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A "quarentena" e a nova lei de conflito de interesses

A "quarentena" e a nova lei de conflito de interesses

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Analisam-se as modificações trazidas pela Lei nº 12.813/2013, no que diz respeito ao instituto da "quarentena", que impõe restrições de natureza temporária no período de seis meses após a extinção do vínculo com a administração pública.

1.            A lei que atualmente regula o instituto da “quarentena” é a Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013, que “dispõe sobre o conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo federal e impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego”.

2.            De acordo com o artigo 6º, inciso II, da referida Lei, configura conflito de interesses, pelo período de 6 (seis) meses após o exercício dos cargos mencionados no artigo 2º (ministro de Estado; cargos de natureza especial; presidente, vice-presidente ou diretor de autarquias; cargos do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores – D.A.S, níveis 6 ou 5), salvo quando expressamente autorizado pela Comissão de Ética Pública:

a) prestar, direta ou indiretamente, qualquer tipo de serviço a pessoa física ou jurídica com quem tenha estabelecido relacionamento relevante em razão do exercício do cargo ou emprego;

b) aceitar cargo de administrador ou conselheiro ou estabelecer vínculo profissional com pessoa física ou jurídica que desempenhe atividade relacionada à área de competência do cargo ou emprego ocupado;

c) celebrar com órgãos ou entidades do Poder Executivo federal contratos de serviço, consultoria, assessoramento ou atividades similares, vinculados, ainda que indiretamente, ao órgão ou entidade em que tenha ocupado o cargo ou emprego; ou

d) intervir, direta ou indiretamente, em favor de interesse privado perante órgão ou entidade em que haja ocupado cargo ou emprego ou com o qual tenha estabelecido relacionamento relevante em razão do exercício do cargo ou emprego.

3.            Às restrições acima enumeradas, em rol não taxativo, de natureza temporária (6 meses após a extinção do vínculo com a administração pública), dá-se o nome de “quarentena”.

4.            Além de enumerar, no artigo 6º, algumas hipóteses em que se dá o conflito de interesses após o exercício do cargo público, todas envolvendo o confronto entre interesses públicos e privados, a referida Lei traz uma definição geral sobre conflito de interesses, nos seguintes termos: “situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública” (artigo 3º, inciso I).

5.            Essa definição geral, que abarca as hipóteses enunciadas no artigo 6º, tem como ponto central o confronto entre interesses públicos e privados. Essa definição legal elimina a possibilidade de que se entenda pela existência de conflito de interesse entre a atividade desempenhada pelo agente público no exercício do cargo referido no artigo 2º e as atividades desempenhadas pelo servidor público efetivo, sem cargo comissionado, já que ambas atividades envolvem interesses de mesma natureza, ou seja, o interesse público.

6.            Por isso, presume-se que os servidores públicos efetivos ex-ocupantes de cargo em comissão não têm o dever de cumprir a quarentena, determinada pela Lei nº 12.813/2013, devendo voltar imediatamente ao exercício de suas funções do cargo efetivo, após sua exoneração do cargo comissionado. Consequentemente, também não terão o direito de receber a remuneração compensatória da quarentena, da qual se tratará a seguir.

7.            Embora o artigo 7º da Lei nº 12.813/2013, que previa a remuneração compensatória da quarentena, tenha sido vetado pela Presidência da República, não há dúvidas de que tal remuneração continua vigente, pois a citada Lei não revogou, expressa ou tacitamente, o art. 4º do Decreto nº 4.187/2002[1], que prevê a remuneração dos ex-titulares dos cargos de ministro de Estado, de natureza especial e do Grupo de D.A.S. nível 6 durante a quarentena, em valor correspondente ao do cargo que ocupavam.

8.            O veto presidencial teve por objetivo, justamente, garantir a remuneração ao ex-ocupante do cargo em comissão impedido de trabalhar, durante o período do impedimento. Confiram-se as razões do veto: “A vedação de que o Poder Executivo remunere o ex-ocupante de cargo ou emprego público durante o período de seis meses, no qual as restrições impostas pela lei podem vir a impedi-lo de trabalhar, não é razoável e pode levar a um desinteresse futuro na ocupação de funções públicas”.

9.            A vigência da remuneração compensatória da quarentena (que agora corresponde ao período de 6 meses), extensível aos outros cargos referidos na Lei nº 12.813/2013 e não citados no Decreto nº 4.187/2002, foi expressamente confirmada pela Comissão de Ética Pública (CEP), órgão da Presidência da República, na Nota de Orientação nº 1, de 29 de janeiro de 2014, expedida para fins de interpretação da Lei de Conflito de Interesses e divulgada para todos os Ministros de Estado do Poder Executivo.

10.          Outra importante inovação trazida pela nº 12.813/2013 diz respeito ao seu artigo 8º, segundo o qual compete à Comissão de Ética Pública orientar e dirimir as dúvidas e controvérsias acerca da interpretação das normas que regulam o conflito de interesses, inclusive as estabelecidas nesta Lei (inciso III) e manifestar-se sobre a existência ou não de conflito de interesses nas consultas a elas submetidas (inciso IV).

11.          A tais competências soma-se o disposto no artigo 9º, segundo o qual os agentes públicos ocupantes ou ex-ocupantes (estes últimos no período de 6 meses após deixar o cargo) de cargos de ministro de Estado; de natureza especial; de presidente, vice-presidente ou diretor de autarquias; e de cargos do Grupo D.A.S., níveis 6 ou 5, deverão comunicar, por escrito, à Comissão de Ética Pública, o exercício de atividade privada ou o recebimento de propostas de trabalho que pretende aceitar, contrato ou negócio no setor privado, ainda que não vedadas pelas normas vigentes.

12.          Logo, por esses dispositivos, a remuneração compensatória da quarentena não poderá ser concedida automaticamente, como mera decorrência do exercício dos cargos mencionados no artigo 2º, devendo ser evidenciado, perante a Comissão de Ética Pública, pelo ocupante ou ex-ocupante do cargo público, o confronto entre interesses públicos e privados no qual está envolvido. Essa é a interpretação que a Comissão de Ética Pública conferiu à Lei de Conflito de Interesses, por meio da já mencionada Nota de Orientação nº 1, de 29 de janeiro de 2014.

13.          De acordo com a CEP:

“A remuneração compensatória não deve ser concedida automaticamente em decorrência do exercício do cargo ou emprego, referidos no artigo 2º da Lei nº 12.813/2013, dado que, em algumas situações, poderá, eventualmente, o ex-ocupante não deter informação privilegiada, ou até mesmo o exercício do trabalho privado, a ser desenvolvido após a cessação do vínculo com a administração pública, ter natureza diversa, a não implicar em eventual conflito de interesses.

De sorte que cada situação deve ser analisada de ‘per si’ para que se possa concluir acerca do impedimento, se existente na situação concreta, e caso configurado, para que se reconheça o direito à remuneração compensatória.

Saliente-se que, para tanto, é indispensável a iniciativa daquele que deixou o cargo ou emprego público, no sentido de apontar a ocorrência do possível impedimento, posto que esse dever de evitar o conflito de interesses acompanha o agente público, mesmo extinto o vínculo com a administração pública.

A propósito, o art. 9º da Lei nº 12.813/2013, estabelece que:

Art. 9º  Os agentes públicos mencionados no art. 2o desta Lei, inclusive aqueles que se encontram em gozo de licença ou em período de afastamento, deverão:

I - enviar à Comissão de Ética Pública ou à Controladoria-Geral da União, conforme o caso, anualmente, declaração com informações sobre situação patrimonial, participações societárias, atividades econômicas ou profissionais e indicação sobre a existência de cônjuge, companheiro ou parente, por consanguinidade ou afinidade, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, no exercício de atividades que possam suscitar conflito de interesses; e

II - comunicar por escrito à Comissão de Ética Pública ou à unidade de recursos humanos do órgão ou entidade respectivo, conforme o caso, o exercício de atividade privada ou o recebimento de propostas de trabalho que pretende aceitar, contrato ou negócio no setor privado, ainda que não vedadas pelas normas vigentes, estendendo-se esta obrigação ao período a que se refere o inciso II do art. 6º.

Na mesma esteira, também estabelece o artigo 13 do Código de Conduta da Alta Administração Federal, pois prevê que:

Art. 13.  As propostas de trabalho ou de negócio futuro no setor privado, bem como qualquer negociação que envolva conflito de interesses, deverão ser imediatamente informadas pela autoridade pública à CEP, independentemente da sua aceitação ou rejeição.

Mas não é só. O artigo 10 desse mesmo Código de Conduta da Alta Administração Federal estabelece que:

Art. 10.  No relacionamento com outros órgãos e funcionários da Administração, a autoridade pública deverá esclarecer a existência de eventual conflito de interesses, bem como comunicar qualquer circunstância ou fato impeditivo de sua participação em decisão coletiva ou em órgão colegiado.

Portanto, os ocupantes de cargos ou empregos da administração pública federal direta ou indireta, elencados no art. 2º, da Lei nº 12.813/2013, deverão apresentar à Comissão de Ética Pública ou a Controladoria-Geral da União, conforme o caso, declaração com informações sobre situação patrimonial, participações societárias, atividades econômicas ou profissionais, bem como acerca de seu cônjuge e parentes, além de que deverão comunicar o exercício de atividade privada ou o recebimento de propostas de trabalho que pretende aceitar, contrato ou negócio no setor privado, ainda que não vedadas pelas normas vigentes, estendendo-se esta obrigação ao período posterior à cessação do vínculo com a administração pública, a que se refere o inciso II do art. 6º.

(...)

CONCLUSÃO

(...)

No período de impedimento será devida a remuneração compensatória, dependendo para tanto da demonstração dos requisitos legais e regulamentares pertinentes, sendo que, cada caso deverá ser submetido à Comissão de Ética Pública, desde que referente a autoridades a ela submetidas, ou seja, em relação aos agentes públicos referidos no artigo 2º, incisos I a IV, da Lei nº 12.813/2013.

Os agentes públicos que tenham tido acesso a informações privilegiadas, previstos no parágrafo único do artigo 2º, da Lei nº 12.813/2013, também se submetem ao regime dessa lei, mas não estão sob a égide da Comissão de Ética Pública, mas sim da Controladoria-Geral da União.

A remuneração compensatória não deve ser concedida automaticamente, em decorrência do exercício do cargo ou emprego referidos no artigo 2º, da Lei nº 12.813/2013, dado que, em algumas situações, poderá, eventualmente, o ex-ocupante não deter informação privilegiada, ou até mesmo o exercício do trabalho privado, a ser desenvolvido após a cessação do vínculo com a administração pública, ter natureza diversa, a não implicar em eventual conflito de interesses.

De sorte que cada situação deve ser analisada de ‘per si’ para que se possa concluir acerca do impedimento, se existente na situação concreta, e caso configurado, para que se reconheça o direito à remuneração compensatória, cabendo a iniciativa ao interessado ou, diante de sua inércia, à autoridade que tenha conhecimento da prática da infração, para que sejam adotadas as sanções cabíveis.

Assim, cada situação deve ser analisada, individualmente, pela autoridade que detém tal incumbência, para que se possa concluir acerca do impedimento, se existente na situação concreta, e caso configurado, para que se reconheça o direito à remuneração compensatória.”

14.          Diante do exposto, os ocupantes dos cargos públicos referidos no artigo 2º, incisos I a IV, da Lei nº 12.813/2013 (ministro de Estado; natureza especial; presidente, vice-presidente ou diretor de autarquias; cargos do Grupo D.A.S., níveis 6 ou 5) que se julgaram no direito de receber a remuneração compensatória da quarentena, devem expor, à Comissão de Ética Pública, a sua condição profissional particular, demonstrando a existência do potencial conflito de interesses, que lhe geraria o dever de cumprir a quarentena e, consequentemente, o direito de receber a remuneração correspondente.


Notas

[1] Regulamenta os arts. 6º e 7º da Medida Provisória no 2.225-45, de 4 de setembro de 2001, que dispõem sobre o impedimento de autoridades exercerem atividades ou prestarem serviços após a exoneração do cargo que ocupavam e sobre a remuneração compensatória a elas devida pela União, e dá outras providências.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Daniela Silva. A "quarentena" e a nova lei de conflito de interesses. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4009, 23 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29517. Acesso em: 25 abr. 2024.