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Tributação e cidadania

Tributação e cidadania

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Estuda-se a relação entre tributação e cidadania, buscando criar regras objetivas acerca dos limites do poder de reforma constitucional no âmbito tributário.

Introdução

O Estado, representante do povo, não raramente busca reformar o texto constitucional originário, introduzindo normas jurídicas que aumentam a carga tributária em total afronta ao consentimento dos cidadãos. Considerando que o Supremo Tribunal Federal vem julgando como legítimas medidas dessa natureza, o que evidencia uma perigosa flexibilização quanto à rigidez do sistema constitucional tributário, o presente artigo tem por objetivo refletir acerca da relação entre tributação e cidadania, buscando criar regras objetivas acerca dos limites do poder de reforma constitucional no âmbito tributário.


1. Tributação

O Estado é criação do Direito, objeto cultural construído pelo próprio ser humano para a satisfação de uma finalidade específica: regular condutas de ordem intersubjetiva, em prol de valores que a sociedade busca implementar. É a norma jurídica, inserida no sistema normativo que é o direito positivo, que prescreve os comportamentos proibidos, permitidos ou obrigatórios que devem ser adotados pelos agentes do Estado e cidadãos. Também é a norma jurídica que outorga competência para a produção e expulsão de outras normas, assim como estabelece sanções para o descumprimento das condutas normatizadas.

Para que o Estado atinja o fim para o qual foi estruturado, necessita de recursos que devem ser transferidos pelos cidadãos, o que ocorre por meio do tributo. No Estado de Direito, não podemos perder de vista que é o povo que prevê e dá consentimento ao tributo.

O poder de tributar é inerente ao poder de governar. No exercício de sua soberania, o Governo exige que os indivíduos forneçam os recursos necessários para fazer frente ao custeio dos gastos públicos, recursos estes provenientes principalmente da arrecadação de tributos[1].

A submissão do cidadão à tributação é uma exceção ao direito de propriedade, afinal o tributo enseja o repasse aos cofres públicos de fragmentos do patrimônio do contribuinte. Para HUGO DE BRITO MACHADO[2] “o dever de pagar tributo, na realidade, certamente integra o feixe de relações jurídicas que se pode denominar estatuto do cidadão. Embora nem sempre tenha sido assim, pagar tributo é atualmente um dever fundamental do cidadão. Há mesmo quem diga que o tributo é o preço da cidadania”.

Com a formação dos Estados modernos e surgimento das constituições escritas, aparecem as primeiras garantias expressas contra uma tributação arbitrária. O próprio conceito de Estado de Direito funda-se na noção de existência de limites de poder ao Estado, em oposição ao Estado Absoluto, no qual o poder do soberano era ilimitado.

De acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA[3], o Estado de Direito abrange três características: a) submissão (dos governantes e dos cidadãos) ao império da lei; b) separação de poderes; c) garantia dos direitos fundamentais.

Dentro do universo do Direito, o exegeta é capaz de selecionar normas jurídicas relacionadas à tributação, permitindo-lhe fazer um corte epistemológico em prol do conhecimento sobre a realidade tributária.

O direito tributário, pois, tem por foco o tributo, o que significa dizer que é composto pelo conjunto de preceitos que regem a tributação. A separação didática do direito tributário[4], aliás, é ponto inicial na obra de RUBENS GOMES DE SOUSA[5], para quem “a expressão “direito tributário” fica assim apropriadamente reservada para tudo aquilo que se refira à regulamentação jurídica da atuação das autoridades fiscais em contraste com os contribuintes no exercício da sua atividade de cobrança e fiscalização de tributos”.

A tributação, no Brasil, deve operar-se dentro dos limites do poder de tributar traçados no sistema constitucional tributário, o qual protege o cidadão contra eventuais abusos desse poder.


2. Sistema constitucional tributário

A matéria tributária recebeu tratamento especial na Constituição da República Federativa do Brasil. Uma singela leitura de nosso texto constitucional permite notar que, no que diz respeito à tributação, nossa Lei das Leis foi particularmente abundante.

Essa constatação levou GERALDO ATALIBA[6] a sustentar que “o conjunto de normas da Constituição que versa matéria tributária forma o sistema (parcial) constitucional tributário. (...) O sistema constitucional tributário brasileiro é o mais rígido de quantos se conhece, além de complexo e extenso”.

Caminhou PAULO DE BARROS CARVALHO[7] nessa mesma direção:

“o subsistema constitucional tributário realiza as funções do todo, dispondo sobre os poderes capitais do Estado, no campo da tributação, ao lado de medidas que asseguram as garantias imprescindíveis à liberdade das pessoas, diante daqueles poderes. Empreende, na trama normativa, uma construção harmoniosa e conciliadora, que visa a atingir o valor supremo da certeza, pela segurança das relações jurídicas que se estabelecem entre Administração e administrados. E, ao fazê-lo, enuncia normas que são verdadeiros princípios, tal o poder aglutinante de que são portadoras, permeando, penetrando e influenciando um número inominável de outras regras que lhe são subordinadas. (...). Esse tratamento amplo e minucioso, encartado numa Constituição rígida, acarreta como consequência inevitável um sistema tributário de acentuada rigidez, como demonstrou Geraldo Ataliba na sua obra Sistema Constitucional Tributário Brasileiro”.

É pressuposto do conhecimento do direito tributário a análise do sistema constitucional tributário, que, em suma, envolve as normas que impõem os limites ao poder de tributar, abrangendo: (i) os princípios constitucionais tributários; (ii) as hipóteses de imunidade; e (iii) a divisão da competência tributária.

De fato, o direito tributário brasileiro é marcado por diversos princípios veiculados no próprio texto constitucional, princípios estes que impedem uma tributação arbitrária e injusta. Como acentua LUCIANO AMARO[8]:

“a Constituição fixa vários balizamentos, que resguardam valores por ela reputados relevantes, com atenção especial para os direitos e garantias individuais. O conjunto dos princípios e normas que disciplinam esses balizamentos da competência tributária corresponde às chamadas limitações do poder de tributar.

A face mais visível das limitações do poder de tributar desdobra-se nos princípios constitucionais tributários e nas imunidades tributárias (...)

O que fazem, pois, essas limitações é demarcar, delimitar, fixar fronteiras ou limites ao exercício de poder de tributar”.

Os princípios exercem papel de diretrizes, guias, nortes para compreensão do Direito[9]. São normas que carregam com si valores consagrados no ordenamento jurídico e que devem nortear a interpretação jurídica.

No sistema constitucional tributário existem diversos princípios (princípios constitucionais tributários), implícitos e expressos[10], que exercem papel fundamental na sistemática de tributação, ditando as regras do jogo. O respeito incondicional aos princípios constitucionais revela-se como dever do Estado.

Os princípios constitucionais tributários, no Brasil, delimitam sobremaneira a atuação das autoridades públicas. E, mais ainda, não deixam margens para arbitrariedades, pois norteiam o caminho que o Poder Público deve seguir, fixando limites ao exercício de seus deveres.

Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal[11]:

“O exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional que, de modo explícito ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações à competência estatal para impor ou exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes. Os princípios constitucionais tributários, assim, sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal. Desde que existem para impor limitações ao poder de tributar do Estado, esses postulados têm por destinatário exclusivo o poder estatal, que se submete à imperatividade de suas restrições”.

Os princípios constitucionais tributários possuem enorme relevância no sistema jurídico. Violar um princípio significa uma ofensa ao sistema jurídico como um todo. Transgredir uma norma deste patamar, pois, constitui grave forma de inconstitucionalidade.

Assim como os princípios tributários, a imunidade é assunto que recebeu atenção especial na Constituição Federal. O Poder Constituinte Originário proibiu a tributação de algumas situações, criando hipóteses imunizantes.

Nos dizeres de ELIZABETH NAZAR CARRAZZA[12], a imunidade “é uma das limitações constitucionais ao poder de tributar e, como tal, nada retira do âmbito da competência tributária, que já nasce desprovida do campo constitucionalmente imune”.

A imunidade constitui um fenômeno de natureza constitucional, que estabelece uma “incompetência” das entidades tributantes no que diz respeito à tributação de certas pessoas, seja em razão de sua natureza jurídica, seja em função de determinados fatos, bens ou situações.

As normas de imunidade consagram valores privilegiados pela Assembleia Nacional Constituinte, em nome do povo brasileiro. Tratam-se de uma verdadeira garantia constitucional do contribuinte, qual seja, a de não ser alvo de tributo nas hipóteses por ela contempladas.

Pois bem. Uma vez respeitados os princípios e imunidades, o Estado pode exercer seu poder tributário de acordo com a competência tributária. Matéria exclusivamente constitucional, a competência tributária consiste na autorização conferida ao Poder Legislativo de cada pessoa política para, mediante lei e nos limites estabelecidos no sistema constitucional tributário, instituir o tributo.

Ao moldar o sistema constitucional tributário, a Carta Magna dividiu a competência tributária para os legisladores da União Federal, Estados, Municípios e Distrito Federal de maneira exaustiva e limitada. Exaustiva porque tratou de forma detalhada a materialidade dos tributos, fixando a competência e repartição da arrecadação de cada espécie tributária. E limitada porque impôs obstáculos intransponíveis à tributação, representados pelas cláusulas pétreas[13].

Em nosso sistema constitucional tributário, a competência tributária pode ser assim resumida:

1) as taxas e contribuições de melhoria são de competência do ente político apto a exercer poder de polícia, prestar serviço específico e divisível ou realizar obra pública que provoque valorização de bem do contribuinte;

2) os impostos previstos nos artigos 153 a 156 são repartidos pelo critério de materialidade. Assim: a) A União é competente para instituir imposto sobre importação de produtos estrangeiros (II), imposto sobre exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados (IE), imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR), imposto sobre produtos industrializados (IPI), imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF), imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), imposto sobre grandes fortunas, impostos residuais e extraordinários; b) os Estados e Distrito Federal receberam a competência de criar imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (ITCMD), imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (ICMS) e imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA); e c) os Municípios e Distrito Federal são competentes para instituir imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU); imposto sobre transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia (ITBI) e imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS);

3) União é competente para criar empréstimos compulsórios;

4) as contribuições previstas no artigo 149 caput (e 195 § 4º) podem ser instituídas pela União, salvo as previstas no § 1º deste mesmo artigo, que são de competência dos Estados, Municípios e Distrito Federal;

5) finalmente, por intermédio da Emenda Constitucional nº 39/02, foi autorizada a criação da contribuição para o custeio de iluminação pública por Municípios e Distrito Federal.


3. Supremacia constitucional

No sistema jurídico a Constituição Federal veicula as normas jurídicas de mais alta hierarquia. Acima da Constituição Federal não há mais juridicidade positiva. Enquanto “Lei máxima, a Constituição é o critério último de existência e validade das demais normas do sistema do Direito, pelo quê condiciona o agir dos próprios Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Em suma, a Constituição é o limite do Poder Público e o fundamento de todo o sistema jurídico”[14].

A superioridade hierárquica da Constituição Federal, na trilha do que leciona GOMES CANOTILHO[15], manifesta-se em três perspectivas: (i) ao constituir uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (ii) tratando-se de “normas de norma” (norma normarum), ou seja, figurando-se como fonte de produção jurídica de outras normas; e (iii) ao implicar a conformidade de todos os outros atos normativos com seus mandamentos (princípio da conformidade).

Dizer que a Constituição Federal é a norma superior do ordenamento jurídico, localizada no topo da pirâmide normativa, é reconhecer sua supremacia. O princípio da supremacia da Constituição requer que todas as situações jurídicas se conformem com os preceitos constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade.

A Constituição, mais que uma lei fundamental, representa o produto da vontade soberana e irrompe do poder constituinte, poder este que, na definição de ALEXANDRE DE MORAES, “é a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente organizado. (...) A ideia da existência de um Poder Constituinte é o suporte lógico de uma Constituição superior ao restante do ordenamento jurídico e que, em regra, não poderá ser modificada pelos poderes constituídos” [16].

O Poder Constituinte, entidade representativa do povo, inaugura uma nova ordem jurídica, constituindo juridicamente um Estado soberano. O Estado brasileiro, pois, é fruto da Constituição Federal de 1988, que o rotulou como República Federativa do Brasil. Para tanto, organizou os órgãos estatais, separou os poderes, fixou direitos e garantias fundamentais das pessoas, enumerou princípios, dispôs sobre a criação de outras normas, dividiu competências etc.

A Constituição Federal do Brasil é considerada como rígida. Como leciona GERALDO ATALIBA: “Em Direito quando se diz que uma norma é rígida, quando se diz que uma Constituição é rígida, está se dizendo que não pode ser mudada por intermédio de uma lei ordinária, não pode ser mudada por lei alguma, não pode ser mudada pelo Parlamento, pelo Executivo, pelo Judiciário, enfim por ninguém. O único meio de se mudar a Constituição é fazer emenda constitucional que está regulada no Capítulo do Processo Legislativo”[17].

É certo que a Constituição Federal do Brasil é rígida, pois ela somente pode ser revista ou alterada mediante observância dos procedimentos especiais que ela própria estabeleceu. O atributo de rigidez do texto constitucional pode ser percebido em face do seu artigo 60, a seguir citado:

“Artigo 60 - A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais”.

Como se percebe, o Congresso Nacional tem a aptidão de emendar (alterar) o texto constitucional, isto é, detém o poder de reforma constitucional, desde que cumpridos os aspectos circunstanciais e formais, bem como os limites materiais, todos previstos na própria Constituição.

A edição de emenda constitucional ocorre no âmbito do denominado Poder Constituinte Derivado, expressão que designa a competência de modificar o texto constitucional elaborado pelo denominado Poder Constituinte Originário.

Os limites materiais de reforma constitucional dizem respeito, segundo LUCIANO AMARO[18], a “matérias que o constituinte declara serem imutáveis. É o cerne fixo da Constituição, a cláusula pétrea. São matérias sobre as quais sequer se admite discussão no Congresso Nacional. Essas matérias não podem ser modificadas (...)”.

O Estado é o destinatário precípuo das obrigações decorrentes das cláusulas pétreas. “Elas perfazem o núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário, que ele intenta preservar de quaisquer mudanças institucionalizadas. E o poder constituinte pode estabelecer essas restrições justamente por ser superior juridicamente ao poder de reforma.”[19]

As cláusulas pétreas fixam verdadeiras garantias ao povo, privando o legislador de alterá-las. São matérias tuteladas com proteção máxima de intangibilidade, não podendo, de jeito nenhum, serem varridas do sistema jurídico.

As vedações materiais (as cláusulas pétreas por excelência) foram veiculadas na Lei das Leis de forma explícita ou implícita. Explícitas são as que foram indicadas expressamente no artigo 60, § 4º, dispositivo este que proíbe qualquer reforma normativa que pretenda abolir (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes; e (iv) os direitos e garantias individuais. As implícitas são aquelas decorrentes da própria interpretação e lógica do sistema jurídico.


4. República e cidadania

Quando a Constituição Federal de 1988 elegeu o Brasil como uma República, ela optou por uma forma de governo, de exercício de poder. República, utilizando-se da definição de ROQUE ANTONIO CARRAZZA[20], “é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.

Paralelamente à Monarquia, à Ditadura etc., a República consiste numa forma de governar. Nela, República, os poderes são conferidos aos representantes do povo, caracterizando uma democracia.

E democracia, utilizando-se da definição de PONTES DE MIRANDA[21], é “forma de governo, que se refere à execução, legislação e administração da justiça, na qual o povo, detentor primário e originário do poder, se auto-ordena a ordem jurídica diretamente, ou por meio de representantes que escolhe, periodicamente e de modo revogável”.

Falar em República é falar em democracia, o que nos remete à noção de soberania popular e, portanto, de poder que emana do povo. O Estado, pois, é Estado pela soberania que lhe é peculiar. Somente o Estado autorregula-se e atutodetermina-se.

Nos regimes democráticos, a soberania é caracterizada pela atuação da Assembleia Constituinte (Poder Constituinte Originário), por ocasião da promulgação da Constituição Federal. Exercitada tal soberania, ela acaba “devolvida” aos cidadãos, na qualidade de corpo eleitoral, isto é, como único participante, mediante voto, do exercício da democracia.

Por meio da votação os cidadãos elegem seus representantes, que devem exercer seus mandados políticos para gerirem a res publica, em caráter representativo e com responsabilidade. O voto, contudo, é um dos pilares da República brasileira, marco da cidadania, não podendo ser abolido do sistema jurídico.

A palavra cidadania vem do latim civitas, cidade, referindo-se ao conjunto de direitos e deveres decorrentes de uma vida em coletividade. Segundo DALMO DALLARI[22], “o conceito de cidadania tem origem na Grécia clássica, sendo usado então para designar os direitos relativos ao cidadão, ou seja, o indivíduo que vivia na cidade e ali participava ativamente dos negócios e das decisões políticas”.

A cidadania, no sistema jurídico, constitui fundamento da República Federativa do Brasil[23]. E é a cidadania que, “criando o poder, ao mesmo tempo estabelece quais são seus limites, ou o perímetro dentro do qual tal poder há de circunscrever-se”.[24]

No Estado brasileiro, uma República, os Governantes devem representar os cidadãos. Não são donos da res publica, que pertence a toda sociedade. Os Governantes devem agir em nome de todo o povo, legítimo titular da coisa pública.

A Constituição Federal de 1988 adotou a forma republicana consistente na tripartição dos poderes, dividindo o exercício das funções do poder político por meios dos três poderes[25]. Em suma, a função típica (i) do Poder Legislativo consiste em editar normas (tarefa de legislar); (ii) do Poder Executivo consiste em executar as normas, nos limites das leis e Constituição (tarefa executiva); e (iii) do Poder Judiciário consiste em solucionar os litígios que lhe são submetidos (tarefa jurisdicional).

A forma republicana e democrática, manifestadas pelo voto e separação dos poderes, está no rol das “cláusulas pétreas”, o que lhe qualifica como um instituto não passível de reforma constitucional. A cidadania, criando o poder, quis assim.

Intocável também, no sistema jurídico, é a forma federativa do Estado. Enquanto República é forma de estrutura de poder (governo), Federação tange à estrutura estatal.

Não há requisitos universais para qualificar uma Federação. Nas palavras de OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO[26], “qualquer que seja, porém, o processo histórico pelo qual se originou um Estado Federal, os seus poderes emanam de uma constituição que, promulgada em nome do Estado federal, constitui a lei fundamental da nova organização política.”

As características concretas de uma Federação, contudo, variam conforme as especificidades apresentadas por cada constituição, o que implica dizer que é somente analisando a Constituição Federal de 1988 que poderemos traçar as características da Federação do Brasil.

No artigo 18 da Carta Magna, foi prescrito que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

São pessoas políticas no Brasil, portanto, a União Federal, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Para AMÉRICO LACOMBE[27]: “a) A Federação é criada pela Constituição; b) é garantida a existência e sobrevivência dos Estados-membros; c) estes se auto-organizam, autogovernam e auto-administram; d) na Federação coexistem três ordens jurídicas, a nacional, a central e a local. No Brasil, quatro: a) a ordem jurídica total (do Estado nacional); b) a ordem jurídica central (federal); c) a ordem jurídica estadual; d) a ordem jurídica municipal”.

O modelo adotado não é isento de críticas, tais como as que foram empregadas, respectivamente, por MARCOS AURÉLIO PEREIRA VALADÃO[28] e por CARLOS EDUARDO DIEDES REVERBEL[29]:

“é de questionar a existência de centenas de Municípios brasileiros (os Municípios constituem-se em entidades federadas, a teor dos arts. 1 e 18 da Constituição de 1988) que nada tem de receita própria ou a mesma afigura totalmente inexpressiva em comparação com as transferências federais e estaduais; ou seja, estes Municípios, do ponto de vista teórico, não deveria existir”.

“o federalismo da Constituição de 1988 é o verdadeiro nome sem a realidade. (...) estamos mais próximos a um Estado Unitário Centralizado, ou quem sabe a um Estado Unitário com pouca Descentralização ao poder local, do que a forma federativa de Estado. (...) o federalismo brasileiro reserva aos Estados o que não lhe for vedado. O problema está exatamente neste ponto. O rol de competências da União é tão extenso (arts. 21, 22, 153), e a ampliação das competências dos Municípios é hoje de considerável extensão (arts. 30 e 156) que praticamente nada resta, sobra, remanesce, ou fica de resíduo ao Estado”.

Não obstante, o fato é que o nosso texto constitucional colocou todas as pessoas políticas em pé de igualdade, atribuindo a cada uma (União Federal, Estados, Municípios e Distrito Federal) autonomia própria.

A autonomia das entidades federativas, como faz crer JOSÉ AFONSO DA SILVA[30], pressupõe repartição de competências para o exercício e desenvolvimento de sua atividade normativa. Esta distribuição constitucional de poderes é o ponto nuclear da noção de Estado Federal.

Sobre a autonomia dos entes estatais, DALMO DE ABREU DALLARI[31] esclarece que:

“Como tem sido ressaltado pelos teóricos do Estado Federal, cabe à União o exercício da soberania, mas os entes federativos gozam de autonomia, o que significa a possibilidade de auto-governo, ou governo segundo suas próprias regras. Como se trata de uma forma de organização do Estado em que se procede à descentralização política, é evidente que deverá ser assegurada a autonomia política dos entes que compõem o conjunto federativo. Entretanto, para que haja efetiva autonomia não basta conceder e assegurar a possibilidade de compor o seu próprio governo e reservar a ele certo número de atribuições. Além da autonomia política, necessária para que se caracterize o Estado Federal, e para que essa autonomia seja efetiva e não apenas uma declaração formal, é também indispensável que as unidades federadas gozem de autonomia legislativa, financeira e administrativa, pois sem estas a autonomia política deixa de existir na prática”.

É inconteste que a autonomia dos entes federados pressupõe capacidade financeira, afinal as autoridades estatais necessitam de recursos pecuniários que possibilitem custear as despesas públicas incorridas no exercício de seus deveres. Sem autonomia financeira[32], a autonomia federativa se torna apenas nominal ou fictícia.

A autonomia dos entes políticos busca realizar o equilíbrio federativo por meio de divisão de competências. Tratou, então, nossa própria Constituição de dividir pormenorizadamente a competência tributária entre todos os entes federativos, assim como definiu rigorosamente a repartição do produto arrecadado a título de tributos, dando origem ao que a doutrina chamou de “federalismo cooperativo”.

Recorrendo ao magistério de ALIOMAR BALEEIRO[33],“o federalismo deixou de ser simplesmente dualista, como mera técnica de repartição de poder. Os compromissos do Estado como bem-estar social, a busca de uma maior isonomia e da erradicação das grandes desigualdades sociais e econômicas entre pessoas, entre grupos e regiões e a necessidade de um planejamento integrado e harmonioso do país levaram à superação do federalismo tradicional em favor de um federalismo financeiro ou cooperativo, segundo o qual, além da discriminação das rendas por fonte, se dá também uma distribuição da receita segundo o produto arrecadado”.

A propósito, elucidativo o seguinte trecho do voto do Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI[34]:

“a nova Carta Magna adotou o denominado “federalismo cooperativo”, em que se registra um entrelaçamento de competências e atribuições dos diferentes níveis governamentais (...)

Destarte, para que a autonomia política concedida pelo constituinte aos entes federados seja real, efetiva, e não apenas virtual, cumpre que se preserve com rigor a sua autonomia financeira, não se permitindo no tocante à repartição de receitas tributárias, qualquer condicionamento arbitrário por parte do ente responsável pelos repasses a que eles fazem jus”.

É a autonomia de cada ente federativo (seja no seu aspecto administrativo, legislativo e, principalmente financeiro) o elemento nuclear, o fundamento, a base do conceito do princípio federativo, outra cláusula pétrea que estrutura a nossa República.

Nossa República, aliás, foi também estruturada sem quaisquer possibilidades de tentativa de abolição dos direitos e garantias individuais. Para o STF[35]:

“Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles que estão inscritos nos incisos do art. 5. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição. O próprio art. 5, parágrafo 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte.

É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais”.

Com efeito, direitos e garantias individuais integram o “catálogo” dos direitos fundamentais. E no âmbito tributário, os direitos fundamentais dos contribuintes correspondem à garantia do povo de submeter-se à cobrança de tributos rigorosamente dentro dos limites traçados no sistema constitucional tributário.


5. Limites do poder de reforma constitucional no Direito Tributário

Nossa República foi estruturada em face dos princípios constitucionais. Devido, pois, a sua importância perante o sistema jurídico, máxime no que concerne à tributação, é vedado às Emendas Constitucionais reduzirem o conteúdo de abrangência dos princípios previstos na Constituição. Eis aqui um limite ao poder reformador no âmbito tributário.

Nesse sentido, CHARLES WILLIAN MCNAUGHTON[36] predica que “os princípios constitucionais tributários atingem o caráter de cláusula pétrea, estando, portanto, em um grau de hierarquia superior aos ostentados pelas Emendas Constitucionais”.

Não obstante esse entendimento, convém salientar que se acha assentado no STF[37] o posicionamento de que seria legítima a disciplina de matéria tributária (o que inclui a instituição de tributo) por meio de media provisória.

Com efeito, a Constituição Federal regulamentou a figura da medida provisória no seu artigo 62, o qual, na sua redação originária, não continha nenhuma previsão sobre seu uso em matéria tributária. Por meio da Emenda Constitucional nº 32/2001, editada em momento posterior ao referido entendimento manifestado pelo STF, referido artigo foi modificado. Dentre as alterações, foi inserido o parágrafo segundo, dispondo que “Medida Provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V , e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”.

Ao comentar o assunto, ROQUE ANTONIO CARRAZZA[38] aponta que:

“O que se nota, prima facie, é que o constituinte derivado investiu-se das prerrogativas de constituinte originário e, sem a menor cerimônia, “reconstruiu”, a seu talante, a figura da medida provisória.(...). Todavia, academicamente continuamos a obtemperar que tal emenda constitucional, na parte atinente às medidas provisórias, afronta o princípio da legalidade, máxime em matéria tributária, e, por via de consequência, a autonomia e independência do Poder Legislativo”.

De fato, medida provisória, enquanto ato do Poder Executivo, não constitui veículo competente para criar tributos. Medida Provisória não é lei e somente lei é que pode disciplinar matéria tributária. Admitir o contrário, como pretendem o STF e a malfadada Emenda Constitucional, constitui violação ao princípio da legalidade e, consequentemente, de direito fundamental do contribuinte.

O que se nota, nesse caso concreto, é uma flexibilização (indevida a nosso ver) do STF quanto ao conteúdo do princípio da legalidade, ratificada posteriormente pela reforma do art. 62 promovida pela Emenda Constitucional nº 32/2001.

É justamente esse tipo de decisão e procedimento que tende a ferir a segurança jurídica dos cidadãos em face do Estado. A nosso ver, na nossa República, os princípios constitucionais tributários integram o rol dos direitos fundamentais dos contribuintes, não devendo ser interpretado de forma restrita, como foi o caso.

Assim como os princípios tributários, colocamos as hipóteses de imunidades no patamar dos direitos imodificáveis. A nosso ver, os fatos, pessoas e situações imunes devem ser incorporados no patrimônio jurídico dos cidadãos, não podendo ser alterados por nenhuma norma do sistema jurídico. Essa é outra regra limitadora do poder de reforma constitucional.

Vale frisar, porém, que havia previsão quanto à imunidade de imposto sobre a renda no art. 153, III, §2º[39] da CF, a qual foi revogada pela Emenda Constitucional nº 20/98.

Muito se discutiu sobre a legitimidade da revogação em questão, mas o fato é que o STF a julgou constitucional, sob a seguinte alegação:

“impertinente a alegação de que a norma art. 153, § 2º, II, da Constituição Federal não poderia ter sido revogada pela EC nº 20/98 por se tratar de cláusula pétrea. Esta norma não consagrava direito ou garantia fundamental, apenas previa a imunidade do imposto sobre a renda a um determinado grupo social. Sua supressão do texto constitucional, portanto, não representou a cassação ou o tolhimento de um direito fundamental e, tampouco, um rompimento da ordem constitucional vigente” [40].

Novamente estamos diante de uma interpretação restrita dos direitos fundamentais dos contribuintes, o que aumenta a desconfiança dos cidadãos no Estado.

Infelizmente, como bem observado por HUGO DE BRITO MACHADO[41], “na instituição do tributo o Estado muitas vezes legisla em desobediência às normas da Constituição. E na aplicação da lei tributária também viola as regras, lançando e cobrando tributos indevidos. E, finalmente, na apreciação dos conflitos gerados pela resistência eventualmente oposta pelo contribuinte também o Estado, por seu Poder Judiciário, muitas vezes viola o Direito”.

Registrada essa ressalva, e uma vez colocados os princípios e imunidades no rol das cláusulas pétreas, a questão que se coloca é se uma Emenda Constitucional poderia alterar a configuração originária no que diz respeito à competência tributária. Poderia, por exemplo, o poder reformador ampliar a materialidade de um tributo ou criar um novo tributo em favor de outro ente federativo?

A resposta para tal indagação é: depende. Nesses termos, se uma reforma constitucional na competência tributária violar o pacto federativo, a separação dos poderes, ou reduzir o conteúdo de algum direito individual do contribuinte, ela afrontaria todo o sistema, restando contaminada de inconstitucionalidade. Caso contrário, isto é, se uma reforma constitucional na competência for feita em conformidade com as diretrizes constitucionais fundamentais, não visualizamos nenhuma extrapolação de seus limites.

A nossa opinião é a de que uma Emenda Constitucional pode alterar a competência tributária sem maiores prejuízos à garantia de propriedade, mas desde que dentro das possibilidades jurídicas conferidas pelo Constituinte Originário, as quais, a nosso ver, podem ser resumidas da seguinte forma:

(i) para a instituição de um novo tributo, cumprimento dos requisitos constitucionais previstos no artigo 154, I[42], especificamente a observância da não cumulatividade (no caso do tributo ser plurifásico) e a impossibilidade de concomitância com fato gerador ou base de cálculo próprios dos já discriminados na Constituição Federal[43]; e

(ii) para a transferência de competência tributária, necessidade de verificar se o efeito gera ou não perda de autonomia de qualquer dos entes tributários. Caso haja perda de autonomia, entendemos que uma transferência na competência será inconstitucional; caso contrário, ela poderia ser implementada.

Apesar da rigidez com que a competência tributária foi desenhada originariamente, admitimos que até é possível uma reforma constitucional no campo legislativo tributário das pessoas políticas, desde que não implique perda de autonomia de nenhuma pessoa política e desde que respeitados os princípios constitucionais tributários, imunidades e os requisitos da competência residual delineados no art. 154, I.

Registramos, todavia, que o STF[44] já se manifestou favoravelmente à criação de novos tributos por meio do poder reformador, sem necessidade de observar os requisitos em questão, por entender que Emendas Constitucionais são livres para criarem novas figuras tributárias, o que evidencia, novamente, uma flexibilização do sistema constitucional tributário.

Essa flexibilização pode gerar instabilidade da ordem constitucional brasileira, já marcada pelas sucessivas modificações do texto da Constituição Federal de 1988. Defendemos, nesse ponto, que toda a afetação ao pacto federativo ou desrespeito aos limites do poder de tributar seja interpretada de forma a maximizar os direitos fundamentais, o que não se revela com a permissão para os entes políticos introduzirem figuras denominadas de tributos, mas estranhas ao sistema constitucional tributário.

Reformas e julgamentos dessa natureza quebram o consentimento do cidadão no tributo e, consequentemente, na República, causando uma incerteza quanto à efetividade do próprio Direito.


6. Conclusão

O Estado, construção do Direito, objeto cultural, necessita de recursos para custear os gastos públicos, o que ocorre principalmente por meio do tributo.

Apesar de não existir um conceito expresso do signo tributo, uma interpretação sistemática da Constituição permite construir uma definição, qual seja, de que tributo consiste no vínculo obrigacional que atribui a um determinado sujeito ativo a possibilidade de exigir, de um sujeito passivo, uma prestação de cunho econômico, decorrente de um fato lícito.

É possível reunir esforços apenas para estudar o tributo, formando aquilo que, didaticamente, convencionou-se chamar de Direito Tributário. Na República Federativa do Brasil, estruturada a partir da Lei Maior, e fruto da soberania popular, a matéria tributária recebeu atenção especial, podendo falar num verdadeiro sistema constitucional tributário. O povo, atribuidor e destinatário do poder, dá consentimento ao tributo, desde que respeitados os limites do poder de tributar previstos constitucionalmente.

Os Governantes estão subordinados ao império das normas, especialmente às cláusulas pétreas, que garantem direitos imodificáveis no sistema jurídico. Tal ocorre com os ideais republicanos, com a Federação e com os direitos fundamentais dos contribuintes.

Falar em República é falar em forma de governo. Nela, República, os poderes são conferidos aos representantes do povo, caracterizando uma democracia. Por meio do voto, os cidadãos dão consentimento para outras pessoas gerirem a res publica, em prol do interesse da coletividade.

Já Federação, outra cláusula pétrea, é forma de estrutura do Estado. O texto constitucional atribuiu a cada pessoa política, União Federal, Estados, Municípios e Distrito Federal, em pé de igualdade, personalidade jurídica e autonomia própria, num verdadeiro pacto federativo cooperado.

A autonomia dos entes federados pressupõe capacidade financeira, afinal as autoridades estatais necessitam de recursos pecuniários para implementar medidas estatais. Esta autonomia (nos seus aspectos administrativo, legislativo e, principalmente, financeiro) integra o elemento nuclear do princípio federativo.

Também os direitos fundamentais, expressão que alberga os direitos e garantias individuais, são imutáveis pelo poder reformador. Trata-se de uma conquista do povo, representando uma ordem objetiva de valores consagrados pelo ordenamento.

No contexto do direito tributário, não raramente o intérprete se depara com reformas constitucionais promovidas no sistema tributário previsto originariamente, o que enseja uma análise do que pode ou não ser alterado no sistema inicialmente desenhado, considerando justamente os limites materiais ao poder constituinte derivado.

A nosso ver é vedado ao poder reformador: (i) reduzir o campo de abrangência dos princípios constitucionais tributários; (ii) restringir ou revogar qualquer espécie de imunidade; (iii) invadir o campo de competência de ente político alheio; (iv) ampliar a materialidade de tributos em desacordo com as regras da competência residual; e (v) transferir competência tributária que enseje perda de autonomia de qualquer pessoa política.

Temos percebido, entretanto, que nem sempre essas regras são levadas em conta nas questões judiciais que envolvem os limites das Emendas Constitucionais. O STF já deu sinais favoráveis à flexibilização de nosso sistema constitucional tributário, o que pode comprometer o consentimento do cidadão quanto ao pagamento de tributo, enfraquecendo a própria República.

Defendemos, nesse ponto, que qualquer afetação às cláusulas pétreas seja interpretada de forma a maximizar os direitos fundamentais. Os contribuintes devem pagar tributos dentro dos rigorosos limites impostos por ocasião da criação do nosso sistema jurídico, o que ocorreu por meio da Constituição Federal de 1988.


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Notas

[1] De acordo com LEANDRO PAULSEN, “os tributos são a principal receita financeira do Estado, classificando-se como receita derivada (porque advinda do patrimônio privado) e compulsória (uma vez que decorre de lei, independendo da vontade das pessoas de contribuírem para o custeio da atividade estatal).” Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. P.17.

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Direitos fundamentais do contribuinte e a efetividade da jurisdição. São Paulo: Ed. Atlas. 2009. P. 11.

[3] DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 17ª edição. P. 185.

[4] Nesse ponto, não podemos nos esquecer da clássica lição de ALFREDO AUGUSTO BECKER, para quem “a autonomia (no sentido de independência relativa) de qualquer ramo do Direito Positivo é sempre e unicamente didática para, investigando-se os efeitos jurídicos resultantes da incidência de determinado número de regras jurídicas, descobrir a concatenação lógica que as reúne num grupo orgânico e que une este grupo à totalidade do sistema jurídico” (Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses. 4ª Ed.P. 33).

[5] DE SOUSA, Rubens Gomes. Compêndio de legislação tributária. São Paulo. Ed. Resenha Tributária. 1975. P. 30.

[6] ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT. 1968. P. 21.

[7] CARVALHO, Paulo de barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva. 23ª ed. P. 190 e 191.

[8] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2009. P. 106 e 107.

[9] Nas lições de PAULO DE BARROS CARVALHO, o termo princípio é utilizado para “apontar normas que fixam importantes critérios objetivos, além de ser usado, igualmente, para significar o próprio valor, independentemente da estrutura a que está agregado e, do mesmo modo, o limite objetivo sem a consideração da norma”. (Sobre princípios constitucionais tributários. RDT 55/147).

[10] “O princípio implícito não difere senão formalmente do expresso. Têm ambos o mesmo grau de positividade. Não há uma positividade “forte” (a expressa) e outra “fraca” (a implícita). Um princípio implícito pode muito bem ter eficácia (= produzir efeitos) muito mais acentuada do que um princípio expresso”. (JOSÉ SOUTO MAIOS BORGES. O Princípio da Segurança Jurídica na Criação e Aplicação do Tributo. RDT nº 63. Malheiros. P. 207).

[11] (STF – Tribunal Pleno - ADI 712-MC - DJ 19/02/93).

[12] Imunidade Tributária das Instituições de Educação. Revista de Direito Tributário nº 3. P. 167.

[13] Nas lições de GERALDO ATALIBA: “Em termos de matéria tributária é fantástica a minuciosidade dessa Constituição. Isso permite que o intérprete qualifique essa Constituição como exaustiva, quer dizer, ela exaure o campo da matéria tributável; ela deixa para o legislador ordinário uma tarefa meramente de preencher para casos concretos, regulamentar, porque tudo mais está dito no próprio Texto Constitucional. (...) Quero dizer que a Constituição parece, a meus olhos – e estou convicto disso – que tem duas características básicas e fundamentais: rígida e exaustiva. (Lei Complementar em Matéria Tributária. Conferências e Debates. Revista de Direito Tributário nº 48. P. 88).

[14] Cf CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 28ª ed. P. 36/37.

[15] Cf. CANOTILHO, Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1996, P. 137.

[16] Mais adiante, referido Autor esclarece que: “O Poder Constituinte classifica-se em Poder Constituinte originário ou de 1º grau e Poder Constituinte derivado, constituído, ou de 2º grau. (...) O Poder Constituinte Originário estabelece a Constituição de um novo Estado, organizando-o e criando os poderes destinados a reger os interesses de uma comunidade. (...)O Poder Constituinte caracteriza-se por ser inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado. (...) O Poder Constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional, portanto, conhece limitações constitucionais expressas e implícitas e é passível de controle de constitucionalidade.”(Cf. DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional.São Paulo: Ed. Atlas. 2012. P. 25/27).

[17] Cf. GERALDO ATALIBA. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT. 1968. P. 21.

[18] AMARO, Luciano. As Cláusulas Pétreas e o Direito Tributário. Revista Dialética de Direito Tributário nº 71, P. 72.

[19] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 7ª edição.

[20] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 28ª ed. P. 68.

[21] DE MIRANDA, Pontes. Democracia, liberdade e igualdade – os três caminhos. São Paulo: Saraiva, 2ª Ed.

[22] DALLARI, Dalmo. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. p.14.

[23] Conforme, aliás, prescreve o artigo 1º, II, do texto constitucional.

[24] Cf. GERALDO ATALIBA. República e Constituição. São Paulo: Malheiros.3ª Ed. P. 164.

[25] “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2º, CF).

[26] DE MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira. Natureza jurídica do estado federal. Monografia premiada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo. 1948.

[27] LACOMBE, Américo. Princípios Constitucionais Tributários. Malheiros: 1996. P. 76

[28] VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Limitações constitucionais ao poder de tributar e tratados internacionais. Belo Horizonte: Del Rey. 2000. P. 117

[29] REVERBEL, Carlos Eduardo Diedes. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012. P. 132

[30] DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 17ª edição. P. 477.

[31] DALLARI, Dalmo de Abreu. Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações. Artigo extraído do Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), pág. 61, disponibilizado no sítio do Ministério Público do Estado do Paraná (http://www.saude.caop.mp.pr.gov.br).

[32] Como bem definido por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, autonomia financeira é “o conjunto de meios, tributários ou orçamentários, que levam a pessoa política a obter os recursos com os quais garantirá as demais autonomias (autonomia política, autonomia administrativa e autonomia legislativa.” (Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 28ª ed. P. 574. Rodapé 12.).

[33] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. [atual: Misabel Abreu Machado Derzi]. Rio de Janeiro: Forense, 2010, P. 587/588

[34] STF. Tribunal Pleno. RE 572.762-9. Dje nº 167, de 04/09/2008. Ementário 2331-4.

[35] ADIn nº 939-DF, Tribunal Pleno, RTJ 151.

[36] Hierarquia e sistema tributário. São Paulo: Quartier Latin. 2011. P. 262

[37] Vide, por exemplo, ADI 1.417-MC e ADI 1.667-MC.

[38] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 28ª ed. P 303-306.

[39] Este dispositivo previa que o imposto de renda “não incidirá, nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos pela previdência social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a pessoa com idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja constituída, exclusivamente, de rendimentos do trabalho”.

[40] STF, RE 372600, Relator Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJ 23-04-2004.

[41] Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 2012. P. 35.

[42] “Art. 154. A União poderá instituir:

I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;”

[43] A nosso ver, a edição de Emenda Constitucional, por requerer quórum mais qualificado, supre o requisito da instituição de tributo residual por lei complementar.

[44] Recurso Extraordinário 573.675-0, onde o Pleno do STF, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurélio, declarou a constitucionalidade da contribuição de iluminação pública, instituída com base no artigo 149-A, da CR/88.


Autor

  • Luis Henrique Marotti Toselli

    Mestrando em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Especialista em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito – EPD. Advogado em São Paulo.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOSELLI, Luis Henrique Marotti. Tributação e cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4073, 26 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29343. Acesso em: 24 abr. 2024.