Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/30278
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O dogma da separação dos poderes face à eficácia sistêmica das normas constitucionais

O dogma da separação dos poderes face à eficácia sistêmica das normas constitucionais

Publicado em . Elaborado em .

Exame dos contornos atuais do Princípio da Separação dos Poderes sob a ótica da eficácia sistêmica das normas constitucionais e do crescente ativismo judicial identificado no ordenamento jurídico pátrio.

Em essência, a separação dos poderes se consubstancia na diferenciação das funções do Estado (legislativa, administrativa e jurisdicional), atribuindo-se essas funções a órgãos autônomos que as exercerão com preponderância.

Não se apresenta com maiores dificuldades a demonstração de que as funções administrativa e jurisdicional possuem o mesmo núcleo, resultante na aplicação da lei a determinados casos, com diferença no modo em como atuam. De outra forma, há que se considerar que a função legislativa não encerra a produção de normas com característica de generalidade e impessoalidade.

No tempo presente, adquire relevância a compreensão da separação dos poderes como princípio de organização das funções estatais, cuja contribuição tem se mostrado significativa para a especificação do seu valor normativo; no sentido de se examinar a aptidão do princípio para conferir parâmetros de solução em referência à delimitação de competências dos órgãos constitucionais, principalmente em casos incertos e problemáticos como o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa e a inconstitucionalidade por omissão.

É necessário levar em conta que se o princípio da separação dos poderes instituído nas Constituições democráticas hodiernamente está associado, em virtude do contexto histórico e ideológico, ao modelo pensado sob influência do liberalismo. Entretanto, esse princípio não deve ser entendido sem a imprescindível convergência para com um sistema constitucional específico, com características determinadas.

Em vez de invocar qualquer teoria abrangente sobre a separação dos poderes, os operadores do direito devem aplicar ferramentas de interpretação para construir as cláusulas específicas que compõem a estrutura constitucional.

Observem-se os ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho sobre os atuais contornos do preceito em questão:

“A especialização inerente à ‘separação’ é, dessa forma, meramente relativa. Consiste numa predominância no desempenho desta ou daquela função. Cada poder, em caráter secundário, colabora no desempenho de outras funções, pratica atos teoricamente fora de sua esfera.

Inexistente sua base científica, parcial a especialização que produz, que valor deve ser reconhecido à ‘separação’?

(...)

Historicamente, desempenhou ela papel relevante, contribuindo, e não pouco, para a instauração do governo moderado. Hoje, todavia, sua importância costuma ser minimizada; seu fim, profetizado; sua existência, até negada.”[1]

O hasteamento do princípio democrático e do dogma da separação dos poderes como embasamento à elaboração de críticas a temas jurídicos sensíveis deve ser examinado com parcimônia. A função jurisdicional não mais consiste hodiernamente como simples atividade de aplicação formal do direito. O próprio dispositivo legal não traduz realidade objetiva, sendo influenciado em seu sentido pela criação do intérprete.

Na medida em que for considerada a evolução hermenêutica, denotando-se a essência com elementos de composição variados, aliada à faculdade de conhecimento e criação, da atividade de interpretação, proporcionando a concretude normativa, as decisões judiciais são inevitavelmente criativas e inovadoras.

Isto porque as decisões judiciais não originam apenas a norma de decisão, essencial ao processo de efetivação da norma, mas, sobretudo, porque não se restringem à reprodução dos textos da lei, que são desenvolvidos, compatibilizados ou, ainda, aditados no intuito de dispor satisfatoriamente sobre o caso posto à apreciação jurisdicional.

Dentre as diversas formas de controle entre os órgãos estatais, ganha realce o controle jurisdicional, tanto da legalidade administrativa quanto da constitucionalidade das leis, revelando a notória ascensão da atividade judicial. Tendo-se em vista a ideia de controle de Poder por outro Poder, há de se considerar que a função jurisdicional, em sua atual configuração, situa-se em contraposição à função legislativa enquanto instrumento de função política.

A lei não mais encontra validade e eficácia em si, devendo ser compatível com os objetivos, princípios e mandamentos constitucionais. A acepção muitas vezes política do ato normativo enseja que a proteção dos princípios constitucionais e valores jurídicos não deve competir, em derradeira análise, ao órgão legislativo, mas ao órgão judicial.

O Estado de Direito dos tempos atuais apresenta feições de Estado de Jurisdição cumpridor e aplicador do texto constitucional, em que o exercício da função legislativa encontra limites na atuação da função judicial.

Importante registrar que o Poder Constituinte Originário dispõe sobre a prática do Poder Político, nos termos da Constituição Federal. É notória a atenção do legislador originário em conferir e reforçar a força normativa da Constituição, bem como em instituir instrumentos de controle e fiscalização mútuos entre os Poderes constituídos, o que proporciona um exame renovado da harmonização e independência dos Poderes.

Vejamos o que aduz Luis Roberto Barroso sobre a falta de efetividade das normas constitucionais perpetuada pela omissão dos Poderes Públicos:

“A experiência constitucional brasileira, da Independência até o início da vigência da Constituição de 1988, é uma crônica da distância entre intenção e gesto, do desencontro entre norma e realidade. A marca da falta de efetividade, impulsionada pela insinceridade normativa, acompanhou o constitucionalismo brasileiro pelas décadas afora, desde a promessa de igualdade de todos na lei, feita pela carta imperial de 1824 – a do regime militar. Destituídas de normatividade, as Constituições desempenhavam o papel menor, mistificador, de proclamar o que não era verdade e de prometer o que não seria cumprido. Boa parte da responsabilidade por essa disfunção pode ser creditada à omissão dos Poderes Públicos em dar cumprimento às normas constitucionais.”[2]

Não obstante consistir uma das principais preocupações do constituinte de 1988, a inconstitucionalidade por omissão não se mostra plenamente solucionada no ordenamento jurídico pátrio. A propósito, nos países em que se procurou resolver a questão, a exemplo de Alemanha, Itália e Portugal, a problemática acerca da inércia legislativa inconstitucional se depara com dificuldades provenientes da tentativa de conciliação entre a efetividade das normas constitucionais e o princípio da separação dos Poderes.

Importante assimilar o que leciona Konrad Hesse acerca da eficácia das normas constitucionais:

“(...) a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições como elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.”[3]

Examinando-se o processo de realização do Direito, faz-se praticável a constatação de que no início da atividade de hermenêutica encontra-se o enunciado normativo, somente de aparente aplicabilidade, para, então, perceber-se, em volta do texto do dispositivo, a complexidão de interpretações, limites e complementos que disciplinam a sua aplicação no caso concreto e que ampliam o seu conteúdo. Tão notória a espontaneidade com que se recebe e valoriza essa espécie de atividade judicial interpretativa que se eleva a jurisprudência ao patamar de fonte imediata do Direito.

Em certas ocasiões o direito apresenta como resposta à evolução da sociedade a positivação, regulação, ou reconhecimento das relações que emergem nesse contexto. São aplicados às relações sociais insurgentes postulados de direito como o da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Nessa linha, pode ser conferida determinada flexibilidade à interpretação sobre a norma, permitindo-se concepções inovadoras em seu âmbito de aplicação, com reflexo em princípios de conteúdo axiológico, tudo em consonância com um apurado sentido de justiça.

Sendo assim, há de se considerar que o que se denomina, de forma crítica, de ativismo judicial não constitui qualquer transposição do julgador ao exercício de suas prerrogativas, traduzindo necessária integração na função de construir o Direito conjuntamente com o legislador. Deve-se impor, quando pertinente, celeridade e eficiência à atividade legiferante, uma vez que a complexidade do mundo cotidiano não comporta fórmulas políticas tacanhas ou defasadas. Conforme assevera Inocêncio Mártires Coelho “ativismo é, apenas, uma palavra nova com que se critica a velha criação judicial do direito”.[4]

Por obviedade não se deve entender pela juridicização da política de forma plena, sendo evidente que considerável espaço referente aos mecanismos de realização da vontade constitucional de ser disponibilizado ao processo ordinário de edição de atos normativos. Contudo, em casos extremos, em que se vislumbra acomodada, e até obstinada, a falta de efetividade das normas constitucionais, cabe ao órgão judicial solver o saldo negativo de legitimidade democrática referente à atuação legislativa.

Nesse contexto, importante evidenciar que o controle da omissão inconstitucional encontra maior relevância quando evidenciado em Constituições de características compromissárias e dirigentes. É o caso da Constituição Federal de 1988 que, não se limitando a organizar e disciplinar os Poderes, estatui direitos consistentes em prestações materiais exigíveis e determina balizamentos vinculantes aos Poderes constituídos.

Resta indubitável que o progresso na aplicação do mandado de injunção em nosso ordenamento enseja uma análise renovada da separação dos Poderes. Em visões tradicionalistas, esse princípio consiste em um dos principais óbices à efetividade do controle incidental da omissão inconstitucional. No âmbito da doutrina constitucionalista, existem juristas que defendem a ausência de efetividade social do mandado de injunção, sob o fundamento de que o mecanismo excede os contornos das limitações dos Poderes. Nessa linha de pensamento, não teria o órgão judicial a prerrogativa de intervir em atividade de competência do órgão legislativo, em razão da possível deturpação do desígnio da tripartição dos Poderes.

Ainda nessa esteira, argumenta-se que, em vista de um Poder constituído com atribuição de produzir leis, não se mostra admissível a transmudação da função de legislar para outro ente desincumbido de tal tarefa.

O mandado de injunção deve ser analisado em observância ao aludido influxo, na proporção em que nesse instrumento a omissão legislativa é fiscalizada e controlada pelo órgão judicial. Em vista da confluência entre a prevalência da Constituição e o controle mútuo entre os Poderes, faz-se praticável compreender esse mecanismo de controle incidental da inconstitucionalidade por omissão.

Esse panorama possibilita vislumbrar o mandado de injunção como instituto que confere eficácia real e plena ao texto constitucional, dependendo, para tanto, do nível de comprometimento do Judiciário em diligenciar a concretização do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de garantias e direitos fundamentais, fiscalizando, por conseguinte, a discricionariedade dos Poderes Públicos.

Entretanto, é necessário evidenciar que no mandado de injunção não ocorre a transferência da atribuição de legislar para o Judiciário, uma vez que não cabe a esse poder elaborar normas com generalidade e abstração, mas possibilitar o exercício de direitos e liberdades constitucionais em um caso concreto. O órgão judicial se encarrega, em medida mais ampla, de sua função jurisdicional resolvendo, com plenitude, a situação concreta posta em apreciação.

A decisão proferida em mandado de injunção impede a propagação perene da circunstância de afronta à força normativa da Constituição. Note-se que a regulamentação provisória pelo julgador não se apresenta como obstáculo à atuação superveniente do órgão omisso, que fica possibilitado a sair do estado de inércia e conferir tratamento específico ao tema, afastando a regulamentação inicial do Judiciário.

Importante salientar que a legitimidade da determinação judicial de regulamentação provisória nas hipóteses de inconstitucionalidade por omissão não deve ser entendida como afronta à separação dos Poderes, porquanto a própria constituição estatuiu o mandado de injunção como mecanismo apto ao controle da omissão inconstitucional, sendo notório o recorrente entendimento doutrinário de que o efeito da decisão deveria resultar no suprimento da omissão.

A conferência de eficácia generalizada ao regramento temporário proporciona racionalidade ao sistema jurídico e permite o amparo da isonomia, impedindo que situações análogas tenham tratamentos diversos. Evita-se, assim, uma contundente situação de injustiça.

Ademais, observe-se que os Poderes constituídos se encontram submetidos à Constituição. A omissão de outro ente, resultante no sobrestamento de eficácia às normas constitucionais, demonstra-se como embasamento a legitimar a atuação do órgão judicial.

Em face do exposto, verifica-se que o dogma da separação dos poderes, hodiernamente, encontra novos contornos de interpretação e aplicação no ordenamento jurídico pátrio, sobretudo no que respeita à eficácia sistêmica das normas constitucionais e da crescente tendência do ativismo judicial.

Uma sociedade bem ordenada se consubstancia na que é desenvolvida para a consecução do bem de seus integrantes, disciplinada efetivamente por uma concepção de justiça.

A atual configuração das Constituições não autoriza volubilidade aos órgãos judiciais no sentido de atuarem de maneira estritamente negativa, sendo-lhes exigida uma postura direcionada à máxima concretização do desenvolvimento do programa constitucional. Não mais se permite atuação contemplativa daqueles que possuem o dever de imprimir concretude à Constituição.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2011.

COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial ou criação judicial do direito? Disponível em: <http://www.osconstitucionalistas.com.br/ativismo-judicial-ou-criacao-judicial-do-direito>. Acesso em: 22 set. 2013.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

MANNING, John F.. Separation of powers as ordinary interpretation. Harvard law review. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/media/pdf/vol124_manning.pdf>. Acesso em: 21/05/2013.

MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999.

MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional: Garantia da Constituição e controlo da Constitucionalidade – Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

PIÇARRA, NUNO. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: Um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989.

PIOVESAN, Flávia C.. Proteção judicial contra omissões legislativas: Ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução por Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editora Preseça, 1993.


[1] FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 137/138.

[2] BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 270.

[3] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15.

[4] COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial ou criação judicial do direito? Disponível em: <http://www.osconstitucionalistas.com.br/ativismo-judicial-ou-criacao-judicial-do-direito>. Acesso em: 22 set. 2013, p. 5.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHOLZE, Victor. O dogma da separação dos poderes face à eficácia sistêmica das normas constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4241, 10 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30278. Acesso em: 20 abr. 2024.