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A petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os poderes e do federalismo centrífugo

A petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os poderes e do federalismo centrífugo

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O presente trabalho pretende verificar de que modo a intangibilidade da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, enquanto cláusulas pétreas, pode se manifestar.

Resumo: O presente trabalho pretende verificar de que modo a intangibilidade da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, enquanto cláusulas pétreas, pode se manifestar, ou seja, a extensão de sua imodificabilidade, tendo como pontos de observação os seus elementos conceituais e estruturais, os seus aspectos históricos e suas finalidades e a sua configuração constitucional. Busca-se averiguar a intangibilidade da harmonia e do equilíbrio entre os Poderes e da característica centrífuga do federalismo.


 1 INTRODUÇÃO 

Este trabalho pretende investigar se a separação dos Poderes somente é petrificada no que diz respeito ao seu semblante divisão, especialização e independência, ou se é possível estender a proteção aos seus aspectos harmonia e equilíbrio. Da mesma forma, investiga-se a possibilidade de considerar como intangível a característica centrífuga do federalismo brasileiro.

Para atingir o fim colimado, necessárias são as abordagens sobre a formação histórica da separação dos Poderes e do federalismo, os seus conceitos e especificidades, untando, por fim, com breves considerações acerca do Poder Constituinte.


2 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES 

Em seu artigo 2º, a Constituição de 1988 estabelece que Legislativo, Executivo e Judiciário são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si. Erige, assim, a separação dos Poderes como princípio fundamental e basilar do Estado brasileiro.

Historicamente, o referido princípio foi sugerido por Aristóteles, Locke e Rousseau, que formularam teorias para a separação dos poderes. Montesquieu, por sua vez, foi o responsável por aperfeiçoar e divulgar a doutrina. Este idealizou o Legislativo, com atribuição de elaborar leis, o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes, que declara guerras ou paz e cuida das relações internacionais, e o Executivo das coisas que dependem do Direito Civil, punindo crimes e julgando desavenças entre particulares (Judiciário).

Apesar da intenção de limitar o poder soberano, Montesquieu concebe uma teoria baseada, essencialmente, na mera divisão de funções, objetivando um funcionamento mais racional da máquina estatal. Dividindo-se mecanicamente as atribuições, tem o Estado melhores condições de atingir os seus fins, agindo de modo organizado.

Esta rigidez mecanizada de outrora foi, ao longo do tempo, sendo suavizada, tendo o princípio adquirido novas facetas e conceituações. Silva (2004, p. 109) visualiza bem essa nova realidade:

Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação dos poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, no presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes.

Percebe-se, dessa maneira, a introdução de novos conceitos no cerne do princípio da separação dos Poderes, como independência, colaboração e harmonia. Busca-se, assim, uma interação, de modo a garantir adequadamente o exercício das disposições constitucionais, especialmente no que se refere a direitos e prerrogativas.

Bonavides (2007, p. 587), por sua vez, sintetiza essa evolução do princípio da separação dos Poderes:

Ontem a separação de Poderes se movia no campo da organização e distribuição de competências, enquanto seu fim era precisamente o de limitar o poder do Estado; hoje, ela se move no âmbito dos direitos fundamentais e os abalos ao princípio partem de obstáculos levantados à concretização desses direitos, mas também da controvérsia de legitimidade acerca de quem dirime em derradeira instância as eventuais colisões de princípios da constituição.

Sendo assim, pode-se verificar, de início, no conceito do princípio da separação dos poderes, aspectos como divisão, especialização e independência, que revelam o cerne do princípio em questão, que serão tratados adiante com mais propriedade.

2.1 Divisão, Especialização e Independência 

As primeiras ideias acerca do princípio da separação dos Poderes giram em torno destes três conceitos, responsáveis pela organização básica do Estado.

Por divisão entende-se a repartição de competências e atribuições entre os Poderes, confiando cada uma das funções governamentais a órgãos diferentes. Assim é que ao Poder Legislativo cabe a função legislativa, ao Poder Executivo a função executiva, e ao Poder Judiciário a jurisdicional.

O sentido da especialização significa que cada órgão se aperfeiçoou no exercício da função que lhe é atribuída. Desse modo, possuem um aparato constitucional para a otimização no desempenho de suas atividades, recebendo estrutura governamental.

Por sua vez, a independência revela a necessidade de que cada Poder seja autônomo em relação aos outros, a partir da ausência de subordinação entre eles. Para garantir a independência, a cada Poder são conferidos direitos e prerrogativas. Sobre este caractere, Silva (2004, p. 110) ensina:

A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais [...].

Portanto, a Constituição confere a cada Poder uma série de atribuições, dividindo a estrutura governamental entre eles, repartindo, além de funções, direitos e prerrogativas, que garantem a especialização e a independência de cada um.

Apesar de cada Poder possuir competências típicas e um campo de atuação bem delimitado, é comum exercerem, de modo atípico, funções de outras esferas. Ao Poder Executivo é conferida a possibilidade de legislar através de medidas provisórias e leis delegadas, além de conduzir processos administrativos. Ao Legislativo compete administrar-se internamente e julgar crimes de responsabilidade do Presidente da República. O Judiciário, por sua vez, pode organizar-se administrativamente e elaborar seus próprios regimentos.

Todas estas funções atípicas são exceções que a própria Constituição estabelece, de modo originário, aos aspectos divisão e especialização do princípio da separação dos Poderes. Assim, uma esfera pode exercer atribuições conferidas originalmente a outras, desde que previsto pela Constituição.

No que tange ao semblante da independência, também há uma série de exceções constitucionais ao princípio referido. Ilustrando, o Congresso Nacional delibera sobre intervenção federal decretada pelo Presidente da República; autoriza o Presidente da República a declarar guerra ou celebrar a paz; entre outros.

Nota-se que são exceções oriundas da própria Constituição, por força de sua vontade constituinte e originária. Por fazerem parte do núcleo duro, do cerne da separação dos poderes, as faces divisão, especialização e independência são mais evidentes. Conseguintemente, qualquer tendência a abolir, suprimir ou esvaziar o conteúdo do princípio no que toca a tais aspectos é mais fácil de ser detectada.

Segundo Silva (2004), atribuir a qualquer dos Poderes funções que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio da separação de Poderes. Dessa forma, qualquer emenda que vise a conferir a um Poder atribuição originariamente de outro, ou simplesmente retirar competências de um Poder, deve ser tida como inconstitucional por violar a característica divisão do princípio em análise. Também assim com emendas que objetivam subordinar um Poder a outro fora das exceções constitucionais, por ferir a faceta da independência.

Um caso curioso acontece com a Emenda Constitucional nº 32/2001. Esta norma acrescentou ao artigo 62 da Constituição um parágrafo especificando matérias insuscetíveis de regulamentação através de medidas provisórias.

Em sua redação original, o artigo 62 apenas previa a competência do Executivo em editar medidas provisórias em caso de urgência e relevância. Pelo texto primeiro, passa-se a impressão de que qualquer matéria, desde que urgente e relevante, poderia ser objeto de medidas provisórias, e que a EC nº 32 seria inconstitucional por retirar poder do Executivo conferido pela vontade constituinte originária, agredindo assim ao aspecto divisão da separação dos poderes.

Contudo, tal não ocorre, pois a emenda agiu como se interpretasse a redação original do dispositivo. Isto porque, caso o legislador constituinte tivesse previsto os abusos cometidos pelo Executivo, certamente teria estabelecido a vedação. A emenda apenas parece fazer uma exegese do texto, trazendo de modo expresso as matérias vedadas, coadunando-se aos conceitos de urgência e relevância, melhorando a redação do artigo de forma a evitar dúvidas e abusos e preservar a vontade constituinte originária.

Por este exemplo, é possível inferir que são permitidas emendas que tratem sobre a separação entre os Poderes, desde que seja para otimizar as atividades das esferas, conferir maior eficiência ao exercício das funções, garantir melhor desempenho funcional e atuação mais racional da máquina pública, ou melhorar o sentido de uma norma, extraindo-se a vontade constituinte, como ocorre com muitas emendas constitucionais já promulgadas. Qualquer proposta fora de tais hipóteses pode ser tida como materialmente inconstitucional, por violar o inciso III do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal.

Como já visto, por referir-se à parte mais evidente da separação dos Poderes, não é objetivo precípuo do presente estudo verificar eventuais afrontas de propostas de emendas aos caracteres divisão, especialização e independência, mas sim aos aspectos harmonia e equilíbrio, que são as partes mais sensíveis e delicadas do princípio em tela, podendo ser alvo de projetos capazes de, sutilmente, ferir a separação a partir destas dimensões.

2.2 A Petrealidade da Harmonia e do Equilíbrio entre os Poderes 

Recorrendo ao que foi mencionado em tópico anterior, qualquer proposta de emenda que altere elementos conceituais do princípio da separação dos Poderes, ou que vise reordenar a forma de organização das esferas de poder, deve ser obstada, por força da intangibilidade conferida pelas cláusulas pétreas.

Desse modo, é de boa monta que todo projeto tendente a atingir a harmonia e o equilíbrio entre os Poderes, na forma como estes aspectos estão inseridos na Constituição, deva ser rechaçado, pois fazem parte da própria vida do princípio e estão presentes em diversas normas constitucionais. Para visualizar essa imodificabilidade, é necessário analisar os conceitos destes elementos.

A partir da evolução do entendimento sobre a separação dos Poderes, outras características, além da divisão, da especialização e da independência, foram inseridas ao corpo do princípio, entre elas a harmonia e o equilíbrio. Isto é resultado da ideia de que nem a divisão nem a independência são absolutas.

Assim, existem interferências entre os Poderes, que visam ao estabelecimento da harmonia e do equilíbrio entre eles, a partir de um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), necessário para evitar o arbítrio de um em detrimento de outro e dos governados. Por este mecanismo, os Poderes controlam-se e limitam-se reciprocamente. Quando um deles se excede ou se agiganta, os outros podem impedi-lo, retomando o equilíbrio.

Teixeira (1991, p. 582) define a referida doutrina:

[...] a doutrina dos “freios e contrapesos” exige que, depois de atribuir a uma pessoa ou órgão o exercício principal de um de tais poderes, tenha-se o cuidado de estabelecer uma participação de menor importância de outras pessoas ou órgãos.

Silva (2004, p. 110) visualiza este sistema no ordenamento constitucional brasileiro:

Se ao Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais, estabelece-se um processo para a sua formação em que o Executivo tem a participação importante, quer pela iniciativa de leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas a iniciativa legislativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até rejeitá-lo. Ainda, poderá rejeitar o veto e, pelo Presidente do Senado, promulgar a lei, se o Presidente da República não o fizer no prazo previsto.

Prossegue Silva (2004, p. 111):

Se os Tribunais não podem influir no Legislativo, são autorizados a declarar a inconstitucionalidade das leis, não as aplicando neste caso. O Presidente da República não interfere na função jurisdicional, em compensação os ministros dos tribunais superiores são por ele nomeados, sob controle do Senado Federal, a que cabe aprovar o nome escolhido.

Exemplificando, ainda, cabe ao Poder Executivo, em determinadas situações, a regulamentação de leis, atribuição esta sopesada por ter o Legislativo a possibilidade de sustar atos daquela esfera que excedam o poder meramente regulamentar.

Todas estas situações, além de outras tantas existentes no texto constitucional, estruturam e permitem a harmonia e o equilíbrio entre os Poderes. Silva (2004, p. 111) faz referência à necessidade da presença destes elementos para a saúde do princípio:

[...] Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo se esses órgãos se subornarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco [...].

Visto um pouco da forma como os Poderes são organizados para permitir a existência de harmonia e equilíbrio entre eles e o funcionamento do sistema de freios e contrapesos, pode-se concluir que estes elementos, por estarem no cerne da separação dos Poderes, gozam da mesma petrealidade conferida ao princípio em suas características divisão, especialização e independência.

Como já dito, estes últimos elementos são mais fáceis de identificar, pois, em regra, referem-se à distribuição de funções, direitos, prerrogativas e atividades específicas. São situações palpáveis, enquanto que as características e a organização da harmonia e do equilíbrio são mais sutis e sensíveis, menos perceptíveis.

Para ilustrar, é importante verificar os aspectos da harmonia e do equilíbrio como uma balança de três pratos interligados (faça-se um esforço imaginativo). Cada um destes pratos representa os Poderes. Os constituintes, utilizando a potência de sua capacidade originária e insubmissa, distribuíram entre os pratos diversos pesos. Estes pesos representam os mecanismos conferidos a cada poder para controlar e refrear os demais.. Esta repartição, ao menos idealmente, foi feita de tal modo que cada prato suporte o mesmo peso, fazendo com que os três fiquem no mesmo nível, gozando de uma tensão equilibrada e harmônica.

Imagine-se, agora, que os pratos ganhem vida e que um deles retire parte do peso (competências, direitos, por exemplo) dos outros, tomando-a para si, ou busque, fora da balança, mais peso, agigantando-se e abusando dos demais. O que acontece em seguida é que o prato usurpador terá um sobrepeso, quebrando o equilíbrio da balança e alterando a harmonia. Para solucionar este problema, a Constituição estabeleceu o sistema de freios e contrapesos, que permite aos outros pratos a retomada da parte que lhes foi retirada e, assim, restabelecer o equilíbrio ideal. Todo este processo é seguro e garantido pela Constituição, a partir dos exemplos vistos acima.

Visualize-se, neste momento, uma situação um pouco diferente, em que determinada pessoa acrescenta mais peso sobre um dos pratos ou retira de um deles, alterando o equilíbrio ideal. Esta pessoa representa uma emenda ou proposta de emenda constitucional. Imagine-se que esta emenda retire uma prerrogativa de um dos Poderes de contrabalançar, sopesar, frear ou controlar eventuais abusos ou excessos de outro, como, por exemplo, retirar do Legislativo o poder de sustar os atos do Executivo que excedam a sua atribuição meramente regulamentar.

É evidente que tal emenda ou proposta alteraria gravemente a harmonia e o equilíbrio ideal estabelecido pelos constituintes. E contra ela somente existe o remédio da declaração de inconstitucionalidade material, por violação a uma cláusula pétrea.

Ocorre que (insista-se) a alteração do equilíbrio da balança mediante a usurpação de uma função ou de um direito é mais palpável e mais simples de ser sentida do que a desarmonia gerada pela retirada ou acréscimo de uma forma de controle de um Poder sobre outro. Se a mudança for de grande monta, menor a dificuldade de sua verificação. Porém, em diversas ocasiões, a modificação pode ser de pequena monta, quase imperceptível.

Um exemplo de tentativa de mudança considerável no sistema de freios e contrapesos e conseguintemente na harmonia e no equilíbrio entre os Poderes é a Proposta de Emenda Constitucional nº 33/2011. Resumidamente, este projeto visa modificar artigos da redação original da Constituição e da EC 45/2004, alterando a quantidade mínima de votos de membros de Tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de Súmulas do STF à aprovação do Legislativo; e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição.

Primeiramente, é importante ressaltar que a redação original da Constituição Federal estabeleceu um equilíbrio ideal entre os Poderes, devendo ser este respeitado e garantido. A Emenda Constitucional nº 45/2004, por sua vez, otimizou o equilíbrio proposto pelo legislador constituinte, fornecendo meios de garantir a harmonia idealizada. Esta emenda melhorou a redação originária, interpretando, extraindo e esclarecendo a vontade constituinte, além de proporcionar mecanismos para sua concretização. Sendo assim, não altera o equilíbrio da balança, mas concede métodos para que seja mantido por mais tempo. Isso pode ser verificado no artigo 103-A da Constituição, incluído pela EC 45/2004, que, ao prever a edição de súmula vinculante, nada mais fez do que garantir que as decisões judiciais e a interpretação das normas, poderes conferidos ao STF, sejam aceitas e cumpridas por todos, sentido esse que já existia no espírito da Constituição.

Diferentemente atua a PEC 33/2011. Suas agressões mais visíveis ao princípio da separação dos Poderes referem-se aos aspectos divisão e independência. Ao tentar retirar do Supremo Tribunal Federal o poder de suspender a eficácia de emenda constitucional por medida cautelar, afeta a repartição de atribuições e competências prevista originalmente, ou seja, a divisão. A independência, por sua vez, é desrespeitada com o intuito de modificar o quórum para a declaração de inconstitucionalidade de leis e para a aprovação de súmulas. Isto porque a forma de decidir conferida aos Tribunais pela vontade constituinte e pela emenda que a aclarou faz parte do modo de exercício e garantia da autonomia do Poder Judiciário.

 A PEC 33/2011 viola, ainda, a harmonia e o equilíbrio entre os Poderes. Na intenção de submeter o efeito vinculante de uma súmula ou de uma decisão sobre a inconstitucionalidade de determinada emenda à aprovação do Congresso Nacional, a proposta sugere o acréscimo ao Legislativo de um mecanismo de controle, alterando substancialmente o equilíbrio ideal da balança imaginária. Portanto, a PEC 33/2011 deve ser tida por materialmente inconstitucional, por violar todos os aspectos da separação dos Poderes, em especial a harmonia e o equilíbrio.

Ao lado das modificações significativas ao equilíbrio ideal entre os Poderes estão as mudanças de pequena monta, quase imperceptíveis ou alicerçadas em outros princípios e motivações, sendo, por isso, aceitas.

O primeiro exemplo pode ser dado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 2 de 1994. Originalmente, a Constituição, em seu artigo 50, conferia poder ao Congresso Nacional de convocar Ministros de Estado para prestar esclarecimentos. A referida emenda ampliou o rol de pessoas submetidas a este poder, podendo ser convocados, além dos Ministros de Estado, quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República. Observe-se que a EC nº 2/1994 ampliou o controle do Legislativo sobre o Executivo, desequilibrando a balança.

Um segundo exemplo vem com as Emendas Constitucionais nº 23/1999 e nº 45/2004, que aumentaram o rol daqueles que podem ser processados e julgados pelo Senado Federal por crimes de responsabilidade, abarcando também Comandantes das Forças Armadas, membros do Conselho Nacional de Justiça, entre outros. A despeito de todo o exposto sobre a EC 45/2004, entende-se que, pelo menos neste aspecto, juntamente com a EC 23/1999, afeta o equilíbrio inicialmente proposto pelo constituinte, pois confere maior controle do Legislativo sobre Executivo e Judiciário.

Por último, é trazida a baila a Emenda Constitucional nº 42/2003, que entregou ao Senado Federal o poder de avaliar o desempenho das administrações tributárias de todos os entes federativos. Mais uma vez, o equilíbrio original e ideal é alterado, pois quem avalia também fiscaliza e inspeciona. Sendo assim, cresce novamente o controle do Legislativo sobre o Executivo.

Estas normas já vigem há muito tempo, passaram pela análise do próprio Legislativo, sofrendo controle de constitucionalidade por suas próprias comissões, e não foram rechaçadas pelo Judiciário. Não se crê que as alterações provocadas na harmonia pelas emendas citadas tenham passado despercebidas aos olhos de águia de tantos estudiosos de renome, embora as mudanças sejam minúsculas perto das pretensões da PEC 33/2011.

Acredita-se, porém, que estas alterações, embora tenham quebrado o equilíbrio ideal, ainda que sutilmente, foram e continuam sendo permitidas em nome da intenção do legislador constituído, tendo em vista o seu intuito moralizador e a vontade de criar mecanismos que previnam ou punam abusos dos detentores do poder.

Por tais motivos, não é objetivo do presente estudo taxar as emendas referidas como inconstitucionais, mas apenas abrir o debate, permitir um novo olhar sobre a petrealidade dos conceitos da harmonia e do equilíbrio presentes na ideia de separação dos Poderes. Ao mesmo tempo, pretende alertar para futuras alterações que possam ser substancialmente gravosas ao equilíbrio ideal, sem proporcionar nenhum benefício à coletividade, apenas com a mera intenção de anular e subjugar um Poder como pena por não atender a interesses pessoais, como tenta a PEC 33.


3 O FEDERALISMO 

A ideia central do federalismo reside na repartição de poder entre governos regionais, autônomos entre si, formando o Estado federal. Distingue-se do Estado unitário, que possui um centro de poder que controla todas as coletividades locais, território e população.

Corroborando, federalismo, em Direito Constitucional, significa uma forma de Estado, denominada federação ou Estado Federal, caracterizada, segundo Silva (2004, p. 99), “pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, autonomia federativa”.

O Estado Federal é o conjunto formado pela União e pelos Estados federados (coletividades regionais), caracterizando aquilo que se convencionou chamar de federalismo de dois níveis. O Estado Federal é o todo, dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional, detentor da soberania.

No Brasil, além da União e dos Estados federados ou Estados-membros, aparece o Município como coletividade local dotada de autonomia federativa, configurando, assim, um federalismo de três níveis, a despeito de doutas opiniões em contrário, negando ao Município a natureza de ente federativo. Isto porque, em seu artigo 1º, a Constituição de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil, ou seja, o Estado Federal brasileiro, é formada pela união indissolúvel de Estados e Municípios e do Distrito Federal.

Diferentemente do Estado Federal, a União é pessoa jurídica de Direito Público interno, formada pela reunião das partes componentes, autônoma em relação aos Estados-membros, representando externamente o Estado Federal. Os Estados-membros, por sua vez, são essas partes componentes, também pessoas jurídicas de Direito Público interno, detentoras de autonomia. Para Silva (2004, p. 100), os Estados-membros “são titulares tão-só de autonomia, compreendida como governo próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal”.

Sobre esta autonomia, aduz Silva (2004, p. 100):

A autonomia federativa assenta-se em dois elementos básicos: (a) na existência de órgãos governamentais próprios, isto é, que não dependam dos órgãos federais quanto à forma de seleção e investidura; (b) na posse de competências exclusivas, um mínimo, ao menos, que não seja ridiculamente reduzido.

Segundo Bonavides (2006), dois princípios capitais são a chave de todo o sistema federativo: a lei da participação e a lei da autonomia. Sobre o assunto, ensina o autor (p. 195-196):

Mediante a lei de participação, tomam os Estados-membros parte no processo de elaboração da vontade política válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da Federação [...]

Através da lei da autonomia manifesta-se com toda a clareza o caráter estatal das unidades federadas. Podem estas livremente estatuir uma ordem constitucional própria, estabelecer a competência dos três poderes que habitualmente integram o Estado (executivo, legislativo e judiciário) e exercer desembaraçadamente todos aqueles poderes que decorrem da natureza mesma do sistema federativo, desde que tudo se faça na estrita observância dos princípios básicos da Constituição federal.

A Constituição de 1988 estabelece uma conjuntura que permite a aplicação dos dois citados princípios. Isto porque, no que toca à lei da participação, os Estados-Membros fazem parte da elaboração da vontade política estatal, o que é evidenciado pela existência do Senado Federal, composto por representantes de cada Estado-membro em igualdade numérica, responsável pela elaboração das leis, projetos, programas governamentais e uma série de outras atribuições privativas e exclusivas importantes para o funcionamento da máquina pública como um todo. A Câmara dos Deputados pode ser citada também como órgão que permite a participação dos Estados-membros na formação da vontade nacional, pois, embora seja essencialmente voltada para a representação da população, os anseios desta não deixam de refletir os anseios do ente a que pertence.

Pela lei da autonomia, aos Estados-Membros é conferido um conjunto de competências próprias que lhes permite a capacidade de governar e administrar a si próprios. Estes entes federativos possuem serviços específicos e exclusivos, patrimônio e receitas próprios, poder de instituir e arrecadar tributos, decidir seus gastos, programas e prioridades. No que tange à sua competência legislativa, têm autonomia para elaborar suas Constituições estaduais e leis próprias, desde que observados todos os limites impostos pela Constituição Federal.

Os Municípios, por sua vez, como reflexo da lei da autonomia, possuem, de modo mais evidente, a competência legislativa, podendo elaborar suas Constituições, chamadas de Leis Orgânicas, e leis próprias, desde que observado aquilo que lhes é atribuído pela Constituição Federal e pelas normas estaduais. Além disso, podem organizar sua administração, serviços, instituir e arrecadar tributos, decidir suas despesas, além de possuírem patrimônio próprio. A lei da participação, a seu turno, é menos visível na situação dos Municípios, sendo poucas as oportunidades de participação na vontade política regional e federal.

3.1 A Crise do Federalismo 

Muitos estudiosos entendem que o federalismo sofre uma grave crise, resultado da crescente centralização do poder que tende a reduzir ou a anular a autonomia das coletividades políticas componentes da federação, tornando os Estados Federais cada vez mais próximos do conceito de Estado Unitário descentralizado.

Para melhor visualização do tema, importa dizer que, de acordo com Magalhães (2002), Estado Unitário descentralizado é aquele dotado de um poder central forte e com a quase totalidade de competências, que, para permitir maior agilidade e eficiência na administração territorial, fraciona o seu espaço em regiões, províncias ou municípios, dotando-lhes de personalidade jurídica própria e de atribuições meramente administrativas.

Bonavides (2006), no entanto, defende que não é tanto o federalismo enquanto fenômeno político associativo que está em crise, senão uma forma doutrinária do federalismo, que se prende desde as origens e gerou uma moldura jurídica aparentemente intocável. Corrobora o autor (p. 202):

A mudança dos tempos e as necessidades políticas e sociais obrigaram o sistema federativo a dar máximas provas de seu poder adaptativo, resultando em um federalismo novo, elástico, quase irreconhecível àqueles que ainda sustentam com entono as máximas do federalismo clássico.

 Para o mencionado autor, o federalismo passou por três épocas. Na primeira, correspondente à adoção do princípio, das duas leis que regem a Federação (autonomia e participação), a lei da autonomia era mais dominadora, com os Estados participantes entrincheirados em uma posição de força. A segunda, por sua vez, foi marcada pelo equilíbrio entre a União e os Estados-membros, entre autonomia e participação e entre forças centrífugas e centrípetas.

A terceira, contemporânea, evidencia o declínio da autonomia e aumento progressivo da participação. A expansão industrial do século XX, o considerável alargamento das vias de comércio entre os Estados, o imenso progresso tecnológico de caráter unificador, a propagação das ideologias que apagam e crestam as variações do particularismo político e o consequente incremento da legislação social se apresentam como principais fatores da transformação do federalismo. Tal transformação fez do intervencionismo estatal necessidade indeclinável à subsistência mesma do Estado federal, colocou os Estados-membros, em face da deficiência de seus recursos, debaixo da servidão financeira do poder federal.

Todos estes fatores contribuem para que os Estados contemporâneos, através de suas Constituições, tendam a concentrar o poder em um só órgão ou esfera, atribuindo-lhe maiores competências. Este fenômeno faz com que o poder central goze de maiores atribuições e privilégios, arrecadando mais recursos que os demais entes federativos, impondo a forma como estes devem realizar suas despesas, controlando o repasse de verbas e conduzindo a execução das políticas públicas, além de dispor de um número bastante superior de matérias submetidas à sua decisão mediante a elaboração de leis.

Dessa forma, tem sido minada a autonomia dos Estados-membros e, no caso do Brasil, dos Municípios, enquanto entes federativos, tornando-se cada vez mais dependentes e subjugados pela União, especialmente pela escassez de recursos financeiros próprios.

3.2 A Petrealidade do Federalismo Centrífugo

A fim de melhor compreender a característica centrífuga do federalismo brasileiro, torna-se necessária uma breve análise sobre o surgimento deste fenômeno no Brasil, precedido de sua origem norte-americana.

O federalismo surgiu nos Estados Unidos da América e influenciou vários modelos europeus e latino-americanos. Após a declaração da independência em 1776, todas as colônias norte-americanas se proclamaram soberanas, formando uma Confederação, na qual apenas havia um órgão de poder central, o Congresso Continental, uma espécie de senado, que não recebia nenhum poder dos Estados.

Temendo ataques externos e a retomada do poder pela Inglaterra, e visando fugir de uma eventual anarquia para garantir prosperidade político-econômica e o respeito aos direitos fundamentais, foi formada a Convenção da Filadélfia, que promulgou a Constituição em 1787, adotando o federalismo.

No Brasil, a primeira forma de Estado foi a unitária, outorgada juntamente com a Constituição Imperial de 1824, com todo o poder centralizado na pessoa do Imperador, personificando o Poder Moderador. Com o Ato Adicional de 1834, as forças descentralizadoras obtiveram avanço, a exemplo da criação de Assembleias Legislativas Provinciais, que retrocedeu com a Lei de Interpretação de 1841.

A Constituição de 1891 proclamou a República e, junto com ela, a Federação, transformando as províncias em Estados-membros, unidos indissoluvelmente, com repartição de bens e competências. A Constituição outorgada de 1937 desferiu um duro golpe contra o federalismo. Apesar de manter em vigor as Constituições e leis estaduais, dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras Municipais, ampliando as hipóteses de intervenção.

A Constituição de 1946, promulgada, devolveu a autonomia aos Estados-Membros, novamente retirada pela outorga da Constituição de 1964, vigorando um federalismo meramente nominal.

Por último, a Constituição de 1988 resgatou o pacto federativo, estruturando um sistema de repartição de bens e competências, visando ao equilíbrio entre os entes, apesar de entregar à União maior parte das atribuições, bens e recursos.

Feitas essas considerações, é possível visualizar neste breve apanhado histórico a existência de dois tipos de federalismo: o centrípeto e o centrífugo. O primeiro está presente no federalismo clássico norte-americano, que surgiu a partir da junção de Estados soberanos para formar o Estado Federal e a União, abdicando de suas soberanias.

Como a própria denominação revela, o federalismo centrípeto converge-se para o centro, ou seja, parte-se de um cenário em que o poder é totalmente descentralizado para desaguar na centralização, conforme é possível verificar no modelo norte-americano, no qual Estados, que antes formavam uma Confederação, após a Constituição de 1787, construíram uma Federação.

Sendo assim, ao longo de mais de duzentos anos, a União norte-americana vai incorporando, paulatinamente, cada vez mais competências dos Estados-Membros, tendo em vista ser a força centrípeta deste modelo de federalismo um fluxo contínuo, sendo natural que cada vez mais o poder seja centralizado. No entanto, ao contrário do que possa parecer, o federalismo centrípeto “é o mais descentralizado, pois originou-se historicamente de Estados soberanos que se uniram e abdicaram de sua soberania, mantendo, entretanto, um grande número de competências administrativas e legislativas [...]” (MAGALHÃES, 2000, p. 16).

Isto é comprovado pela ampla autonomia que possuem os Estados Federados norte-americanos, cada um com competências legislativas e organizacionais quase que absolutas. Um exemplo é encontrado no direito penal, onde cada Estado é livre para dispor como queira, obedecendo unicamente à Constituição, algo impensável no ordenamento jurídico brasileiro.

O segundo tipo de federalismo aludido é o centrífugo. Este modelo surge a partir da fragmentação de um Estado Unitário, que detém todo o poder, passando este para o domínio de outras coletividades, dividindo-o. Aqui, ocorre uma fuga do centro, isto é, a saída de um panorama altamente centralizador, dispersando o poder entre entes regionais. E este é o modelo brasileiro de federalismo, partindo do Estado Unitário Imperial para o Estado Federal, com poderes divididos, exatamente o inverso do que ocorreu com os Estados Unidos da América.

Destarte, traçando um paralelo, a tendência do federalismo brasileiro é a incorporação gradual de competências pelos Estados-membros e Municípios, retirando poder da União, ou aumentando a autonomia dos demais entes. O fluxo, aqui, corre ou deveria correr permanentemente, como é natural e desejável, no sentido inverso, ou seja, descentralizando cada vez mais o poder. Também ao contrário do que pode parecer, o federalismo centrífugo é o mais centralizado, pois nasce da quebra de uma total concentração, e isto é demonstrado pelo domínio da União, que detém a maior fração das competências, funções, decisões, bens e recursos.

Observa-se que a tendência do Estado brasileiro, desde o seu nascedouro, sempre foi a descentralização do poder. Embora tenha sido sufocado em vários momentos históricos por minorias dominadoras, armadas e autoritárias, o federalismo centrífugo foi o alvo da sociedade democrática, o que pode ser constatado pelas conquistas trazidas pelo Ato Adicional de 1834, anteriormente relatadas.

Ademais, todas as Constituições promulgadas buscaram a descentralização, a fuga do centro, implementando importantes avanços, sempre refreados pelas Constituições outorgadas, visando atender ao interesse de poucos em detrimento da maioria. Em todos os períodos democráticos procurou-se abandonar a tradição centralizadora e autoritária para construir uma federação moderna e um Estado Democrático de Direito. O fluxo do federalismo brasileiro sempre tendeu para a dispersão, ainda que muitos tenham tentado contê-lo a todo custo.

Segundo Magalhães (2000), a Constituição de 1988 restaurou a federação e a democracia perdidas no período ditatorial, procurando avançar em um novo federalismo centrífugo. Entretanto, apesar das inovações, o número de competências da União em detrimento dos Estados-membros e Município é muito grande, fazendo com que se tenha um dos Estados federais mais centralizados do mundo.

Não obstante, a ampla concentração de poderes conferida pela Constituição à União não significa permitir que projetos de emendas constitucionais ou normas infraconstitucionais tendam a fortalecer ainda mais essa centralização. A Constituição protegeu com a intangibilidade a forma federativa de Estado, estabelecendo uma distribuição ideal de competências, bens e recursos, que não pode ser tocada senão para descentralizar aquilo que já está posto.

Nesse sentido, extraídas a origem, a história e a natureza do federalismo brasileiro, em sua característica centrífuga, as normas devem buscar sempre o fracionamento do poder entre os entes federativos, fugindo do centro, caminhando com o fluxo dispersante natural e desejável, ou a ampliação da autonomia dos Estados e Municípios.

Este é o entendimento de Magalhães (2000, p. 19-20):

A compreensão do nosso federalismo como centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta, assim como para um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos, emendas à Constituição absolutamente inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à Constituição, e logo restrição a qualquer ação contrárias a forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar que se uma emenda centralizadora, logo tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida nesse sentido.

Desse modo, a leitura adequada das limitações materiais previstas no artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, no tocante à proibição de reforma tendente a abolir a forma federativa, deve permitir a conclusão de que a característica centrífuga do federalismo brasileiro deve ser preservada, ou seja, a petrealidade prevista na primeira alínea do dispositivo mencionado deve abranger, também, o federalismo centrífugo.

O artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição federal não veda a edição de emendas e normas infraconstitucionais sobre o federalismo. O que é proibido é a tentativa de abolir a forma federal. Assim, permite-se a edição de emendas e normas inferiores que sigam o fluxo da descentralização, aperfeiçoando o federalismo brasileiro. Exemplificando, são constitucionais emendas que retirem patrimônio, competências e atribuições da União para os Estados-membros e Municípios, que transfira daquela para estes a sua enorme capacidade tributária, ou que confira aos entes regionais e locais maior discricionariedade na decisão de suas despesas, na elaboração de seus programas governamentais e administrativos e na execução de seus serviços, ou que representem acréscimo à autonomia de Estados e Municípios.

Qualquer emenda ou norma inferior em sentido contrário, concentrando mais poder, funções, patrimônio e decisões nas mãos da União ou que diminua a autonomia das demais coletividades devem ser taxadas como inconstitucionais, pois tendem a extinguir a forma federativa centrífuga brasileira. Isto porque, “centralizar mais o nosso modelo significa transformá-lo de fato em um Estado unitário descentralizado” (MAGALHÃES, 2000, p. 20), desobedecendo a conceituação da República brasileira como federativa pelo artigo 1º da Constituição Federal.

Finaliza Magalhães (2000, p. 21):

Podemos concluir que toda e qualquer atuação do Legislativo e do Executivo da União que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimento direcionados aos Estados-membros e/ou municípios é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os Estados e Municípios, pois inconstitucional.

Apesar destas conclusões, algumas emendas constitucionais promulgadas e há muito vigentes podem ser citadas como exemplos de afronta à centrifugalidade do federalismo brasileiro.

A primeira delas é a Emenda Constitucional nº 15/1996, que alterou o parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição Federal. A criação de Municípios, que antes deveria obedecer às condições de lei complementar estadual, passou a ser submetida aos requisitos de Lei Complementar Federal, evidenciando a concentração de poder nas mãos da União, retirando parte discricionariedade dos demais entes federativos.

 Exemplo de diminuição da autonomia dos Estados-membros é encontrado na Emenda Constitucional nº 1/1992, que limita a remuneração dos Deputados Estaduais, tomando por base a remuneração dos Deputados Federais, o que não era previsto na redação original. Apesar do seu caráter moralizador, é inegável a redução da discricionariedade dos Estados-membros em organizar suas despesas.

Também no campo da tributação e orçamento a centrifugalidade pode ser afetada, pois as decisões sobre como e quanto arrecadar e a forma de realização das despesas refletem o pacto federativo, a partir do modo como estes aspectos estão organizados na Constituição. Na redação original da Carta de 1988, o parágrafo 1º do artigo 149 estabelecia que Estados e Municípios pudessem instituir contribuição de seus servidores, conferindo-lhes uma faculdade. A Emenda Constitucional nº 41/2003 retirou a faculdade, passando a obrigar a cobrança, refletindo, assim, inegável redução de autonomia.

Prosseguindo, a Emenda Constitucional nº 3/1993 criou hipótese de condicionamento de repasse de verbas da União aos demais entes. Pela redação original, era vedada qualquer forma de condicionamento. Apesar disso, a EC 3/1993 ainda foi alterada pela Emenda Constitucional nº 29/2000, que ampliou os casos de permissão de condicionamento, ampliando o poder da União.

Esta mesma EC 29/2000, como último exemplo, estabeleceu percentuais mínimos de receita a serem aplicados obrigatoriamente nas políticas de saúde pública por Estados e Municípios, exceptuando ainda mais o princípio constitucional da vedação de vinculação de receitas tributárias. Este princípio já era relativizado pela própria redação original da Constituição, ao estabelecer um percentual mínimo de receita a ser aplicado obrigatoriamente na educação. Porém, esta previsão encontra-se dentro da forma ideal de federalismo proposta pelos constituintes, não cabendo aos legisladores constituídos retirar ainda mais a autonomia na decisão da realização das despesas por Estados e Municípios.

Percebe-se que tais emendas seguiram o fluxo inverso do natural e desejado ao ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Ao invés de favorecerem a descentralização, foram criadas com caráter centrípeto, ao reduzir a autonomia dos Estados e/ou concentrar poder nas mãos da União.

Assim como foi dito quando da análise da petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os Poderes, não é objetivo do presente estudo taxar as emendas mencionadas como inconstitucionais, tendo em vista que foram submetidas à análise de constitucionalidade pelo próprio Congresso Nacional e não foram rechaçadas pelo Judiciário. Crê-se que esta quebra da organização ideal e da tendência natural à centrifugalidade do federalismo proposto pela Constituição tenha sido suportada por ser de pequena monta e/ou por possuir finalidades aceitas visando, por exemplo, à proteção de servidores públicos, à moralização e ao controle dos gastos públicos e maior organização do Estado.

Desse modo, pretende-se apenas permitir um novo olhar sobre a petrealidade da característica centrífuga do federalismo brasileiro, alertando para que futuras alterações venham a ser substancialmente gravosas ao formato federativo, entregando cada vez mais poder à União e reduzindo a autonomia já tão comprometida de Estados e Municípios.

Ao lado destas emendas centrípetas, há exemplos de louváveis propostas que favoreceram a centrifugalidade, seja por proporcionar mais fontes de receitas a Estados e Municípios, seja por lhes conferir maior capacidade legislativa.

A Emenda Constitucional nº 42/2003, ao prever a possibilidade de usufruto total pelos Municípios da receita gerada pelo Imposto Territorial Rural, e a Emenda Constitucional nº 55/2007, que criou mais uma forma de repasse obrigatório de verbas da União aos Municípios (entrega no mês de dezembro de 1% do produto de arrecadação de determinados impostos ao Fundo de Participação dos Municípios), proporcionou mais receita aos entes referidos, aumentando a sua autonomia e diminuindo a dependência financeira da União.

Exemplo de transferência de competência legislativa da União aos demais entes é dado pela Emenda Constitucional nº 41/2003, ao prever que o regime de previdência complementar será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, sendo que antes deveria ser instituído por lei complementar federal, o que reduziu a interferência da União em assuntos locais e regionais.

Um caso de limitação à capacidade legislativa da União, permitindo maior liberdade dos demais entes federativos em sua administração, é a vedação de medida provisória sobre a exploração pelos Estados dos serviços de gás canalizado (EC 5/1995).

Por último, a Emenda Constitucional nº 46/2005, ao excluir do rol de bens da União as ilhas que contenham a sede de Municípios, diminuiu a concentração federal de patrimônio, seguindo o fluxo da centrifugalidade.

Todos estes exemplos corroboram o que foi dito anteriormente. Assim, permite-se a edição de emendas e normas inferiores que sigam o fluxo da descentralização, aperfeiçoando o federalismo brasileiro, como as que retirem patrimônio, competências e atribuições da União para os Estados-membros e Municípios, que transfiram mais recursos e concedam mais liberdade na organização de despesas, programas e serviços. Como consequência, rechaça-se qualquer proposta que tenda a concentrar poderes na pessoa da União, de caráter centrípeto.


4. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE COMO JUSTIFICATIVA 

Vozes podem vir a ser ouvidas em vários timbres contra a petrealidade dos conceitos de harmonia e equilíbrio da separação dos poderes e do federalismo centrífugo. Pode-se arguir, por exemplo, que: a) a forma de distribuição de competências entre os Poderes e entre os entes da Federação não é ideal ou adequada, devendo sofrer mudanças para adequar-se aos novos tempos e a eventuais necessidades, o que permite alterar o equilíbrio e a organização do pacto federativo formulados pela Constituição; b) atualmente, o Poder Judiciário se agigantou, em detrimento dos demais, sendo imprescindível uma reestruturação do sistema de freios e contrapesos para contê-lo, ou que é indispensável maior controle do Legislativo sobre o Executivo; c) o federalismo está em crise, autorizando, assim, que emendas tendam a concentrar cada vez mais o poder, por conta das necessidades contemporâneas; entre outros.

Enfrentando a plausibilidade destes argumentos, recorre-se à teoria do Poder Constituinte como justificativa para as teses apresentadas, sendo conveniente e oportuno analisar a atuação desta força originária, insubmissa e indomável, o valor, a duração e as conquistas de suas decisões e a sua capacidade de organizar a sociedade e de vincular as gerações vindouras às suas deliberações, preservando-as ao menos naquilo que possuem de fundamental.

Poder Constituinte é o poder de criar a Constituição de um Estado, legitimado diretamente pela soberania popular. Somente o povo, detentor da soberania e do Poder Constituinte, entendido como uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas, pode deliberar acerca da conformação de sua ordem jurídica, política e social.

Este Poder Constituinte ganha vida quando a sociedade, desconsiderando o Estado, toma novas decisões sobre o modo que deseja ser organizada, rompendo com o passado e inaugurando um novo Estado. Neste sentido, Britto (2003, p. 31):

Quando pronunciamos a locução “Poder Constituinte”, sem dúvida que estamos a falar de um poder genuinamente político. Mais até, estamos a falar de um poder exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a pólis, naqueles raros instantes em que a pólis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver. Ela passa a transitar pelo mundo do ser (não do dever-ser jurídico) e por isso pode assumir-se como o amálgama do povo inteiro com o território sobre o qual esse povo inteiro vai constituir o seu particular Estado.

Sendo, portanto, a mais genuína vontade do povo, o Poder Constituinte caracteriza-se por ser inicial (pois inaugura um novo ordenamento através da Constituição), autônomo (não está sujeito a limites do direito anterior) e incondicionado (não se submete a qualquer forma prefixada ou procedimento para expressar sua vontade).

O Poder Constituinte difere do Poder Reformador. Este é responsável pela elaboração das emendas à Constituição, enquanto aquele inaugura um novo ordenamento, criando uma Carta inteiramente nova em substituição à anterior. Para Britto (2003, p. 47-48), “[...] o Poder Constituinte é o poder de dispor sobre o todo da Constituição, e não menos; o Poder Reformador (que é um poder estatal e, portanto, constituído) é o poder de dispor sobre partes da Constituição, e não mais”.

A partir disto, aparando arestas, cumpre ressaltar a impropriedade da expressão Poder Constituinte Derivado para designar o Poder Reformador. Se este é constituído, não pode constituir; se é derivado, não é constituinte nem originário; se conhece limites, apenas podendo dispor de partes da Constituição, não é insubmisso como o Poder Constituinte.

No que toca aos seus limites, assevera-se que o Poder Reformador é condicionado, pois deve obedecer às formalidades previstas para a sua atuação, e restrito às matérias que não estão protegidas pela intangibilidade das cláusulas pétreas. Assim é que “[...] as emendas constitucionais podem tudo que a lei pode e vão além: podem tudo que a lei não pode, salvante recair sobre matérias clausuladas de petrealidade pela Constituição” (BRITTO, 2003, p. 118). Por tais motivos é que as normas que pretendem adentrar ou modificar o texto constitucional originário devem sofrer controle de constitucionalidade.

A principal residência do Poder Constituinte, enquanto vivo, é a Assembleia Constituinte, criada na quase totalidade das sociedades democráticas modernas e contemporâneas para discutir e criar o novo ordenamento a partir de um documento formal. É aqui que os mais diferentes setores da sociedade se encontram para debater, amplamente, e decidir o modelo de Estado a que desejam submeter-se, sendo expressão máxima do pluralismo.

Sobre este órgão, Britto (2003, p. 43) ensina:

A Assembléia Constituinte é órgão da sociedade, e não do Estado. É nela que a sociedade se “presenta”, para usarmos de vocábulo cunhado por PONTES DE MIRANDA, a propósito de outro assunto. E se presenta, por dispensar a representação do Estado. Por prescindir da intercalação do Estado entre ela (sociedade) e os respectivos componentes individuais e grupais.

Neste cenário, as discussões são conduzidas democraticamente, estudando-se o passado e o presente para averiguar os anseios sociais mais significativos para um povo enquanto nação. Busca-se estabelecer as bases do ordenamento jurídico, da sociedade, os objetivos da atuação estatal e a proteção dos indivíduos, assegurando para o futuro aquilo que a sociedade possui de mais fundamental, unânime e característico. Neste sentido, Britto (2003, p. 60):

[...] é próprio desse tipo de organismo ou ente coletivo a aptidão de ultrapassar as barreiras do tempo, de sorte a poder conciliar na sua (p. 61) obra legislativa estrutural (a Constituição) interesses que traduzam reverência à cultura e à memória nacional, o atendimento das prementes necessidades da população viva e ainda por cima a pavimentação da estrada pela qual transitarão, em presumível segurança, os pósteros. Este o sentido psicossocial, histórico e também racionalmente jurídico da eleição de uma Assembléia que só é nacional por ser constituinte e só é constituinte por ser nacional.

Isto porque quem se reúne em Assembleia Constituinte é a nação, daí a sua denominação Nacional. E por nação se entende um povo que comunga das mesmas características essenciais (costumes, tradições, anseios, objetivos, entre outros). Por esta razão, a nação possui “legitimidade política e senso histórico para dar forma jurídica ao próprio futuro” (BRITTO, 2003, p. 71), fazendo a ponte entre passado, presente e futuro, de maneira a “recolher o que há de axiologicamente comum a todas elas para tudo sintetizar num só documento normativo [...]” (p. 74).

Segundo o autor, a Constituição possui um valor-síntese, que é o próprio ser da Constituição, sua ratio essendi, consubstanciado na Democracia. Este princípio constitucional por excelência transluz em toda cláusula pétrea explícita no texto constitucional. Assim, todas as Constituições ocidentais promulgadas reverenciam a democracia, com o requinte de muitas vezes “clausular como pétreos aqueles valores mais próximos do centro – falemos assim – da circunferência democrática” (BRITTO, p. 186).

Finalizando, o autor aduz que todos os espécimes normativos devem permanecer para sempre submissos à vontade constituinte naquilo que diz respeito à razão de ser da Constituição.

Destarte, eventuais opiniões em contrário às teses aqui apresentadas não invalidam o batismo recebido pela harmonia e equilíbrio entre os Poderes e pelo federalismo centrífugo na pia da mais genuína vontade e da mais cristalina expressão da sociedade democrática brasileira reunida em Assembleia Nacional Constituinte.

A petrealidade da harmonia, do equilíbrio e da centrifugalidade do federalismo faz parte daquilo que a sociedade possui de mais fundamental, unânime e característico, integrando a estrada pavimentada pelas decisões tomadas pela Assembleia Constituinte, pela nação, com poder para vincular as gerações futuras e assegurar a sua manutenção, dizendo a forma como a sociedade pretende viver, organizar-se e progredir.

Afirmar que a distribuição dos freios e contrapesos entre Poderes e entes federativos não é ideal e precisa adequar-se à realidade, de modo a permitir emendas que concentrem poder nas mãos da União, contrariamente ao fluxo natural e desejado do federalismo centrífugo, ou que alterem o equilíbrio e a harmonia criados pela Constituição, é desprezar a força da Assembleia Nacional Constituinte, as decisões políticas fundamentais por ela tomadas, reflexo daquilo que é axiologicamente comum a todas as gerações da nação brasileira, e a sua capacidade de organizar e vincular o futuro.

Pretender substituir a vontade constituinte, naquilo que possui de essencial, e alterar o cerne da democracia e da Constituição, julgando-se com maior aptidão para decidir sobre o que é fundamental do que toda a sociedade presentada em Assembleia Constituinte e não meramente representada em Assembleia Constituída, é atitude, no mínimo, temerária, além de arriscadamente ambiciosa.

Taxar o Poder Judiciário de ativista para justificar a necessidade de controlá-lo através da PEC 33/2011 é alterar gravemente o equilíbrio ideal proposto pela Constituição com a simples razão residente na insatisfação de interesses pessoais e partidários. O crescimento da atuação jurisdicional é reflexo da detração e do descrédito da atuação do Legislativo, que descumpre o seu papel de planejar e garantir políticas públicas ou pretende utilizar a máquina legislativa para atender a finalidades espúrias. Na verdade, esta nova face do Judiciário nada mais representa que o cumprimento de suas atribuições constitucionais, interpretando normas, declarando inconstitucionalidades, editando súmulas, garantindo o respeito às suas decisões, o que não significa a alteração do equilíbrio e da harmonia entre os Poderes.

Para aqueles que acreditam que o federalismo está em crise e que, por consequência, as necessidades contemporâneas internas de um Estado e as próprias relações internacionais indicam uma crescente centralização e autorizam modificações neste sentido, argumenta-se que este momento do federalismo não passou despercebido pela Constituição de 1988, que, por isso mesmo, tomou a decisão de concentrar a maioria das competências na União. Porém, estas decisões fazem parte da distribuição ideal formulada pela Carta, não significando “carta branca” ao Poder Reformador para centralizar ainda mais o Estado, restando-lhe apenas seguir ao fluxo centrífugo.

As cláusulas pétreas não podem ser obedecidas pela metade. Se a federação e a separação dos Poderes estão petrificados, todos os seus elementos conceituais, históricos e finalísticos devem ser respeitados, especialmente porque são a tradução máxima da democracia, princípio por excelência e ratio essendi da Constituição. Preservar apenas parte de um princípio ou conceito é esvaí-lo, é reduzir o seu alcance e descaracterizá-lo por completo.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A finalidade do presente estudo foi verificar, especificamente, de que modo a intangibilidade da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, enquanto cláusulas pétreas, pode se manifestar, ou seja, a extensão de sua imodificabilidade.

Com esteio na Teoria do Poder Constituinte, pode-se concluir que as faces da harmonia e do equilíbrio, consubstanciadas no esquema de freios e contrapesos elaborado pela Constituição, e a característica centrífuga do federalismo fazem parte dos conceitos do princípio da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, respectivamente, merecendo total proteção pela intangibilidade.

Isto porque as cláusulas pétreas são as matérias mais próximas do núcleo central da Democracia, razão de ser da Constituição, evidenciando decisões tomadas pela mais genuína vontade da população reunida em Assembleia Nacional Constituinte, estabelecendo os mais relevantes valores da nação, que ligam passado e presente, revelando a sua identidade e tendo força para organizar e vincular o futuro. Destarte, não se pode permitir que uma Assembleia meramente constituída e representante do povo desconheça as disposições de uma Assembleia que presenta a população.

Conclui-se, então, que qualquer proposta de emenda, como a PEC 33/2011, que vise alterar gravemente o sistema de freios e contrapesos, modificando a harmonia e o equilíbrio idealizado pela Constituição ao estabelecer maior controle de um Poder sobre o outro, deve ser tida como materialmente inconstitucional. Do mesmo modo deve ocorrer com as propostas que pretendam concentrar mais poderes na pessoa da União, retirando autonomia dos Estados-membros e Municípios, apenas sendo permitidas aquelas que sigam o fluxo centrífugo descentralizador do federalismo brasileiro.

Reconhece-se, porém, que vigem emendas que, ainda que timidamente, alteraram o equilíbrio entre os Poderes e que andaram pelo caminho inverso da centrifugalidade. Crê-se que tais mudanças foram aceitas por serem de pequena monta e por ter intuito moralizador. Assim, não é objetivo deste trabalho declarar a sua inconstitucionalidade, mas permitir um novo olhar sobre o tema e alertar para futuras ambições.

Não obstante, permitir alterações graves e significativas na forma ideal estabelecida pela Constituição é ir de encontro à sua razão de ser. Obedecer a uma cláusula pétrea pela metade é desconhecer o seu sentido como um todo, esvaziando o teor e a natureza dos princípios, bem como as decisões fundamentais da nação. Reconhecer como intangível apenas parte de uma matéria petrificada é esgotar o seu conteúdo e a sua capacidade vinculativa, além de proporcionar o risco de ser, pouco a pouco, totalmente desconsiderada, minando a tão festejada e propagada força normativa da Constituição.


REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

__________. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MAGALHÃES, José Luís Quadros de. O território do Estado no Direito Comparado: novas reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3156>. Acesso em 10 de outubro de 2013.

___________. Pacto Federativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.


Autor

  • Thiago Meneses Rios

    Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Experiência anterior como Assessor de Juiz em Vara Criminal. Experiência como estagiário da Defensoria Pública Estadual do Piauí.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Thiago Meneses. A petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os poderes e do federalismo centrífugo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3917, 23 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27031. Acesso em: 20 abr. 2024.