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A Administração Pública como consumidora e a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos

A Administração Pública como consumidora e a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos

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Nas relações de consumo, as cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos não fornecem uma proteção completa à Administração Pública, que pode se utilizar supletivamente das normas de direito privado.

Sumário:1. BREVE HISTÓRICO DA TUTELA DO CONSUMIDOR. 2. CONCEITO DE CONSUMIDOR.. DIREITO COMPARADO.. Inglaterra.Espanha..Portugal..França..Alemanha..DIREITO BRASILEIRO.3.AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO COMO DESTINATÁRIAS FINAIS DO PRODUTO OU DO SERVIÇO. 4. A APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS...VULNERABILIDADE TÉCNICA...VULNERABILIDADE JURÍDICA.VULNERABILIDADE ECONÔMICA..5. AS CLÁUSULAS EXORBITANTES...6. A VENDA CASADA NAS LICITAÇÕES PÚBLICAS: A LICITAÇÃO CASADA.7. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL..Justiça Comum.Tribunais de Contas..8.CONCLUSÃO.


1 – BREVE HISTÓRICO DA TUTELA DO CONSUMIDOR

Não é raro encontrarmos em textos doutrinários a menção à Revolução Industrial como marco decisivo na história evolutiva do direito do consumidor.

De fato, não há dúvidas de que tenha sido um período histórico importante no que se refere às relações de consumo, verdadeiro divisor de águas nas tratativas consumeristas. Entretanto, parece-nos relevante esclarecer que as relações de consumo datam de épocas bem mais remotas de nossa história.

Marimpietri (2011, p.02) nos ensina que:

“Os primeiros registros datam de 2300 anos antes de Cristo. Nesta época, o Código de Hamurabi, apesar de não ter como escopo a proteção ao consumidor, já regulamentava o comércio, de modo a controlá-lo. Neste diploma legal, já havia a preocupação com a inibição do lucro excessivo, com os vícios redibitórios e desequilíbrio nos contratos”.

Esses ensinamentos são corroborados por Lopes (2006, p.13), que esclarece ainda que:

“Foi no Código de Hamurábi que constou pela primeira vez manifestação sobre dano e sua reparação. Nele, havia a preocupação em dar ao lesado a reparação equivalente ao dano que este sofreu, ou seja, se o agente causava ofensas pessoais à vítima, a reparação se dava de forma idêntica, com ofensas semelhantes. Dentre as regras bastante atuais e que já eram observadas no Código de Hamurábi, merece citação as inerentes a prestação de serviços essenciais: artigo 26 (no tocante a segurança); artigo 219 (no tocante a saúde); artigo 253 (no tocante ao fornecimento de alimentos) e, no artigo 233 (no tocante a proteção do consumidor, mesmo de forma indireta)”.

Servindo como exemplos de proteção consumerista neste diploma legal temos os artigos 233 e 235:

“233º - Se um arquiteto constrói para alguém uma casa e não a leva ao fim, se as paredes são viciosas, o arquiteto deverá à sua custa consolidar as paredes.”

“235º - Se um bateleiro constrói para alguém um barco e não o faz solidamente, se no mesmo ano o barco é expedido e sofre avaria, o bateleiro deverá desfazer o barco e refazê-lo solidamente à sua custa; o barco sólido ele deverá dá-lo ao proprietário.”

No decorrer dos anos, novas leis e codificações que buscavam proteger os consumidores foram surgindo, tais como o Código de Manu, que segundo as palavras de Teixeira disciplinava sanções para casos de adulteração de gêneros alimentícios, e dispositivos legais nos direitos egípcio e romano, entre outros.

Exemplificativamente, estabelecia o Código de Manu, nos artigos 702 e 703, que:

“Art. 702º Por ter misturado mercadorias de má qualidade com outras de boa espécie, por ter furado pedras preciosas e por ter perfurado desastradamente pérolas, deve sofrer a multa no primeiro grau e pagar o dano.”

“Art. 703º Aquele que dá aos compradores pagando o mesmo preço, coisas de qualidade diferentes, umas boas, outras más, e aquele que vende a mesma coisa a preços diferentes, deve, segundo as circunstâncias, pagar a primeira multa ou a multa média.”

Entretanto, foi de fato com a Revolução Industrial que a proteção do consumidor ganhou novos contornos, como bem leciona Bittar (1991, p.09):

“Foi com o desenvolvimento do comércio e a expansão obtida depois com a denominada Revolução Industrial que, alterado profundamente o cenário econômico, começou a manifestar-se o desequilíbrio nas relações de consumo, exacerbado no século atual em função do fenômeno da concentração de grandes capitais, em empresas industriais, bancárias, de seguros, de distribuição de produtos e outras. Polarizou-se, ademais, o conflito no setor das relações entre produtor e consumidor, atraindo-se a atenção do legislador, a nível internacional e nacional, para a edificação do regime próprio e sem prejuízo dos mecanismos normais de defesa dos contratantes”.

Mensurando com clareza a importância da Revolução Industrial para a proteção do consumidor, Freitas (2010, p.15) ensina que “o estudo da gênese do direito do consumidor passa obrigatoriamente pela revolução industrial ocorrida na Inglaterra no século XVIII, que teve o condão de expandir significativamente a capacidade de produção de bens e serviços, o que era manual passou a ser realizado por maquinários e em grande escala”.

Ilustrativamente, podemos trazer à baila que a primeira legislação nacional a tratar dos direitos do consumidor foi elaborada em 1910, na Suécia, conforme mencionado por Buarque (2010, p.14).

A despeito dessa proteção inicial do consumidor, o magistral escólio de Cavalieri Filho (2008, p.05) ensina que somente podemos entender pelo surgimento do direito consumerista, entendido este como um microssistema de proteção ao consumidor dotado de normas e princípios próprios, quando da mensagem prolatada pelo então Presidente dos Estados Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy, em 1962, encaminhada ao Congresso norte-americano, nos seguintes termos:

“Consumidores, por definição, somos todos nós. Os consumidores são o maior grupo econômico na economia, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões econômicas, públicas e privadas (...). Mas são o único grupo importante da economia não eficazmente organizado e cujos posicionamentos quase nunca são ouvidos”.

Freitas (2010, p.21), ao mencionar referida mensagem, esclarece ainda que:

“Nessa mensagem foram elencados direitos básicos dos consumidores relacionados à saúde, segurança, informação, escolha e a de serem ouvidos. O dia 15 de março passou a ser considerado o dia mundial dos direitos dos consumidores. A partir da mensagem do Presidente Kennedy deflagrou-se pelo mundo intenso movimento em favor da defesa do consumidor”.

No Brasil, podemos identificar a existência de regramento consumerista desde as Ordenações Filipinas, vigentes no Brasil entre os anos de 1603 e 1822, e que tipificavam como crime a adulteração do conteúdo ou do peso da mercadoria vendida. Assim dispunha o Título LVIII das Ordenações, com a escrita da época:

“Toda a pessoa, que medir, ou pesar com medidas, ou pezos falsos, se a falsidade que nisso fizer, valer hum marco de prata, morra por isso. E se for de valia de menos do dito marco, seja degradado para sempre para o Brazil”.

Conforme ensina Campos (2004, p.14), citando Roberto Basilone Leite, “naquele período, já havia a rejeição da coisa viciada ou defeituosa, e ações também para reclamar o abatimento do preço da coisa parcialmente perfeita”.

Entretanto, ainda que pincemos dispositivos legais protetivos ao consumidor no Código Civil de 1916, como o art. 1.107, que trata da evicção, e no Código Penal de 1940, que considera crime, nos arts. 272 e 273, a corrupção, falsificação ou alteração de substância alimentícia ou medicinal, a proteção ao consumidor realmente ganhou força na década de 60, com o surgimento das primeiras leis e entidades de proteção ao consumidor.

Dentre essas leis, destaque-se a Lei Delegada nº 4/1962, que dispunha sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo, e o Decreto-Lei nº 422/1969, que criou a Superintendência Nacional de Abastecimento, a SUNAB, responsável, nos termos do art. 7º do Decreto-Lei, pela fixação de preços máximos de taxas, anuidades de estabelecimentos de ensino e ingressos em diversões públicas populares, inclusive cinema.


2 – CONCEITO DE CONSUMIDOR

2.1 – DIREITO COMPARADO

Inicialmente, antes de adentrar nos variados conceitos de consumidor utilizados por diferentes países, insta salientar as percucientes palavras de Ulf Bernitz, citado por Benjamin (1988, p.07), de que “a noção mesma de consumidor, que não possui antecedentes jurídicos, não está presentemente fixada por uma definição aceitável no plano internacional”.

Esse posicionamento também é manifestado por Carlos Ferreira de Almeida, citado por Marco Antônio Zanellato (2007, p.256), que esclarece que:

“A inclusão de definições de consumidor é também freqüente nos textos legislativos. Os seus contornos são muito variáveis, mesmo dentro da mesma ordem jurídica, conforme o instituto a que se aplicam e o âmbito da proteção que visam estabelecer. Alguns sistemas jurídicos dispõem de uma definição genérica, que pode ser residual e supletiva em relação a outras definições legislativas especiais. Nos textos normativos da União Européia, não há uma definição uniforme, mas as semelhanças entre as que constam de algumas directivas encorajam alguns autores a ensaiar um conceito comum e próprio”.

2.1.1 – Inglaterra

Nos ensinamentos de Benjamin (1988, p.15), o termo consumidor foi introduzido na Inglaterra pelo Sale of Goods Act de 1973. Esta lei, entretanto, não definia o consumidor, conceituando apenas a venda de consumo, conceito revogado pelo Unfair Contract Terms Act de 1977.

Este, por sua vez, define o consumidor de maneira indireta, definindo-o através do conceito de contrato de consumo. Nesse sentido, esclarece a lei que o sujeito de um contrato age como consumidor em relação à outra parte se não contrata no curso de comércio, a outra parte contrata no curso de comércio, ou os bens, objeto do contrato, são do tipo supridos ordinariamente para uso ou consumo privado.

2.1.2 – Espanha

Na Espanha, a Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários de 1984 traz duas definições de consumidor, uma positiva e outra negativa.

Estabelece que são consumidores ou usuários as pessoas físicas ou jurídicas que adquirem, utilizam ou desfrutam, como destinatários finais, de bens móveis ou imóveis, produtos, serviços, atividades ou funções, qualquer que seja a natureza, pública ou privada, individual ou coletiva, de quem os produz, facilita, ministra ou expede.

Lado outro, não considera consumidores e usuários quem, sem se constituir em destinatário final, adquire, utiliza ou consome bens ou serviços com o fim de integrá-los em processos de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros.

2.1.3 – Portugal

A lei de defesa do consumidor de Portugal, Lei 24/96, que introduziu a legislação de defesa do consumidor em Portugal, estabelece no art. 2º item 1, que considera-se consumidor qualquer pessoa que adquirir bens ou serviços prestados como destinatário final, ou seja: na relação produção/consumo este sendo o ultimo desta cadeia, passa a adquirir direitos e proteção de consumidor previsto no referido código.

2.1.4 – França

Analisando o direito consumerista francês, Plínio Lacerda Martins (2001, p.04) ensina que:

“Na França o Code de La Consommation regula as relações de consumo, estabelecendo normas para o equilíbrio entre um profissional e um não profissional. O consumidor francês, caracteriza-se através do ato da compra, provando a capacidade de escolha. O consumidor conhece seus direitos e deveres sabendo usar o ato de comprar adequadamente através dos testes comparativos, gozando ainda, da consciência dos produtos e serviços prestados no campo da saúde e seguros. Apresenta ainda como características, a prevenção contra práticas abusivas”.

Nesse mesmo sentido leciona Marco Antônio Zanellato (2007, p.264), que esclarece, com base nas lições de Wald, que a tese dominante na doutrina francesa é no sentido de vincular a condição de consumidor à situação de um não-profissional que contrata para atender exclusivamente a necessidades pessoais, entendidas como tais as suas e as de sua família.

2.1.5 – Alemanha

Marina Carneiro de Melo (2010, p.21), por sua vez, ensina que no direito consumerista alemão, assim como no direito francês, é considerado consumidor o leigo ou não-profissional que contrata um profissional para a prestação de serviços.

Informa ainda que o critério de destinação final (endverbraucher) foi recusado pelos legisladores alemães sob o argumento de ser pouco prático, posto exigir do fornecedor de bens ou do prestador de serviços saber se a parte com quem contrata será ou não o destinatário final do bem para poder orientar o conteúdo do contrato, preferindo, assim, o critério da profissionalidade da atividade.

De maneira mais palpável, podemos citar que o §13 do Código Civil alemão define o consumidor como qualquer pessoa física que conclui um negócio jurídico, cuja finalidade não tem ligação com sua atividade comercial ou profissional.

2.2 – DIREITO BRASILEIRO

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro define conceitualmente o consumidor em três artigos diferentes.

O conceito padrão, stricto sensu ou standard é estabelecido no art. 2º do CDC, que define o consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Este conceito básico, como bem esclarece Zanellato (2007, p.256), “deve ser sempre observado pelo intérprete e/ou aplicador do Direito no momento da definição da existência da relação de consumo”.

No parágrafo único do art. 2º, temos a primeira das figuras do consumidor por equiparação, a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

O art. 17 traz como consumidor equiparado todas as vítimas do evento de consumo, definido por Zanellato (2007, p.260) como “um acidente provocado pelo produto ou serviço defeituoso, do qual resultaram danos a pessoas que não participaram da relação de consumo que teve por objeto o fornecimento desse produto ou serviço com defeito”.

O terceiro consumidor por equiparação vem descrito no art. 29 do CDC, como sendo todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas previstas no Código consumerista.

Quanto a este consumidor por equiparação, Melo (2010, p.13) esclarece ser este uma potencialidade, uma vez que todas as pessoas que estiverem expostas a qualquer prática comercial serão consideradas consumidoras.

Zanellato (2007, 261), por sua vez, critica esta última definição do Código, principalmente por ser demasiadamente genérica, ensejando dificuldades de exegese.

Entretanto, interessa ao presente trabalho a conceituação definida no caput do art. 2º do CDC, especialmente a expressão “destinatário final” e sua aplicabilidade às pessoas jurídicas de direito público.


3 – AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO COMO DESTINATÁRIAS FINAIS DO PRODUTO OU DO SERVIÇO

Dispõe o art. 2º do CDC que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Cumpre-nos aqui esclarecer, brevemente, celeuma referente à possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor às pessoas jurídicas.

De fato, ainda que expressamente prevista no CDC, a possibilidade de aplicação da proteção consumerista às pessoas jurídicas não é unânime na doutrina.

As teorias maximalista, finalista e finalista aprofundada disputaram a preferência da doutrina e da jurisprudência.

Para a teoria maximalista, o Código de Defesa do Consumidor é visto de maneira ampla, abrangendo um maior número de relações consumeristas. Assim, consumidor seria aquele destinatário fático da relação, pelo simples fato de adquirir ou utilizar produto ou serviço.

A teoria finalista avança mais no tema, e define o consumidor em um âmbito subjetivo, diferentemente do âmbito objetivo da teoria maximalista, conceituando-o como aquele que adquire bens ou serviços como destinatário fático e econômico, na precisa lição de Melo (2010, p.26). Esclarece referida autora que “este destinatário final deve ser o último da escala de produção, não podendo utilizar tal aquisição a fim de viabilizar qualquer outra atividade econômica”.

Nos últimos anos, entretanto, vem ganhando força a teoria do finalismo aprofundado, ou teoria finalista mitigada que é uma evolução da teoria do finalismo, e que agrega à finalidade protetiva da norma, exigida nesta, o conceito de vulnerabilidade do consumidor na relação consumerista.

Ao explicar os fundamentos da teoria finalista mitigada, a Min. Nancy Andrighi, ensinou que:

“Em outras palavras, a teoria finalista vem sendo mitigada com fulcro no art. 4º, I, do CDC, fazendo a lei consumerista incidir sobre situações em que, apesar do produto ou serviço ser adquirido no curso do desenvolvimento de uma atividade empresarial, haja vulnerabilidade de uma parte frente à outra. Assim, o direito do consumidor pode ser considerado o direito do contratante hipossuficiente à tutela jurídica diferenciada, sendo irrelevante a distinção pessoa física/jurídica para fins de constatação da vulnerabilidade da parte e recebimento da proteção diferenciada”. (Resp. 1132642, rel. Min. Nancy Andrighi, rel. para o Acórdão Min. Massami Uyeda, j.05/08/2010, p.18/11/2010)

Entretanto, conforme se percebe do voto vencedor do Min. Massami Uyeda, no Acórdão suprareferido, o entendimento consolidado da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça é de adoção da teoria finalista pura para a conceituação de consumidor.

Este entendimento foi corroborado pelo Min. Raul Araújo, em Decisão Monocrática prolatada no Conflito de Competência nº 118.106.

Cumpre esclarecer que, a despeito das decisões acima, não nos parece ter sido descartada a aplicação da teoria finalista mitigada, desde que essa aplicação se dê caso a caso, in concreto, conforme nos esclarece a Min. Nancy Andrighi, que em trecho de seu voto-vencido no Resp. nº 1132642 ensina que “no âmbito do STJ, apesar de já reconhecida em diversas oportunidades a vulnerabilidade das pessoas jurídicas para efeitos de aplicação do CDC, a análise tem sido realizada caso a caso, o que não permite extrair uma definição quanto ao fato dessa fragilidade ser ou não genericamente presumida”.

Discorrendo acerca do tema, Melo (2010, p.29) entende que:

“O Superior Tribunal de Justiça tem adotado esta nova linha, utilizando expressamente a equiparação do artigo 29 do CDC, sob o critério finalista e subjetivo, quando se trata de pessoa jurídica que comprova ser vulnerável e atua fora do âmbito de sua especialidade. Exige-se a prova da vulnerabilidade in concreto, como requer a teoria finalista, mas o aprofundamento é visível na medida em que se admite a aplicação das normas do CDC”.

Portanto, concluindo pela possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor às pessoas jurídicas, passemos à análise da aplicabilidade do CDC à Administração Pública.


4 – A APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Inicialmente, cumpre ressaltar que a Administração Pública Direta, bem como suas autarquias, são consideradas pessoas jurídicas, conforme dispõe o art. 41 do Código Civil de 2002, e, assim, em uma análise inicial, seriam passíveis de proteção pelo Código de Defesa do Consumidor.

A dificuldade parece surgir quando se discute se a Administração Pública pode ser considerada parte vulnerável em uma relação negocial, nas suas vertentes técnica, jurídica ou econômica.

4.1 – Vulnerabilidade técnica

A vulnerabilidade técnica é conceituada por Cunha (2001, p.32) como sendo aquela em que “o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade, o mesmo ocorrendo em matéria de serviços”.

Tassi (2010, p.36) aduz não ser a Administração Pública parte vulnerável tecnicamente, posto ser exigido da mesma, pela Lei nº 8666/93, quando da contratação de obras e serviços, a elaboração do Projeto Básico, instrumento em que devem constar de maneira detalhada as especificações técnicas do objeto pretendido pela Administração Pública.

Nessa linha, argumenta que:

“Quanto à hipossuficiência técnica, viu-se que esta é presumida para os destinatários fáticos e econômicos do bem ou serviço contratado, ou seja, para os consumidores não profissionais, o que é o caso da Administração Pública, de acordo com o que se concluiu linhas atrás. Entretanto, constitui-se em mera presunção. O Poder Público, ao elaborar seus editais de licitação, por exigência da Lei 8.666/90 – o Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos-, inclui no instrumento convocatório documento denominado ‘Projeto Básico’. O art. 6°, X, b, do mencionado Estatuto informa que o Projeto Básico será integrado por ‘soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas’ sobre o objeto da contratação. Ou seja, o instrumento convocatório do procedimento deverá conter as especificações técnicas do produto ou serviço a ser adquirido. Desta feita, não há como sustentar que a Administração não possui conhecimentos técnicos a respeito do produto ou serviço a ser contratado, porquanto no próprio documento de convocação, por expressa determinação legal, detalha os elementos técnicos daquilo que busca adquirir”. (grifos nossos).

Entretanto, parece-nos que o autor analisa a questão através de uma visão puramente teórica, sem considerar a prática administrativa. Viana (2012, p.03) bem esclarece o ponto, nos seguintes termos:

“Na teoria, quem define o objeto é o órgão requisitante em conjunto com a área de compras, preferencialmente por técnico com qualificação profissional pertinente às especificações do objeto, determina o art. 8º, III, ‘a’ do Decreto Federal nº 3.555/00 e art. 9º, I, do Decreto Federal nº 5.450/2005 e art. 14, da Instrução Normativa Federal nº 02/2008. Na prática, porém, quem define o objeto é o órgão requisitante que em conjunto com a área de compras, que normalmente não é atendida por técnico com qualificação profissional pertinente às especificações do objeto produz especificações inconsistentes, longas e confusas e que o mercado não compreende qual é o real produto que vai ser cotado. Isso provoca um efeito arco íris na produção do preço pelo mercado. Os preços fornecidos na pesquisa refletem as contradições da especificação e são díspares devendo ter um forte tratamento estatístico”.

Esse posicionamento é corroborado por Garcia (2006, p.56), que ensina que “não seria razoável criar-se a expectativa de que um órgão ou entidade pública, por mais bem aparelhado que seja, disponha de servidores e técnicos que conheçam profundamente todos os objetos a serem adquiridos”.

Cunha (2001, p.33) também segue essa linha de entendimento, exemplificando com “a situação de uma pequena autarquia ou de uma pequena prefeitura do interior, ao contratar produtos ou serviços de alta tecnologia, com uma grande empresa multinacional”.

Garcia (2006, p.55) enfoca ainda outro ponto para embasar sua tese de que a vulnerabilidade técnica não deve ser descartada nas hipóteses de contratos administrativos, estabelecendo que:

“Com efeito, o fato da Administração Pública ter a possibilidade de definir o objeto da licitação não ilide a circunstância fática de que os bens, serviços e obras adquiridos são aqueles que se encontram disponíveis no mercado e, portanto, sujeitos às caracterizações e descrições usualmente praticadas pelos fornecedores destes objetos. Em outras palavras, na requisição do objeto (momento inicial de qualquer contratação pública) não há espaço para descrições que se afastem das práticas do mercado, sob pena da licitação se tornar fracassada, já que não haveria fornecedor para aquele produto ou serviço. Assim, a verdade é que esta possibilidade do ente público requisitar o objeto não faz com que se adquiram bens e serviços diferentes do setor privado e nem torna o Estado um contratante privilegiado.

Portanto, parece-nos plenamente possível que a Administração Pública seja considerada parte vulnerável tecnicamente em uma relação contratual.

4.2 – Vulnerabilidade Jurídica

A vulnerabilidade jurídica, nas palavras de Cunha (2001, p.32), “é a falta de conhecimentos e meios jurídicos específicos, bem como a ausência de condições para ter acesso a eles”.

Assim, não haveria vulnerabilidade jurídica, tendo em conta que a Administração Pública conta, em geral, com corpo de funcionários ou servidores especializados na área jurídica.

Cunha (2001, p.34) entende, ainda, ser descabida a vulnerabilidade jurídica nos contratos administrativos, posto ser a superioridade jurídica da Administração Pública presumida nestes casos.

Schmitt, citado por Freitas (2010, p.36), também segue essa linha de entendimento, aduzindo que “enquanto o consumidor é um litigante eventual, os grandes fornecedores estão amparados por profissionais qualificados para solucionarem as suas demandas, que ocorrem rotineiramente. Sob essa ótica, os fornecedores já iniciariam uma demanda com uma bagagem técnica maior quando comparados aos consumidores”.

Também aqui, a exemplo do que mencionado no que se refere à vulnerabilidade técnica, nos parece que não há como estabelecermos uma presunção absoluta de que todo e qualquer órgão ou entidade da Administração Pública possui superioridade jurídica frente ao seu contratante.

De fato, não há como entendermos, por exemplo, que entidades públicas de pequeno porte, ou municípios pequenos, tenham sempre assessorias jurídicas para lhes dar suporte. Essa informação é corroborada por Bandeira (2011, p.01), que esclarece que “nos rincões mais distantes deste país continental e nos pequenos municípios a situação mais comum é a ausência de estruturação legal da Procuradoria Municipal”.

Ademais, parece-nos que a vulnerabilidade jurídica deve ser considerada em um âmbito mais restrito do que o mencionado por Cunha (2001, p.34). Este autor parte da premissa simplista de que o fato de possuir equipe de apoio na área jurídica inviabilizaria automaticamente o enquadramento da Administração Pública como vulnerável juridicamente.

Entretanto, entendemos que esta vulnerabilidade pode se apresentar também para a Administração Pública nas relações de consumo, desde que sua área de atuação não tenha relação com a área consumerista.

Em outras palavras, não sendo comum ao órgão ou entidade públicos litigar na área do direito do consumidor, poderiam se considerados vulneráveis juridicamente. Basta analisarmos a hipótese de uma prefeitura municipal, cujo órgão jurídico esteja acostumado a litigar nas áreas trabalhista e administrativa, ter que entrar com uma ação na área do consumidor.

Não seria razoável exigirmos de sua equipe jurídica conhecimentos profundos de direito consumerista, sendo que hodiernamente não trabalha com esta área. Assim, nestas hipóteses pode ser considerada parte vulnerável juridicamente.

4.3 – Vulnerabilidade econômica

Cunha (2001, p.32) relaciona a vulnerabilidade econômica “ao fato de que o fornecedor, por sua posição de monopólio, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos que com ele contratam”.

Tassi (2010, p.38), por sua vez, enfatizando o poderio econômico do Estado, alega não ser possível haver vulnerabilidade econômica da Administração Pública, tomando-se por base a receita tributária a que os entes públicos fazem jus.

Inicialmente cumpre esclarecer que, a despeito de encontrarmos entes públicos, em especial a União, que de fato auferem quantias vultosas provenientes das arrecadações tributárias, essa realidade não é experimentada pela imensa maioria dos municípios brasileiros, que na maioria das vezes arrecadam apenas o suficiente para o cumprimento de suas obrigações básicas. Isso quando a arrecadação chega a cobrir as despesas públicas.

Notícia veiculada no Jornal do Senado, na edição de 11 de outubro de 2012, corrobora com este entendimento, conforme se denota do seguinte trecho:

“Os novos prefeitos, eleitos ou reeleitos, vão ter de enfrentar no próximo mandato uma forte crise financeira. A situação ainda é pior para os prefeitos atuais, que não estão conseguindo fechar as contas. Em reunião da Confederação Nacional de Municípios (CNM), ontem, no Senado, Alvaro Dias (PSDB-PR), Cidinho Santos (PR-MT) e Ana Amélia (PP-RS) manifestaram apoio às prefeituras. Cerca de 900 prefeitos e assessores discutiram como cobrar do governo federal as verbas que não chegam aos municípios. De acordo com o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, as prefeituras enfrentam uma frustração de receita do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) de R$ 6,9 bilhões, devido à queda da atividade econômica. Além disso, o governo federal promoveu nova desoneração do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o que também reduziu as receitas. Já na despesa, só em restos a pagar devidos aos municípios pela União, o acúmulo é de R$ 18,2 bilhões. Ainda impactaram na despesa o piso nacional do magistério e o aumento do salário mínimo”.

Até mesmo Estados Membros, principalmente os integrantes das regiões mais pobres do Brasil, também se encontram endividados.

Assim, o argumento de que a tão só arrecadação de tributos seria suficiente para demonstrar o poderio econômico do Estado é deveras falacioso, principalmente quando levamos em conta a realidade brasileira, em que o equilíbrio financeiro dos entes públicos é quase um sonho.

Parece-nos, ademais, que aqueles que defendem não ser possível enquadrar-se a Administração Pública como parte vulnerável economicamente tenham confundido os conceitos de vulnerabilidade e de hipossuficiência, este último, de fato, inaplicável à Administração.

Moraes (1999, p.109) esclarece a diferença entre os institutos, definindo que “a vulnerabilidade é uma categoria jurídica de direito material, enquanto a hipossuficiência é de direito exclusivamente processual, tendo em vista a destinação específica da norma”.

Assim, nos ensinamentos de Bonatto e Moraes (2009, p.46), “a hipossuficiência corresponde a um conceito processual e particularizado, expressando a situação de dificuldade de litigar, seja no tocante à obtenção de meios suficientes para tanto, seja no âmbito da consecução das provas necessárias para a demonstração de eventuais direitos”.

Nessa linha, a vulnerabilidade econômica seria presumida para todo e qualquer consumidor.

Assim se manifesta Arruda Alvim (1995, p.45), in verbis:

“A vulnerabilidade do consumidor é incindível do contexto das relações de consumo e independe de seu grau cultural e econômico, não admitindo prova em contrário, por não se tratar de mera presunção legal. É, a vulnerabilidade, qualidade intrínseca, ingênita, peculiar, imanente e indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor, em face do conceito legal, pouco importando sua condição social, cultural ou econômica, quer se trate de consumidor pessoa jurídica ou consumidor pessoa física”. (grifos nossos).

A vulnerabilidade, assim, seria condição intrínseca à posição de consumidor.


5 – AS CLÁUSULAS EXORBITANTES

As cláusulas exorbitantes, traço característico dos contratos administrativos, vem explicitada por Furtado (2010, p.368) nos seguintes termos:

“O contrato somente vincula as partes se elas concordarem com a sua celebração. Se não houver a concordância do particular, o contrato administrativo não o obriga. Porém, uma vez firmado o acordo, em nome da supremacia do interesse público são conferidas à Administração Pública prerrogativas que lhe colocam em patamar diferenciado, de superioridade em face do particular que com ela contrata”.

Em outros termos, são cláusulas contratuais previstas legalmente que garantem, em benefício do interesse público, posição de superioridade da Administração Pública em face do contratado.

Justen Filho (2010, p.828), tomando por base a existência dessas cláusulas, entende ser inaplicável o CDC aos contratos administrativos, tendo em conta que neste tipo de contrato é a Administração quem define a prestação a ser executada pelo particular, assim como as condições contratuais que regerão a relação jurídica.

Assim, a característica consumerista de que os fornecedores de produtos e serviços são a parte ativa na celebração de contratos de adesão seria invertida, passando a Administração a figurar como parte ativa do contrato.

O preclaro jurista paranaense assim se manifestou quanto à matéria:

“Alguém poderia defender a aplicação subsidiária do regime da Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), no tocante à responsabilidade por vício do produto ou de serviços. Isso é inviável, porquanto a administração é quem define a prestação a ser executada pelo particular, assim como as condições contratuais que disciplinarão a relação jurídica. Ainda que se pudesse caracterizar a administração como ‘consumidor’, não haveria espaço para incidência das regras do CDC, estando toda a matéria subordinada às regras da Lei de Licitações, do ato convocatório e do contrato”.

Reforçando essa tese, Garcia (2006, p.50) esclarece que:

“Para uma parcela respeitável da doutrina, o Estado não poderia ser enquadrado no conceito de consumidor por duas razões: a primeira é que, para que possa ser considerado consumidor, deve existir uma vulnerabilidade entre consumidor e fornecedor, ou seja, um desequilíbrio na relação de consumo, consoante prevê o art. 4º, I, do CDC. Esta vulnerabilidade não ocorreria quando o Estado contrata, eis que se encontra sujeito a um regime jurídico próprio que o coloca em situação de supremacia em face do contratado; a segunda razão é que, por força deste regime jurídico peculiar, é o Estado quem define a prestação a ser executada pelo particular assim como as condições contratuais que disciplinarão a relação jurídica, ou seja, o Estado tem o poder de requisitar e descrever o objeto contratual”.

Discorrendo acerca do tema, Cunha (2001, p.31) ensina que “nos contratos administrativos, o órgão ou entidade estatal contratante coloca-se, na relação, com inegável superioridade jurídica, sempre como forma de proteger o interesse público”.

Entretanto, este entendimento não nos parece razoável.

Szklarovsky (1999, p.01) refuta esta tese de maneira bastante clara, como se denota do seguinte trecho:

Não se alegue que a Administração, gozando das benesses da lei especial, a que se submetem os contratos administrativos, não necessita do agasalho do Código. Realmente, o artigo 76 da Lei 8666/93 dispõe que a Administração rejeitará, no todo ou em parte, a obra, o fornecimento ou o serviço executado, contrariamente aos termos do contrato, ensejando assim a rescisão, com as conseqüências contratuais, legais e regulamentares. Não obstante, basta cotejarem-se os dois diplomas legislativos, para se concluir que nem todas as situações previstas no Código estão relacionadas na Lei de Licitações e Contratos e vice-versa. Há hipóteses, consagradas no artigo 74 deste diploma, que prevêem o recebimento definitivo, com a faculdade de dispensa do recebimento provisório. Este destina-se a permitir que a Administração faça o acompanhamento e a fiscalização, em se tratando de serviços e obras, e, na hipótese de compras ou locação de equipamentos, possa realizar posteriormente a verificação da conformidade do material com a especificação. Contudo, a lei autoriza a dispensa desse recebimento provisório, nos casos de gêneros perecíveis, alimentação preparada e serviços profissionais. Quando se tratar de compras ou abastecimento de navios, embarcações ou unidades aéreas ou tropas, dada a urgência e necessidade premente, poder-se-á dispensar a licitação, se dentro dos limites do artigo 23, I, a . Vale dizer: se a Administração não é obrigada a fazer o recebimento provisório, em determinadas circunstâncias, ou é obrigada a adquirir bens movida pela premência e necessidade, dispensando até a licitação, não se pode imaginar que o legislador fosse tão desavisado, a ponto de excluir a Administração da proteção do CPDC, deixando-a ao desamparo total. E, inequivocamente, não o fez. Tome-se, por exemplo, a prestação dos serviços de telefonia, fornecimento de gás, água e luz. Apregoar-se que a entidade privada ou pública, por ser parte da Administração, está afastada do manto protetor da Lei 8078/90 é simplesmente absurdo e não se compatibiliza com o artigo 2° do Código. Servindo-se a Administração, como qualquer particular, dos serviços prestados por concessionárias do serviço público, não tem cabimento sua exclusão da proteção legal, o que feriria, brutalmente, a Constituição, que agasalha todo consumidor, sem exclusão de quem quer que seja. Aliás, o artigo 54 expressamente indica, com precisão matemática, que os contratos administrativos se regem pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público e de direito privado e, ainda, pela teoria geral dos contratos, numa harmônica constelação. É também a manifestação de Marcos Juruena Villela Souto. Devem, portanto, comungar-se as normas da lei especial de contratos com o CPDC”.

Oliveira (2011, p.22) defende esse mesmo posicionamento, auferindo que, ainda que a Lei Federal nº 8666/93 forneça um suporte protetivo maior ao Estado, há situações em que a Administração Pública pode ficar descoberta de qualquer proteção, momento no qual as normas do CDC agirão de maneira supletiva.

Também para Pimentel (2001, p.276) não há que se utilizar da existência de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos para que se exclua a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes termos:

“(...) os contratos administrativos não estão inteiramente regrados pela Lei nº 8.666/93, pois não trata a respeito de vício ou defeito nos produtos e serviços adquiridos ou utilizados, acrescentando, ainda, que o jus imperii da Administração não se confunde com a superioridade técnica do fornecedor, lembrando que a proteção do consumidor decorre do reconhecimento da profunda desigualdade existente da relação jurídica de consumo, diante da hipossuficiência, vulnerabilidade e fragilidade do consumidor, em virtude de sua inexperiência e inaptidão técnica, de sua impossibilidade de dispor sobre o conteúdo do contrato e de sua subordinação ao poder de controle do fornecedor”.

Importante frisar que, a despeito de entender inviável a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos, Justen Filho (2010, p.829), em atualização de sua obra, parece ter mitigado seu posicionamento, permitindo a aplicação, conforme se verifica do seguinte trecho:

“Quando muito, poderia cogitar-se da situação quando a Administração Pública adquirisse produto no mercado, em situação equivalente à de um consumidor”.

Parece-nos que, com esse novo entendimento, o ilustre doutrinador em muito se aproxima do entendimento por nós aqui esposado.


6 – A VENDA CASADA NAS LICITAÇÕES PÚBLICAS: A LICITAÇÃO CASADA

Ribas (2011, p.55) define a venda casada como sendo uma prática restritiva em que um agente econômico subordina a venda de determinado produto ou serviço à aquisição de outro bem ou serviço, por ele ou por terceiros produzido ou ofertado, ou à aceitação de que o produto ou serviço ofertado por terceiros não será adquirido.

O Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, no Processo nº 782/2003, foi expresso ao vedar o procedimento de venda casada nas licitações, nos seguintes termos:

“Sobre a matéria, o Tribunal fixou o entendimento de que é inadmissível a locação de equipamentos com fornecimento de material, por caracterizar licitação casada, conforme se depreende dos termos da Decisão nº 8967/1997, inciso III, vedando, de conformidade com os princípios fundamentais da Igualdade e Competitividade, bem assim com as disposições contidas nos arts. 3º, §1º, I, e 23, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que os serviços de locação de máquinas copiadoras e o fornecimento de insumos básicos (cilindro, toner, revelador, papel de impressão, etc...) sejam licitados separadamente, ressalvados os casos em que houver motivos de natureza técnica ou econômica, devidamente comprovados, que justifiquem a não adoção de tal procedimento”. (grifos nossos).

De fato, havendo possibilidade de competição entre diversas empresas produtoras ou fornecedoras de determinado produto ou serviço, faz-se necessária a abertura de regular processo licitatório, aumentando as possibilidades de se alcançar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública.

Esta mesma Corte de Contas Distrital, na Decisão nº 6550/2005, manteve a vedação às licitações casadas, considerando irregular a inclusão de serviço de impressão industrial no objeto do certame, consistente em prestação de serviços contínuos de processamento de dados de recepção e transmissão de arquivos eletrônicos para impressão, o que permitia tipificar a existência de licitação casada e de contrariedade aos arts. 3º, § 1º, inciso I, e 23, § 1º, da Lei nº 8.666/1993.

Nestas hipóteses, o que há é a vinculação entre produtos que poderiam ser licitados em lotes diversos, ampliando a competitividade do certame, mas são agrupados em um mesmo lote devido a práticas anticoncorrenciais, resultando no que podemos chamar de licitação casada administrativa, posto ter sido ocasionada por parte da própria Administração Pública.

Importante ressaltar, entretanto, a existência de outra forma comum de venda casada nas compras públicas, e que ocorre, no geral, nas aquisições de produtos em que a empresa detém exclusividade em sua comercialização, vinculando o fornecimento posterior de manutenção dos equipamentos ou a aquisição de peças. Seria a hipótese de licitação casada diferida ou postergada.

Esta situação é bastante comum nas hipóteses de aquisição de equipamentos que, por sua natureza, necessitam de constantes manutenções e trocas de peças, como elevadores e equipamentos eletroeletrônicos.

Após vencer determinada licitação para o fornecimento e a instalação de determinado equipamento, e passado o prazo de garantia do produto, a Administração Pública necessita de efetuar manutenções regulares nestes objetos.

Nesse ponto, algumas empresas tentam evitar a concorrência, argumentando serem produtoras exclusivas daqueles produtos, e que a manutenção destes somente pode ser realizada por elas, restringindo a competição.

Da mesma forma, quando ainda assim a licitação ocorre, e outra empresa vence o certame, encontram enormes dificuldades em encontrar as peças de reposição necessárias para efetuarem a correta manutenção dos equipamentos.

Nestas situações, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, na Decisão nº 136424, considerou prática de concorrência desleal e contrária ao consumidor a negativa de empresa, ainda que detentora de exclusividade, em disponibilizar componentes e peças de reposição de produtos de sua propriedade para empresas concorrentes, em evidente atitude predatória à concorrência, como estabelecido nas leis nº 8078/90 e 8884/94, que dispõem, respectivamente, que:

“Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.

Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei”. (grifos nossos).

“Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III - aumentar arbitrariamente os lucros;

IV - exercer de forma abusiva posição dominante”. (grifos nossos).

Nesse sentido também decidiu o Tribunal de Contas da União, na Decisão nº 583/1994:

“A Segunda Câmara, diante das razões expostas pelo relator, DECIDE:

Reconhecer a obrigatoriedade de prévio certame licitatório para a contratação de prestação de serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores e equipamentos, onde existe a viabilidade de competição entre os concorrentes (cf. Decisões nºs 325/93; 392/92-2ª e 583/94-P);

1 – determinar, em conseqüência, à Unidade Administrativa da Justiça Federal de 1ª Instância, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul que, quando da realização de serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores e equipamentos, realize as licitações previstas na legislação em vigor (Lei nº 8.666, de 21.06.93, alterada pela Lei nº 8.883, de 08.06.94). Relatório do Ministro Relator

(...) Embora as Indústrias Villares S.A. detenha a exclusividade na fabricação de peças originais da marca Atlas, inúmeras empresas estão habilitadas a prestar serviços de manutenção e conservação dos referidos Elevadores, conforme pode ser constatado através de rápida pesquisa entre as empresas do gênero e que atuam em Porto Alegre, tais como Elecon Assist. Téc. Em Elevadores Ltda., Assist. Técnica de Elevadores Citsul Ltda., todas elas, inclusive, fornecedoras de peças similares.

(...) 5. O Processo adotado pela Administração da Justiça Federal – 1ª Instância do RS, sob a premissa de que “os componentes de fabricação produzidos pela empresa, destinam-se apenas ao atendimento dos elevadores que estão sob responsabilidade técnica da contratada, não estando disponíveis para comercialização com terceiros”, sinaliza s.m.j., certa acomodação dos agentes públicos. Isto porque a Indústria Villares não poderia negar-se como unidade de revenda de seus próprios produtos, a comercializar os seus componentes às empresas que atuam na área de manutenção de elevadores, face ao disposto na Lei 8.002[1], de 14.03.90, artigo 1º, e na condição de fabricante, não deveria deixar de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto perdurar a fabricação dos seus elevadores, conforme determinação contida na Lei 8.078, de 11.09.90, artigos 32 e 33.

5.1 Assim, mesmo sob a hipótese de inexistirem peças similares na praça de Porto Alegre, o fato de a fornecedora de peças originais estar nela estabelecida e de existirem empresas prestadoras de assistência técnica em elevadores seria suficiente para a realização do procedimento licitatório”. (Tribunal de Contas da União, Decisão nº 583/1994, rel. Min. Fernando Gonçalves, Plenário, p. 28/09/1994).

Na Decisão nº 78/2002 a Unidade Técnica de Controle Externo assim se manifestou:

“(...) não parece razoável que, com base na declaração de exclusividade apresentada, dispense-se a licitação, pois há diversas empresas de manutenção de elevadores no mercado nacional. Além disso, conforme assinalado na referida deliberação, o fabricante dos elevadores não pode se negar a, como unidade de revenda de seus próprios produtos, comercializar componentes necessários às empresas que atuam na área de manutenção de elevadores, em face do que dispõe a Lei nº 8.002/90, art. 1º. Ademais, a mencionada Decisão também salienta que, conforme determinação contida no art. 32 da Lei nº 8.078/90, o fabricante deve assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto. Assim, a unidade técnica, ratificando posição da equipe de auditoria, entende que as justificativas não são satisfatórias “dado que não consta dos autos declaração da Junta Comercial pertinente que ateste a inviabilidade de competição em âmbito local, e dada a notória viabilidade de competição no plano nacional”. (Tribunal de Contas da União, Decisão nº 78/2002, Plenário, rel. Min. Ubiratan Aguiar, p.19/03/2002).

Importante trazer à baila, ainda, relevante decisão exarada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, CADE, no Processo Administrativo nº 08012.000172/98-42, em que se deparou com caso similar, em que a empresa Matel Tecnologia de Informática S.A. se negou a fornecer peças de manutenção e reposição à empresa Power-Tech Teleinformática Ltda., com base no fato de ser a representante exclusiva da empresa Ericsson no Brasil.

Assim se manifestou o Conselheiro-Relator Celso Fernandes Campilongo:

“Tratam os autos de Processo Administrativo em que figuram, como Representante, a empresa Power-Tech Teleinformática Ltda. e, como Representada, a Matel Tecnologia de Informática S.A. A Representada é acusada de assumir postura anticoncorrencial por se negar a vender, à Representante, peças de manutenção da central telefônica modelo MD 110, de fabricação da empresa Ericsson, da qual é representante no Brasil. A Power-Tech sustenta que, devido a essa recusa, foi impossibilitada de adimplir suas obrigações contratuais de assistência técnica com várias empresas, bem como de celebrar novos contratos. (...) Fato relevante – diga-se: incontroverso, visto que admitido pela Representada – é a existência de algumas partes e peças dos equipamentos MD 110 que são produzidas e comercializadas exclusivamente pela Ericsson. E mais: parte desses insumos, indispensáveis para a realização dos serviços de manutenção, é insubstituível por peças de outras marcas. A questão reside, portanto, não no acertamento dos fatos, que são públicos e notórios, mas na interpretação conferida à situação empírica, à luz da legislação e da teoria antitruste. A Matec, representante da Ericsson no Brasil, detém o monopólio da fabricação e da comercialização de algumas partes daquelas grandes centrais telefônicas. Sem essas peças, impossível realizar a manutenção, isto é, ingressar ou permanecer no mercado de prestação de serviços para proprietários de marca Ericsson. (...) A recusa de venda das peças, no caso concreto, fortalece o monopólio também na prestação dos serviços de manutenção. O consumidor fica prisioneiro da assistência autorizada pelo fabricante e privado das alternativas e vantagens que, potencialmente, o mercado poderia oferecer-lhe. São esses os fatos, ou, pelo menos, é essa a teleologia que o direito antitruste deve observar para interpretá-los. A definição do mercado geográfico, como se disse, foi consensual: o Distrito Federal. Porém, é justamente dessa delimitação que surgem novos argumentos para reforçar a tese de que equipamentos, peças e serviços de manutenção são mercados distintos. Brasília concentra um significativo número de órgãos públicos. Os clientes dos serviços de manutenção das centrais MD 110, como se nota pelos vários contratos acostados aos autos, são as instituições governamentais. As licitações, por sua vez, devem versar sobre objetos específicos: compra e instalações de equipamentos, de um lado; manutenção e ampliação dos equipamentos, de outro. Trata-se de mais um argumento, por si só, de reforço à tese dos mercados distintos. Tudo vem robustecido pelo fato de que, até pela complexidade e dinamismo do mercado, a assimetria de informações não permite ao consumidor, nessas licitações, ter um quadro nítido de suas futuras necessidades de peças e serviços. O período de garantia também posterga essa preocupação e torna incertos os dados disponíveis para a análise.  Por fim, a modalidade ‘melhor preço’, nas licitações para aquisição dos equipamentos, pode esconder preços baixos nesse mercado e compensações, dada a baixa elasticidade da demanda, no mercado secundário. (...) Bastante discutível que os ‘softwares’ utilizados nas centrais, quando essenciais para a realização da manutenção, não possam estar disponíveis no mercado (item 3.33 do Memorial). Também não parece ser o caso de exploração da marca Ericsson ou de transferência de tecnologia ou segredos industriais.  Ninguém está discutindo, neste âmbito circunscrito à análise antitruste, o direito de credenciamento ou não de representantes, o direito de propriedades de patentes ou o direito ao recebimento de ‘royalties’. Tudo isto foge ao âmbito deste Processo Administrativo. Também não se discute, aqui, se as autorizações ou ‘franquias’ de manutenção conferidas pelo titular da marca, contém restrições e abusos. Ninguém está sendo acusado de recusar autorizações ou formular exigências descabidas para o credenciamento. O tema é outro: recusa de fornecimento de peças. Nada mais. Também não está, de forma alguma, comprovado que a existência de empresas declaradamente independentes e não credenciadas – e, novamente, o que se discute é apenas a recusa de venda e seus consectários e não o uso de qualquer marca – possa prejudicar a imagem da Representada. Portanto, essa não é uma justificativa convincente nem objetiva para quem detém poder de mercado monopolista sobre o conjunto das peças e se recusa a vendê-las. (...) O compromisso com a marca, mesmo que relevante para quem fabrica o equipamento, não parece algo fundamental nem para aqueles que desejarem ingressar de forma independente no mercado de manutenção e, muito menos, para os consumidores, que perderão a oportunidade e a liberdade de escolher, por sua conta e risco, com quais empresas e a que preços desejam fazer a manutenção. Por que ‘tutelar’ o consumidor de modo a restringir suas decisões? O consumidor de grandes centrais telefônicas – como as MD 110 Ericsson – não é presa tão ingênua e irracional, do prisma econômico, a ponto de ser incapaz de diferenciar a qualidade dos serviços pós-venda. Portanto, entendo desarrazoada e prejudicial à livre concorrência, por afronta ao disposto no artigo 21, incisos IV, V e VI, combinado com o artigo 20, incisos I e IV, da Lei no 8.884/94, a conduta da Representada. Imponho à Representada, na forma do artigo 23 da Lei Antitruste e do artigo 11 da Lei nº 9.021/95, a multa mínima de 1% do faturamento da empresa no exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, corrigido esse valor na forma da lei ”.

Ressaltamos que essa licitação casada diferida ou postergada ocorre, normalmente, na forma de dois procedimentos licitatórios distintos, sendo que o primeiro dos certames respeitando o rito comum das licitações e privilegiando a competitividade.

Definida a empresa vencedora e iniciada a prestação do serviço ou o fornecimento do bem, a empresa busca exercer sua posição dominante no mercado quanto à manutenção dos produtos ou o fornecimento de peças para manutenção, em licitação posterior.

Assim, e diferentemente da licitação original, exige que a seguinte seja realizada por contratação direta, com base no art. 25, caput, ou mesmo no inciso I do referido artigo, que dispõem ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo.

Essa atitude, portanto, não só configura prática anticoncorrencial, como é clara burla ao regular procedimento licitatório.

Ademais, cumpre salientar que o art. 90 da Lei nº 8666/93 considera crime frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.

Explicando esta hipótese, Justen Filho (2010, p.908) esclarece que o tipo envolve qualquer conduta praticada por algum sujeito privado que disponha de poderes jurídicos ou de condições materiais para impedir a competição inerente à licitação.


7 – ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL

No que se refere ao posicionamento dos tribunais pátrios, salientamos que, enquanto na esfera da justiça comum não há ainda consenso quanto à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos, nossas Cortes de Contas têm entendimento unânime no sentido de sua possibilidade.

7.1 – Justiça Comum

Os tribunais de justiça brasileiros ainda divergem a respeito do tema.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, encontramos, em sentido contrário à aplicabilidade, a Apelação Cível nº 0007986-30.2008.8.26.0097, rel. Nogueira Diefenthäler, in verbis:

“APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO ADMINISTRATIVO.

1. Inexistência de relação consumerista, dada a observância de regras específicas para contratos administrativos. Pacto que se pauta pelas regras de direito público.

2. Inadimplemento contratual pelo particular que justifica a rescisão, com respaldo no artigo 78 da Lei 8.666/93. Sentença mantida. Recurso desprovido”. (TJSP, Apelação Cível nº 0007986-30.2008.8.26.0097, Quinta Câmara de Direito Público, rel. Nogueira Diefenthäler, j.22/03/2012, p.05/04/2012).

No Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina temos decisão contrária à aplicação do CDC aos contratos administrativos, nos seguintes termos:

“Os contratos administrativos firmados através do competente processo licitatório, guardam características próprias do direito público, limitados pelos princípios basilares da Administração Pública (art. 37 da CRFB), sendo-lhes inaplicável a disciplina do Código de Defesa do Consumidor.  Consoante explicita a doutrina hodierna, as cláusulas exorbitantes são aquelas que excedem o Direito Comum, consignando vantagens ou restrições em favor da Administração Pública ou ao contratado, sendo inadmissíveis num contrato privado; todavia, são absolutamente válidas no contrato administrativo, desde que em consonância com a lei e com os princípios que regem a atividade administrativa. Isso porque visam estabelecer prerrogativas em favor de uma das partes para o perfeito atendimento do interesse público, que se sobrepõem aos interesses particulares”. (TJSC, Terceira Câmara de Direito Público, Apelação Cível no 24685-6, rel. Sônia Maria Schmitz, j.19/09/2003).

Posicionamento semelhante temos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na Apelação Cível nº 2007.001.54374.

Relevante mencionarmos que o Superior Tribunal de Justiça, ao se manifestar acerca do tema, entendeu, inicialmente, não ser possível aplicar os preceitos do CDC, como se denota da seguinte decisão:

“ADMINISTRATIVO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS - ECT. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. NATUREZA ADMINISTRATIVA.

1. Contrato de prestação de serviços firmado, após procedimento licitatório, entre a ECT e as recorrentes para a construção de duas agências dos Correios. Paralisação das obras. Alegação de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Natureza da relação jurídica contratual entre a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e as Construtoras prestadoras de serviços.

2. Pleito recursal visando a aplicação das normas de Direito Privado relativas ao Direito do Consumidor com o objetivo de evitar prática contratual considerada abusiva

3. A ECT é empresa pública que, embora não exerça atividade econômica, presta serviço público da competência da União Federal, sendo por estamantida.

4. O delineamento básico da Administração Pública brasileira, seja direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, restou estabelecido no art. 37 da Constituição Federal, que no seu inciso XXI, fixou a licitação como princípio básico a ser observado por toda a Administração Pública.

5. A Lei de Licitações e Contratos estabelece que o contraente poderá servir-se das cláusulas exorbitantes do direito privado para melhor resguardar o interesse público. É de sabença que as cláusulas exorbitantes são as que inexistem no Direito Privado e permitem ao Poder Público alterar as condições de execução do contrato, independentemente da anuência do contratado.

6. À luz do art. 37, XXI, da Constituição Federal, a natureza do vínculo jurídico entre a ECT e as empresas recorrentes, é de Direito Administrativo, sendo certo que a questão sub judice não envolve Direito Privado, tampouco de relação de consumo. Aliás, apenas os consumidores, usuários do serviço dos correios é que têm relação jurídica de consumo com a ECT.

7. Consoante o acórdão a quo, a empresa contratada não logrou demonstrar qualquer ilegalidade cometida pela ECT em face da legislação que rege os contratos públicos quando da licitação, ou o efetivo desequilíbrio econômico na execução da obra, matéria esta que não pode ser revista nesta instância extraordinária, ante o óbice da súmula 07. Sob essa ótica, resvala a tese sustentada pelas empresas recorrentes no sentido de que o acórdão recorrido malferiu os artigos 6º, 29 e 51 do Código de Defesa do Consumidor, mercê de burlar as regras de revisão contratual destinadas ao equilíbrio financeiro do ajuste firmado entre as partes.

8. Recurso especial desprovido”. (STJ, Primeira Turma, Recurso Especial nº 527.137 – PR, rel. Min. Luiz Fux, j.11/05/2004, p.31/05/2004).

Entretanto, em decisão mais recente, passou a seguir o entendimento propalado pela teoria finalista mitigada, e decidiu que, ainda que de maneira geral não se aplique o CDC aos contratos administrativos, pode haver situações, analisadas caso a caso, em que se comprove a vulnerabilidade da Administração Publica, sendo permitida a incidência das normas consumeristas em favor do ente público. Assim se manifestou a Min. Eliana Calmon em seu voto:

“ADMINISTRATIVO - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - CONTRATO ADMINISTRATIVO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE PUBLICIDADE - INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO – INCOMPETÊNCIA DO PROCON - NULIDADE DA MULTA APLICADA.

1. Em se tratando de contrato administrativo, em que a Administração é quem detém posição de supremacia justificada pelo interesse público, não incidem as normas contidas no CDC, especialmente quando se trata da aplicação de penalidades.

2. Somente se admite a incidência do CDC nos contratos administrativos em situações excepcionais, em que a Administração assume posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, o que não ocorre na espécie, por se tratar de simples contrato de prestação de serviço de publicidade.

3. Incompetência do PROCON para atuar em relação que não seja de consumo.

4. Recurso ordinário em mandado de segurança provido”. (STJ, Segunda Turma, Recurso em Mandado de Segurança nº 31.073 – TO, rel. Min. Eliana Calmon, j.26/08/2010, p.08/09/2010). (grifos nossos).

Por outro lado, também no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível nº 0030881-25.2005.8.26.0053, o rel. Luiz Sérgio Fernandes de Souza decidiu que:

“AÇÃO ORDINÁRIA Furto de equipamento médico em repartição pública – Empresa contratada para serviço de vigilância patrimonial Previsão contratual de responsabilidade civil em caso de danos causados em função da execução dos serviços Dever de ressarcir prejuízo decorrente de furto, independentemente das circunstâncias, por expressa previsão contratual Aplicação, ademais, da regra do artigo 14, § 1º, do CDC Recurso provido Sentença reformada”. (TJSP, Apelação Cível nº 0030881-25.2005.8.26.0053, Sétima Câmara de Direito Público, rel. Luiz Sérgio Fernandes de Souza, j.27/02/2012, p.01/03/2012).

O Tribunal de Justiça do Estado do Pará prolatou decisão na mesma linha, como se denota do seguinte trecho:

“Tenho que, a partir da combinação do artigo 2º com o inciso I do artigo 4º, ambos da Lei nº 8.078/1990, mitigou-se a aplicação da teoria finalista, chega-se, em situações excepcionais, a um novo conceito de consumidor, pautado na apreciação da vulnerabilidade, de modo que até mesmo uma pessoa jurídica possa ser classificada como consumidora, com a aplicação do art. 29 do CDC. Pode-se concluir que é razoável a interpretação de que são aplicáveis as disposições do CDC aos contratos administrativos, em caráter subsidiário, desde que atendida a seguinte condição: o órgão ou entidade pública estiver em posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, visto que a superioridade jurídica do ente público é presumida nos contratos administrativos”. (TJPA, Terceira Câmara Cível, Apelação Cível e Reexame de Sentença nº 20073009633-3, rel. Des. Maria Rita Lima Xavier, j.03/09/2010, p.13/09/2010).

Dessa feita, percebe-se que o tema ainda não é unânime nos tribunais de justiça brasileiros.

7.2 – Tribunais de Contas

No que se refere às decisões dos tribunais de contas pátrios não há discussão, sendo plenamente aceita a aplicação do CDC aos contratos administrativos em que a Administração Pública figure como consumidora.

Nesse sentido, podemos citar o Processo nº TC/58728/2011 do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul, o Processo nº 1973/2004 do Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, o Processo nº 004142-02.00/00-0 do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e os Acórdãos nº 696/2010, nº 892/2010, nº 1879/2011, nº 2179/2011 e nº 3343/2012 do Tribunal de Contas da União.

Por todos, cite-se a decisão paradigma acerca do assunto, nos termos do Acórdão nº 1729/2008 do Plenário do TCU, em que a Corte de Contas se manifesta no sentido de que não seria necessária a exigência editalícia de apresentação por parte dos licitantes de carta de solidariedade, posto que esta já vinha prevista no Código de Defesa do Consumidor, e, portanto, plenamente exigível, sem a necessidade de previsão em edital.


8 - CONCLUSÃO

Os contratos consumeristas têm como característica a proteção da parte considerada vulnerável na relação contratual. Esta proteção, por sua vez, deve ser concedida a todos que dela participem, devendo, entretanto, ser auferida no caso concreto a existência de vulnerabilidade. Essa conceituação demonstra, de maneira clara, que a proteção consumerista não exclui, de maneira automática, as pessoas jurídicas.

A existência de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, a despeito de fornecer mais segurança nas tratativas consumeristas, não fornece uma proteção completa à Administração Pública, que, nos termos do art. 54 da Lei Federal nº 8666/93 pode se utilizar supletivamente das normas de direito privado.

Assim, consideramos possível que em determinadas situações o ente público possa ser considerado parte vulnerável nos contratos de consumo, fazendo jus à proteção do Código de Defesa do Consumidor.


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Nota

[1] A Lei nº 8002/90 foi revogada pela Lei nº 8884/94.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, André Pataro Myrrha de Paula e. A Administração Pública como consumidora e a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3837, 2 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26309. Acesso em: 28 mar. 2024.