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Noções introdutórias sobre o processo de aplicação/criação do Direito segundo o normativismo kelseniano

Noções introdutórias sobre o processo de aplicação/criação do Direito segundo o normativismo kelseniano

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Um dos principais aspectos da Teoria Pura do Direito é o processo de criação/aplicação da norma jurídica, enfatizando a importância da interpretação na teoria normativa kelseniana.

Resumo: O presente texto resume um dos principais aspectos da Teoria Pura do Direito, qual seja: o processo de criação/aplicação da norma jurídica, enfatizando a importância da interpretação na teoria normativa kelseniana. O texto procura, ainda, desmistificar a crença de Kelsen apregoava uma total separação entre o direito e os demais sistemas sociais, destacando que a sua proposta foi de uma “teoria pura do direito” e não de uma “teoria do direito puro”. Apesar da complexidade da temática, estes escritos possuem uma linguagem simples e objetiva, o que os tornam úteis não apenas aos graduandos em direito, mas também aos candidatos a Concursos Públicos, nos quais se exijam o conhecimento da teoria normativa do direito.

Palavras chaves: Interpretação. Normativismo. Kelsen.

Sumário: Introdução. 1. A norma jurídica fundamental. 2. Conflitos entre normas. 3. Validade, legitimidade e eficácia. 4. Estrutura escalonada da ordem jurídica. 5. Aplicação e criação do direito. Conclusão


Introdução

Com o surgimento das teorias fundamentadas no ideal iluminista, sustentando a possibilidade de se atingir o direito por intermédio de um trabalho racional, abstrato, funcionando a lei, neste contexto, como expressão racional da consciência coletiva, surge o juspositivismo legalista exegético, para o qual o Código é a lei, é a norma.

Contudo, com o aumento da complexidade sócio-cultural, começam a existir conflitos entre o Código e os novos valores assumidos pela consciência coletiva, provando a inadequação do pensamento estritamente legalista, possibilitando, assim, o surgimento de diversas críticas ao pensamento exegético, que desembocou nas mais diversas formas de normativismo, inclusive o kelseniano.

A grande inovação de Kelsen consistiu na unificação do conceito lógico de norma, abrindo lugar para uma nova e mais rica abrangência do campo normativo. O teórico alemão reduziu leis, costumes jurídicos e decisões judiciais ao universo comum da proposição jurídica.

Nesse contexto, Kelsen afirma que a ordem jurídica não é um sistema em que todas as normas estariam situadas no mesmo plano, mas sim um edifício de vários andares sobrepostos, numa hierarquia formada “por um certo número de andares ou camadas de normas jurídicas” (KELSEN, 2000, p. 247).

Levando-se em consideração apenas a ordem jurídica estatal, ou seja, retirando-se de cena a norma fundamental hipotética, a Constituição aparece como escalão de direito positivo mais elevado. Outras normas tais como as leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decretos do legislativo, decretos do executivo, portarias, instruções normativas, e a própria decisão judicial, buscam sua validade na Constituição, como aspecto mais concreto da construção do direito.

Neste contexto, o direito é responsável pela sua própria criação, de modo que uma norma determina o processo pelo qual outra é produzida, sendo possível, inclusive, que determine o próprio conteúdo da norma a produzir. A norma que regula a produção é chamada por Kelsen de norma superior, já a norma produzida segundo os critérios postos por esta é chamada de norma inferior. A decisão judicial, por sua vez, corresponde a criação de norma jurídica chamada por Kelsen de “norma individual” (KELSEN, 2000, p. 247).

O juiz, contudo, ao criar a norma individual não está de todo livre, uma vez que deve buscar a validade formal e material das normas que lhe são superiores e, em última instância, da própria Constituição. Cada norma gera uma moldura, dentre da qual existem algumas decisões igualmente válidas para o decididor, que buscará a melhor solução para o caso concreto, gerando a norma individual.

A teoria de Kelsen, dessa forma, procura um meio termo entre o formalismo exagerado da escola da exegese, para a qual o juiz deveria ser a boca da lei, e o ceticismo gerado por concepções do livre direito, segundo as quais não haveria qualquer limite para a decisão do magistrado. Com a ideia de moldura, Kelsen permite que se construa a lógica da discricionariedade em oposição à arbitrariedade, conforme pretende destacar o presente artigo.

O presente texto abordará, portanto, um dos principais aspectos da Teoria Pura do Direito, qual seja: o processo de criação/aplicação da norma jurídica, enfatizando a importância da interpretação na teoria normativa kelseniana. O artigo procura, ainda, desmistificar a crença de que Kelsen apregoava uma total separação entre o direito e os demais sistemas sociais, destacando que a sua proposta foi de uma “teoria pura do direito” e não de uma “teoria do direito puro”.

Apesar da complexidade da temática, estes escritos possuem uma linguagem simples e objetiva, o que os tornam úteis não apenas aos graduandos em direito, mas também aos candidatos a Concursos Públicos, nos quais se exijam o conhecimento da teoria normativa do direito.


1. A norma jurídica fundamental

Por meio de sua obra mais importante para a teoria jurídica, qual seja a Teoria Pura do Direito, Kelsen permite uma ampliação da ciência jurídica a partir da redefinição de vários termos, sobretudo o termo norma, realizando a importante distinção entre norma e texto normativo.

Para Kelsen, “o direito é concebido como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens” (KELSEN, 2000, p. 215), dito de outra forma, o direito é um ordenamento coercitivo da conduta humana. Coercitividade é a “possibilidade que o direito tem de se fazer valer” (ADEODATO, 2000). Sendo assim, o direito funciona por intermédio da incidência de uma sanção sobre a conduta, possibilitando, também, coagir o sujeito a cumpri-lo a partir da violência legítima, ou seja, da violência tutelada pelo aparato estatal.

Mas por que a norma vale? Eis a questão que Kelsen pretende responder a partir do Capítulo V de sua Teoria Pura do Direito, e já logo de início argumenta: “Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo ‘vale’ (é ‘vigente’), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma”, e mais adiante complementa, “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma” (KELSEN, 2000, p. 215). O que Kelsen quer dizer é que uma norma inferior busca sua validade numa norma que lhe é superior, esta, por sua vez, busca sua validade numa norma que também lhe é superior, e assim sucessivamente.

Ocorre que essa digressão não pode ser infinita, por isso Kelsen faz uso da ideia de que devemos pressupor uma norma fundamental (Grundnorm), última e mais elevada do ordenamento.

Nas palavras do próprio Kelsen:

A sua unidade (do ordenamento jurídico) é produto da conexão de dependência de que resulta do fato de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora (2000, p. 247).

A norma fundamental, também chamada de Constituição no sentido lógico-jurídico, não poderia ser uma norma posta por uma autoridade, uma norma positiva, isto porque, para ser uma norma posta, deveria existir uma norma ainda mais elevada que conferisse competência a uma determinada autoridade, não resolvendo a questão da regressão ao infinito. Segundo o próprio teórico, “a norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum” e, mais adiante completa: “é a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa” (KELSEN, 2000, p. 217).

Tal norma não teria um conteúdo ético, moral, religioso, ou qualquer outro conteúdo que seja, uma vez que se limita “a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema” (KELSEN, 2000, p. 21), ou seja, “a norma que constitui o ponto de partida da questão não vale por força do seu conteúdo” (KELSEN, 2000, p. 219).

Sendo assim, também “uma norma pertence a um ordenamento que se apoia numa tal norma fundamental porque é criada pela forma determinada através dessa norma fundamental – e não porque tem um determinado conteúdo” (KELSEN, 2000, p. 220).

Esse é um dos motivos de grande crítica a Kelsen, a sua defesa de que uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, justo, moral, religioso, que possa ser deduzido da razão, de Deus ou da Natureza. Na Teoria Pura do Direito, uma norma vale “porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta” (KELSEN, 2000, p. 221). Por isso, “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito” (KELSEN, 2000, p. 221).

A norma fundamental é “a instauração do fato fundamental da criação jurídica”, podendo ser também chamada de “Constituição no sentido lógico-jurídico”, para distinguir da “Constituição no sentindo jurídico-positivo” (KELSEN, 2000, p. 222). Podemos chamar de Constituição no sentido lógico-jurídico, justamente por ser a norma fundamental o ponto de partida do processo de criação do direito positivo. Vejamos como Kelsen esclarece a questão:

Ela própria (norma fundamental) não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida em que a instância constituinte é considerada como a mais elevada autoridade e por isso não pode ser havida como recendo o poder constituinte através de uma outra norma, posta por uma autoridade superior (KELSEN, 2000, p. 222).

Importante ressaltar que na pressuposição da norma fundamental não se questiona justiça ou injustiça, pelo contrário, na pressuposição da norma fundamental “não é afirmado qualquer valor transcendente ao Direito positivo” (KELSEN, 2000, p. 225). A Teoria Pura do Direito procura, desta forma, conduzir a uma interpretação do ordenamento jurídico que seja livre de autoridades metafísicas, como Deus ou a natureza, bem como de divagações conteudísticas de justo ou injusto.

Entretanto, Kelsen não nega a relação existente entre o direito e os demais sistemas sociais. Não nega a influência recíproca entre direito e moral, ou direito e religião, ou direito e demais fatores sociais. Pelo contrário, é por reconhecer tal inter-relação que Kelsen se preocupa em defender o direito como uma ciência autônoma. Em suas palavras:

De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo facto de estas ciências se referirem a objectos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo, não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto (KELSEN, 2000, p. 34).

Conclui-se, pois, que Kelsen pretendeu sistematizar uma Teoria Pura do Direito, uma ciência jurídica autônoma, sem subordinação à sociologia, à psicologia ou à teologia. Contudo, como bem evidencia a citação acima, o autor não defende que o direito em si seja puro, reconhecendo a sua conexão com a ética, a sociologia, a ciência política, dentre outros sistemas sociais. 

 


2. Conflitos entre normas

Como já dito, a norma fundamental constitui a validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem jurídica estatal, ou seja, de todas as normas válidas dentro de um território soberano, destinadas a um determinado povo, isto é, “constitui a unidade na pluralidade destas normas” (KELSEN, 2000, p. 228). Apesar da unidade do ordenamento jurídico, não se pode negar a possibilidade de os órgãos competentes efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras. Tais conflitos devem ser necessariamente resolvidos pela via da interpretação.

Como Kelsen considera a ordem jurídica uma construção escalonada de normas superiores e inferiores umas às outras, em que a norma do escalão superior determina os critérios de criação da norma de estalão inferior, o problema do conflito entre as normas se dá em dois diferentes âmbitos: a) conflito entre normas do mesmo escalão ou hierarquia e b) conflito entre uma norma de escalão superior e outra norma de escalão inferior (KELSEN, 2000, p. 230).

Para o conflito entre normas do mesmo escalão, Kelsen propõe a observância de algumas regras para sua solução:

a)    Lex posterior derogat priori – quando se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um mesmo e só órgão, mas em diferentes ocasiões. Neste caso, a validade da norma mais recente se sobreleva à norma mais antiga. Tal princípio também encontra aplicação quando as normas forem estabelecidas por órgãos distintos, no caso de a Constituição atribuir aos dois a competência para regular o mesmo objeto por meio de normas gerais.

b)    Quando as normas em conflitos são do mesmo escalão, mas foram postas ao mesmo tempo – Kelsen também prevê a possibilidade de que as normas que estejam em conflito tenham sido postas ao mesmo tempo, por um só ato do mesmo órgão. Tal conflito não pode, logicamente, ser resolvido pelo princípio de que a lei posterior derroga a anterior. Havendo as seguintes possibilidades de solução: 1ª, ou se entende que é papel do órgão competente para aplicação da lei, escolher qual das duas normas aplicar; ou 2ª, uma norma limita a validade da outra, quando apenas em parte de contradizem. Quando nem uma e nem outra interpretação se torne possível, trata-se de ato sem sentido, inexistindo norma jurídica objetivamente válida.

c)    Conflito entre duas normas individuais – pode haver conflito entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas forem postas por órgãos diferentes. Segundo Kelsen pode acontecer de uma lei atribuir competência a dois distintos tribunais para decidir o mesmo caso, sem que a decisão de um anule a decisão do outro. Tal técnica é imperfeita, mas pode acontecer. Assim, pode suceder de um réu ser absolvido por um tribunal e condenado pelo outro. Tal conflito pode ser resolvido pelo fato do órgão responsável pela execução da decisão ter a faculdade de escolher entre observar uma ou outra decisão. Se é executado o ato coercitivo, a outra norma individual, que absolveu o réu, permanece por muito tempo ineficaz, perdendo sua validade. Da mesma forma se o ato coercitivo não for executado, permanece muito tempo ineficaz, perdendo sua validade. Agora, se o conflito se apresenta numa e mesma decisão judicial, de forma semelhante ao que pode acontecer com uma lei que permite e proíbe ao mesmo tempo uma dada conduta, estaremos diante de um ato sem sentido e, portanto, não se trata de norma jurídica válida (KELSEN, 2000, p. 231-232).

 Já entre normas de escalões diferentes não pode existir conflito, quer dizer, “entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito” (KELSEN, 2000, p. 232)., pois a norma inferior tem o seu fundamento de validade na norma superior, não podendo contradizê-la, sob pena de ser inválida. Dito de outra forma “se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior” (KELSEN, 2000, p. 232).


3. Validade, legitimidade e eficácia

Inicialmente Kelsen tinha uma posição radicalmente normativa, na qual o elemento essencial do direito era a validade formal, a qual diz respeito não ao reconhecimento do direito pela comunidade e sim à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do direito no plano normativo. Contudo, a experiência o fez perceber que o direito pressupõe o mínimo de eficácia. Isto porque, a “norma fundamental só se supõe quando o ordenamento que ela deriva é eficaz” (GUIBOURG, 1986). Ou seja, Kelsen passa a conceber que a eficácia geral é condição da validade de um ordenamento jurídico, contudo, não corresponde ao seu fundamento.

Analisando as interferências “extrassistemáticas” no ordenamento jurídico, Kelsen fala da revolução, cujas consequências seriam mais bruscas, e do costume, um feito extrassistemático paulatino. A revolução é toda modificação da Constituição que não ocorre segundo as disposições da que se encontra em vigor. Como a validade de uma norma depende de sua eficácia, quando, por algum motivo, as normas emitidas por um governo deixam de ser aplicadas, o sistema perde a sua validade, e logo outro é instituído, à luz de uma nova norma fundamental, sendo construído um novo ordenamento jurídico coercitivo (GUIBOURG, 1986).

As Constituições escritas, geralmente, contêm as regras por meio das quais podem ser modificadas. Assim, entende-se o “princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo já determinado por ela mesma, ou até ser substituída pela validade de outra norma, também, desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade” – grifos nossos (KELSEN, 2000, p. 233).

O princípio da legitimidade só não encontra qualquer aplicação no caso de uma revolução, que, como já dito, “é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma constituição (KELSEN, 2000, p. 233).

Contudo, geralmente, uma revolução (golpe de Estado) somente anula a antiga Constituição e algumas leis politicamente essenciais, mas uma grande parte das leis promulgadas sob a égide da antiga Constituição permanece no ordenamento. Isso só é possível através do fenômeno da recepção, isto é, “o que existe não é uma criação de um direito inteiramente novo, mas a recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra” (KELSEN, 2000, p. 233). Nesse caso, “o imediato fundamento de validade das normas jurídicas recebidas sob a nova Constituição, revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova” (KELSEN, 2000, p. 233-234).

Contudo, a validade de uma norma não se identifica com a sua eficácia, assim, uma Constituição só é considerada eficaz se as normas por ela postas forem, globalmente e em regra, aplicadas e observadas. Ou seja, se a Constituição revolucionária e as normas dela decorrentes não forem aplicadas pelos órgãos competentes, os quais continuem a aplicar a Constituição antiga e o ordenamento jurídico dela decorrente, não haveria motivo para pressupor uma nova norma fundamental no lugar da antiga. Neste caso, a revolução não seria interpretada como um processo produtor de direito novo, pelo contrário, seria tida como crime de alta traição. Sendo assim, “o princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade” (KELSEN, 2000, p. 235).

Como já dissemos, Kelsen abandona o normativismo extremado fazendo uso da ideia de eficácia. Segundo o Kelsen mais maduro “não pode negar-se que uma ordem jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica singular, perde a sua validade quando deixa de ser eficaz” (KELSEN, 2000, p. 236). Não podemos negar que existem numerosos casos em que as normas jurídicas são consideradas válidas, mas não são, ou ainda não são, eficazes.

A eficácia, na Teoria Pura do Direito, é condição de validade da ordem jurídica como um todo, bem como da norma jurídica singular, individual. Ou seja, as normas deixam de ser consideradas válidas quando deixam de ser eficazes. É importante ressaltar que a eficácia não é fundamento de validade, mas condição de validade. Dando um exemplo prático sobre a diferença entre fundamento e condição: um homem para viver tem que nascer (fundamento), mas para permanecer vivo tem que comer (condição). Assim, nem o nascimento, nem a alimentação se identificam com a própria vida. Uma condição não se identifica com aquilo que condiciona, sendo assim, a eficácia não pode ser identificada com a validade (KELSEN, 2000, p. 236).

As normas de uma ordem jurídica valem porque a norma fundamental é pressuposta como válida, e não porque são eficazes. Contudo, essas mesmas normas só valem se esta ordem jurídica é eficaz, isto é, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Assim Kelsen conclui que:

Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada (...) também não se considera como válida uma norma que nunca é observada ou aplicada. E, de fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, quer dizer, através da chamada desuetudo. A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente (KELSEN, 2000, p. 237).

A desuetudo nada mais é, portanto, que a figura do desuso, que Kelsen incluiu posteriormente em sua teoria, reconhecido o caráter negativo do costume. Dito de outro modo, o costume tanto pode ser fato gerador de direito, quanto pode derrogar normas juridicamente válidas quando estas não são mais eficazes.


4. Estrutura escalonada da ordem jurídica

Para Kelsen o ordenamento jurídico é um sistema de normas organizadas hierarquicamente entre si. Como já afirmado, nada existiria acima ou anteriormente à norma fundamental, que seria, como o próprio nome sugere, fundamentadora, legitimadora, de todo o sistema jurídico positivo, no qual as normas inferiores, para serem válidas, não poderiam contradizer os princípios de uma norma que lhe fosse superior e esta teria que condizer com o estabelecido pela norma fundamental. Dessa forma, Kelsen monta sua pirâmide normativa, com a norma fundamental em seu topo, da qual “todo jurista parte quando deseja interpretar normativamente uma realidade coercitiva, e que funda a unidade sistemática de qualquer ordenamento jurídico” (GUIBOURG, 1986).

A norma superior tanto pode apenas indicar o processo através do qual a norma inferior deverá ser produzida, quanto, em certa medida, pode indicar o conteúdo da norma a produzir. A norma jurídica, portanto, não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, situadas uma ao lado da outra, mas é uma construção escalonada, de diferentes camadas e níveis. Neste contexto, considerando a ordem jurídica de um dado Estado, sem considerarmos o direito internacional, a Constituição é entendida como o escalão de direito positivo mais elevado. Essa Constituição pode ser produzida pelo costume ou através de um ato de um ou mais indivíduos, neste último caso, fala-se de uma Constituição escrita, para distinguir da Constituição consuetudinária. (KELSEN, 2000, p. 247).

A Constituição regula, portanto, a produção de normas gerais, podendo também determinar o conteúdo das novas leis, prescrevendo ou excluindo determinados conteúdos. Em geral, a Constituição prescreve para a sua modificação um processo mais exigente, com um quórum mais elevado, diferente do processo legislativo comum (Constituição Rígida). Sendo assim, a simples lei não pode derrogar as normas albergadas pela Constituição (KELSEN, 2000, p. 249).

O escalão imediatamente seguinte ao da Constituição é constituído pelas normas gerais criadas pelo legislativo ou pelo costume. Contudo, a validade do costume dentro de uma comunidade jurídica é limitada:

(...) na medida em que a aplicação de normas gerais produzidas por via consuetudinária aos casos concretos apenas se pode realizar através de Direito estatuído, uma vez que só se pode operar através das normas individuais a estabelecer pelos órgãos aplicadores do Direito – especialmente, onde já existam tribunais, através das decisões judiciais, que representam normas individuais (KELSEN, 2000, p. 254).

O escalão de produção das normas gerais, por sua vez, é, geralmente, dividido em dois ou mais escalões, assim temos os decretos, depois as Portarias, as Instruções Normativas, dentre tantas outras figuras (tomando como exemplo o ordenamento jurídico brasileiro) para, por fim, termos a norma individual.


5. Aplicação e criação do direito

Na teoria Kelseniana, os juízes assumem um papel indispensável para a criação e aplicação do direito, pois são criadores de normas individuais. Os juízes possuem uma função constitutiva e não só declaratória, como pretendia o extremo formalismo exegético, visto que, devido à proibição do non liquet, devem decidir, mesmo na ausência, incompletude ou ambigüidade da norma geral. Além disto, os magistrados igualmente têm como função resolver os conflitos aparentes entre as normas, inclusive as de mesmo grau, possibilitando, dessa forma, uma melhor clareza, tanto para os destinatários das normas, quanto para a ciência do direito.

Conforme já dito, uma ordem jurídica é um sistema escalonado de normas gerais e individuais, que estão entre si ligadas devido ao fato de que a criação de toda e qualquer norma é determinada por outra norma do mesmo sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental. Uma norma pertence a uma determinada ordem jurídica porque foi criada com a determinação de uma norma desta mesma ordem. Estas considerações se referem a uma ordem jurídica estatal e a comunidade jurídica em vista é, portanto, o Estado. Kelsen afirma que “é o Estado que cria o Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo este ponto de sua teoria também objeto de muitas críticas por aqueles que acreditam que o Estado não detém o monopólio da produção jurídica em um Estado dito pós-moderno, fala-se, então, em pluralismo jurídico, o qual, no momento, não será nosso objeto.

O que importa ressaltar é que, para Kelsen, a “aplicação do direito é simultaneamente produção do Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo assim, ele supera o formalismo tradicional exegético que coloca aplicação e criação do direito numa oposição absoluta. Afirma Kelsen, que consiste num erro distinguir entre atos de criação e aplicação do direito, exceto os dois casos extremos, o ápice e a base da pirâmide, ou seja, a pressuposição da norma fundamental e a execução do ato coercivo da norma individual. Tirando os extremos, todo ato jurídico é simultaneamente “aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior (KELSEN, 2000, p. 261). “A norma superior pode não só fixar o órgão e o processo no qual a norma inferior é produzida, mas também determinar o conteúdo desta norma” (KELSEN, 2000, p. 261).

Kelsen diferencia o conceito de aplicação do conceito de observância (cumprimento) da norma. Uma norma jurídica é aplicada quando a sanção prescrita é dirigida contra a conduta contrária ao “dever ser” normativo. Ou seja, uma norma é cumprida quando não é violada, e isso deriva da sua eficácia. Já a observância do direito é, antes de tudo, a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico presente na norma (KELSEN, 2000, p. 263).

A aplicação do direito tanto existe na produção de normas jurídicas gerais, como nas resoluções das autoridades administrativas, e ainda, nos atos jurídicos negociais. Os Tribunais também aplicam as normas jurídicas gerais ao estabelecerem normas individuais, determinadas, quanto ao seu conteúdo, pelas normas que lhe são superiores. O processo de aplicação/criação da norma individual é um “processo de individualização ou concretização sempre crescente” (KELSEN, 2000, p. 263).

Afirma Kelsen:

Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do direito ou júris-“dição” (“declaração” do direito) neste sentido declaratório (KELSEN, 2000, p. 264).

Continua o autor, afirmando que “a norma individual, que estatui que deve ser dirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada só é criada através da decisão judicial” (KELSEN, 2000, p. 265). Ou seja, o fato só entra no domínio do direito quando, diante de um caso concreto, se responde as seguintes questões: qual órgão é competente para ligar a norma geral ao caso concreto e qual o processo determinado pela ordem jurídica para que essa verificação seja feita? Isto é:

Não é o fato em si de alguém ter cometido um homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica, mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou o homicídio (KELSEN, 2000, p. 267). 

Quer dizer, a proposição jurídica não diz que se um indivíduo matou alguém deve ser aplicada uma determinada pena, diz sim que se um determinado tribunal competente, num processo determinado pela ordem jurídica, verificou, em decisão definitiva, que determinado indivíduo praticou um homicídio, deve-se, então, mandar aplicar a este indivíduo uma determinada pena (KELSEN, 2000, p. 267). Neste sentido, tanto no caso do julgador condenar, como no caso de absolver o acusado, a decisão judicial opera-se em aplicação da norma jurídica vigente.

Kelsen prevê também que o órgão julgador recebe o poder ou competência para produzir uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é predeterminado por uma norma geral, ou seja, pode ser conferido ao órgão julgador o poder para criação ex novo de direito material. Isso não significa que o judiciário estaria legislando, uma vez que não se trata de norma geral, mas sim de norma individual, válida unicamente para o caso que tem perante si (KELSEN, 2000, p. 271).

A verdade é que a norma jurídica geral não pode prever todas as particularidades dos casos concretos, assim, no processo de aplicação da norma geral e criação da norma individual, o órgão julgador se depara com elementos que não estão, nem poderiam estar, determinados pela norma geral. Desta forma:

A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual. Mas essa moldura pode ser mais larga ou mais estreita. Ela é o mais larga possível quando a norma jurídica geral positiva apenas contém a atribuição de poder ou competência para a produção da norma jurídica individual, sem preestabelecer o seu conteúdo (KELSEN, 2000, p. 272).

Sobre as lacunas no ordenamento jurídico, Kelsen defende a existência de uma plenitude hermética, ou seja, quando uma ordem jurídica não estatui qualquer dever ao indivíduo de realizar determinada conduta, está, então, permitindo. Ou seja, “o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido” (KELSEN, 2000, p. 270).

Sendo assim, não existiriam lacunas “reais” no ordenamento jurídico, a existência de uma lacuna só é pressuposta quando a ausência de uma norma jurídica é considerada indesejável pelo  órgão aplicador do Direito, do ponto de vista da política jurídica e, por isso, afasta-se a aplicação do direito vigente, que permite aquela conduta, por ser considerada pelo órgão aplicador do direito como não equitativa ou desacertada (KELSEN, 2000, p. 273-274).

Kelsen também prevê a possibilidade dos tribunais criarem normas gerais, para entender tal argumentação, recomendo a leitura do tópico “Criação das normas jurídicas gerais pelos tribunais: o juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica” (KELSEN, 2000, p. 277-283).

Por fim, convém ressaltar que pode parecer, à primeira vista, que a teoria de Kelsen apregoa a existência de um direito destituído de conteúdo axiológico, visto que a norma válida é aquela aplicada ou cumprida devido à ameaça de coação, eliminando, dessa forma, o critério legitimador da democracia, sendo legítimo apenas o direito posto por quem possui o uso da força.

Contudo, esta não seria, na nossa opinião, a melhor forma de se interpretar a teoria pura do direito, visto que afirmar que uma norma é jurídica, não implica dizer que ela é justa ou que exista obrigação moral de obedecê-la. Além do mais, “a legitimidade fundada na mera eficácia do sistema não exclui a possibilidade de exigir que o dito sistema responda ao princípio da soberania popular ou admita certos conteúdos mínimos, que sejam indispensáveis para seu respeito afetivo, segundo a escala de valores que sustentamos” (GUIBOURG, 1986). 


Conclusão

O texto descreveu os principais aspectos da Teoria Pura do Direito, destacando o processo de criação/aplicação da norma jurídica, sobretudo no que se refere à criação judicial do direito, fundada no pressuposto de que existem várias possibilidades de respostas igualmente válidas dentro de um ordenamento jurídico em face de um mesmo caso concreto.

Com isso, destacou-se a grande importância do intérprete do direito na teoria kelseniana, uma vez que o decididor não apenas declara o conteúdo posto na norma, como pretendiam os exegéticos, mas realiza a importante tarefa de aplicação e ao mesmo tempo criação do direito.

 O artigo procurou, ainda, desmistificar a crença de Kelsen apregoava uma total separação entre o direito e os demais sistemas sociais, destacando que a sua proposta foi de uma “teoria pura do direito” e não de uma “teoria do direito puro”.


REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006.

GUIBOURG, Ricardo A. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Chiara. Noções introdutórias sobre o processo de aplicação/criação do Direito segundo o normativismo kelseniano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4013, 27 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29372. Acesso em: 19 abr. 2024.