modo que seja calculada de acordo com o valor de dois salários mínimos, vigentes na data do trânsito em julgado da decisão do STF, observando-se, a partir de então, os reajustes próprios da categoria, seja por meio de ajustes coletivos ou de nova lei em consonância com a Constituição Federal.

Referida decisão considera, entre outros, o fato de que o piso salarial dos radiologistas foi previsto pela norma que vigorou por vários anos, mas que, sem sombra de dúvidas, viola, atualmente, a Constituição Federal e a Súmula Vinculante.

Ao assim proceder, extirpa-se do ordenamento jurídico uma lei incompatível com a Constituição atual e evita-se a supressão irrestrita do direito a um piso salarial recebido por vários anos, mas, ao mesmo tempo, respeita-se o conteúdo da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, sem esvaziá-la.

É importante frisar que, conquanto o STF não tenha procedido ao congelamento da base de cálculo no caso do adicional de insalubridade, isso se deveu ao fato de que, no julgamento que deu origem à Súmula Vinculante n. 4, não havia como assim proceder em virtude de questão processual do recurso extraordinário à época analisando, conforme esclarece o Ministro Gilmar Mendes em seu voto-vista na ADPF 151:

VOTO VISTA MINISTRO GILMAR MENDES

“Registro que não é a primeira vez que a questão é posta para o julgamento nesta Corte, pois a Ministra Carmen Lúcia já a sugerira no julgamento do RE 565.714, nos seguintes termos:

[...]

Naquela oportunidade, entretanto, o Min. Menezes Direito sustentou que o congelamento da base de cálculo acabaria por ensejar reformatio in pejus no recurso em julgamento, motivo pelo qual a relatora reformulou seu voto.

Verifico que esse problema não se coloca na presente arguição de preceito fundamental, razão porque recupero a sugestão, na tentativa de encontrar solução que, a um só tempo, repila do ordenamento jurídico lei incompatível com a Constituição atual, não deixe um vácuo legislativo que acabaria por eliminar direitos dos trabalhadores, mas também não esvazie o conteúdo da decisão  proferida por este Supremo Tribunal Federal.” http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=622565

Tratando-se de entendimento consolidado em sede de controle concentrado de constitucionalidade no âmbito do Excelso Supremo Tribunal Federal, a sua observância é vinculante e deve ser respeitada por todo o Judiciário Nacional, a teor do art. 10, § 3º, da Lei 9.882/99:

Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.

[...]

§ 3o A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.


EXTENSÃO DOS EFEITOS DA ADPF 151 PARA AS LEIS DE IDÊNTICO FUNDAMENTO

Considerando a juridicidade do Princípio da Isonomia, que orienta no sentido de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, como corolário dos influxos do estabelecimento de Justiça Comutativa.

Sendo assim, idêntica solução deve ser dada aos casos das outras leis, que fixam pisos em face do salário mínimo, a partir do trânsito em julgado de tal decisão do STF, publicada em 06 de maio de 2011.

Para tanto, cumpre louvar-se da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes do julgado. Com efeito, o Pretório Excelso, em diversos precedentes (RE 197.917/SP; HC 82959/SP), tem aplicado a teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença (“ratio decidendi”), fazendo com que a fundamentação adotada em uma decisão sobre a constitucionalidade de dada lei, até mesmo em controle difuso, tenha eficácia erga omnes, vinculando não apenas as partes originárias no processo, mas toda a coletividade.

De acordo com a teoria mencionada, não apenas o dispositivo de uma decisão sobre a constitucionalidade de uma norma tem efeito vinculante, mas também seus fundamentos, suas razões, o que representa inovação que dá concretude ao princípio da força normativa da Constituição.

Isso porque, ainda que as questões prejudiciais decididas incidentalmente no processo não façam, em regra, coisa julgada, quando se trata da constitucionalidade de determinada norma, proclamada pelo Supremo, órgão guardião da Constituição, não há dúvida quanto à natural vocação expansiva desta decisão, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais.

A transcendência dos motivos determinantes atende não apenas ao princípio da força normativa da Constituição, mas também garante o princípio da sua supremacia e aplicação uniforme da Carta Magna a todos os destinatários, além de homenagear a economia, a efetividade e a celeridade processuais. Uma vez afirmada a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma pelo STF, mesmo que incidentalmente, o peso político e jurídico dos fundamentos da decisão do órgão de cúpula do Poder Judiciário devem ser aplicados a casos semelhantes, em respeito à máxima de que, onde houver o mesmo fundamento, deverá haver o mesmo direito (“ubi eadem ratio ibi idem jus”).

Ora, se a teoria da transcendência dos motivos determinantes tem sido utilizada pelo STF em controle difuso, com muito mais razão deve ser aplicada no controle concentrado, o que de fato vem ocorrendo, conforme precedentes firmados na ADI 3345/DF, Rcl 2363, Rcl 2986 e Rcl 2475, dentre outros.

A “ratio decidendi”, isto é, a fundamentação essencial que ensejou determinado resultado da ação, deve guiar a interpretação sobre a constitucionalidade de outras normas, sempre que houver verdadeira identidade entre elas. Nesse sentido a seguinte ementa:

EFEITO TRANSCENDENTE DOS FUNDAMENTOS DETERMINANTES DO JULGAMENTO DO RE 197.917/SP – INTERPRETAÇÃO DO INCISO IV DO ART. 29 DA CONSTITUIÇÃO.

- O Tribunal Superior Eleitoral, expondo-se à eficácia irradiante dos motivos determinantes que fundamentaram o julgamento plenário do RE 197.917/SP, submeteu-se, na elaboração da Resolução nº 21.702/2004, ao princípio da força normativa da Constituição, que representa diretriz relevante no processo de interpretação concretizante do texto constitucional.

- O TSE, ao assim proceder, adotou solução, que, legitimada pelo postulado da força normativa da Constituição, destinava-se a prevenir e a neutralizar situações que poderiam comprometer a correta composição das Câmaras Municipais brasileiras, considerada a existência, na matéria, de grave controvérsia jurídica resultante do ajuizamento, pelo Ministério Público, de inúmeras ações civis públicas em que se questionava a interpretação da cláusula de proporcionalidade inscrita no inciso IV do art. 29 da Lei Fundamental da República.

A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E O MONOPÓLIO DA ÚLTIMA PALAVRA, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM MATÉRIA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL.

- O exercício da jurisdição constitucional - que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição - põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder.

No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que “A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la”. Doutrina. Precedentes.

A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal – a quem se atribuiu a função eminente de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”) – assume papel de essencial importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. (STF. ADI 3.345/DF).

Na Reclamação Constitucional n.º 2.363/PA, o Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes ressalta, de forma clarividente, que nas hipóteses de controle concentrado de constitucionalidade, o efeito vinculante das decisões não se limita à parte dispositiva do julgado:

“(...) muito embora o ato impugnado não guarde identidade absoluta com o tema central da decisão desta Corte na ADI 1.662, Relator o Min. Maurício Correa, vale ressaltar que o alcance do efeito vinculante das decisões não pode estar limitado à sua parte dispositiva, devendo, também, considerar os chamados “FUNDAMENTOS DETERMINANTES” (STF, Rcl. 2.363 / PA, Min. Rel. Gilmar Mendes, Data do julgamento 23.10.2003 – DJ do dia 01.04.2005)

Não se desconhece que em alguns outros julgados o Supremo Tribunal Federal rechaçou a aplicação da teoria da transcendência, conforme julgamentos proferidos nas Reclamações Constitucionais 10604 e 4219. Contudo, acreditamos que tais posicionamentos possuem como substrato uma demonstração de rejeição da teoria no âmbito do controle difuso, a fim de que este não perca suas características distintivas (declaração incidental e com efeito “inter partes”), sendo de rigor a sua manutenção no caso de controle concentrado, em que se objetiva o máximo de respeito à decisão que, por força legal, deve se impor com eficácia “erga omnes”.

Não se pode admitir que leis que possuem um fundamento plenamente idêntico (vinculação ao mínimo) sobrevivam e continuem a projetar efeitos quando o órgão qualificado como guardião da Constituição já tenha declarado, em controle abstrato, a incompatibilidade de tal comando com a Constituição.

Esse é o entendimento de Pedro Lenza:

Com o máximo respeito, não parece razoável se desprezar a teoria da transcendência no controle concentrado, já que a tese jurídica terá sido resolvida e o dispositivo deve ser lido, em uma perspectiva moderna, à luz da fundamentação (lembrando que somos contra a teoria da transcendência no controle difuso, cf. item 6.6.5).

De qualquer forma teremos que acompanhar essa tendência de não aceitação da teoria do transbordamento — matéria pendente, especialmente com a vinda, em 2011, de mais um Ministro, em razão da aposentadoria do Min. Eros Grau […].” (grifos existentes no original)

Além de desrespeito à interpretação conferida pelo depositário legítimo da definição de matérias constitucionais, o entendimento contrário provocaria tratamento diferente a pessoas em situação idêntica, o que macula o Primado da Isonomia (art. 5º, caput, da CF/88.

Entrementes, ainda que não adotada a teoria da transcendência dos motivos determinantes, incidiria em tais casos a técnica da inconstitucionalidade por arrastamento, ou seja, a incompatibilidade consequencial, no sentido de que se uma norma não guarda consonância com o texto constitucional as conexas ou interdependentes também estariam eivadas do mesmo vício, ainda que não impugnadas.

Esse é o magistério de JJ Gomes Canotilho, citado por Pedro Lenza:

Pela referida teoria da inconstitucionalidade por “arrastamento” ou “atração” ou “inconstitucionalidade consequente de preceitos não impugnados”, se em determinado processo de controle concentrado de constitucionalidade for julgada inconstitucional a norma principal, em futuro processo, outra norma dependente daquela que foi declarada inconstitucional em processo anterior — tendo em vista a relação de instrumentalidade que entre elas existe — também estará eivada pelo vício de inconstitucionalidade “consequente”, ou por “arrastamento” ou “atração”.

Poder -se -ia pensar, nesse ponto, que a consequência prática da coisa julgada material, que se projeta para fora do processo, impediria não só que a mesma pretensão fosse julgada novamente, como também, sob essa interessante perspectiva, que a norma consequente e dependente ficasse vinculada tanto ao dispositivo da sentença (principal) quanto à ratio decidendi, invocando, aqui, a “teoria dos motivos determinantes”.

Esses dois temas no âmbito do controle de constitucionalidade vislumbram uma perspectiva erga omnes para os limites objetivos da coisa julgada, em importante avanço em relação à teoria clássica.

Naturalmente, essa técnica da declaração de inconstitucionalidade por arrastamento pode ser aplicada tanto em processos distintos como em um mesmo processo,situação que vem sendo verificada com mais frequência.

Ou seja, já na própria decisão, o STF define quais normas são atingidas, e no dispositivo, por “arrastamento”, também reconhece a invalidade das normas que estão “contaminadas”.

[...]

Trata -se, sem dúvida, de exceção à regra de que o juiz deve ater -se aos limites da lide fixados na exordial, especialmente em razão da correlação, conexão ou interdependência dos dispositivos legais e do caráter político do controle de constitucionalidade realizado pelo STF.

Nesse sentido, observa Canotilho que, em relação ao controle de constitucionalidade em abstrato, 'podem existir ‘inconstitucionalidades consequenciais ou por arrastamento’ justificadas pela conexão ou interdependência de certos preceitos com os preceitos especificamente impugnados (...)”. (grifos existentes no original).

Nesse panorama, é de rigor que o raciocínio utilizado na ADPF 151, em que se declarou a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei 7.394/85, seja observado em relação às leis que fixaram piso salarial em múltiplos do mínimo, eis que todas esbarram na mesma vedação: o efeito inflacionário que a indexação salarial causa, e que é proibida expressamente pelo art. 7º, IV, CF/88 e pela Súmula Vinculante nº 4 do STF.

Destarte, adotando-se a eficácia irradiante dos motivos determinantes, que fundamentaram a decisão tomada em sede de controle concentrado na ADPF 151 e a técnica da inconstitucionalidade por arrastamento também serão inconstitucionais o art. 5º da Lei 3.999/61 e o art. 5º da Lei 4.950-A/66, que determinam piso salarial mínimo para médicos, cirurgiões-dentistas, engenheiros, químicos, arquitetos, agrônomos e veterinários em múltiplos de salários mínimos.

Afinal, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito, e reconhecer a inconstitucionalidade apenas do art. 16 da Lei 7.394/1985 e não dos dispositivos supracitados importaria, como dito, flagrante violação ao princípio da isonomia, assegurado constitucionalmente como direito fundamental e cláusula pétrea, nos termos do art. 5º, caput e 60, § 4º, IV, da CFRB/88.


CONCLUSÃO

Ao lume de todo o exposto, pode-se concluir que as leis fixadoras de pisos salariais em múltiplos do mínimo são inconstitucionais, atritando-se com o desiderato do legislador constituinte de retirar qualquer elemento de correção automática do salário mínimo para que a política governamental não viesse a ter qualquer receio em fixá-lo sempre em patamares o mais próximo possível de sua necessidade.

Igualmente à luz das ideias já traçadas, são inconstitucionais todos os dispositivos que estabeleçam pisos salariais em salários mínimos e não apenas a norma objeto da ADPF 151, estando desindexados os valores a partir do julgamento da medida cautelar de tal ação de controle concentrado.


REFERÊNCIAS

MONTEIRO, Alice de Barros. Contratos e Regulamentações Especiais de Trabalho, 5ª, LTR, 2012.

DELGADO. Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 6ª Edição, LTr, 2007.

CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 32ª Edição, Saraiva, 2007.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª edição. Saraiva, 2012.

CANOTILHO, JJ Gomes. Direito constitucional, 5. ed., Almedina, 2007


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Iuri Pereira. Atual juridicidade dos pisos salariais legalmente fixados em múltiplos do salário mínimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3677, 26 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25024. Acesso em: 23 abr. 2024.