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Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista

Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista

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O princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeitar as regras morais acolhidas pela lei, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. TEORIA DO ORDENAMENTO JURIDICO E PRINCÍPIOS.  1.1 Análise Evolutiva dos Princípios na Teoria do Ordenamento Jurídico.  1.2 Questões epistemológicas.  1.3 Normas e suas espécies: regras e princípios. 2. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA.  2.1 Ética, Moral e Direito.  2.2 Princípios constitucionais da Administração Pública.  2.3 Princípio da Moralidade Administrativa.  2.4 Definições doutrinárias do Princípio da Moralidade. 2.4.1 Breves considerações introdutórias. 2.4.2 Definição de Celso Antônio Bandeira de Mello. 2.4.3 Definição de Weida Zancaner. 2.4.4 Definição de Emerson Garcia. 2.4.5 Definição de Hamilton Rangel Júnior. 2.4.6 Definição de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. 2.4.7 Comentários. 2.5 Aplicações do Princípio da Moralidade Administrativa.3. RELAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CONCLUSÃO.BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

O desempenho da função administrativa dentro do Estado brasileiro hodierno passa por diversas balizas de cunho normativo, ou seja, dentro da perspectiva de Estado Democrático de Direito, a Administração Pública está adstrita em todos os seus atos ao ordenamento jurídico vigente.

Como ápice do Direito pátrio, cabe à Constituição Federal fornecer os delineamentos primordiais do Estado e das funções em que dividido o Poder Estatal, dentre elas a Administrativa. Tal documento político apresenta, dessa forma, normas que devem ser interpretadas de maneira a fornecer os limites impostos à Administração Pública, bem como seus âmbitos de atuação, permitidos ou vedados.

Dentro dessa perspectiva, deve-se observar que a própria aplicação do Direito passa pela evolução do pensamento jurídico como um todo e, por conseguinte, pode-se perceber o surgimento de uma nova corrente de pensamento da filosofia do Direito que reconhece caráter normativo aos princípios, tornando sua aplicação obrigatória quando da concretização e interpretação das demais normas jurídicas.

O princípio da Moralidade Administrativa deve servir de baliza para a atuação da Administração Pública sendo que seu caráter normativo deve ser ressaltado pela sua natureza constitucional, com todos os consectários daí advindos. Seu estudo, portanto, pode levar a um melhor entendimento daquilo que se espera, ou se pode esperar, razoavelmente da atuação do administrador público e dos demais órgãos e entes da Administração perante os administrados.

Diversas questões práticas que aparecem cotidianamente podem ser resolvidas, ademais, à luz do princípio da moralidade que, dessa forma, merece relevo e aprofundamento em relação ao seu conteúdo e alcance.

Assim, para elucidar os âmbitos de aplicação e interpretação que devem ser conferidos ao princípio da moralidade, bem como para caracterizar a própria moralidade administrativa como conceito constitucional, pretende-se empreender um estudo doutrinário que, na medida dos limites da autora, pretende compreender alguns contornos que o referido princípio fornece, por si só, ao desenvolvimento das funções do Estado.

A título de prolegómenos, portanto, servirá o Capítulo 1, denominado “Teoria do Ordenamento Jurídico”, para uma melhor compreensão do que se entende, hodiernamente, como normas jurídicas e qual a natureza jurídica dos princípios. Pretende-se observar brevemente como se deu a evolução histórica do entendimento doutrinário sobre os princípios na Filosofia do Direito para, posteriormente, fixar alguns conceitos, com o fito de aclarar o estudo e a exposição a serem efetuados. Por fim, estabelecer-se-á a distinção salutar que hoje se percebe entre regras e princípios, espécies do gênero norma.

O Capítulo 2, intitulado “O Princípio da Moralidade Administrativa” será voltado à análise específica do princípio da moralidade, razão pela qual seu início terá que abordar sucintamente os limites entre Ética, Moral e Direito, distinguindo o objeto do presente estudo dos objetos de outras ciências humanas. Em seguida, pretende-se isolar e particularizar o princípio da moralidade dos subgrupos aos quais ele pertence, apresentando-se as definições doutrinárias principais que versam sobre o tema. Por fim, ainda no bojo do Capítulo 2, proceder-se-á a uma explanação acerca de algumas aplicações práticas do princípio da moralidade. 

No Capítulo 3, resolveu-se estabelecer a existência de um conceito particular, e constitucional, para a moralidade administrativa, apto e suficiente para embasar a norma principiológica e, além disso, para torná-la autônoma em relação às demais, principalmente em relação ao princípio da legalidade. Daí ter sido denominado este Capítulo de “Relação entre o Princípio da Moralidade Administrativa e o Princípio da Legalidade”.

Assim, o presente estudo tem como fulcro aclarar o pensamento pós-positivista acerca das regras e dos princípios, bem como delimitar se o princípio da moralidade administrativa se relaciona com a moral comum ou com a moral juridicizada. Isto é, destacar que o princípio da moralidade está adstrito à moral juridicizada, mantendo uma relação de sujeição especial com o princípio da legalidade, sendo de fundamental importância para a possibilidade de propositura de ação popular pelos cidadãos.


1. TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO E PRINCÍPIOS

1.1 Análise Evolutiva dos Princípios na Teoria do Ordenamento Jurídico

O reconhecimento de que os princípios jurídicos são dotados de força jurídica, pois são normas tanto quanto as regras, foi resultado da evolução do pensamento jurídico ao longo do tempo.

Segundo os ensinamentos de Paulo Bonavides, a juridicidade dos princípios atravessou, até o presente momento, três fases. A primeira foi a em que predominou a doutrina jusnaturalista. A segunda, a doutrina positivista e, a terceira e atual, a normatividade ou doutrina pós-positivista.

A primeira fase, dita metafísica ou abstrata dos princípios, tinha como principal característica o fato de os princípios serem considerados proposições supremas, mandamentos ideais de valores suprajurídicos. Eram exortações, meras proposições de ordem moral e política que não integravam o Direito.

Nos dizeres da doutrina:

“A fase jusnaturalista posiciona os princípios jurídicos em esfera abstrata e metafísica. Reconhece-os como inspiradores de um ideal de justiça, cuja eficácia se cinge a uma dimensão ético-valorativa do Direito. Assim, a normatividade dos mesmos, se não for encarada como nula, ao menos era de duvidosa propriedade praxeológica”[1].

Assim, a base da corrente jusnaturalista do pensamento jurídico era a existência de preceitos extrajurídicos e logicamente anteriores ao Direito positivado, que serviam de lastro valorativo para o ordenamento vigente.

Os princípios, nessa fase, continham recomendações de Ética e Justiça, não sendo fontes reais de Direito capazes de influenciar os intérpretes e aplicadores do ordenamento jurídico de maneira forte o suficiente para que se tornassem fonte jurídica solucionadora de casos concretos. Os princípios, portanto, segundo a doutrina jusnaturalista, eram meras balizas de cunho valorativo e de aplicabilidade não-obrigatória ou vinculante.

Há que se ressaltar que

“O rótulo genérico do jusnaturalismo tem sido aplicado a fases históricas diversas e a conteúdos heterogêneos, que remontam à antiguidade clássica e chegam aos dias de hoje, passando por densa e complexa elaboração ao longo da Idade Média. A despeito das múltiplas variantes, o direito natural apresenta-se, fundamentalmente, em duas versões: a) a de uma lei estabelecida pela vontade de Deus; b) a de uma lei ditada pela razão. O direito natural moderno começa a formar-se a partir do século XVI, procurando superar o dogmatismo medieval e escapar do ambiente teológico em que se desenvolveu. A ênfase na natureza e na razão humanas, e não mais na origem divina, é um dos marcos da Idade Moderna e base de uma nova cultura laica, consolidada a partir do século XVII”[2].

Assim, com o advento da modernidade, a ideia de que os homens possuem direitos naturais, isto é, direitos não decorrentes de normas jurídicas postas pelo Estado, foi o substrato de grandes marcos desde o século XVI. Exemplos disso são a Revolução Gloriosa (1689), a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução Francesa e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

O advento e a consolidação dos Estados Liberais, aliados às ideias iluministas deram azo, também, ao início da codificação das normas. Este momento histórico marcou o triunfo do jusnaturalismo, mas também foi o responsável pela sua superação[3], já que os direitos naturais, tão caros a essa fase, foram sendo incorporados pelos ordenamentos jurídicos emanados do Estado, isto é, positivados.

Assim, pode-se dizer que a decadência do direito natural clássico ocorreu com o advento da Escola Histórica ou Positiva do Direito, que deu início, assim, à segunda fase da juridicidade dos princípios: a fase positivista.

Com efeito, além da mudança de paradigma produzida no pensamento jurídico pela Escola Histórica, a expansão doutrinária do positivismo jurídico e a derrocada gradual do jusnaturalismo puro causaram reflexos no início das codificações legais no final do século XIX.

Nessa segunda fase, os princípios deixaram de ser apenas uma base diretiva a ser seguida, de origem anterior à lei, passando a ser criações legais que deveriam ser aplicadas nos casos de lacuna legal. Ou seja, de meras recomendações extrajurídicas sem maiores funções práticas, os princípios passaram a ser enxergados agora como fontes subsidiárias de orientação para interpretação, integração (colmatação de lacunas) e aplicação do Direito. Previstos nos Códigos, passaram para o âmbito do direito positivo.

O positivismo, assim como o jusnaturalismo, por ter sido composto de várias escolas, possuiu algumas variações, tais como o Positivismo Histórico, Positivismo Sociológico e Positivismo Conceitual[4], mas teve como seu teórico maior Hans Kelsen.

Segundo os ensinamentos de Kelsen, os princípios jurídicos possuíam valor meramente subsidiário de fonte interpretativa do Direito. Tinham como principal objetivo suprir a lacuna que a regra não pudera prever. Eram meros postulados programáticos enquanto pseudo-normas, destituídas de caráter coercitivo.

Ainda segundo o Mestre de Viena[5], não havia no Direito lugar para a metafísica, para a teoria de valores, sendo jurídico apenas aquele pensamento que se funda na evidência lógica (ou matemática) da norma ou em fatos incontroversos. Tão somente as normas devidamente positivadas, reconhecidas como regras pelo ordenamento jurídico, poderiam ser consideradas como Direito.

Por conseguinte, o Direito passou a ser considerado como um fato[6] e não como um valor, não existindo espaço para fundamentos supranormativos ou suprapositivos. Dessa forma, conclui-se que não havia Direito fora das normas positivadas, entendendo-se por normas as regras contidas nas leis e na Constituição.

O positivismo, assim, foi responsável por um reducionismo da atividade dos operadores do Direito que tiveram suas tarefas simplificadas, tendo em vista que a atividade de ditos operadores passou a ser a de aplicação mecânica do ordenamento positivado, com uma interpretação totalmente calcada em métodos literais e históricos.

“(...) o positivismo jurídico não apenas aceitou a idéia de que o direito deveria ser reduzido à lei, mas também foi o responsável por uma inconcebível simplificação das tarefas e das responsabilidades dos juízes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-as a uma aplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense, na universidade e na elaboração doutrinária. Isso significa que o positivismo jurídico, originariamente concebido para manter a ideologia do Estado liberal, transformou-se, ele mesmo, em ideologia. Nessa dimensão, passou a constituir a bandeira dos defensores do status quo ou dos interessados em manter a situação consolidada pela lei. Isso permitiu que a sociedade se desenvolvesse sob um asséptico e indiferente sistema legal ou mediante a proteção de uma lei que, sem tratar de modo adequado os desiguais, tornou os iguais em carne e osso mais desiguais ainda”[7].

De outro lado, apesar deste reducionismo trazido pelo positivismo, há que se destacar que essa fase foi a responsável pela codificação dos princípios, que como dito, passaram a ser considerados fontes secundárias do Direito, aplicáveis sobretudo em casos de lacuna nas leis.

Nota-se, portanto, uma grande evolução em relação aos princípios da fase jusnaturalista para a fase positivista. Naquela, eram desprovidos de qualquer força normativa. Nesta, passam a integrar o ordenamento jurídico na condição de fontes secundárias de Direito.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, o positivismo passou por uma grande crise tendo em vista a sua utilização pela Alemanha e pela Itália, países dominados, respectivamente, pelo nazismo (nacional socialismo alemão) e pelo fascismo. Serviu de base para promulgação formalmente legítima de leis discriminatórias em geral, já que, segundo o positivismo, para uma lei ser considerada válida e justa bastaria que fosse elaborada e publicada conforme os trâmites formais demandados pelo sistema, não cabendo qualquer indagação moral acerca da matéria nela versada.

A Segunda Guerra Mundial, portanto, foi um marco da humanidade no tocante ao desrespeito e à ineficácia prática dos direitos humanos fundamentais. Essa ineficácia, juntamente com a altíssima concentração de renda, proporcionada pela privatização dos meios de produção, e com o colapso do sistema positivista, fizeram com que os Estados modificassem seu modo de atuação, fazendo surgir o Estado Democrático e Social de Direito no lugar do Estado Liberal até então vigente.

Com efeito, após a Segunda Guerra Mundial não se podia mais albergar sob o manto estatal a teoria positivista pura do direito, que já demonstrara seus vícios de aplicação[8]. Também não havia mais espaço para Constituições destituídas de força, pois os direitos ali previstos tinham que ser implementados para a sociedade.

Assim, esse Estado nascente acresceu à teoria do Estado vigente até então a noção de soberania popular por meio dos direitos políticos, cuja aplicação deveria, portanto, ser garantida desde sua base constitucional. Assim, além de ter de respeitar as características do Estado anterior, o Estado Democrático e Social de Direito passou a ter o dever de atuar positivamente no sentido de gerar desenvolvimento e justiça social.

Com esse novo modelo de Estado e com o consequente surgimento das Constituições programáticas ou dirigentes, voltadas à implementação de políticas pelo aparato estatal, fez-se necessária uma nova harmonização e otimização do sistema jurídico, a fim de se permitir a efetivação dos direitos fundamentais. Surgiu, então, a terceira fase da normatividade dos princípios: a fase pós-positivista[9].

Convivendo com os ideais positivistas puros, que apenas reconheciam regras destituídas de valor como constituintes do Direito, o pós-positivismo foi a corrente doutrinária que visou resgatar a utilização de cargas valorativas dentro dos âmbitos de aplicação e interpretação do Direito, reconhecendo as diretrizes dotadas de tais cargas, portanto, como parte integrante e indissociável do ordenamento jurídico.

Superado, pois, o positivismo jurídico, a nova fase que surge tem por objetivo fundamental a reestruturação da base do pensamento relativo às normas, sua composição, espécies e os métodos de sua interpretação/aplicação. Conforme tais premissas, portanto, conferiu-se aos princípios jurídicos novas características, a fim de se implementar o ordenamento jurídico como um todo.

Nessa fase, portanto, a natureza dos princípios deixa de ser definida em função de possuírem, ou não, elementos de coerção, e, de outro lado, há o reconhecimento de sua dotação de normatividade. Assim, os princípios jurídicos passam a ser considerados espécies de normas, com os diversos consectários daí advindos.

Com efeito, para serem considerados normas jurídicas, bastava agora que estivessem os princípios integrados no ordenamento jurídico, fosse de maneira expressa, fosse de maneira implícita (a qual é obtida através da interpretação jurídica). Tal enfoque representou um grande salto na importância atribuída aos princípios jurídicos, pois, a partir do pós-positivismo, os mesmos passaram a permear todo o ordenamento e, por conseguinte, também os textos constitucionais, o que alterou completamente sua normatividade diante das demais normas do sistema.

Pode-se dizer, portanto, que, agora, os princípios jurídicos possuem ponderação superior ao da norma singular (a regra, outra espécie de norma), já que trazem consigo a ideia diretiva de começo, de especialidade, de fundamento (ou causa) e de peso.

“Princípio jurídico designa a estrutura inicial e causa de um sistema normativo, dotado de eficácia plena, apoiado numa idéia mestra diretiva, de que decorrem todas as outras idéias, regras e demais atos normativos que a ele se ligam, a ele retornam ou a ele se subordinam”[10].

Nessa terceira fase, por conseguinte, ocorre um acentuamento da hegemonia axiológica dos princípios e, com eles, a carga de valores inerente a tal tipo de norma passa a permear todo o ordenamento jurídico, desde seu ápice (Constituição), até as normas mais comezinhas e quase concretas.

Ainda, observe-se que a natureza normativa dos princípios exige a sua imperatividade imediata, não se podendo mais (como se fazia no positivismo, por exemplo), relegar a aplicação dessas normas a um segundo plano ou dotar-lhes de caráter meramente integrativo subsidiário do Direito.

Sendo, pois, de aplicação e efetivação imediatas, a concreção dos princípios deve agora dar-se pela ação mediadora do intérprete, pois somente com a atividade hermenêutica é que se chegará a um completo entendimento do âmbito material de incidência da norma.

A atividade de interpretação, assim, passa a ter como função precípua descobrir e concretizar os princípios implícitos e explícitos, permitindo sua máxima aplicação prática na resolução de casos concretos.

Não é sem motivo, portanto, que a doutrina pátria é pacífica hodiernamente em afirmar que “o intérprete da Constituição estará vinculado aos princípios constitucionais, na tarefa interpretativa do texto constitucional” [11], pois, se o princípio tem caráter normativo mais abrangente e abstrato que o das regras, sendo, ainda, fonte material e interpretativa das mesmas, não há como se conceber qualquer atividade hermenêutica de regras sem se passar, antes, pelos princípios.

Agora, conforme salientado, abrigados não só nos códigos, como também nas Constituições, os princípios foram objetos de grandes mudanças em relação à sua força, hierarquia e função no ordenamento jurídico. Isso por que, conforme salienta a doutrina pátria:

“A Carta Magna não é declaração de boas intenções. Na atualidade, constitui instrumento hábil a efetivar, na prática, os princípios fundamentais integrantes de seu ordenamento. Antes, meras declarações de sabor lítero-jurídico, hoje, normas irrecusáveis, de caráter mandamental”[12].

Além disso,

“a Constituição não pode ter uma existência meramente formal e inútil, prometendo o que nunca será cumprido. O que se quer hoje é a concretização dos princípios, em todas as hipóteses em que a sua mediação se torne necessária para a edificação do bem comum, e para que haja paz na solução dos grandes conflitos nacionais”[13].

Inseridos na Constituição, os princípios devem ser sempre interpretados e aplicados por sobre a lei, a fim de orientarem a atividade de criação normativa, tanto do ponto de vista formal quanto de conteúdo (aspecto material da norma). Isso por que a Constituição dota suas normas de caráter de supremacia no ordenamento jurídico, sendo, pois, superiores a qualquer outra norma estatal.

Os princípios passam a ser, então, para além de normas, fontes primárias de Direito, balizas interpretativas de aplicação imprescindível e guias jurídico-valorativos para a atividade legislativa.

Desta forma, à luz do pós-positivismo a lei encontra limites nos princípios constitucionais, devendo possuir não apenas uma legitimação formal, como também, material, já que seu conteúdo precisa estar adequado aos direitos positivados na Constituição, ou seja, precisa estar de acordo com os direitos fundamentais (quase todos frutos da interpretação de normas principiológicas).

“Ao se dizer que a lei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação forma, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vali mais por si, porém depende de sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais”[14].

Além do quanto destacado acima, a fase pós-positivista foi responsável também pela distinção entre princípios e regras, conquanto espécies do gênero norma, haja vista a patente incompatibilidade lógica que há entre as duas espécies.

Por fim, há que se ressaltar que as concepções jusnaturalista, positivista e pós-positivista convivem no tempo, de certo modo, até os dias atuais. O nascimento e a derrocada dessas concepções são fenômenos que se desenvolveram ao longo de séculos, sendo natural que a derrocada de uma fase esteja intimamente ligada no tempo ao nascimento de outra, bem como que a crise de uma enseje o ressurgimento das ideias de outra, ainda que com novas roupagens.

Desta forma, portanto, não há como se afirmar que a concepção jusnaturalista foi extinta pelo nascimento da concepção positivista e essa pelo nascimento da concepção pós-positivista. Em verdade, essas concepções convivem no tempo, sendo possível verificar, hodiernamente, reações de teorias/filosofias do jusnaturalismo ao positivismo como, por exemplo, a Escola do Direito Livre[15] e o Direito Alternativo[16]. Ambas as escolas reconhecem a incompletude do Direito positivo, aceitando a ideia de que as normas jurídicas não são apenas aquelas emanadas do Estado, mas também aquelas produzidas por fatos ou por outras instituições que não o Estado.

1.2 Questões etimológicas

 A análise da teoria normativa do pós-positivismo passa pelo enfrentamento das espécies de normas que se reconhecem no ordenamento jurídico, principalmente porque os princípios jurídicos, agora, passam a ser pacificamente dotados de normatividade pela doutrina moderna.

O tema, contudo, não é incontroverso nos meios acadêmicos. Com efeito, inúmeras foram as tentativas de distinção entre as diversas espécies que se reconhecem como relacionadas à Teoria do Ordenamento Jurídico e à ideia de norma enquanto gênero.

Deve-se, portanto, fazer uma distinção para ser adotada no presente estudo, haja vista a diversidade de nomenclaturas encontradas na literatura jurídica e a respectiva utilização de forma pouco uniformizada. Trataremos, a propósito, das expressões axiomas, postulados, princípios e regras.

Os axiomas podem ser definidos como fórmulas tidas como verdades auto-evidentes, verdades universais. Os princípios, na concepção jusnaturalista, eram considerados axiomas estabelecidos pela razão. [17]

Já a definição de postulados não é tarefa tão simples. Destaca-se abaixo o entendimento de Humberto Ávila e Celso Bastos acerca do tema em comento.

A definição de postulados ofertada por Humberto Ávila merece destaque pela clareza. Para esse autor

“Os postulados normativos situam-se num plano distinto daquele das normas cuja aplicação estruturam. A violação deles consiste na não-interpretação de acordo com sua estruturação. São, por isso, metanormas, ou normas de segundo grau”[18].

Para o autor citado, não há como se definir postulados como regras ou princípios, pois essa definição não contribuiria para a elucidação da sua classificação, tendo em vista que os postulados situam-se em um nível diverso do das normas.

Com efeito, pode-se afirmar que os postulados não impõem, tal como os princípios, a promoção de um estado ideal de coisas, “mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim”. Eles “não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos”[19].

Sendo diferentes dos princípios, os postulados também não se confundem com as regras, já que não descrevem comportamentos.

Assim, os postulados normativos, seriam, em linhas gerais, metanormas impositivas de deveres de segundo grau, normas metódicas estruturantes da interpretação e aplicação de regras e princípios.

Já para Celso Bastos “postulado é um comando, uma ordem mesma, dirigida à todo aquele que pretende exercer a atividade interpretativa”[20].

Referido autor afirma, com razão, que os postulados

“Não são propriamente extraíveis da Constituição. São uma série de regras que os autores que tratam do Direito Constitucional atualmente seguem. Extraem-se mais da experiência, da lógica, da evolução histórica, do surgimento e desenvolvimento do próprio constitucionalismo”[21].

 Em suma, a tese defendida pelo autor, e neste trabalho adotada, é a de que os postulados são “axiomas que se caracterizam pelo aspecto cogente com que se apresentam ao intérprete.”[22]

Assim, considerando-se que os postulados não guardam diferenças com os axiomas, sendo normas metódicas estruturantes da interpretação e aplicação de regras e princípios, é que se optou no presente estudo pela distinção dúplice das espécies normativas em princípios e regras, conforme elucidado abaixo.

1.3 Normas e suas espécies: regras e princípios

O nascimento do pós-positivismo trouxe consigo uma nova concepção em relação à classificação das normas, creditando caráter normativo, imperativo, caráter estatal a outras espécies que antes não eram consideradas como tal.

Nesta fase, as normas, segundo os ensinamentos do professor Canotilho, adotados no presente estudo, são gênero do qual regras e princípios são espécies[23]. Essa é a razão pela qual não se pode mais prescindir dos princípios na aplicação do Direito aos casos concretos, pois são normas tanto quanto as regras jurídicas.

Reconhecendo-se o caráter normativo tanto a regras quanto aos princípios, portanto, restava o problema relativo à diferenciação das espécies normativas, pois havia completa incompatibilidade entre as duas.

 Vários foram os estudiosos que empreenderam a tarefa de obter uma diferenciação racional entre ambas, porém podem-se citar dois nomes em particular que, hodiernamente, têm mais aceitação e são mais difundidos nos meios acadêmicos, quais sejam, Joaquim José Gomes Canotilho e Ronald Dworkin, sendo que o precursor dessa distinção foi o jurista francês Jean Boulanger.

Na doutrina pátria, destaca-se o magistério de Humberto Ávila, para quem os principais critérios distintivos entre regras e princípios são o dever imediato e mediato de ambos, a justificativa da sua aplicação e a pretensão com que irão influir nas decisões judiciais.

Com efeito, aos princípios, como dever imediato, cabe a promoção de um estado ideal de coisas sendo, na concepção de Dworkin, verdadeiros “standards” radicados na ideia de justiça. São fundamentais para a realização daquilo que a Constituição elegeu como valores supremos do Estado. Os princípios estabelecem a situação ideal que sua aplicação irá almejar, sendo este dever imediato o principal guia para sua interpretação e aplicação, principalmente porque quando contrastados, um deles deve ser aplicado em detrimento do outro, que perde sua força normativa no caso concreto (ou dimensão de peso, segundo Dworkin). 

Já as regras, de outro lado, possuem como dever imediato a adoção da conduta descrita em sua hipótese de incidência, ou seja, a regra estabelece não um estado de coisas ideal, mas sim uma modificação pontual na conduta humana (impondo, permitindo ou proibindo certos procederes) a partir da análise do caso concreto e como dever mediato “a manutenção de fidelidade subjacente e aos princípios superiores”[24].

O dever mediato inerente aos princípios seria o de promover a adoção da conduta necessária à realização do estado de coisas estabelecido. Em função disso é que a sua justificação depende da correlação entre os efeitos da conduta adotada e a realização, ao final, do estado de coisas pretendido pela norma principiológica, o que, em última análise, destoa das regras, já que estas pressupõem, a título de justificação, o nexo causal entre o que ela prescreve e o conceito do fato ocorrido.

Por fim, os princípios concorrem para a tomada de decisões de maneira a abranger apenas determinados aspectos da controvérsia posta sob exame, concorrendo parcialmente para a tomada de decisão juntamente com outras normas, o que implica em necessária interpretação sistemática por parte do julgador. São características de concorrência e parcialidade para a tomada de decisões. Tal característica distintiva faz com que os princípios não possam ser tomados isoladamente de forma apriorística, já que, uma vez não se sabendo os valores que estão envolvidos no caso em exame, não se poderá saber se o princípio aplicável poderá ser mitigado por outro que imponha um estado de coisas mais adequado à obtenção dos valores constitucionais no caso concreto.

Já as regras, uma vez subsumido o que ocorreu no mundo fático às disposições abstratas previstas na norma, têm elas pretensão de abrangerem, com exclusividade, a questão, dando sempre uma resposta específica para a questão com base na conduta nelas previstas. Assim, além de abrangerem, teoricamente, todas as questões envolvidas no caso em exame, tendem as regras à exclusividade de sua aplicação em detrimento das demais, o que pode levar ao engano do positivismo puro pelo julgador.

Já Ronald Dworkin[25] propõe que a distinção entre regras e princípios poderia ser sinteticamente formulada através de uma redução a três critérios, a saber: 1) abstratividade (generalidade), 2) dimensão de importância ou valor e 3) validade.

Pelo critério da abstratividade, a diferenciação entre regras e princípios torna-se possível porque os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado, enquanto as regras são normas com uma abstração relativamente reduzida.

As hipóteses normativas presentes nos princípios são heterogêneas, não passíveis de definição apriorística, capazes de abarcar diversas hipóteses fáticas. Por outro lado, as regras são facilmente identificadas por meio deste critério, pois as suas hipóteses normativas são homogêneas, isto é, única para todas as situações.

Com efeito, não se pode prever as situações fáticas que serão abrangidas por um princípio de maneira apriorística, pois o grau de abstração de que são dotadas essas normas o impede. Porém, no caso da regras, o enfoque é o contrário, pois essa espécie apenas permite sua aplicação na exata hipótese normativa ali prevista, sob pena de não ser adequada ao caso.

Pelo segundo critério, ou seja, pelo critério da dimensão de importância ou valor, a distinção pretendida entre as espécies de normas torna-se visível, pois apenas os princípios possuem dimensão de peso ou importância. Isso por que a antinomia entre princípios somente pode ser resolvida por meio da técnica de ponderação, com vistas à otimização dos princípios colidentes através de três fases analíticas: 1) identificação das normas e seu agrupamento; 2) análise do caso concreto e suas conseqüências e, por fim, 3) ponderação propriamente dita, atribuindo-se o “peso” relativo de cada elemento normativo, decidindo-se pela preponderância de um sobre o outro, otimizando-se a aplicação do princípio (ou grupo de princípios) resultante de tal análise.

Não se aplica um princípio de maneira isolada dos demais, mas, antes, deve-se levar em conta, entre os princípios colidentes, quais aqueles que devem sobressair-se no caso concreto para maior efetivação possível dos direitos constitucionais envolvidos, o que apenas pode ser realizado episodicamente, diante de uma situação concreta. A propósito da colisão entre princípios e do caráter de mandato de otimização, Robert Alexy adiciona:

“A exigência por realização, no máximo possível, ampla, de princípios jurídico-fundamentais, que também pode ser qualificada de produção de concordância prática ou otimização normativa, significa, portanto, tudo menos o mandamento de aspirar a um ponto máximo. Cada princípio quer, sem dúvida, para si o máximo possível. Otimizar princípios colidentes, porém, não significa ceder a ele, mas pede, ao lado da exclusão de sacrifícios desnecessários, somente a justificação do sacrifício necessário por, pelo menos, igual importância de realização do princípio, a cada vez, em sentido contrário. Isso é um critério negativo, o que mostra que também a otimização no quadro da ponderação é compatível com o caráter-quadro da Constituição”[26].

O terceiro critério, o da validade, prevê a distinção entre as normas quando estas entram em conflito de maneira abstrata, resolvendo-se tal conflito por meio de critérios de preferências: primeiramente verifica-se a hierarquia entre as normas, após, a especialidade das mesmas em relação a determinada matéria e, por fim, a ordem cronológica de ingresso de tais normas no ordenamento jurídico.

Por tal critério, portanto, a análise da validade das normas passaria por três fases excludentes e organizadas por ordem de incidência. Em primeiro lugar, a norma de hierarquia superior seria válida, em detrimento da norma inferior (a norma constitucional, por exemplo, seria válida sobre a norma infraconstitucional – lex superior derrogat legi inferiori). Sendo ambas as normas de mesma hierarquia, dever-se-ia analisar sua especialidade em relação à matéria “sub examine”, prevalecendo como aplicável e válida a norma mais especial, em detrimento da geral (critério representado pelo brocado latino lex specialis derrogat legi generali). Em último lugar, tratando-se de normas de mesma hierarquia e especialidade, ter-se-ia que analisar a ordem cronológica de vigência das normas, eis que aquela que foi editada em último lugar sobreleva a fixada em primeiro lugar e que a contradiz (expressão do brocado lex posterior derrogat legi priori).

Anote-se, por fim, que a aplicação de toda e qualquer regra deve passar pela interpretação anterior do conjunto de princípios aplicável à hipótese, principalmente no que tange aos princípios constitucionais, superiores às demais normas, razão pela qual, no pós-positivismo, os princípios ganharam relevância salutar na aplicação e interpretação de todos os ramos do Direito.

Para a diferenciação entre regras e princípios, o constitucionalista lusitano J. J. Canotilho, por sua vez, sugere alguns critérios:

“a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras uma abstração relativamente reduzida. b) “Grau de determinabilidade” na aplicação do caso concreto: os “princípios”, por serem vagos e indeterminados, carecem de medições concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as “regras” são suscetíveis de aplicação directa. c) “Caráter de fundamentalidade” no sistema das fontes de direito: os ‘princípios’ são normas de natureza ou com papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua posição estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). d) “Proximidade da idéia de direito”: os “princípios” são “standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin) ou na ‘idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) natureza normogenética - os princípios são fundamentos das regras, daí terem uma função normogenética.”[27]

Feita a distinção primordial da teoria normativa, portanto, e observadas as diversas possibilidades de critérios distintivos, impende salientar que a fase pós-positivista, ao erigir como normas os princípios e alçá-los ao âmbito constitucional, e tendo esses princípios as características supracitadas, fez com que pudesse haver uma flexibilização das regras em prol daquilo que o sistema jurídico-constitucional entende como fundamental para o Estado e para o povo, vez que tais princípios devem ser aplicados juntamente com as regras.

A efetivação dos valores constitucionais pela aplicação real dos princípios depende, pois, de um esforço dos Poderes constituídos do Estado, principalmente do Poder Judiciário, que tem que promover aquilo que a Constituição determina e, mais, promover os valores nela apostos da melhor e mais viável maneira possível. Disso decorre que não se pode, com base na arcaica ideia de que o princípio seria abstrato puro e a regra dotada de mais objetividade, defender a tese de que, em caso de colidência de ambos, sobressair-se-iam as regras, por excepcionarem a generalidade dos princípios.

Sobre o tema, Robert Alexy na obra “Direito Constitucional e Direito Ordinário. Jurisdição Constitucional e Jurisdição Especializada” assevera, em última análise, que cabe ao Poder Judiciário, principalmente à Corte incumbida da jurisdição Constitucional, o papel de colmatar as lacunas do sistema jurídico a fim de efetivar os direitos fundamentais. Confira-se:

“Eu sintetizo. Os problemas deixam-se resolver em uma dogmática de espaços. Essa descansa em duas colunas. A primeira forma os espaços estruturais que expressam a limitação do conteúdo material da Constituição, a segunda, os espaços epistemológicos, pelos quais é transferida, em extensão limitada, jurisdição constitucional material aos tribunais especializados. Por tudo vela o tribunal constitucional federal com vista dupla. Uma é erigida ao conteúdo constitucional material, a outra aos seus limites e incertezas”[28].

Destarte, a sistemática constitucional e os princípios que ela contém devem ser conjugados sempre com a aplicação das regras, não se podendo admitir o fato de que uma regra sem correspondência a nenhum princípio constitucional seja aplicada em detrimento a um princípio já existente e com ela contrastante. Tal conclusão é demanda de uma efetiva aplicação e sistematização teleológica das normas constitucionais materiais, principalmente aquelas referentes a direitos fundamentais, geralmente apostas em princípios.

Em que pesem, portanto, as grandes distinções feitas entre regras e princípios pela doutrina, o primordial a ser destacado é que a aplicação do Direito moderno pressupõe não apenas regras como também princípios dada a sistematização do ordenamento jurídico, com base nos ditames constitucionais. Isso porque o Estado Social Democrático de Direito deve preservar e garantir os direitos fundamentais do ser humano, proporcionando aquilo que de Direito falte à sociedade. Tal intento é facilitado pela presença de princípios constitucionais com normatividade forte e dotados de aplicação sistemática em complementariedade às regras.

Entende-se, pois, que não há absurdo jurídico maior do que, hodiernamente, considerarem-se apenas as regras isoladamente para que uma decisão seja tomada. Isso tanto em relação ao direito material quanto em relação ao direito processual.

Desta forma, não se pode olvidar que o atual Estado Social Democrático de Direito requer, para sua efetivação, que a Constituição (e, por conseguinte, seus princípios) seja aplicada sistematicamente com as demais normas a ela inferiores, seja qual for o caso controverso sob o qual se profira decisão, a interpretação que se queira dar à lei ou mesmo a lei que se queira criar, o que abrange a atuação dos três Poderes, os operadores do Direito e até mesmo os cidadãos.


2. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.1 Ética, Moral e Direito

A análise do princípio da moralidade passa pela necessária elucidação de alguns conceitos envolvidos com tal norma. Isso porque, enquanto parte do ordenamento jurídico, o princípio da moralidade administrativa pode levar o intérprete mais desavisado a confundir sua seara de previsão e aplicação com um âmbito de moral ou de ética sociais, o que seria deveras pernicioso para a congruência e unidade do ordenamento jurídico.

Assim sendo, o estudo do princípio da moralidade passa pela definição e distinção do próprio Direito em relação àquilo que se entende por Moral, por Ética e, por fim, por Moralidade Jurídica.

A definição do que seria Moral e do que seria Direito não consiste em tarefa das mais simples. Muitos estudiosos e operadores do Direito já se debruçaram sobre o tema no afã de empreender essa distinção entre os dois conceitos, tamanha sua importância prática, além da teórica.

A doutrina jurídica e a filosofia política, ao longo do tempo, vêm oferecendo definições para essas duas “ordens reguladoras da conduta do homem em sociedade[29].

O professor Marcelo Figueiredo, por exemplo, introduz seu livro “O Controle da Moralidade na Constituição” oferecendo um panorama sobre as relações entre Moral e Direito. Em nota de rodapé dá destaque às definições de Moral e de Direito, segundo os escólios de André Lalande e Eduardo García Maynez. Diz o autor:

“André Lalande oferece-nos a etimologia e os diversos significados de “moral” como adjetivo: a) que concerne quer aos costumes, quer às regras de conduta admitidas em uma época, em uma sociedade determinada; b) que concerne ao estudo filosófico do bem e do mal; c) oposto à lógica ou a intelectual; que concerne à ação e à consciência; d) oposto a material, físico; relativo ao espírito, e não ao corpo ou outros objetos materiais. Moral como substantivo: a) conjunto de fenômenos da vida mental, em oposição à vida do corpo; b) estado afetivo, nível mental; c) conjunto de regras de conduta admitidas em uma determinada época ou por um grupo de homens; d) conduta conforme à moral, realização de uma vida mais humana, uma justiça maior nas relações sociais (Vocabulaire Téchnique et Critique de la Philosophie – traduzi). Em relação ao Direito, fiquemos com a definição de Eduardo García Maynes: ‘Direito é uma ordem concreta, instituída pelo Homem para a realização de valores coletivos, cujas normas – integrantes de um sistema que regula a conduta de maneira bilateral, externa e coercível – são normalmente cumpridas pelos particulares e, em caso de inobservância, aplicadas ou impostas pelos órgãos do poder público. ’ (Filosofia del Derecho, p. 135 – traduzi)”[30].

Segundo os ensinamentos de Miguel Reale, Direito e Moral distinguem-se basicamente por ser o Direito uma ordenação heterônima, coercível e bilateral atributiva das relações de conveniência, enquanto Moral seria uma ordenação autônoma, incoercível e unilateral não-atributiva.

Com a premissa de que Direito e Moral não se equivalem, mas se tangenciam[31], vale trabalharmos os diferentes conceitos a partir de importante contribuição para o presente debate que pode ser retirada do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnaro.

Entretanto, antes da verificação de quais são as definições propostas pelo referido autor, há que se ressaltar importante contribuição oferecida por Hamilton Rangel Júnior que afirma que

“A vida em sociedade pode ser analisada sob dois prismas: o das subjetividades e o das objetividades. Ao primeiro correspondem todos os comportamentos dos indivíduos enquanto voltados às peculiaridades internas ao próprio sujeito, suas preferências, gostos, tendências e demais idiossincrasias. Já, objetividades correspondem a todos os comportamentos dos indivíduos quando voltados às convenções da coletividade, externas ao sujeito; todos os padrões que norteiam, não as peculiaridades de cada indivíduo, mas o contato entre todos eles”[32].

Assim, a boa convivência na sociedade dependerá, segundo os ensinamentos de Hamilton Júnior, do discernimento do e pelo indivíduo de onde se inicia e termina as esferas da subjetividade e da objetividade. Aqui, percebe-se mais uma salutar importância da distinção entre Moral e Direito que se tenta empreender: a convivência harmônica dos indivíduos em sociedade através da exata distinção entre aquilo que pode ser considerado como imposição universal e obrigatória e aquilo que, por outro lado, pode ser considerado uma imposição de ordem parcial na sociedade (cada indivíduo ou grupo de indivíduos, nesse caso, terá uma diferente concepção acerca das normas morais que devem ser seguidas).

Para Nicola Abbagnano, Ética é a ciência que estuda a conduta humana, possuindo diversas concepções a:

“1ª a que a considera como ciência do fim a que a conduta dos homens se deve dirigir e dos meios para atingir tal fim; e deduz tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; 2ª a que a considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar a mesma conduta”[33].

Assim, a Ética possuiria dois significados, a saber: a ciência que estuda a conduta-fim e a ciência que estuda a conduta dos meios[34]; tanto o agir e sua forma, quanto o resultado obtido e o alcance dos fins colimados.

Relacionando os conceitos oferecidos por Hamilton Júnior e por Abbagnano, destarte, pode-se afirmar que o estudo da relação respeitosa entre a subjetividade e objetividade constitui o próprio estudo da Ética.

Ainda segundo Abbagnano, a Moral é “o objeto da ética, a conduta enquanto dirigida ou disciplinada por normas (...)”[35]. Assim, é a Moral que dita quais as regras costumeiras que devem ser seguidas a fim de que a subjetividade não interfira arbitrariamente na objetividade e vice-versa.

Por fim, Abbagnano define Moralidade como “o caráter próprio de tudo aquilo que se conforma às normas morais” [36]. Assim, Moralidade é

“o conjunto de instrumentos viabilizadores da eliminação de arbitrariedades entre a subjetividade e a objetividade.

Enquanto a ética conceitua e a moral regula, a moralidade instrumentaliza a convivência autêntica, não-arbitrária, não-constrangedora, entre o âmbito das subjetividades e o das objetividades, em sociedade”[37].

Outra importante definição do que é Moral é oferecida por Emerson Garcia para quem a mesma é

“concebida como o conjunto de valores comuns entre os membros da coletividade em determinada época, ou, sob uma ótica restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do individuo, estabelecendo seus deveres para consigo e sua própria consciência sobre o bem e o mal. No primeiro caso, conforme a distinção realizada pelo filosofo Bérgson, tem-se o que se convencionou chamar de moral fechada e, no segundo, a moral aberta”[38].

Como se pode perceber, portanto, o tema ora em comento é complexo e árido, mas, observando-se as doutrinas até agora colacionadas, pode-se fornecer uma distinção teórica básica e minimamente operacional sobre os conceitos de Ética, Moral, Moralidade e Direito.

Assim sendo, Ética é um conceito amplo, que alberga em si a própria Moral e que tem como característica o entendimento das condutas humanas dirigidas a uma finalidade e o resultado dessas condutas pelo prisma da Moral.

A Moral, por sua vez, é o objeto da Ética, constituída pelas normas que dirigem as ações humanas para que a convivência em sociedade possa se dar de forma harmoniosa, sem que as diversas subjetividades colidam e\ou prejudiquem os âmbitos objetivos da convivência.

Moralidade é adjetivo ou qualificação daquilo que se conforma às normas da Moral, ou seja, para existir deve haver prévio juízo acerca do cumprimento, ou não, das normas morais para, somente então, poder-se concluir pela existência, ou não, de Moralidade. Ainda, a Moralidade confunde-se com os instrumentos existentes e necessários para a adequação das condutas à Moral, ou seja, dos meios utilizáveis para que a relação entre subjetividade e objetividade siga a harmonia desejável.

O Direito, de outro lado, em uma definição livre, refoge às normas de cunho moral e é constituído por normas de caráter cogente que visam à disciplina da vida humana em sociedade através da imposição de condutas ativas ou passivas dos seres humanos e cuja observância pode ser imposta pela utilização da força do aparato estatal voltado para tanto.

Nesse contexto, quer nos parecer claro que Moralidade Administrativa, enquanto conceito positivado pelo ordenamento jurídico na condição de princípio jurídico constitucional, corresponde a algo distinto da Moralidade, conforme melhor elucidado nos tópicos seguintes.

2.2 Princípios constitucionais da Administração Pública

Dentre a enorme gama de princípios contida na Constituição Federal, alguns podem ser classificados conforme a particularidade do âmbito de sua incidência, ou seja, podem ser tomados com base na matéria específica que visam normatizar. Assim, podem-se reconhecer, por exemplo, os princípios da ordem tributária (tais quais o da anterioridade e da proibição da bitributação, por exemplo), os princípios do processo legislativo (tais quais o da publicidade e o do devido processo legal, por exemplo) e, também, os princípios da Administração Pública, objeto específico de exame deste tópico do trabalho.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, “caput“, dá destaque aos princípios voltados diretamente à Administração Pública, direta ou indireta[39]. São eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ao longo do texto constitucional, entretanto, é possível encontrar diversos outros princípios que, embora não constem do rol do art. 37, “caput”, também são aplicáveis à Administração Pública.

Diversos doutrinadores[40] classificaram os princípios constitucionais voltados para a Administração Pública, dentre os quais citaremos Celso Antônio Bandeira de Mello.

Celso Antônio Bandeira de Mello em capítulo próprio destinado aos princípios constitucionais do Direito Administrativo brasileiro arrola os princípios expressos e implícitos que regem a Administração Pública. Com base em seus escólios, apresentamos os seguintes princípios como fundamentais para a Administração Pública:

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é, em verdade, não apenas princípio constitucional, mas verdadeiro princípio geral de Direito[41] inerente a qualquer sociedade, sendo pressuposto lógico do convívio social. Em função dele, a Administração Pública tem a possibilidade de constituir terceiros em obrigações por meio de atos unilaterais dotados de imperatividade, exigibilidade e até autoexecutoriedade, além da possibilidade de revogar seus próprios atos inconvenientes ou inoportunos e o dever de anulá-los caso sejam inválidos (princípio da autotutela dos atos administrativos);

O princípio da legalidade, específico do Estado de Direito e fruto da submissão do Estado à lei, possui como raiz a ideia de soberania popular, já que segundo ele a Administração apenas pode fazer aquilo que a lei antecipadamente permita. Com efeito, é um princípio que exalta a cidadania, impedindo que os agentes públicos, no desempenho de função[42], ajam de forma autoritária, beneficiando ou prejudicando administrados ou a própria Administração. Está previsto nos arts. 5º, II, 37 caput, e 84, IV, da Constituição Federal[43]. A previsão do art. 5º, II, da CF dirige-se aos particulares traduzindo a ideia de que aos particulares é permitido tudo o que não esteja proibido por lei, já a Administração Pública, diante do art. 37, caput, da CF pode fazer apenas aquilo que a lei autorize.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da legalidade abarca como sub-princípios, o princípio da finalidade, o da razoabilidade e o da proporcionalidade. Deveras, na aplicação do princípio da legalidade, a Administração Pública deve buscar não apenas a obediência à letra da lei, mas também o atendimento da finalidade normativa, sob pena de ter seus atos incursos no vício de desvio de poder. De igual modo, a aplicação da lei deve importar em condutas razoáveis e equilibradas da Administração Pública, tomadas na extensão e na intensidade necessárias ao cumprimento do interesse público firmado em lei.

Ressaltamos, a propósito, que a compreensão dos princípios da finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade como inerentes ao próprio princípio da legalidade enseja reflexos práticos relevantes, sobretudo no tocante à ampliação do controle judicial de atos administrativos sem que seja possível cogitar de ingerência do Poder Judiciário no reexame do mérito administrativo (que seria indevida à luz da cláusula constitucional de separação de poderes) enquanto juízo de oportunidade e conveniência tomado exclusivamente no exercício de função administrativa de competências discricionárias.

Já o princípio da motivação, por sua vez, implica no dever da Administração Pública de motivar seus atos, explicitando os fundamentos de fato e de direito utilizados, bem como a correlação lógica entre e situação existente e a providência tomada, a fim de se atingir o interesse público. Em regra, a motivação do ato deve ser prévia ou contemporânea à expedição do ato. Em casos de atos vinculados a motivação é implícita, bastando que a Administração, para dar cumprimento ao princípio da motivação, explicite quais foram as razões de fato e de direito que utilizou para expedir o ato. Seu fundamento constitucional encontra-se implícito nos art. 1º, II, e 5º, XXXV.

Com efeito, é avessa à própria ideia de Estado de Direito a existência de qualquer espécie de “surpresa” para o cidadão em relação aos atos estatais. Exigem-no a segurança jurídica e a certeza do Direito. Dessa forma, a motivação dos atos do Estado é corolário imediato de qualquer relação estabelecida entre os detentores do Poder Político, o povo, e seus representantes e gestores da coisa pública, donde se percebe-se a imprescindível relevância desse princípio para a Administração Pública.

Quanto ao princípio da impessoalidade, trata-se de norma voltada à obtenção de condutas impessoais da Administração Pública, ou seja, exige-se da Administração que ela aja em relação aos administrados sem favoritismos e sem perseguições. Encontra fundamento nos arts. 5º, caput, e 37, caput, da Constituição Federal. Aplicações concretas deste princípio podem ser encontradas nos arts. 37, II, 37, XXI, e 175, da Constituição Federal.

Esse princípio particulariza, ademais, o princípio da isonomia, tão caro ao Constituinte pátrio. Com efeito, previsto no art. 5º, “caput” e inciso I, da Constituição Federal, o princípio da igualdade proíbe o tratamento desigual, ou em medida desigual, entre pessoas que são consideradas iguais e vice-versa.

Como se percebe, o dever de impessoalidade do Administrador Público resulta no respeito à isonomia entre os cidadãos, sendo norma, portanto, de salutar observância e aplicação práticas.

Aliado aos princípios da motivação e da impessoalidade, o princípio da publicidade determina a busca da transparência dos atos praticados perante a própria Administração e perante os administrados. Encontra-se previsto nos arts. 37, “caput”, 5º, XXXIII e XXXIV, “b”, da Constituição Federal, e presta-se a uma melhor adequação e controle dos cidadãos em relação à Administração.

Os princípios do devido processo legal e da ampla defesa encontram fundamento nos art. 5º, LIV, LV, da Constituição Federal, e constituem-se, sucintamente, em verdadeiras liberdades públicas, voltadas à limitação da atividade estatal quanto à observância de procedimentos previamente estabelecidos para sua atuação (em âmbito formal) e, ainda, à conformação de toda a atividade estatal aos ditames do ordenamento jurídico considerado como um todo (âmbito dito material ou substancial).

Existentes em seu início de formulação desde o século XIII (Magna Carta, de João Sem-Terra, 1215), tais normas são hoje consideradas imprescindíveis para a existência de qualquer Estado de Direito ocidental.

Não podem, entretanto, ser utilizados como empecilhos às medidas estatais que eventualmente se façam necessárias logo após circunstâncias fáticas que demandem atuação imediata, ou seja, não podem impedir a adoção de imediata providência de extrema urgência.[44]

Ainda segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, tem-se que o princípio da moralidade implicaria aos agentes da Administração e à própria Administração o dever de agir conforme princípios éticos. Encontra previsão nos arts. 37, caput e § 4º, 5º, LXXIII, art. 85, V, da Constituição Federal.

Nessa visão, o princípio da moralidade teria o condão de impor ao Administrador o dever de seguir comportamentos de lealdade e boa-fé, ambos positivados no ordenamento jurídico brasileiro.

Ainda, pelo princípio do controle judicial dos atos administrativos,  previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, todos os atos da Administração são passíveis de apreciação pela autoridade competente do Poder Judiciário.

Conforme a literalidade do dispositivo constitucional em questão nenhuma lesão ou ameaça de lesão será excluída da apreciação do Poder Judiciário, o que consubstancia em possibilidade de controle dos atos da Administração por órgão devidamente imbuído da função jurisdicional do Estado Trata-se, no Brasil, de cláusula pétrea (não sendo passível, pois, de mitigação em seu conteúdo), por representar parte indissociável da separação harmônica dos Poderes estatais (art. 60, § 4º, III, cc. art. 2º, ambos da Constituição Federal).

Dentro dessa esteira de raciocínio, importante e imprescindível, também, o princípio da responsabilidade o Estado por atos administrativos, segundo o qual a responsabilidade do Estado por atos comissivos é objetiva (logo, independentemente da existência de culpa) e por atos omissivos é subjetiva. Está previsto expressamente no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

Enorme é a garantia constitucional conferida ao administrado por meio desta norma, uma vez que, tratando-se de um Estado de Direito, no qual o próprio Estado submete-se ao ordenamento jurídico vigente em seu seio, entendeu a construção doutrinária sobre o tema que, havendo dano causado por representante do Estado, há em relação a ele a correlata possibilidade de responsabilização do mesmo, protegendo-se as esferas de liberdade do administrado.

O princípio da eficiência, ainda, conquanto criticado e até mesmo eivado de ser mera recomendação do Constituinte (pela fluidez de seu significado), poderia, enquanto norma que determina a obtenção do melhor resultado por meio do melhor meio utilizável (norma de otimização da atividade administrativa), por exemplo, desempenhar importante papel no controle dos atos da Administração.

Sua utilização no texto constitucional pátrio, partindo do dever de efetividade máxima das normas da Carta Magna, pode até mesmo estender-se para servir de embasamento para a responsabilização do Estado por omissão inconstitucional, por exemplo.

Por fim, o princípio da segurança jurídica, que pode até mesmo ser considerado como implícito ou da essência de um Estado Democrático de Direito, é norma que, por sua estrutura, permeia todos os demais âmbitos de aplicação e interpretação do Direito. Por esse princípio a Administração Pública não pode modificar seu posicionamento acerca de matéria para a qual firmou determinadas orientações sem prévia e pública notícia quando sancionar, agravar a situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões, por exemplo.

Além disso, implica em reforço de princípios como os da motivação dos atos administrativos e da publicidade dos mesmos, sendo dever de evitar “surpresas” jurídicas aos administrados.

Dessa forma, percebe-se que o conjunto de princípios identificado no texto constitucional que tem como principal escopo normatizar a atuação da Administração Pública em geral é reconhecido como o dos princípios constitucionais da administração, sendo compreendido dentro deles o princípio da moralidade administrativa, objeto do presente estudo.

2.3 Princípio da Moralidade Administrativa

Situado dentre os princípios constitucionais da Administração Pública, o princípio da Moralidade Administrativa não pode ser considerado como novidade no ordenamento jurídico e, muito menos, na doutrina.

Vale mencionar que, há tempos, o escritor francês Maurice Hauriou[45] formulou o conceito de moralidade administrativa a fim de fundamentar o controle, pelo Conselho de Estado da França, dos atos discricionários.

Baseado em monografia do jurista português Antônio José Brandão, Silvério Carvalho Nunes destaca:

“Hauriou desenvolveu tese audaciosa e avançada para a época segundo a qual a legalidade dos atos administrativos é fiscalizada pelo recurso baseado na violação da lei, mas a conformidade desses atos aos princípios basilares da ‘boa administração’, determinante necessária de qualquer decisão, é fiscalizada por outro recurso, fundado no desvio de poder, cujo campo de aplicação pertence ao recurso denominado de ‘moralidade administrativa’”[46].

O desenvolvimento da tese de Hauriou decorreu da percepção de que poderia haver divergência entre a intenção do agente público na prática do ato administrativo e os respectivos conteúdos e finalidades desse ato. Notou que comumente ocorria abuso na aplicação da lei e, principalmente, nos atos de competência discricionária em que o agente produtor do ato escolhe uma das opções veiculadas por parâmetros legais, segundo critérios de conveniência e oportunidade.

O conceito de Hauriou teve, portanto, fundamental importância na possibilidade de controle não só da forma ou legalidade externa do ato, mas também do conteúdo do mesmo. Dessa forma, percebe-se que o estudo inicialmente empreendido acerca do princípio da moralidade administrativa teve como principal escopo a ampliação da possibilidade de verificação da legalidade e da pertinência dos atos administrativos, sendo essa sua primeira função reconhecida doutrinariamente, portanto.

Tal preocupação com o controle dos atos administrativos e a ampliação de seus instrumentos era comum aos estudiosos da época de Hauriou e, bem por isso, sua tese teve aceitação rápida e passou a ser alvo de diversas análises doutrinárias a partir de então.

Seguindo as lições de José Brandão, Silvério Carvalho Nunes destaca que para Hauriou moralidade administrativa era “um conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração”[47].

Assim, esse conceito de moralidade administrativa foi desenvolvido posteriormente por Henri Welter em monografia de 1930 denominada Le Contrôle de la Moralité Administrative e por Lacharrière.

Ao comentar acerca da doutrina francesa da moralidade administrativa, Márcio Cammarosano destaca ensinamento de Hely Lopes Meirelles, abaixo transcrito:

“Desenvolvendo o mesmo conceito, em estudo posterior, Welter insiste em que a moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum; ela é composta por regras de boa administração, ou seja: pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o Bem e o Mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa”[48].

Para Welter a moralidade administrativa, portanto, não se confunde com a moral comum. Ela é espécie do gênero moralidade institucional. Assim, tanto para Hauriou quanto para Welter o controle da moralidade administrativa é coincidente com o princípio da legalidade em sentido amplo, pois, para que aquela seja respeitada, este não poderia ser violado.

A distinção, aqui, entre o âmbito da Moral e do Direito fazia-se salutar para o entendimento do princípio da moralidade administrativa, pois se reconhecia, nesse, que as normas jurídicas positivadas traziam dentro de si uma carga de moral que era intrínseca ao Direito e que deveria ser respeitada, principalmente no que tange à aplicação das normas jurídicas, porém não se confundia, necessariamente, com a Moral comum da sociedade.

Partindo de tais pressupostos, o assunto também foi objeto de estudos de Lacharrière em monografia de 1938 denominada Le Contrôle Hierarchique de l´Administration dans la Forme Jurisdicionel. Para ele, a moral administrativa

“é o conjunto de regras que, para disciplinar o exercício do poder discricionário da Administração, o superior hierárquico impõe aos seus subordinados. Semelhantes regras não se confundem também com as regras da moral comum. São regras da boa administração”[49].

O pensamento francês, portanto, como se pode perceber, primava por reconhecer que a moralidade administrativa, presente fora do âmbito da Moral comum, consubstanciava-se em normas jurídicas, das quais exsurgiam limites para a atuação do administrador segundo entendimento de “boa administração”, “eficiência administrativa”, “disciplina hierárquica” entre outros.

Tal paradigma de entendimento, contudo, reconhecia na moral administrativa o conteúdo de normas programáticas apenas, ou seja, não vinculantes imediatamente e nem mesmo autônomas, pois representavam ilações acerca de outras normas jurídicas. Essa postura dogmática do Direito era acarretada pelo entendimento vigente, segundo o qual apenas o texto da lei era fonte primária de Direito, não se permitindo que valores, por exemplo, pudessem se sobrepor à literalidade do quanto disposto na lei.

Ao concluir sua explanação acerca do pensamento francês, Silvério Carvalho Nunes inclusive destaca as alterações pelas quais o entendimento até então vigente passou na doutrina jurídica, reconhecendo, hoje, força normativa e obrigatória aos princípios jurídicos e, particularmente, ao da moralidade administrativa. Dizia ele que

“a moralidade administrativa, hoje, é princípio constitucional; o Direito já ingressou na era da pós-modernidade; a natureza programática de princípio jurídico é coisa de antanho. Ele é norma dotada de força obrigatória. Finalmente, o intérprete goza de liberdade maior para o exame do instituto, o que não ocorreria na época nebulosa de Hauriou, quando a hermenêutica tradicional impunha se considerasse na interpretação ‘a lei antes de tudo’, a par do abuso das abstrações lógicas, expresso no dogmatismo jurídico”[50].

No Brasil, inúmeros estudiosos têm se debruçado sobre o estudo do princípio da moralidade, seu alcance, sua aplicação, contudo, ponto comum a que chegam os estudiosos contemporâneos é que o reconhecimento da juridicidade ao princípio da moralidade é questão pacífica após o advento da Constituição de 1988.

Entretanto, antes da Constituição de 1988, comumente denominada Constituição-cidadã, nem todos os administradores brasileiros reconheciam a índole jurídica da moralidade administrativa[51]. Havia certa resistência dos doutrinadores acerca da possibilidade de conceituação do princípio, precipuamente porque se poderia correr o risco de trazer ao Direito conceitos que lhe eram estranhos, oriundos da Moral comum.

Inexistindo previsão expressa nos textos constitucionais anteriores, reconhecer-se o princípio da moralidade administrativa como princípio implícito era considerada atitude perniciosa para a harmonia do sistema, mesmo porque nenhuma definição lograva afastar o referido princípio das normas de Moral comum.

Hodiernamente, contudo, inúmeras são as aplicações do princípio da moralidade, destacando-se a de poder ser fundamento de ação popular para anulação de ato lesivo à moralidade administrativa. A despeito da extrema importância do assunto, após a Constituição de 1988 e diante do pós-positivismo, antes de se proceder à enumeração das aplicações deste princípio, faz-se necessário trazer a baila algumas definições oferecidas pela doutrina do que seria o princípio da moralidade.

A maior discussão ainda existente acerca do presente tema orbita em torno da moral comum integrar, ou não, o conceito de moralidade administrativa. Muito há se discutido se o princípio da moralidade se refere a normas morais de comportamento dos indivíduos na sociedade e sobre como tais normas influenciariam o universo jurídico para sua aplicação efetiva.

O que se defenderá no presente estudo é que o princípio constitucional da moralidade não pode ter, a priori, seu conteúdo retirado da moral comum.

Entretanto, antes de aprofundarmos o estudo acerca da dúvida existente quanto a moral comum ser, ou não ser, a priori, a base do princípio constitucional da moralidade, convém destacar algumas das definições de princípio da moralidade sugeridas pela doutrina atual.

2.4 Definições doutrinárias do Princípio da Moralidade

2.4.1 Breves considerações introdutórias

Antes de especificar algumas definições ofertadas pela doutrina, cumpre salientar que o conceito de moralidade constitui conceito de experiência ou valor, denominado conceito jurídico indeterminado.

Essa indeterminação, entretanto, não é impeditiva da sua compreensão e nem impede sua aplicação, já que segundo Celso Antônio Bandeira de Mello os conceitos indeterminados, plurissignificativos possuem uma densidade mínima. Dessa forma, cabe ao jurista, utilizando os métodos de interpretação, definir quais seriam os conteúdos mínimos possíveis para o entendimento de tais conceitos.

Dessarte, importante salientar que, ainda, que se trate de um conceito jurídico indeterminado, seu entendimento passa necessariamente pela concepção de Direito enquanto sistema uno e coeso, ou seja, só é possível perscrutar o significado real de um conceito jurídico através da análise de todo o ordenamento de Direito, em atividade denominada, com pertinência, interpretação sistemática[52].

Outro expoente jurídico hodierno, Humberto Ávila entende que a Constituição de 1988 preocupou-se de diversas maneiras com os padrões de conduta. Isso porque, em primeiro lugar, estabeleceu valores fundamentais que devem ser atendidos pelo Administrador Público no exercício de sua atividade administrativa. Esses valores fundamentais, constantes dos artigos 1º, 3º, 5º, caput e XXXVI, da Constituição Federal devem reger os atos dos Administradores que, além de ter de respeitá-los, não podem restringi-los sem justificação razoável.

Tal constatação decorre do caráter próprio das normas constitucionais, que, como ápice hierárquico do ordenamento jurídico, demandam, para sua interpretação, cuidados especiais do exegeta, tais como a preocupação com a máxima efetividade possível das normas constitucionais e a impossibilidade de sua restrição para prejudicar direitos fundamentais, dentre outras.

Em segundo lugar, primou pela atuação administrativa impessoal e não subjetiva (artigos 1º, 2º, 5º e 37, da CF), isto é, a Constituição instituiu que a administração não pode agir sem amparo jurídico, devendo fazer apenas aquilo que a lei permite, não podendo atuar de forma arbitrária, pois estaria desconforme com os ideais de um Estado Democrático de Direito

A própria ideia de Estado de Direito, por si só, positivada pela Constituição Federal de 1988, já encerra em si o pressuposto de que o Estado subordina-se às normas jurídicas por ele positivadas e, com mais razão ainda, às normas constitucionais que o regem.

Em terceiro lugar, a Constituição de 1988 criou mecanismos de defesa dos direitos do cidadão a fim de permitir a anulação de atos administrativos praticados em desconformidade com o ordenamento. Estão dispostos nos arts. 5º, XXXV, LVI, LXIX e LXXIII e 37, § 4º, da Constituição Federal.

Tal aspecto é deveras relevante, pois constitui verdadeira “arma” em prol da congruência do sistema: se os cidadãos, administrados, detém todo o Poder do Estado (art. 1º, parágrafo único, CF), a Administração Pública é apenas voltada para a realização dos seus interesses e, logo, deve haver meios jurídicos disponíveis para que os próprios cidadãos controlem sua atuação institucional.

Em quarto lugar, por fim, a Constituição de 1988 criou requisitos para o ingresso na função pública (arts. 12, 14, 37, II, XVI, XXI e § 1º, 73, 101, 104, 119 e 120, CF) e, além disso, instituiu mecanismos de controle externo, porém institucional, da atividade desenvolvida pela Administração Pública (art. 70, CF).

Assim, para Humberto Ávila, o cotejamento de todos esses aspectos inovadores da Constituição de 1988 leva à constatação de que violam o princípio da moralidade “a conduta adotada sem parâmetros objetivos e baseada na vontade individual do agente e o ato praticado sem a consideração da expectativa criada pela Administração”[53].

Para o autor, o princípio constitucional da moralidade, tal como qualquer outro princípio, é norma finalística, que exige a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado através da delimitação de comportamentos necessários à realização dos fins albergados constitucionalmente. Uma vez identificadas tais conjunturas, a norma deve ser aplicada ao seu máximo, a fim de, na maior medida possível, serem alcançados os estados ideais por ela determinados.

Logo, o princípio da moralidade exige a adoção de condutas sérias, motivadas, leais, sinceras, mesmo que não previstas na lei, todas passíveis de serem controladas e exigidas através dos meios previstos na própria Constituição Federal.

2.4.2 Definição de Celso Antônio Bandeira de Mello

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da moralidade administrativa representa o dever de atuação da Administração Pública consoante valores éticos, a fim de não praticar qualquer ilicitude apta a invalidar o ato produzido. Os cânones da lealdade e da boa-fé estão abrangidos em sua definição de princípio de moralidade. Assim, vejamos:

“segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”[54].

Pelo exposto, vislumbramos que o jurista faz a correlação do princípio da moralidade administrativa com os valores de lealdade e boa-fé positivados pelo sistema jurídico, mas sem propriamente delimitar quais são todos os valores éticos abarcados nesse conceito.

2.4.3 Definição de Weida Zancaner

Weida Zancaner em artigo intitulado “Razoabilidade e Moralidade: Princípios Concretizadores do Perfil Constitucional do Estado Social e Democrático de Direito” afirma que

“o administrador afrontará o princípio da moralidade todas as vezes que agir visando interesses pessoais, com o fito de tirar proveito para si ou amigos, ou quando editar atos maliciosos ou desleais, ou ainda, atos caprichosos, atos exarados com o intuito de perseguir inimigos ou desafetos políticos, quando afrontar a probidade administrativa, quando agir com má-fé ou de maneira desleal”[55].

Para a autora, os atos contrários ao princípio da moralidade são aqueles produzidos em desconformidade com a finalidade do ato, ou seja, aqueles atos praticados com desvio de poder em que o agente, valendo-se de sua competência para exarar determinado ato administrativo, o faz para atingir fim diverso daquele para o qual o ato teoricamente teria de ser produzido. Weida Zancaner entende, ainda, que o princípio da moralidade é autônomo já que a sua redução ao princípio da legalidade dificulta o alcance do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, considera essa linha de raciocínio que, uma vez reconhecido o advento do pós-positivismo, poder-se-ia muito bem conferir autonomia ao princípio da moralidade para atuar junto aos motivos determinantes da prática do ato administrativo, uma vez que nenhuma norma, sob a nova concepção, pode ser considerada isoladamente quando de sua aplicação, o que não lhe retira o caráter de autonomia diante das demais.

2.4.4 Definição de Emerson Garcia

Posição semelhante quanto à autonomia do princípio da moralidade, por exemplo, é adotada por Emerson Garcia:

“O princípio da legalidade exige adequação do ato à lei, enquanto o da moralidade torna obrigatório que o móvel do agente e o objeto pretendido estejam em harmonia com o dever de bem administrar. Ainda que os contornos do ato estejam superpostos à lei, será ele inválido se resultar de caprichos pessoais do administrador, afastando-se do dever de bem administrar e da consecução do bem comum”[56].

Para o autor, o princípio da moralidade atua como um mecanismo aglutinador, condensando os princípios afetos a atividade estatal em standards. Para ele, a inadequação dos motivos e da finalidade do ato com a intenção do agente é suficiente para a identificação de vícios contidos em atos de competência discricionária e, até mesmo, para a identificação de desvio de poder. Portanto, o ato ferirá a moralidade administrativa quando fundado em motivo inexistente, incompatível, inadequado, insuficiente e desproporcional ou quando o seu objeto for impossível, desconforme ou ineficiente.

A autonomia do princípio da moralidade, assim, seria identificada no embasamento que a norma teria para melhor identificar, e proibir, punir, o desvio de poder, atuando, assim, em uma análise da intenção do administrador ao praticar o ato.

2.4.5 Definição de Hamilton Rangel Junior

Para Hamilton Rangel Júnior:

“moralidade institucional é o conjunto de mecanismos que a Constituição oferece, para evitar que a subjetividade, individual, e a objetividade, coletiva, sejam arbitrárias, uma em relação à outra, no âmbito das coletividades organizacionalmente estruturadas para o desempenho legítimo de determinadas funções, na ordem social e política”[57].

Conforme este jurista, portanto, o conceito de moralidade institucional, que não abarcaria apenas a moralidade administrativa, ou aquela referente apenas à função administrativa, seria de conjunto de disposições de cunho constitucional que prevêem as formas de equacionar a convivência, no seio da sociedade, dos subjetivismos (tradução de interesses mais individualizados), com a objetividade (identificada, aqui, com o regramento voltada ao interesse público primário).

Por tal entendimento, seria constituinte da moral institucional cada diverso conjunto de normas constitucionais que regulasse os diversos âmbitos da moral individual e social (ou seja, entre relação entre indivíduos, ou entre entes estatais, ou entre grupos ou entre uns e outros, por exemplo). Tal constatação faria com que se devesse incluir a moralidade institucional como princípio constitucional e não apenas a moralidade administrativa (porque essa última abarcaria apenas um âmbito da norma).

2.4.6 Definição de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho

Ainda, importante magistério é efetuado por Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, no livro “O Controle da Moralidade Administrativa”. O autor, a semelhança de outros, entende que o princípio da moralidade administrativa está associado ao conceito de ‘bom administrador, e em função disso relaciona-se com a moral comum. Assim, para bem administrar a coisa pública, o Administrador precisa agir dentro dos preceitos vigentes, devendo também respeitar a moral comum.

Interessante realçarmos que o dever de boa administração, objeto de precioso trabalho monográfico desenvolvido por Guido Falzone, é citado por Celso Antônio Bandeira de Mello como princípio do direito italiano norteador da introdução do princípio da eficiência em nosso ordenamento através da Emenda Constitucional nº. 19[58].

2.4.7 Comentários

A despeito da vertente que será defendida no presente estudo, há que se ressaltar que as posições doutrinárias que associam o princípio constitucional da moralidade a valores que o Administrador Público deve adotar no exercício de sua competência não estão equivocadas[59], entretanto, a tese aqui defendida é a de que o princípio da moralidade se refere à moral juridicizada.

Com efeito, ao se atribuir ao princípio da moralidade uma carga valorativa advinda não do Direito, mas do âmbito estrito da Moral comum, poder-se-ia permitir que a justificativa de sua prática fosse relegada ao âmbito subjetivo, impedindo, assim, que a referida norma pudesse servir efetivamente para controle da atividade administrativa, sobretudo à luz dos princípios da isonomia e da segurança jurídica.

Assim, pretende-se distinguir da tese até aqui apresentada uma que possa compreender o princípio da moralidade nos exatos limites de sua previsão no sistema jurídico, ou seja, enquanto parte integrante e indissociável do ordenamento jurídico, possuindo, como tal, carga valorativa advinda do próprio sistema de Direito positivado e não de algo externo e estranho a ele.

Para tanto, há que se aprofundar o estudo acerca da dúvida existente quanto a moral comum ser, ou não ser, a priori, a base do princípio constitucional da moralidade.

Muito há se discutido se o princípio da moralidade se refere a normas morais de comportamento dos indivíduos na sociedade e a maneira como tal princípio poderia promover a interação entre essas normas morais e as jurídicas.

Conforme se denota da análise da própria sociedade contemporânea brasileira, o que é moral para determinado indivíduo pode não ser moral, ou até mesmo pode ser amoral para outro indivíduo. Significa dizer que os padrões morais da atualidade encontram-se difusos na sociedade, sofrendo variações de indivíduo para indivíduo, e de grupo para grupo.

Desta forma, a fim de se evitar o subjetivismo trazido pelas inúmeras possibilidades do que cada indivíduo considera moral ou não, é que se tentará entender o princípio da moralidade dentro do próprio ordenamento jurídico, ou mais especificamente, dentro do sistema constitucional.

Isto porque a “moral é noção de natureza universal, variando em conformidade com o tempo, o local e os mentores de sua concepção, terminando por condensar os valores subjacentes a determinado grupamento.”[60]

Dessa forma, não se poderia trazer para o Direito conceito da Moral comum, pois não se teria, aí, base confiável de interpretação que pudesse levar à aplicabilidade do conceito, haja vista a já salientada maleabilidade da moral conforme o indivíduo, o grupo, o local a que pertença.

Com efeito, da mesma maneira que não se pode afirmar que o princípio da moralidade se refere à moral comum, não se pode afirmar que ele se refere a um ideal de justiça ou a uma justiça absoluta, pois dessa forma, também não se estaria conferindo ao referido princípio um substrato adequado e minimamente objetivo para que se pudesse dele extrair um conceito juridicamente aplicável.

O princípio da moralidade, tal como defendido no presente trabalho, se refere à moral jurídica, ou seja, ao único padrão de moral que se pode aferir: aquele presente nas próprias normas de Direito positivadas, principalmente as normas constitucionais, sabidamente mais dotadas de carga valorativa, advinda diretamente do seio social após manifestação do Poder Constituinte Originário.

Nas palavras do professor Márcio Cammarosano

“O que se nos afigura equivocado é supor que o princípio da moralidade administrativa nos remete a uma ordem normativa superior, ou paralela, suplementar ou subsidiária à ordem jurídica posta; a uma ordem que ‘reflete ou condensa uma moral extraída do conteúdo da ética socialmente afirmada’, ou que se possa identificar com ideais de uma justiça absoluta; a uma ordem que permita superar, enfim, a distinção entre Direito e Moral.

(...) o princípio da moralidade administrativa não está referido à moral comum, mas ao próprio Direito, que consagra valores que recolhe de outras ordens normativas do comportamento humano, inclusive de ordens morais”[61].

Com efeito, os valores morais são fluidos e encontram-se difusos na sociedade, não podendo ser invocados a não ser que estejam transfundidos em alguma lei ou ato normativo escrito, a fim de que a interpretação siga a proporcionalidade e as demais regras interpretativas desenvolvidas ao longo da história evolutiva do pensamento jurídico.

Reconhecendo-se a presença da moral dentro das normas jurídicas positivadas, destarte, é possível aplicar a esses valores toda a gama de instrumentos exegéticos que permitem ao intérprete e ao aplicador do Direito a delimitação exata do objeto normativo e a extensão exata de sua aplicação.

Assim, é de suma importância que as regras morais aplicáveis à Administração Pública sejam aquelas juridicizadas, a fim de que o aplicador do Direito se valha do próprio ordenamento para valorar a questão concreta, não utilizando padrões morais difusos na sociedade ou, até mesmo, os seus próprios padrões morais na apreciação do caso concreto.

Vale ressaltar, neste ponto, o magistério de Lúcia Valle Figueiredo:

“Consoante entendemos, a discricionariedade consiste na competência-dever de o administrador, no caso concreto, após a interpretação, valorar, dentro do critério de razoabilidade e afastado de seus próprios “standards” ou ideologias – portanto, dentro de critérios da razoabilidade geral – dos princípios e valores do ordenamento, qual a melhor maneira de concretizar a utilidade pública postulada pela norma. O intérprete, o aplicador, para concretizar a norma geral, deverá primeiramente interpretá-la, depois terá de valorar qual a melhor maneira de atender à utilidade pública. Tal valoração, entretanto, não é livre, no sentido de que possa o administrador, se assim o entender, preencher os conceitos com seus critérios próprios”[62].

Assim, o princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeitar as regras morais acolhidas pela lei, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico, condicionando não só o administrador, como também o juiz e o legislador. Este último, aliás, está impedido de legislar, inovando no mundo jurídico, de forma contrária ao princípio constitucional da moralidade. O legislador não pode exercer sua função típica de modo a editar normas jurídicas que desatendam aos princípios elencados na Constituição de 1988 e valores éticos albergados pelo ordenamento jurídico como um todo. Toda a atividade legislativa deve voltar-se para a edição de normas que prestigiem os valores consagrados pelos princípios constitucionais, sob pena de violarem o ordenamento[63].

Dessa forma, não só a interpretação e a aplicação do princípio da moralidade devem ser atividades realizadas no âmbito circunscrito das normas jurídicas positivadas, a fim de conferir segurança jurídica para o controle dos atos emanados do Poder Público, como, também, deve-se entender que somente se poderá falar em moralidade vinculante à atividade legislativa se e quando se reconhecer que referido princípio, além de inserido no ordenamento jurídico, tem com ele relação de pertinência de seu conteúdo, extraindo do próprio Direito aquilo que se deva entender por moral.

Aliás, além do próprio conteúdo da norma a ser editada precisar estar de acordo com os princípios constitucionais, dentre eles o da moralidade, é possível falar em inconstitucionalidade do “impulso de legislar”, controlando-se não os vícios objetivos existentes na lei, mas os vícios subjetivos trazidos pela mesma. Vale dizer que a verificação da ocorrência de inconstitucionalidade no impulso de legislar permite a verificação da existência de vícios subjetivos da lei.

No tocante propriamente ao objeto do presente trabalho, associar o princípio da moralidade ao dever de bem administrar a coisa pública de acordo com parâmetros éticos positivados pelo ordenamento importa como fundamento para delimitar a atuação do administrador, sobretudo na prática de atos de competência discricionária, a fim de que sua conduta esteja em conformidade com a lealdade, boa-fé, veracidade e honestidade sob pena de ter os seus atos invalidados de forma objetiva.

De todo modo, ao que parece, estes enfoques que buscam associar o princípio da moralidade à moral comum “não deixam de reconhecer que a só invocação de outros princípios jurídicos já possibilitaria o controle da Administração que com base naquele se pretende efetuar”[64].

Partindo-se, então, da ideia de que o princípio da moralidade se refere aos valores contidos dentro do sistema jurídico, e não ignorando a existência de posições contrárias, o professor Márcio Cammarosano entende que o princípio da moralidade não é um princípio autônomo, já que não há na doutrina exemplo de invalidação de ato administrativo baseada única e exclusivamente na violação do princípio da moralidade.

Com efeito, a identificação de uma conduta estatal como moralmente jurídica, ou não, passa por uma análise prévia de outros institutos, principalmente do princípio da legalidade, pois, sendo moralmente jurídico apenas o quanto estipulado no próprio ordenamento de Direito, apenas poderá ser imoral o que não for conforme a legalidade.

Essa constatação fica mais nítida quando se estuda o modo de aplicação do princípio da moralidade em diversas situações práticas e até mesmo apenas em tese, pois daí exsurge seu caráter auxiliar em relação às demais normas jurídicas, principalmente principiológicas. É essa justamente a análise que se fará no tópico seguinte.

2.5 Aplicações do princípio da Moralidade Administrativa

Muito se discutiu, como acima ressaltado, se o princípio da moralidade, agora expresso, era parte integrante do ordenamento jurídico pátrio antes da promulgação da Constituição de 1988 como norma implícita. Isso porque, conforme dito, era tarefa deveras árdua conferir-lhe um conceito que pudesse escapar à utilização da moral comum e tal possibilidade era rechaçada de plano, por problemática que seria ao ordenamento jurídico como um todo.

Não ignorando posições contrárias, entende-se que a moralidade administrativa já era antes mesmo da Constituição de 1988 aplicável à Administração Pública, sendo requisito de validade dos atos administrativos em geral[65].

Esta posição, adotada por diversos juristas, dentre os quais se destacam Márcio Cammarosano e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, coaduna-se em tudo com o entendimento de que a moral contida no conteúdo desse princípio é justamente aquela que pode ser extraída das normas jurídicas positivadas e, logo, condicionantes do ato administrativo em geral.

A grande inovação trazida pela Constituição Federal, assim, não foi fazer da moralidade administrativa norma integrante do ordenamento. A inovação consistiu em ser a moralidade administrativa fundamento hábil para a propositura de ação popular.[66]

Com efeito, a Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII estabeleceu que atos[67] ofensivos à moralidade administrativa podem ser anulados pelo Poder Judiciário por meio de ação popular, mesmo que este ato imoral não tenha causado qualquer dano ao patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe, ao patrimônio histórico cultural ou ao meio ambiente[68]. Além disso,

 “o art. 14, §9º, da Constituição Federal admite, em defesa da moralidade para o exercício do mandato eleitoral, possa lei complementar estabelecer a inelegibilidade em proteção à probidade administrativa que é igualmente resguardada na enumeração dos crimes de responsabilidade atribuíveis ao Presidente da República (art. 85, V), sobre os quais dispõe o art. 9º da Lei nº. 1.709, de 10 de abril de 1950”[69].

Assim, os atos viciados com violação ao princípio da moralidade podem ser atacados não apenas pelo titular do direito violado, mas também por qualquer cidadão mediante a propositura de ação popular[70].

“(...) ainda que o titular do direito lesado contra a ilegalidade que o atinge não queira agir, qualquer cidadão poderá fazê-lo, propondo ação popular para que se restaure a legalidade e, com ela, seja fulminada a imoralidade administrativa. A imoralidade administrativa, residente na intencional violação da lei por quem, por dever de ofício, estava obrigado a dar-lhe exemplar cumprimento, enseja a qualquer cidadão ir a juízo mediante ação popular, direito de ação este que antes da Constituição de 1988 não existia, a menos que o ato viciado fosse também lesivo àqueles bens e direitos elencados no art. 1º, § 1º, da Lei nº. 4.717, de 29 de junho de 1965”[71].

Assim, a afronta a moralidade é causa autônoma de invalidação do ato viciado, sendo “poderosa aliada na busca da finalidade do ato, na busca do interesse público, no contraste do ato discricionário, na análise de possíveis desvios de finalidade”.[72]

Sendo, portanto, princípio da Administração Pública expresso, a moralidade administrativa ganhou inegável realce na Constituição Federal de 1988 como possível fundamento autônomo de ação popular, sendo essa uma das principais aplicações que se pode vislumbrar para essa norma hodiernamente.

Conforme já defendido no bojo do presente estudo, o ferimento ao princípio da moralidade, para ser constatado, deve ser fruto de verificação de diversas situações fáticas e jurídicas, dentre elas o ferimento à legalidade, entretanto, tal relação de sujeição especial não retira do princípio da moralidade a sua autonomia enquanto norma, conforme restará demonstrado no capítulo seguinte.

Além da possibilidade de ser fundamento de ação popular[73], a moralidade administrativa possui outras diversas aplicações.

Grande destaque deve ser dado ao papel do Poder Judiciário nesta árdua tarefa de aplicar a moralidade administrativa aos casos concretos a ele submetidos.

Os magistrados não devem aplicar seus próprios padrões morais no momento da apreciação do feito, e isso justamente porque são órgãos estatais que desempenham a função jurisdicional, logo, submetidos inexoravelmente ao ordenamento jurídico-constitucional positivado. Devem, destarte, buscar os padrões morais albergados pelos princípios e regras integrantes do ordenamento jurídico e identificar os standards vigentes para a resolução do caso levado ao Poder Judiciário, já que o princípio da moralidade se refere a valores juridicizados.

Desta forma, os operadores do Direito e os magistrados devem estar conscientes da moral e da realidade vigentes em sua época, entretanto, possuem fundamental papel na transformação social da comunidade em que se inserem[74].

Neste contexto, o Poder Judiciário tem fundamental papel na modificação de entendimento majoritário que defende a proibição de exame judicial do mérito dos atos discricionários, devendo para tanto valer-se do princípio da moralidade.  Como bem ressalta Marcelo Figueiredo

“Não é possível que o ‘mérito’ do ato questionado seja colocado como impedimento à fiscalização ou controle da Corte de Contas, como também, na maioria dos casos, do próprio Judiciário no que tange aos atos normativos (quer provenientes do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário no exercício de função administrativa.”[75]

Sem maiores aprofundamentos nesta polêmica questão do controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário, há que se destacar alguns julgados que utilizaram o princípio da moralidade como fundamento, demonstrando os limites e a extensão que os Tribunais pátrios vêm identificando no referido princípio jurídico.

Há que se ressaltar, entretanto, que a jurisprudência majoritária aplica o princípio da moralidade sempre conjugado com os demais princípios constitucionais, como realmente deve ser feito numa fase pós-positivista.

Em nota de rodapé, Marcelo Figueiredo dá destaque ao voto proferido pelo Ministro Carlos Mário Velloso no julgamento do impedimento (impeachment) do Presidente Collor, que assim decidiu

“Não me refiro, ao mencionar o princípio da moralidade administrativa, inscrito no caput do art. 37 da Constituição, à moral comum. Não estou, assim, valorando, de qualquer forma, os fatos que teriam sido praticados pelo impetrante e que deram ensejo à instauração de processo de impeachment. A valoração desses fatos coube ao Senado e, neste ponto, o ato deste escapa, em linha de princípio, ao controle judicial. Refiro-me à moral jurídica, mesmo porque ‘seguindo-se o espírito que domina a Constituição, seus próprios termos e a sua interpretação, não seria aceitável a suposição de que alguém que tivesse de ser afastado da titularidade do cargo máximo do Poder executivo por destrato com a lei pudesse continuar a participar, ativa e imediatamente, do poder público logo após a ocorrência dos fatos que teriam conduzido à condenação, frustrada por um atalho (...)”[76].

Nesse precedente, portanto, o próprio Pretório Excelso reconheceu que a noção de moral enquanto parâmetro que se possa utilizar para contraste judicial de atos administrativos à luz do princípio da moralidade não é aquela etérea, dissolvida, imperscrutável no seio da sociedade, mas, antes, apenas a carga moral\valorativa encerrada nas próprias normas jurídicas positivadas, pois somente dessa forma é que se respeitarão todos os cânones jurídicos e o sistema como um todo.

Ainda, não se poderia deixar de destacar também a questão do nepotismo, que, de tão polêmica (ainda que praticado endemicamente nas instituições brasileiras), levou o STF à publicação, em 29/08/2008, da Súmula Vinculante nº. 13 que estabelece que “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.

Outra não poderia ser a posição adotada pelo STF[77].  A Administração Pública, até pouco tempo atrás, sustentava que a vedação à prática do nepotismo dependeria da expedição de lei específica acerca do tema[78]. Mas como exigir-se edição de lei como condição para controle de atos administrativos diante da existência do princípio da moralidade? Ora, conforme elucidado no capítulo 1 do presente trabalho, os princípios não são meras recomendações de caráter ético ou moral. São normas de altas densidade axiológica e carga normativa.

Nas palavras do Min. Ricardo Lewandowski, em voto proferido no RE 579.951/RN,

 “tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios abrigados no caput do art. 37 da Constituição, não há como deixar de concluir que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa reprovável conduta. Para o expurgo de tal prática, que lamentavelmente resiste incólume em alguns ‘bolsões’ de atraso institucional que ainda existem no País, basta contrastar as circunstâncias de cada caso concreto com o que se contém no referido dispositivo constitucional”[79].

O Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 1.521/RS assim se manifestou

 “(...) quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República. O nepotismo, além de refletir um gesto ilegítimo de dominação patrimonial do Estado, desrespeita os postulados republicanos da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa”[80].

Com efeito, conforme os votos acima destacados, nota-se que interpretação literal dos incisos II e V, do art. 37, da Constituição Federal não pode prevalecer sobre a interpretação sistemática do ordenamento, não podendo contrariar o sentido lógico e teleológico do caput do art. 37, da Constituição Federal.

Mesmo porque, anteriormente à positivação expressa do princípio da moralidade, já havia normas constitucionais que determinavam a necessidade obrigatória da realização de concursos públicos para contratação de pessoal pelo Estado, encerrando, aí, nítida questão de moral juridicizada: além de o Estado precisar da melhor mão-de-obra possível, também deveria viger a impessoalidade na contratação deste pessoal[81].

Observe-se que, também nesse precedente, tem-se a presença de normas jurídicas positivadas conferindo o âmbito da moral comum abrangida no campo de incidência do princípio da moralidade que, dessa forma, pôde ser aplicado contra a prática do nepotismo. 

Há que se destacar, entretanto, que o STF restringiu a aplicação de referida súmula vinculante aos agentes políticos, aos quais supostamente não se aplica a vedação de nomeação de parentes para cargos comissionados de direção, chefia e assessoramento.

Por outro lado, a efetiva vedação à prática de nepotismo por ofensa ao princípio da moralidade administrativa poderia depender da análise do caso concreto, se não fosse a dificuldade prática de fiscalização e punição dos agentes públicos aliada à péssima cultura geral dos representantes de nossa sociedade que prima pelo mau trato da coisa pública com efeitos nefastos ao interesse público. Não por outra razão, aliás, o Supremo houve por bem promover a generalização e a abstração da proibição por força da súmula vinculante em apreço.

Assim, a proibição do nepotismo como regra é a melhor maneira de se prestigiar, na atualidade, os cânones da impessoalidade e da moralidade na Administração Pública. A proibição geral não deveria, entretanto, ser aplicada indistintamente a todos os casos de maneira cega. Vale dizer, o nepotismo é proibido como regra, mas, se não houvesse os óbices indicados no parágrafo acima, seria recomendável que a análise do caso concreto pudesse revelar possibilidades de mitigação desta proibição, quando o parente nomeado assim o fosse porque efetivamente capaz de exercer as atribuições do cargo a contento, com habitualidade, experiência e especialização tão indispensáveis à Administração Pública para o alcance do interesse público primário.

Seria louvável que pudéssemos ponderar no caso concreto quais são as normas que devem incidir na resolução da questão proposta. Logo, os princípios da moralidade e da impessoalidade, traduzidos na obrigatoriedade de realização de concurso público para provimentos de cargos públicos para parentes de agentes públicos já integrantes da Administração, poderiam, no plano ideal, sofrer mitigações diante da real necessidade de atendimento ao interesse público que, em última análise, poderia ser até melhor alcançado mediante a contratação desses parentes para cargos de comissão.

Nota-se, portanto, que o princípio da moralidade relaciona-se com questões muito atuais da sociedade brasileira contemporânea. Os exemplos de ferimento ao princípio da moralidade são fartos e a especificação de todos eles no presente trabalho se mostra inviável.

Para finalizar, portanto, a questão da aplicação do princípio da moralidade e dos demais princípios constitucionais há que se destacar o último escândalo em que se envolveu o Senado Brasileiro recentemente: a edição de centenas de atos secretos por parte desta Casa.

Os chamados atos secretos ferem patentemente os princípios da impessoalidade, da publicidade e da moralidade administrativa. Segundo informações trazidas pela imprensa em meados de março de 2009, o então Presidente do Senado, o peemedebista José Sarney, tomou conhecimento da existência de atos secretos em função de um relatório produzido pela Fundação Getúlio Vargas, que havia sido contratada pelo Senado para realização de um estudo para melhoras na administração da Casa. Uma comissão especial, instituída pela 1ª Secretaria, foi nomeada a fim de averiguar o ocorrido. A comissão instaurada descobriu a existência de 663 atos administrativos secretos, ou seja, atos administrativos que não haviam sido devidamente publicados.

 Diante do escândalo, o Senado abriu sindicância para apurar os fatos, visando a anulação de todos eles. Antes de encerrada a sindicância, mais precisamente no dia 12/08/2009, foram descobertos outros 468 atos secretos editados entre 1998 e 1999, quando era Presidente da Casa o Senador Antônio Carlos Magalhães. Esse novo grupo descoberto seguia o mesmo padrão do anterior, ou seja, continha nomeações de aparentados de políticos, concessões de benefícios salariais e criação de cargos. Os fatos foram inseridos na publicação do Boletim de Administração de Pessoal somente após o levantamento da comissão de sindicância que identificou os outros atos secretos do Senado. Os arquivos de computador desses 468 atos descobertos agora foram criados após 29/05/2009. As investigações ainda não chegaram ao fim, mas é possível afirmar que referidos atos são inválidos por ferimento patente aos princípios constitucionais da legalidade, publicidade, impessoalidade e moralidade administrativa.

As denúncias efetuadas no Conselho de Ética do Senado contra o Senador José Sarney foram arquivadas. A análise acerca do desarquivamento das denúncias caberá ao Poder Judiciário. Diante de tal escândalo, o que resta é o questionamento acerca de como os legisladores manejam os princípios constitucionais de forma tão desavergonhada. Conforme ressaltado acima, os legisladores devem como qualquer outro cidadão respeitar os princípios expressos e implícitos acolhidos pelo ordenamento jurídico, sendo, inclusive, os destinatários primeiros do princípio da moralidade.

O que resta evidente na presente situação é que o agente público, seja ele do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, deve atuar dentro dos limites impostos pela ordem jurídica, procedendo de forma a acatar e respeitar as normas principiológicas abarcadas pelo ordenamento, desvencilhando-se da ideia de transformar o público numa extensão de seu domínio privado. Só assim é que o Brasil se virá livre de agentes corruptos e, principalmente, formará cidadãos capazes de agir diante de argumentos inconsistentes como os ofertados pela classe política atual para justificar casos como o da farra das passagens aéreas e da expedição de atos secretos.


3. RELAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA MORALIDADE E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Conforme elucidado acima, o princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeito aos valores morais acolhidos pelo ordenamento jurídico, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico.

Assim, partindo-se da ideia de que o princípio da moralidade se relaciona com a moral jurídica e não com a moral comum, há que se ressaltar a diferença e a relação existentes entre os princípios da moralidade e o da legalidade, sobretudo no que concerne à existência, ou não, de autonomia do princípio da moralidade.

Como já assinalamos no capítulo anterior, a doutrina administrativista divide-se em relação ao tema. A posição de que o princípio da moralidade não é norma autônoma é defendida pelo Professor e Doutor na matéria, Márcio Cammarosano. Referido autor afirma que o princípio da moralidade é norma auxiliar, e não norma autônoma, pois não há na doutrina exemplo de invalidação de ato administrativo baseada única e exclusivamente na violação do princípio da moralidade.

“Para que pudesse ser considerado autônomo seria preciso que pudéssemos dar um exemplo de ato administrativo que comportasse invalidação com a só invocação desse princípio, sem que se vislumbrasse ofensa a qualquer outro. E esse exemplo não logramos encontrar”[82].

Posição diversa é a defendida, por exemplo, por Weida Zancaner e por Emerson Garcia. Weida Zancaner entende que é possível conferir autonomia ao princípio da moralidade já que a sua redução ao princípio da legalidade dificultaria o alcance do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito. Já Emerson Garcia entende que a autonomia seria identificada no embasamento que a norma teria para melhor identificar, e proibir, punir, o desvio de poder, atuando, assim, em uma análise da intenção do administrador ao praticar o ato.

Dessa forma, seja em prol da máxima efetividade da aplicação da Constituição, imperativo no Estado Democrático de Direito, seja pela facilitação do controle dos atos administrativos, entendem os eminentes doutrinadores supracitados que o princípio da moralidade administrativa é norma autônoma em relação não apenas ao princípio da legalidade como em referência a quaisquer demais normas.

Antes, entretanto, de aprofundar o estudo acerca da autonomia do princípio da moralidade há que se destacar as características mais marcantes do princípio da legalidade, pois tal conduta permitirá melhor elucidação da controvérsia existente a respeito da autonomia normativa.

Conforme afirmado no Capítulo 2 do presente estudo, o princípio da legalidade é princípio específico do Estado de Direito[83] e fruto da submissão do Estado à lei. Sua raiz encontra-se na ideia de soberania popular e na de tripartição do exercício do Poder.

“A razão mesma do Estado de Direito é a defesa do indivíduo contra o Poder Público. E a fórmula, por excelência, asseguradora deste desiderato descansa na tripartição do exercício do Poder, graças a quê os cidadãos se garantem ante os riscos de demasias do Executivo, negando-lhe qualquer força jurídica para estabelecer as regras que impliquem limitações à liberdade e propriedade das pessoas. Com efeito, foi exatamente para deter o poder do monarca, cujo sucessor é o Poder Executivo, que se concebeu este mecanismo, difundido no mundo civilizado”[84].

Segundo os ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Mello[85] o princípio da legalidade surgiu como decorrência da indisponibilidade do interesse público[86]. Os sujeitos da Administração Pública, em seu atuar, devem sempre visar ao alcance do interesse público primário, que é o pertinente à sociedade como um todo e, em razão disso, indisponível. Para tanto, devem atuar dentro dos limites da lei, sob pena de produzirem atos inválidos passíveis de anulação tanto pela própria Administração, no exercício de seu poder de autotutela[87], como pelo Poder Judiciário.

O princípio da legalidade é um princípio base do regime jurídico-administrativo: com o advento do Estado de Direito[88] e com o surgimento do Direito Administrativo houve grande mudança nas ideias político-jurídicas até então vigentes[89]. Os súditos passaram a ser considerados administrados e a Administração Pública teve de pautar sua atuação dentro dos limites legais.

Com efeito, uma das ideias centrais oriundas, em sua aplicação, principalmente da Revolução Francesa é a de que apenas através do controle do poder do Estado por leis, anteriores às condutas por elas previstas, é que se poderia desenvolver a vida humana em sociedade com o respeito aos direitos mais elementares (por isso ditos fundamentais) e universais dos Homens.

“(...) o que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração está, ipso facto, proibido, de tal sorte que a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar”[90].

Nota-se, portanto, que a existência do princípio da legalidade como princípio da Administração Pública, expresso no caput, do art. 37, como também nos arts. 5º, II, e 84, IV[91] da Constituição Federal, é garantia para os administrados de que a atuação da Administração Pública não será exercida de modo autoritário.

O princípio da legalidade pode ser definido, portanto, como o dever da Administração Pública de pautar seus atos em função das autorizações previstas na lei[92].

Para Ruy Espíndola o princípio da legalidade significa que

“todo ato do Poder Público que contraste com a lei é inválido; todo ato do Poder Público que tenha sido praticado sem autorização da lei é inválido; se uma lei conceder poder administrativo sem limitá-lo, consubstanciando verdadeira cláusula de conteúdo abdicatário ou demissório do poder de legislar – ou seja, se, por via transversa, oportuniza delegação indevida ao administrador, fazendo com que este defina por ato administrativo o que só o legislador poderia fazê-lo por ato legislativo -, a lei será inconstitucional”[93].

Segundo os ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Mello “a expressão ‘legalidade’ deve, pois, ser entendida como ‘conformidade à lei e, sucessivamente, às subseqüentes normas que, com base nela, a Administração expeça para regular mais estritamente sua própria discrição’”.[94]

Com efeito, a atividade da Administração Pública deve sempre buscar seu fundamento na lei, no sistema jurídico. Isso porque administrar, segundo Seabra Fagundes, é “aplicar a lei, de ofício”.[95]

Importante definição do que seria o princípio da legalidade é oferecida por Hely Lopes Meirelles que afirma que

“a legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”[96].

Ou seja, pelo princípio da legalidade a atuação da Administração Pública deve estar sempre subordinada à lei, devendo ser exercida dentro de suas disposições, dentro de seus limites. Portanto, é pelo princípio da legalidade que se pode afirmar como bem asseverou o professor Hely Lopes Meirelles que “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”[97].

Sendo este, em linhas gerais, o significado do princípio da legalidade, há que se verificar os princípios que possuem uma sujeição especial em relação ao princípio em tela. Isso porque, tendo o condão de subordinar toda a atividade da Administração Pública ao seu talante, encerra o princípio da legalidade diversas outras disposições que com ele se coadunam, seja de maneira expressa, seja de maneira implícita.

Como já realçamos oportunamente, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello[98], encartam-se no princípio da legalidade os princípios da finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação e o da ampla responsabilidade do Estado.

A leitura das ponderações feitas por referido autor sobre o fato de considerá-los como decorrências lógicas encartadas no princípio da legalidade, entretanto, não traz (ao menos não, em princípio) a conclusão peremptória de que tais princípios da finalidade, razoabilidade e proporcionalidade restariam desprovidos de qualquer autonomia no ordenamento jurídico[99].

Nessa linha de raciocínio, se assim o é para os princípios tidos pelo autor como meras decorrências ou corolários diretos do princípio da legalidade, por maior razão, há de ser para o princípio da moralidade administrativa, apontado com viés de princípio autônomo.

Destarte, apesar de o presente estudo apontar a tese defendida pelo professor Márcio Cammarosano como melhor entendimento acerca da definição de moralidade administrativa, qual seja, de que a moralidade administrativa refere-se à moral juridicizada, discorda-se da tese apontada particularmente no tocante à opinião contrária à ideia de autonomia desse princípio da moralidade em relação ao princípio da legalidade.

O que aqui se defenderá é que a moralidade administrativa, tal como os princípios da finalidade e da motivação, por exemplo, constitui princípio autônomo, o que não impede, por outro lado, reconhecer que guarda uma relação de sujeição especial com o princípio da legalidade.

Assim, de fato não existe ato que viole o princípio da moralidade que não viole simultaneamente o da legalidade. Todo ato administrativo eivado de imoralidade também será violador da legalidade, pois não há ato imoral, no âmbito jurídico, que também não seja ilegal, já que, para tais fins, é imoral apenas aquilo que viola a moral juridicizada, posta pelo ordenamento jurídico.

Aqui se reconhece plenamente que o princípio da moralidade administrativa tem relação direta com o da legalidade, mesmo porque o conteúdo daquele é dado por este.

“Quando a ordem jurídica é violada, o ato a ela ofensivo padece de vício quanto à sua legalidade. Mas há ofensas à ordem jurídica especialmente qualificadas, como a intencional violação da lei, dissimulada ou não. Nesses casos, o ato, sobre ser ilegal, é também ofensivo à moralidade administrativa. Por outro lado, não pode haver ato que se possa qualificar como legal, mas ofensivo à moralidade administrativa, como se além de contrastá-lo com o Direito pudesse ser contrastado também com outra ordem normativa do comportamento humano e, por ofensa a esta, ser reputado inválido sem que o próprio direito tenha sido diretamente violado. (...) Nem todo ato ilegal é imoral. Mas não se pode reconhecer como ofensivo à moralidade administrativa ato que não seja ilegal. Não existe ato que seja legal e ofensivo à moralidade. Só é ofensivo à moralidade administrativa porque ofende certos valores juridicizados. E porque ofende valores juridicizados, é ilegal. Ofender certos valores torna o ato especialmente viciado. Não será apenas qualificado como ilegal, mas também ofensivo à moralidade administrativa. A imoralidade administrativa é, digamos, resultante de uma qualificadora da ilegalidade”[100].

Esta relação de sujeição especial que aqui se defende existir não é suficiente, entretanto, para retirar a autonomia do princípio da moralidade. Com efeito, uma vez reconhecido o advento do pós-positivismo, poder-se-ia muito bem conferir autonomia científica ao princípio da moralidade sem que se exija um exemplo de ato administrativo invalidado simplesmente (ou exclusivamente) por violação à moralidade juridicizada, uma vez que nenhuma norma, sob a nova concepção, pode ser considerada isoladamente quando de sua aplicação e interpretação, o que não lhe retira o caráter de autonomia diante das demais.

Observe-se que, conforme afirmado, a aplicação de uma norma principiológica passa por toda uma atividade hermenêutica que, diante do caso concreto, tem como missão identificar as normas jurídicas envolvidas e, dentre elas, aquelas que embasam o direito alegado pela parte lesada (efetiva ou potencialmente). Assim, não se reconhece o ferimento isolado a apenas uma norma, mas, ao contrário, as situações concretas que lesam direitos (ou causam ameaça de sua lesão) irão ferir sempre um amálgama de normas que devem ser restabelecidas pela aplicação do Direito.

Trata-se, em outras palavras, do reconhecimento da dimensão de peso, conforme afirma Ronald Dworkin[101], particular às normas principiológicas, segundo a qual, descobertos os princípios aplicáveis a determinado caso concreto, formam-se conjuntos de normas antagônicas e aquelas que se revelarem mais pertinentes para a realização dos fins do Estado, ou para a Justiça daquela determinada hipótese, devem ser aplicadas em detrimento das demais.

Essa constatação de qual será o conjunto de normas principiológicas aplicáveis será obtido através da atividade hermenêutica e pelo cotejamento dos estados de coisas ideais veiculados por tais normas em relação aos valores envolvidos na discussão do caso concreto ou na atividade de interpretação realizada (como se reconhece, hodiernamente, ser a finalidade imediata dos princípios), principalmente aquelas constantes do texto constitucional.

Além disso, importante observar outras duas características dos princípios que, à luz do pós-positivismo, impedem que os mesmos sejam aplicados de maneira isolada em relação às demais normas, quais sejam, as características de concorrência e parcialidade para a tomada de decisões.

Conforme a novel doutrina normativista (ou pós-positivista) vigente, com efeito, é considerada função primordial dos princípios a de concorrer de forma parcial para a tomada de decisões, ou seja, sem abrangerem em seu conteúdo todos os aspectos do caso concreto analisado. Assim sendo, é imperioso que, em sua aplicação e interpretação, sejam relevadas outras normas que, em conjunto ou, ainda, em concorrência, irão fornecer a resolução segura quanto ao direito aplicável ao caso posto.

Destarte, ainda que em determinada interpretação ou aplicação do direito apenas dê-se relevo a uma norma em particular que incida sobre o caso concreto, e ainda que somente essa norma seja expressamente citada como fundamento determinante de uma posição adotada, estar-se-á, na verdade, diante de ferimento a um conjunto de normas.

Dessa forma, o simples fato de não se conseguir vislumbrar a priori um caso no qual haja o ferimento isolado do princípio da moralidade não retira do mesmo, sob a nova ótica pós-positivista, o caráter de norma autônoma, mas ao contrário, apenas reforça a necessidade de que lhe seja conferido um caráter normativo pleno, que permita uma aplicação cada vez maior de seu conteúdo (estado ideal de coisas a ser promovido).

Segundo o magistério do professor Celso Antônio os princípios jurídicos

“se apresentam como decorrências sucessivas, uns dos outros, sofrem, evidentemente, limitações e temperamentos e, como é óbvio, têm lugar na conformidade do sistema normativo, segundo seus limites e condições, respeitados os direitos adquiridos e atendidas as finalidades contempladas nas normas que os consagram”[102].

De fato, a interpretação da Constituição deve ser feita de maneira sistemática, de modo a atribuir a melhor significação, dentre as inúmeras significações existentes, às normas jurídicas, entendendo-se como normas tanto as regras como os princípios, “hierarquizando-as num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias a partir da concatenação teleológica dos mesmos, tendo por escopo a solução de casos concretos”[103].

Sendo, pois, conjunto de normas supremo e fundamento de validade de todas as demais espécies normativas existentes no Estado, a Constituição deve ser interpretada de forma a serem efetivadas, em grau máximo, todas as normas presentes em seu corpo e, por decorrência, o princípio da moralidade, como norma constitucional expressa que é, não escapa a essa diretriz.

Com efeito, ensinam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que

“A doutrina constitucional, já há algum tempo, vem se debruçando sobre a formulação de princípios auxiliares da interpretação constitucional, buscando a identificação destes segundo critérios de relevância, funcionalidade e aplicabilidade no campo do direito constitucional”[104].

Identificam os referidos doutrinadores como princípios da hermenêutica constitucional[105]: a supremacia da Constituição, sua força normativa plena e unidade, o princípio do efeito integrador, o da concordância prática, o da máxima efetividade, o da correção funcional, da coloquialidade, da interpretação intrínseca e da proporcionalidade. Tudo isso demonstra que, hodiernamente, não se pode simplesmente interpretar a Constituição, mas, antes, deve-se atentar para uma atividade hermenêutica que atenda ao caráter excepcional e superior de suas normas, sendo o princípio da moralidade administrativa, portanto, alvo dessa particularidade por estar expressamente previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Assim, cientificamente analisando o princípio da moralidade, tem-se que se trata de princípio constitucional expresso, que pode e deve ser utilizado como fundamento de invalidade, ou inconstitucionalidade, de atos que o firam, conferindo-se-lhe, portanto, o máximo de carga normativa possível e grau máximo de aplicação. Esse seria, dessarte, o entendimento que mais se coadunaria com o pensamento pós-positivista hoje vigente. A compreensão do conteúdo, significado e alcance dos princípios constitucionais está condicionada às interpretações sistemáticas e teleológicas das normas, tendo em vista a interdependência existente entre elas.

Com efeito, em nota de rodapé, Marcelo Figueiredo oferece importante lição que merece transcrição. Afirma o autor:

“(...) não há como interpretar a Constituição aos ‘pedaços’; não resta a menor dúvida de que o princípio da moralidade se entrelaça com todos os demais princípios constitucionais, em especial com a legalidade, a igualdade, a publicidade, a impessoalidade, a fim de que o princípio do ‘Estado Democrático de Direito’ seja alcançado. Aliás, a grande dificuldade da doutrina reside no ‘encontro de um espaço jurídico específico da moralidade administrativa que já não esteja coberto pela impessoalidade e pela finalidade’ (Celso Bastos e Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil; v. 3, p. 39). Cremos que a dificuldade apontada exista muito mais no sentido ‘dogmático-conceitual’, do que propriamente na ‘inteligência’, no significado, do aludido princípio. Isto porque forçoso considerar que a falta de exatidão do conceito do ‘princípio da moralidade’ é apenas aparente. Em verdade, trata-se de um princípio aberto cuja dicção permite múltiplas interpretações (de sentido não unívoco). Ou, noutro giro, trata-se de um princípio a albergar múltiplas significações e condutas. Assim, v.g., sob as vestes do princípio da moralidade os doutrinadores identificam a ‘boa-fé’, ‘a lealdade’, a necessidade de ‘proporcionalidade’ da ação estatal, a ‘razoabilidade’, o ‘desvio de poder’, o ‘desvio de finalidade’. Vê-se, assim, que o princípio é rico em conteúdo e extensão, e por isso mesmo não pode ser aprisionado em um conceito rígido. Aliás, interpretar uma norma é interpretar todo o sistema. O exegeta comete erro grosseiro ao pretender isolar essa ou aquela norma do sistema”[106].

Assim, pode-se asseverar que a violação ao princípio da moralidade é causa de inconstitucionalidade da lei[107] ou do ato eivado de vício. Conforme elucida Marcelo Figueiredo é raro encontrar na jurisprudência pátria a declaração de inconstitucionalidade de um decreto baseada única e exclusivamente na violação ao princípio da moralidade. As decisões de nossos Tribunais sempre buscam fundamento na violação a diversos outros princípios como o da legalidade, proporcionalidade e devido processo legal. Tal fato ocorre pois a doutrina e jurisprudência ainda não firmaram

“os domínios jurídicos próprios do princípio da moralidade administrativa. Consciente ou inconscientemente, temos dificuldade de dissociar a violação da moralidade administrativa do princípio da legalidade. De fato, na maioria das vezes o ato tido por violador da moralidade administrativa é também ilegal, e o julgador busca reforço para a fundamentação da inconstitucionalidade no princípio da legalidade. Quer-nos parecer, contudo, que a violação ao princípio da moralidade é condição mais do que suficiente para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei ou da norma jurídica impugnada”[108].

Ressalte-se, contudo, por pertinente, que ainda que assim seja, não se pode afastar o caráter de autonomia de que dotado o princípio da moralidade administrativa, pois, conforme afirmado, o simples fato de não ser utilizado, ainda, como fundamento único de aplicação ou interpretação apenas se coaduna com o pós-positivismo hoje vigente, em nada influenciando na extensão ou existência do caráter normativo do referido princípio.

Juarez Freitas em seu livro “O controle dos atos administrativos” defende a autonomia do princípio da moralidade afirmando em linhas gerais que “como princípio autônomo e de valia tendente ao crescimento, colabora, ao mesmo tempo, para o reforço dos demais e para a separação da dicotomia rígida entre Direito e Ética (...)”[109].

Tais entendimentos demonstram, pois, que a alocação do princípio da moralidade como norma autônoma passa não só pela utilidade científica que tal posicionamento traz, permitindo que o referido princípio seja utilizado de maneira mais larga e abrangente (destacando-se seu uso como fundamento para propositura de ação popular), como também, pela premente necessidade de conferir-se força normativa plena aos comandos presentes na Constituição Federal, ápice de todo o ordenamento jurídico.

Por fim, não é demais frisar que, sob a ótica pós-positivista, ora vigente na filosofia do direito, nenhuma norma (princípio ou regra) poderá ser aplicada isoladamente em relação ao restante do ordenamento jurídico o que, de maneira alguma, retira-lhe o caráter de norma autônoma em relação às demais.

O que se constata, portanto, é que, a despeito de ter íntima relação e até mesmo caráter de sujeição especial em relação ao princípio da legalidade, o princípio da moralidade é norma constitucional autônoma e como tal deve ser interpretada e aplicada diante dos casos concretos.


CONCLUSÃO

O estudo do princípio da moralidade guarda relação direta com o entendimento dos limites e das formas de exercício do Poder Público, principalmente no tocante à função administrativa, mas também presente na legislativa e na judiciária.

A partir da evolução filosófica por que passou a Teoria do Ordenamento Jurídico e, principalmente, o advento do pós-positivismo jurídico aliado a uma ampla Teoria da Constituição, pôde-se perceber que, nos dois primeiros momentos, não se creditava caráter normativo aos princípios.

Com efeito, partindo-se de um início jusnaturalista, no qual princípios eram apenas recomendações de ordem extra-jurídica, evoluiu-se para o positivismo jurídico, no qual apenas podiam ser consideradas normas aqueles comandos devidamente positivados, ainda que destituídos de qualquer perquirição acerca do conteúdo que veiculavam.

Percebeu-se, assim, que, principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, o paradigma sobre o qual se assentava a filosofia do Direito não mais se poderia sustentar, razão pela qual começaram a surgir pensadores que entendiam haver uma outra composição do ordenamento jurídico, que possibilitaria uma abertura do Direito a outras influências que não só a meramente advinda da positivação formal de normas.

Com o surgimento do denominado pós-positivismo, portanto, os princípios foram reconhecidos como categoria normativa, ou seja, de observância cogente e vinculante. Dentro da Teoria do Ordenamento Jurídico, dessarte, podem-se reconhecer hodiernamente, segundo uma definição binária, a existência de duas espécies de normas: as regras e os princípios.

Princípios, dessa forma, podem ser conceituados, em poucas palavras, como normas dotadas de excepcional caráter de abstração e generalidade e que demandam atividade interpretativa conjunta com as demais espécies normativas para que se possa chegar à resolução de algum caso concretamente deduzido.

Tal espécie de norma jurídica ainda recebeu maior relevo quando foi expressamente inserida no texto das Constituições (situação da qual o Brasil não é exceção). Apostos na Constituição, os princípios recebem maior carga de efetividade e de imprescindibilidade para todo o ordenamento jurídico, uma vez que se tornam normas fundantes e estruturais do Estado, com observância obrigatória e interpretação que visa à máxima efetividade de seu conteúdo.

Não sem razão, portanto, ganhou o princípio da moralidade destacada importância dentre as normas principiológicas, sendo, assim, destaque em diversos estudos doutrinários sobre o tema. Pensar na inserção de valores dentro do sistema de normas formalmente positivadas e permitir sua influência na interpretação e aplicação do Direito é uma tônica do pós-positivismo jurídico que, com o estudo do princípio da moralidade, pode ser muito bem desenvolvida.

Para que a compreensão do princípio da moralidade seja iniciada, impendia ser realizada a distinção basilar entre o que se entende por moralidade “lato sensu” e o que se deve entender por moralidade jurídica. Por fim, realizar a delimitação conceitual do que é Ética. A delimitação mesma do objeto do referido princípio passa por essas salutares distinções.

Assim, em rápida definição conceitual, poder-se-ia dizer a Moral como o conjunto de normas sociais que objetivam ao equilíbrio entre os subjetivismos e as situações objetivas, entre o individualismo e convívio harmônico em sociedade. O conteúdo de tais normas, contudo, seria variável conforme o grupo de indivíduos analisado. Ética, por sua vez, seria a ciência que estuda a Moral e seus desdobramentos.

A moralidade jurídica, dessa forma, seria de conteúdo diferente dos demais conceitos apresentados, uma vez que representaria um conceito jurídico, ou seja, produzido dentro e para o Direito. Procedendo-se, pois, a uma análise metódica da inserção desse conceito no Direito brasileiro, pode-se observar algumas características peculiares e distintivas, que permitiram a formulação mais segura de um conceito adequado.

Percebe-se que a previsão da norma constitucional expressa que trata da moralidade jurídica diz respeito, dentre outros, aos princípios a que submetida a Administração Pública. Isso porque, no art. 37, “caput”, da Constituição Federal, constam expressamente princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, além da moralidade, razão pela qual se percebe, desde logo, que tais normas voltam-se ao exercício da função administrativa do Poder estatal.

Essa constatação fica ainda mais pertinente quando se percebe que, historicamente, o conceito de moralidade jurídica surgiu, em solo francês, para possibilitar o controle da legalidade e pertinência (“juridicidade”) de atos administrativos de competência discricionária, tese que foi aprofundada, num primeiro momento, para a conclusão de que moralidade jurídica e legalidade não poderiam estar dissociadas, haja vista que, sem essa última aquela não poderia ter sido respeitada.

Tais premissas permitem a afirmação de que, dentre os princípios da Administração Pública do art. 37, “caput”, da Constituição Federal do Brasil de 1988, há relação de extrema pertinência entre os da moralidade (que encerra em si o conceito de moralidade jurídica) e da legalidade. Tanto é assim que, dentre as mais relevantes definições que são oferecidas hoje para o conteúdo do princípio da moralidade apontam para uma norma que exija um atuar leal, previsível, razoável, público, eficiente do Administrador Público.

Esses conceitos doutrinários, destacados os de Humberto Ávila, Celso Antônio Bandeira de Mello, Weida Zancaner, Emerson Garcia, Hamilton Rangel Júnior e Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, permitem, pois, vislumbrar o princípio da moralidade jurídica como verdadeiro controle da correlação lógica e razoável entre a finalidade do ato administrativo e a intenção do Administrador; entre a lealdade e boa-fé exigidas constitucionalmente da Administração e o resultado efetivo do ato praticado; entre o ato que excede os limites do quanto permitido juridicamente e o ato adstrito aos limites da função administrativa.

Pode-se, portanto, chegar à conclusão de que o conteúdo do princípio da moralidade, ou seja, a moralidade jurídica, é o respeito ao quanto admitido como legal pelo ordenamento jurídico. A observância da “moral juridicizada” ou, ainda, o respeito ao Direito positivado, seja expresso seja implícito, é, portanto, o que se pode definir como conteúdo do princípio da moralidade.

Tal conceito, ademais, não implicaria em azáfamas epistemológicas, não permitindo que haja confusão entre o princípio da moralidade e o da legalidade, ainda que entre ambos haja até mesmo uma relação de sujeição especial.

O pensamento pós-positivista, com efeito, implica na aplicação de cada norma da maneira mais eficaz e ampla possível, porém jamais viabiliza a atividade interpretativa ou de aplicação do Direito de maneira isolada. Dessa forma, apenas analisadas e aplicadas em conjunto é que se poderá chegar à ótima e justa aplicação das normas jurídicas. Por conseguinte, o simples fato de não se vislumbrar hipótese de aplicação isolada do princípio da moralidade não lhe retira a autonomia.

Ademais, estando presente expressamente no texto constitucional, e justamente pelo caráter diferenciado da Carta Política no ordenamento jurídico, não se poderia conferir caráter secundário ao princípio da moralidade ou lhe retirar a autonomia, pois tal atitude implicaria em uma nefasta e indesejável mitigação de preceitos constitucionais.

Assim, o princípio da moralidade administrativa significa o dever de respeitar as regras morais acolhidas pela lei, implícita ou explicitamente. Seu conteúdo, portanto, deve ser buscado dentro do sistema jurídico, condicionando não só o administrador, como também o juiz e o legislador, quando no desempenho de funções administrativas.

A grande inovação trazida pela Constituição Federal, ademais, foi ser a moralidade administrativa fundamento hábil para a propositura de ação popular. Com efeito, a Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII, estabeleceu que atos ofensivos à moralidade administrativa podem ser anulados pelo Poder Judiciário por meio de ação popular, mesmo que este ato imoral não tenha causado qualquer dano ao patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe, ao patrimônio histórico cultural ou ao meio ambiente.


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Notas

[1] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. 2. ed. rev. atual. amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 63.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em: 23 set. 2009.

[3] Em nota de rodapé, Barroso destaca a obra de Bobbio, Matteucci e Pasquino denominada “Dicionário de política”, afirmando: "Com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o Jusnaturalismo exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transposto o direito racional para o código, não se via nem admitia outro direito senão este. O recurso a princípios ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo". Ibidem, op. cit.

[4] Em nota de rodapé, Barroso cita importante lição de Antonio M. Hespanha (Panorama histórico da cultura jurídica européia, 1977, p. 174-5): "(...) As várias escolas entenderam de forma diversa o que fossem ‘coisas positivas’. Para uns, positiva era apenas a lei (positivismo legalista). Para outros, positivo era o direito plasmado na vida, nas instituições ou num espírito do povo (positivismo histórico). Positivo era também o seu estudo de acordo com as regras das novas ciências da sociedade, surgidas na segunda metade do século XIX (positivismo sociológico, naturalismo). Finalmente, para outros, positivos eram os conceitos jurídicos genéricos e abstratos, rigorosamente construídos e concatenados, válidos independentemente da variabilidade da legislação positiva (positivismo conceitual)". Ibidem, op. cit.

[5] Segundo os ensinamentos de Barroso “O positivismo comportou algumas variações e teve seu ponto culminante no normativismo de Hans Kelsen. Correndo o risco das simplificações redutoras, é possível apontar algumas características essenciais do positivismo jurídico: (i) a aproximação quase plena entre Direito e norma; (ii) a afirmação da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado; (iii) a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas;            (iv) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão.” Ibidem, op. cit.

[6] Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos assim se manifestaram no texto “A nova interpretação constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios: “O Positivismo pretendeu ser uma Teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por se ter tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do Positivismo Jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimados da ordem estabelecida. Qualquer ordem”. LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 106-107.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo, in Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, Vol. 1, p. 30.

[8] Ao discorrer acerca do positivismo, pertinentes são as palavras de Luís Roberto Barroso sobre a matéria: “Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido”. BARROSO, Luís Roberto. Op. cit.

[9] O pós-positivismo para Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos “é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética. A estes elementos deve-se agregar, em um país como o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a realidade. LEITE, George Salomão (org.). Op. cit., p. 134.

[10] NUNES, Silvério Carvalho. Legalidade Justa e Moralidade Administrativa. Belo Horizonte: Decálogo Editora, 2005, p. 124.

[11] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Op. cit., p. 130.

[12] NUNES, Silvério Carvalho. Op. cit., p. 131.

[13] Ibidem, p. 132.

[14] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 44.

[15] A doutrina não é unânime em relação ao criador da Escola do Direito Livre moderada. Para uns, o iniciador do movimento foi o francês Geny, enquanto para outros, foi o alemão Ehrlich. Já a corrente extremada do Direito Livre teve como iniciador Hermann Kantorowicz que afirmava que o juiz deveria buscar o justo mesmo que para isso tivesse que julgar contra legem.

[16] Nas palavras de Amilton Bueno de Carvalho, o Direito Alternativo consiste na "atuação jurídica comprometida com a busca de vida com dignidade para todos, ambicionando emancipação popular com abertura de espaços democráticos." CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo. Uma Revista Conceitual. <http:h//www.uerj.br/~direito/rqi/07/a070402.htm>, 15 de outubro de 1998. Acesso em: 23 de setembro de 2009.

[17] Ao tratar do assunto, André Ramos Tavares em texto intitulado “Elementos para uma Teoria Geral dos Princípios” afirma que “Luís Cabral de Moncada se aproxima, ainda, dessa orientação ao entender por princípios gerais de Direito ‘as premissas de onde se retiram as soluções mais adequadas, algo do jeito dos édoxas aristotélicos ou regras indiscutidas por serem de aceitação geral a partir das quais se desenvolvem propostas dialécticas’”. LEITE, George Salomão (org.). Op. cit., p. 28.

[18] Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 88.

[19] Ibidem, p. 89.

[20] Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3. ed. rev. amp. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 165.

[21] Ibidem, p. 171.

[22] Ibidem, p. 121.

[23] Não se ignora, entretanto, doutrina que classifica as espécies normativas em normas e princípios.

[24] ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 70.

[25] “A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicadas da maneira tudo-ou-nada. Dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso nada contribuem para a decisão. (...) Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras na têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um. (...) Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não deve ser válida.” Levando os Direitos a Sério. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 39-43.

[26] Direito Constitucional e Direito Ordinário. Jurisdição Constitucional e Jurisdição Especializada. In Revista dos Tribunais, ano 92, São Paulo: Revista dos Tribunais, março de 2003, p. 68.

[27] Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 166-167.

[28] Op. cit., p. 73.

[29] FIGUEIREDO, Marcelo. O Controle da Moralidade na Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 11.

[30] Ibidem, mesma página.

[31] Segundo o magistério de Miguel Reale “Ao homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma diferença entre dois seres para, imediatamente, extremá-los um do outro, mas os mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser que haja razões essenciais que justifiquem a contraposição”. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 41.

[32] Princípio da Moralidade Institucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 05-06.

[33] Dicionário de Filosofia. Trad. de Alfredo Bosi. São Paulo: ed. Mestre Jou, 1968, p. 360.

[34] Segundo o magistério de Silvério Carvalho Nunes, “a conduta dos meios normalmente fundamenta a conduta da moral de grupo ou da razão de Estado ou da classe econômica dominante, que é tudo a mesma coisa. Neste caso, o móvel da ação moral se orienta para a conveniência e para o interesse do grupo. Nem sempre se identifica com a ideia do Bem, acentuada por Aristóteles, ou com a ideia do Justo ou do que for mais Justo. Nesta hipótese, cabe ao Judiciário atenuar e humanizar suas ações em defesa do ser individual e coletivo, economicamente debilitados”. NUNES, Silvério Carvalho. Op. cit., p. 34.

[35] Ibidem, p. 652.

[36] Ibidem, mesma página.

[37] JUNIOR, Hamilton Rangel. Op. cit., p. 08-09.

[38] A moralidade administrativa e sua densificação. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 86, 27 set. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4283>. Acesso em: 23 de set. 2009.

[39] Ao falar em Administração Pública direta e indireta, o art. 37, da CF abarca as empresas estatais, isto é, empresas públicas e sociedades de economia mista, submetendo-as ao princípio da moralidade. Ao comentar acerca da necessidade de realização de licitação nas estatais, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma: “O abrandamento do regime licitatório (previsto na Lei 8.666) – única razão para se atribuir um regime peculiar às licitações das estatais – em nada contribuirá para a moralidade administrativa, como é óbvio. Só pode concorrer para que esta se exponha a defecções maiores. Se tal regime próprio, menos rígido, é compreensível no caso das exploradoras de atividade econômica, ante suas inevitáveis peculiaridades, inversamente, não é suscitado por necessidade alguma no caso das prestadoras de serviços públicos, já que desempenham atividade típica do Estado. Donde, supô-las inclusas neste mesmo abrandamento equivale a concluir que a emenda constitucional pretende escancarar-lhes facilidades gravosas à moralidade administrativa. Ora, entre alternativas hermenêuticas possíveis, o intérprete não pode jamais propender para aquela que desnecessariamente inculca à norma interpretanda um sentido conflitante com outra, maiormente se estoutra for veiculadora de um princípio - e, no caso, do mais subido relevo: o da moralidade administrativa. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 207-208.

[40] A título exemplificativo, também vale mencionar a enumeração ampla feita por Juarez Freitas, que oferece o seguinte elenco de princípios: 1)o da universalização do interesse público e da correlata subordinação das ações estatais ao princípio da dignidade da pessoa humana; 2) o da proporcionalidade ou da adequação axiológica e da correspondente vedação de excessos e de sacrifícios desnecessários; 3) o da legalidade e da submissão da Administração Pública ao Direito; 4) o da impessoalidade; 5)  o da moralidade e da probidade administrativa; 6) da publicidade ou da máxima transparência; 7) o da confiança ou da boa-fé recíproca nas relações de administração, associado ao princípio da segurança jurídica, ao da menor precariedade possíveis nas relações de administração; 8) o do amplo controle dos atos, contratos e procedimentos administrativos; 9) o da unicidade da jurisdição ampla e do não cerceamento do acesso ao Judiciário em casos de lesão ou sentido próprio, a esfera meramente administrativa, embora existente a preclusão em diversas hipóteses; 10) o da eficiência ou da economicidade e da otimização da ação estatal; 11) o da legitimidade; 12) o da responsabilidade objetiva da Administração Pública e dos prestadores de serviços públicos; 13) o da intervenção essencial do Estado correlacionado ao princípio da irrenunciabilidade da titularidade da prestação de serviços públicos.  FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 69.

[41] Segundo os ensinamentos de Celso Bastos “os princípios gerais de Direito são como que cânones, de incidência obrigatória, seja qual for a parte do ordenamento constitucional (ou até infraconstitucional) com que se esteja lidando. (...) se identificam e se diferenciam dos demais princípios constitucionais pelo fato de apresentarem como nota característica a generalidade de sua incidência”. BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit., p. 222-223.

[42] Segundo os ensinamentos do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, “Tem-se função apenas quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente de função deverá suprir”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 94.

Nas palavras de Marçal Justen Filho “A função consiste na atribuição a um sujeito do encargo de perseguir a satisfação de um interesse ou de um direito que ultrapassa sua órbita individual.” JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 50.

[43] “Há que se ressaltar que o perfil do princípio da legalidade no ordenamento jurídico brasileiro é diferente do perfil deste mesmo princípio nos ordenamentos jurídicos francês, alemão e até mesmo italiano. Nesses países, sobretudo na França, o princípio da legalidade possui certa flexibilidade, conferindo à Administração Pública um campo de liberdade autônoma. Assim, o Executivo, além de estar autorizado a expedir regulamentos de mera execução de lei, pode também expedir “outras variedades de regulamentos, os quais ensejam que a Administração discipline certas matérias ora com prescindência de lei, em alguns deles, ora esforçada apenas em disposições legais que implicam verdadeiras delegações legislativas”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 99.

Não é por outra razão, ademais, que a melhor interpretação possível do art. 84, IV, da CF é aquela que afirma que os atos produzidos pelo Chefe do Poder Executivo apenas podem ser produzidos para a execução fiel da lei.

[44] “(...) nos casos em que a urgência demande postergação provisória do contraditório e ampla defesa, a Administração, de regra, não poderá por si mesma tomar as providencias constritivas – e seria inconstitucional lei que a autorizasse -, pois deverá recorrer ao Poder Judiciário, demandando que as determine liminarmente. (...) Admitir-se-á, contudo, ação imediata da própria Administração sem as referidas cautelas apenas e tão-somente quando o tempo a ser consumido ma busca da via judicial inviabilizar a proteção do bem jurídico a ser defendido. Ibidem, p. 112.

[45] HAURIOU. Maurice. Précis de Droit Administratifc. Paris: Dixième Edition, 1921.

[46] Op. cit., p. 201.

[47] Ibidem, p. 203.

[48] O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006, p. 67.

[49] Ibidem, mesma página.

[50] Op. cit., p. 217.

[51] Dentre os juristas que defendiam a existência do princípio da moralidade mesmo antes da Constituição de 1988, destacam-se João Félder e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Este último tratou do tema ao falar sobre os princípios gerais do direito, in verbis: “Embora preexistam ao direito positivo de dado povo, e existam fora do direito escrito de certo país, se infiltram no ordenamento jurídico de dado momento histórico, como elemento vivificador da sua civilização e cultura, uma vez constituem a sua essência. O direito de determinada fase histórica, condicionado pela sua civilização e cultura, se não confunde com as minúcias e peculiaridades da legislação e do costume de cada povo e de cada pais, porém ilumina suas normas. São as regras éticas que informam o direito positivo como mínimo de moralidade que circunda o preceito legal, latente na forma escrita e costumeira. Encerram normas jurídicas universais, expressão de proteção do gênero humano na realização do direito. e, para emprestar-se imagem de Carnelutti, podia-se dizer ser o álcool que conserva o vinho, lhe dá vitalidade, está dentro dele, mas com ele não se confunde. BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense,1969, Vol. I, p. 360.

[52] Ao discorrer acerca da interpretação sistemática, Silvério Carvalho Nunes se vale dos ensinamentos de Juarez Freitas para afirmar que a norma que deve ser aplicada ao caso concreto é aquela resultante de operações interpretativas, in verbis: “A interpretação sistemática, segundo Freitas, é operação que consiste em atribuir a melhor significação, entre várias possíveis, aos princípios e regras jurídicas, ‘hierarquizando-as num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias a partir da concatenação teleológica dos mesmos, tendo por escopo a solução de casos concretos’”. NUNES, Silvério Carvalho. Op. cit., p. 266-267.

[53] Op. cit., p. 77.

[54] Op. cit., p. 115.

[55] Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, ano I, nº. 9, dezembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 23 de setembro de 2009.

[56] Op. cit.

[57] Op. cit., p. 62.

[58] Op. cit., p. 118.

[59] Para Cármen Lúcia “A moralidade administrativa é o princípio segundo o qual o Estado define o desempenho da função administrativa segundo uma ordem ética acordada com os valores sociais prevalentes e voltada à realização de seus fins. Esta moral institucional, consoante aos parâmetros sociais, submete o administrador público. Considerando que o princípio da moralidade administrativa aperfeiçoa, assim, a virtude do comportamento da Administração Pública e, ainda, que esta virtuosidade é apreciada em sua adequação aos fins postos e cujo atingimento se busca pela pessoa pública, verifica-se que ele não seria plenamente observado se os meios de que se devem valer os agentes competentes não fossem objeto de exame e avaliação em sua consonância com as necessidades para realização daqueles objetivos. O acatamento do princípio da moralidade pública dá-se pela qualidade ética do comportamento virtuoso do agente que encarna, em determinada situação, o Estado administrador, entendendo-se tal virtuosidade como a conduta conforme à natureza do cargo por ele desenvolvida, dos fins buscados e consentâneos ao Direito e dos meios utilizado para o atingimento destes fins. (...) a moralidade administrativa não se restringe à verificação da obtenção de utilidade para a garantia de um determinado interesse público tido como meta da ação do agente. Mais que isto, a moralidade administrativa que se pretende ver acatada adentra o reino da finalidade de garantia da realização dos valores expressos na ideia de bem e da honestidade, que se pretendem ver realizados segundo o Direito legítimo. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 192-193.

[60] GARCIA, Emerson. Op. cit.

[61] Op. cit., p. 74.

[62] Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 172-173.

[63] É de grande importância a lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha ao discorrer acerca do princípio da moralidade: “A obrigação jurídica de conduzir-se segundo os parâmetros de moralidade administrativa não apenas submete o administrador público, mas também o legislador, como antes salientado, pois, no Estado de Direito, é este que elabora, em geral, a norma segundo a qual se deverá conduzir. Assim, o direito elaborado e positivado não poderá ser acatado se não se acatar aquele princípio”. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Op. cit., p. 195.

Ao enumerar os princípios constitucionais setoriais da Administração Pública, Ruy Samuel Espíndola no texto “Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa: anotações em torno de questões contemporâneas” afirma que os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, eficiência, motivação dos atos administrativos, legitimidade da despesa pública e economicidade “endereçam-se para todos os ramos da Administração Federal, Estadual e Municipal, servindo de parâmetro de validade para atos administrativos, suprimento de lacunas para decisões administrativas e padrão hermenêutico para solução de problemas jusadministrativos. (...) O que não podemos esquecer é que, além dessas autoridades, os legisladores administrativos federal, estadual e municipal também estão vinculados à força normativa desses princípios. Se houver lei ou qualquer outro ato normativo geral e abstrato que contrarie as diretivas desses princípios (regimentos parlamentares ou tribunalícios etc.) eles sucumbirão, em face da juridicidade principiológica jusadministrativa”. LEITE, George Salomão (org.). Op. cit., p. 279.

[64] CAMMAROSANO, Márcio. Op. cit., p. 73.

[65] Data de 1950 a Lei nº. 1079 que passou a definir como crime de responsabilidade a inobservância da probidade administrativa em atos do Presidente da República e de Ministros de Estado. De 1965 a Lei nº. 4.717 que tornou ilícito a ato administrativo praticado com fim diverso do previsto explícita ou implicitamente na regra de competência e permitiu a qualquer cidadão reclamá-lo mediante ajuizamento de ação popular.

[66] Há que se ressaltar que o controle da moralidade também pode ser efetuado por outras vias, como, por exemplo, ação civil pública, mandado de segurança, dentre outras.

[67] Ato administrativo é a “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestadas mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 368.

[68] Esta posição que dispensa a existência de lesão ao patrimônio público para a propositura de ação popular com fundamento na violação da moralidade administrativa é defendida por diversos juristas, como, por exemplo, Marcelo Figueiredo, Clóvis Beznos, e Rodolfo de Camargo Mancuso.

[69] TÁCITO, Caio. Moralidade Administrativa. RDA nº. 242, RJ, 2005, p. 167-176.

[70] Nesse sentido manifestou-se o STJ: “Processual Civil - Agravo Regimental - Recurso Especial – Ação Popular - Sucumbência - decisão com base no substrato fático - arts. 20 e 21, CPC - Súmula 7/STJ - Agravo Regimental improvido. 1. Natureza e função da ação popular. A ação popular é um típico exemplo da expansão do princípio constitucional da moralidade administrativa pelo ordenamento jurídico. A ação popular é a moralidade administrativa em movimento, com a particularidade de ser entregue nas mãos dos próprios cidadãos, que busca a tutela dos atos imorais da Administração Pública, ainda que não-lesivos ao erário. (...)”. AgRg no REsp 905740/RJ, 2ª Turma, Ministro Humberto Martins, j. 04/12/2008, DJE 19/12/2008.

Neste mesmo sentido manifestaram-se o STF e o STJ, respectivamente no RE 120.768/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 13.08.99, p. 16 e no RE 113.729/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 25.08.89, pg. 13558.

[71] CAMMAROSANO, Márcio. Op. cit., p. 101.

[72] FIGUEIREDO, Marcelo. Op. cit., p. 91.

[73] Nesse sentido Ap. Cível 193.482-1/7 TJSP, 7ª Câmara, Desembargador Leite Cintra, j. 9/12/1993.

[74] Segundo os escólios de Silvério Carvalho Nunes “A função do intérprete jurídico é atuar como catalisador dos valores sociais, num dado momento histórico. Orientando-se por adequada visão sistemática, previne antinomias axiológicas, mantendo-se atento às funções específicas e contemporâneas da sociedade, sem fugir do sistema positivo, na busca de soluções adequadas ao Direito concreto, ‘sem excluir ou usurpar o papel do legislador. Deve assumir a sua crença no Direito de um modo não ingênuo, mas seguro de que o sistema jurídico é o melhor caminho para uma convivência ordenada, efetivamente superior e equitativa’, sem qualquer paradigma tradicional que se procure impor unilateral e despoticamente ao julgador”. NUNES, Silvério Carvalho. Op. cit., p. 266.

[75] Op. cit., p. 103.

[76] Ibidem, p. 124.

[77] São precedentes da Súmula Vinculante nº. 13 os votos proferidos na ADI 1521 MC, MS 23780 e RE 579951.

[78] A inexistência de lei específica que vedasse o repasse de passagens aéreas das cotas mensais de deputados e senadores a terceiros também foi a justificativa utilizada por diversos legisladores em recente escândalo em que o Congresso Nacional se envolveu. De fato, inexiste no ordenamento jurídico qualquer lei que vede a transferência de passagens aéreas a terceiros, sejam eles familiares, amigos, ou correligionários. Entretanto, a ausência de lei específica não é razão para que não se reconheça a antijuridicidade de tal transferência. Nas palavras de Felipe Martinez e Rogério Taffarello: “A atual Constituição Federal, de outra parte, consagrou a moralidade como um dos princípios reitores da administração pública ‘de qualquer dos Poderes da União’ em seu art. 37. Assim sendo, o texto constitucional, com sua conhecida força normativa superior, evidentemente já seria bastante para desafiar a legalidade pretendida por deputados e senadores para com o desvio de finalidade de passagens aéreas de suas cotas à revelia do interesse público. (...) Tenha-se, então, como premissa fundamental o fato de a noção de moralidade administrativa proibir desvios de finalidade ou abusos de poder na atuação de agentes públicos, cujos atos vinculam-se, inexcedivelmente, à observância do interesse público. Nesse diapasão, a distribuição de passagens aéreas a familiares, amigos ou mesmo correligionários em viagens particulares configura flagrante afronta a esse princípio. De outra parte, há que se observar que a moralidade administrativa, ante as circunstâncias supra-expostas, constitui princípio jurídico – e não meramente um postulado moral, ou uma deontologia da consciência ou da cultura –, produzindo, assim, efeitos jurídicos; até porque a tutela da ordem moral não caberia aos textos constitucional e infraconstitucionais em que é trazido. Trata-se, pois, de um comando dotado de plena imperatividade, tanto mais quando se reconhece, nos tempos hodiernos, a normatividade dos princípios e cláusulas gerais emanadas do texto constitucional. (...) Com isso, constata-se que, ao contrário do que pretendem nossos legisladores, não é preciso haver lei específica para que as práticas ora abordadas – o desvio de finalidade de passagens aéreas das cotas de deputados e senadores – possam ser classificadas como antijurídicas. Ademais, seria impossível legislar sobre cada hipótese fática potencial de desvio de finalidade na administração pública, devendo-se valer, em casos tais, justamente dos princípios, valores maiores que se sobrepõem a todo o ordenamento e a toda atividade juridicamente relevante.

Nem se diga que a reiteração incontestada dessas lamentáveis práticas por um longo lapso temporal teria o condão de conferir-lhes a devida legitimidade, qual se fosse um costume consagrado desde o plano fático para o jurídico. Deveras, bem se sabe não haver direito adquirido contra legem; muito menos se se trata de contrariedade à norma constitucional. (...) Assim sendo, independentemente de avanços ou retrocessos que resultem, ora ou outrora, de modificações promovidas pelas mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em seus atos normativos internos, é certo que tais práticas se vêem inescapavelmente maculadas pela ilicitude face aos princípios e regras jurídicas que regem o Estado Democrático Constitucional brasileiro. E, nessa medida, constituem verdadeiras hipóteses de desvio de poder à luz de nosso ordenamento, pelo que se sujeitam aos devidos controles administrativo e jurisdicional e à conseqüente aplicação de sanções aos responsáveis pelas infrações ocorridas.” MARTÍNEZ, Felipe Rodrigues; TAFFARELLO, Rogério Fernando. Moralidade administrativa e aplicação concreta. O caso das passagens aéreas. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2226, 5 ago. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=13277>. Acesso em: 23 de set. 2009.

[79] RE 579.951/, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Julgamento: 20/08/2008, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, PUBLIC 24-10-2008. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(579951.NUME.%20OU%20579951.ACMS.)&base=baseAcordaos.

[80] ADI 1.521/RS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 12/03/1997, Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJ 17-03-2000. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(1521.NUME.%20OU%201521.ACMS.)&base=baseAcordaos.

[81] O STJ possui jurisprudência acerca do tema, merecendo destaque as seguintes decisões: ‘Constitucional. Recurso em mandado de segurança. Alegação de inconstitucionalidade de norma estadual que veda a contratação de parentes dos magistrados para cargos do Judiciário Paulista. Improvimento. I. O princípio atacado não é inconstitucional. Ao contrário, visa defender os princípios da moralidade no serviço público e os do Estado Republicano, combatendo o nepotismo e reforçando, mesmo, a ideia de isonomia, já que para provimento de tais cargos não há concurso público. E o próprio artigo 37, inc. I, da CF, diz que o acesso de brasileiros aos cargos públicos deve obedecer aos requisitos estabelecidos em lei. II. Recurso improvido.’ (6ª T., ROMS nº. 2.284/SP, rel. Min. Pedro Acioli, j. em 25/04/94, DJ de 16/05/94, p. 11.785).

‘Administrativo. Serventia extrajudicial. Remoção por permuta entre escrivã distrital e titular de oficio de cartório de imóveis, Respectivamente filha e pai. Lei de organização e divisão Judiciária do Estado do Paraná. Ato condicionado a existência do Interesse da justiça. I. Ainda que a expressão "interesse da justiça" tenha um sentido bastante abrangente, nela não se compreende o nepotismo, a simulação e a imoralidade. II. ‘In casu', o ato de remoção não condiz com o interesse da justiça, como exigido na lei de organização judiciária do estado, nem com o principio da legalidade, da impessoalidade e da moralidade, mas com os interesses pessoais dos envolvidos. III. Recurso provido. (2ª T., RMS nº. 1751 / PR, rel. Min. Américo Luz, j. em 27/04/1994, DJ de 13/06/1994 p. 15093).

[82] Op. cit., p. 95-96.

[83] “(...) Estado de Direito é um modelo de organização social que absorve para o mundo das normas uma concepção política e a traduz em preceitos concebidos expressamente para a montagem de um esquema de controle do Poder.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 48.

[84] Ibidem, p. 330.

[85] Ibidem, p. 72.

[86] Segundo o magistério de Bandeira de Mello “o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. Ibidem, p. 58.

[87] Autotutela é o poder conferido à Administração Pública de revogar sues próprios atos quando inoportunos ou inconvenientes, mediante manifestação unilateral de vontade, bem como de decretar a nulidade de referidos atos quando estes estejam maculados por vícios. O assunto é de tamanha relevância que o STF editou a Súmula 473 que assevera: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

[88] Anteriormente ao Estado de Direito vigia o chamado Estado de Polícia. Segundo o professor Marcelo Figueiredo “Nesse período não há falar em legalidade administrativa. Como sabemos, o poder público é exercido pelo rei ou príncipe em pessoa e em se nome e no Estado, ao mesmo tempo, por funcionários subordinados ao rei. Em face dos súditos o poder do príncipe não tinha limites jurídicos. Havia uma presunção de competência a favor dos poderes públicos incorporados na pessoa do rei. (...) Talvez por essa razão, a grande maioria das causas decididas até então pelos tribunais dizia respeito aos conflitos existentes nas relações de direito privado, até porque não havia ainda a possibilidade de levar questões de direito público aos tribunais. O Estado era irresponsável (The king can do no wrong). Também por essa razão, pouco importava ao rei entrar em conflito com a tênue jurisdição, já que os assuntos de direito privado e as suas relações, também privadas, eram ordinariamente apreciadas pelas Cortes. A matéria administrativa, nesse contexto, era domínio da Política, e com ela se confundia. A prerrogativa de ditar leis era, no período, reconhecida como sendo do rei, dos príncipes. A lei era considerada ‘uma ordem geral, preceito do que os súditos podem fazer – são mandatos do príncipe, ordens ou proibições obrigatórias para todos os súditos ou para um grupo deles’. FIGUEIREDO. Marcelo. A crise no entendimento clássico do Princípio da Legalidade Administrativa e Temas Correlatos. In: Marcelo Figueiredo e Valmir Pontes Filho (coor.). Estudos de Direito Público em Homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros.

[89] O Estado de Direito e as bases do Direito Administrativo relacionam-se intimamente com as ideias de Rousseau e de Montesquieu. Para Rousseau todos os homens nascem livres e iguais, não cabendo a ninguém o direito de comandar outro indivíduo, cabendo a cada individua ceder parte de sua liberdade a outro a fim de que a vida em sociedade pudesse ser organizada. O autor nega a ideia até então vigente de que o Poder possuía uma origem divina. Para ele, o Poder residia no povo, seu real titular. Assim, para Rousseau todos os indivíduos deveriam ocupar o poder, entretanto, como todos os indivíduos não poderiam exercer o poder de forma simultânea, Rousseau desenvolveu a fórmula da representação. Assim, os indivíduos, que nasciam livres e iguais, cederiam parte de sua liberdade e seriam representados por pessoas escolhidas pelo próprio titular do Poder, ou seja, pelo povo. Já Montesquieu contribuiu para o nascimento do Estado de Direito ao desenvolver a ideia de que todos aqueles que detêm o poder tendem a dele abusar, além da ideia de que o Poder vai até onde encontra limites. Assim, para Montesquieu a forma mais útil de acabar com essas mazelas seria a divisão do Poder, a fim de que os Poderes se contenham reciprocamente.

[90] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 330-331.

[91] No Direito pátrio, regulamento pode ser conceituado como “ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública.” Ibidem, p. 327.

[92] Em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo, Alexandre Santos de Aragão dá destaque à doutrina de Charles Eisenmann para quem há quatro possíveis visões do princípio da legalidade, a saber: “1. Para a atuação da Administração Pública é suficiente que ela não viole qualquer norma legal, ou seja, na inexistência de normas legais que a obrigue a fazer ou a deixar de fazer algo, tem liberdade para atuar. Nesta acepção, a legalidade seria uma relação de não-contrariedade com a lei. 2. A Administração Pública pode fazer o que a norma superior, legal ou constitucional, a autorize, a habilite a fazer, ainda que não entre nos detalhes do conteúdo dos atos a serem emitidos. Nesta perspectiva, a Administração não possui liberdade na ausência da lei, mas basta que esta lhe atribua a competência. Privilegia-se, portanto, a existência de habilitação formal para o exercício de competência para a realização de determinados fins. 3. A Administração só pode emitir os atos que se esteiem em norma legal, não apenas habilitadora, mas predeterminante do conteúdo dos atos a serem praticados. 4. Em um plus em relação à visão anterior, a Administração Pública tem que estar apoiada em norma legal que esgote o conteúdo dos atos a serem tomados, que também deve determinar (não apenas facultar) a sua prática. Por esta visão, todas as competências da Administração Pública só poderiam ser vinculadas.” ARAGÃO, Alexandre Santos de. A Concepção Pós-Positivista do Princípio da Legalidade. RDA nº. 236, Rio de Janeiro, 2004, p. 51.

[93] LEITE, George Salomão (org.). Op. Cit., p. 280.

[94] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 73.

Há que se ressaltar que “Onde não houver liberdade administrativa alguma a ser exercida (discricionariedade) – por estar prefigurado na lei o único modo e o único possível comportamento da Administração ante hipóteses igualmente estabelecidas em termos de objetividade absoluta – não haverá lugar para regulamento que seja mera repetição da lei ou desdobramento do que nela se disse sinteticamente”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 336.

[95] O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 04-05.

[96] Direito Administrativo Brasileiro, 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 87.

[97] Ibidem, p. 88.

[98] Op. cit., p. 72-77.

[99] Silvério Carvalho Nunes afirma que “a dinâmica da Administração Pública e a conduta do agente administrativo se sujeitam, invariavelmente, ao princípio da legalidade administrativa externa e ao princípio interno da moralidade administrativa”. Nota-se pela passagem acima transcrita que o autor confere autonomia aos princípios da moralidade e da legalidade afirmando que são “irmãos siameses”. Assevera o autor: “Estes dois princípios atuam conjugados. Traduzem forma e conteúdo da legalidade justa administrativa. Subordinam e condicionam a conduta e a dinâmica de toda a manifestação de natureza jurídica, fática e finalista da Administração Pública e do agente administrativo, tanto na sua roupagem exterior quanto no seu íntimo. Portanto, os dois princípios especiais, irmanados na sua atuação, orientam a Administração Pública para a máxima finalidade de construir uma sociedade justa, livre, digna e solidária. A legalidade administrativa significa a forma, a vestimenta externa de qualquer ato jurídico administrativo, emanado da Administração Pública. Seu conteúdo é internalizado consubstancialmente pela moralidade administrativa. Por outras palavras, na concretização do ato administrativo, ele deve-se mostrar ajustado à forma legal. O princípio da moralidade, portanto, policia o interior da legalidade. De sorte que a legalidade e a moralidade administrativas são dois irmãos siameses, que atuam na valorização externa e interna da Administração Pública e da correspondente conduta do seu agente. Daí a conclusão que se impõe: não basta que o ato seja legal na sua roupagem externa. Tem que se ajustar, do mesmo modo, à normatividade interna, que é a moralidade administrativa. A ofensa a qualquer das duas ordens implicará anulação do ato, por ilegalidade se relativo à forma, ou por ilegitimidade por lesão interna, por estar em contradição com qualquer daquelas legendas, se relativo ao conteúdo. NUNES, Silvério Carvalho. Op. cit., p. 221-222.

[100] CAMMAROSANO, Márcio. Op. cit., p. 101-102.

[101] Op. cit., p. 39-43.

[102] Op. cit., p. 69.

[103] FREITAS, Juarez. Op. cit., p. 191.

Segundo os ensinamentos de Silvério Carvalho Nunes o método tópico-jurídico de Juarez Freitas como “procedimento interpretativo tem por meta o sistema jurídico, na sua condição de totalidade axiológica positiva. O Direito é maior do que as regras positivadas. Assim, a exegese dos princípios conduz sempre a se aplicar o sistema jurídico por inteiro, nunca isolando o texto legislativo do sistema em que está inserido as fases da interpretação (literal, gramática, lógica, teleológica, etc.) são apenas momentos da construção interpretativa, na qual se consideram a forma e o conteúdo inter-relacionados e inseparáveis da realidade. Portanto, qualquer texto individual só pode ser compreendido na totalidade do sistema. Isolado, torna-se obscuro, por mais claro que, na aparência, se mostre o seu enunciado. O intérprete visa apenas descobrir a vontade normativa atual, que se extrai do fato, com seu valor conjugado com os princípios estruturantes. Deste modo, elegendo métodos interpretativos e hierarquizando valores extraídos do interior do sistema, a interpretação não pode ser inteiramente livre e muito menos presa a qualquer vontade previamente fixada. O interprete corrige o texto, sem violentá-lo, tornando-o prudentemente aceitável e eticamente efetivo, pois, do contrário, restaria sem vida.” NUNES, Silvério Carvalho.  Op. cit., p. 265.

[104] Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 83.

[105] Ibidem, p. 83/90.

[106] FIGUEIREDO, Marcelo. Op. cit., p. 121.

[107] Há que se ressaltar que o princípio da moralidade não se dirige apenas os Poder Executivo, mas também ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo. O legislador, inclusive, é o primeiro destinatário do princípio da moralidade. Ele é responsável por adequar a norma inovadora da ordem jurídica ao conteúdo do princípio constitucional da moralidade, sob pena de produzir norma acoimada de inconstitucionalidade. O papel do Judiciário também é de grande destaque quando se fala do princípio da moralidade. Hodiernamente, o Judiciário tem fundamental importância na evolução do processo social, não podendo limitar-se a reproduzir o “status quo”.

[108] CAMMAROSANO, Márcio. Op. cit., p. 123.

[109] Op. cit., p. 69.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DARDANI, Marina Centurion. Princípio constitucional da moralidade administrativa: uma análise pós-positivista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25912. Acesso em: 23 abr. 2024.