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A nova dinâmica resolutiva do Ministério Público

A nova dinâmica resolutiva do Ministério Público

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O ensaio aborda a dinâmica resolutiva do Ministério Público brasileiro, fazendo um paralelo entre os dois perfis institucionais preponderantes: demandista e resolutivo. Dentro dessa nova conjuntura são analisados desafios e exigências.

RESUMO: O ensaio aborda a dinâmica resolutiva do Ministério Público brasileiro, fazendo um paralelo entre os dois perfis institucionais preponderantes: demandista e resolutivo. É posta em destaque também a inserção do Ministério Público como uma instituição moldada para defender os interesses, não mais do Estado ou de uma sociedade simplesmente, mas de uma complexa sociedade democrática. Dentro dessa nova conjuntura são analisados desafios e exigências, com o fim de realçar os novos rumos traçados pela instituição frente à expansão e ao aprofundamento do princípio democrático.

Palavras-chave: Ministério Público Resolutivo. Nova dinâmica. Expansão do princípio democrático. Desafios. Exigências.

Sumário: 1- Considerações iniciais. 2- Ministério Público Resolutivo: conceito. 3- Características da dinâmica institucional resolutiva. 3.1- Proatividade. 3.2- Dinamismo. 3.3- Intersetorialidade. 3.4- Intercambialidade. 3.5- Planejamento. 3.6- Inovação. 3.7- Eficiência e gestão de resultados. 4- Busca por uma identidade própria ao Ministério Público. 5- Diferenças entre o MP Demandista e o MP Resolutivo. 5.1- Proatividade e reatividade. 5.2- Assunção e transferência de responsabilidade. 5.3- Proximidade e distanciamento da comunidade. 5.4- Perda e resgate de legitimidade democrática. 5.5- A forma de solucionar os problemas. 5.6- Trabalho criativo versus labor rotineiro. 5.7- Busca por resultados efetivos (ou socialmente relevantes) e a indiferença por resultados extraprocessuais. 6- Estratégias de crescimento institucional que privilegiam o demandismo. 6.1- Alegada hipossuficiência da sociedade e a função paternal da autoridade. 6.2- A prática de “ocupar espaços”. 6.3- Modelo de equiparação ao Judiciário (garantias, prerrogativas, vedações, estrutura e divisão funcional). 7- Causas que levam ao MP Resolutivo. 7.1- Amadurecimento democrático da sociedade (expansão do princípio democrático). 7.2- Crise do Poder Judiciário. 8- Exigências e desafios trazidos pelo novo modelo resolutivo. 8.1- Nova leitura do postulado da independência funcional. 8.2- Insuficiência de recursos materiais e humanos. 8.3- Novo regime de capacitação e mobilização dos agentes ministeriais. 9- Ética dos resultados. 10- Conclusões. Bibliografia.


1- Considerações iniciais

Toda instituição precisa, de tempos em tempos, como uma espécie de regulamentação orgânica de seu próprio crescimento, de um trabalho de reconstituição e de reengenharia de sua estrutura e finalidades funcionais. Isso porque, como diz MacIver (1965, p. 123), uma estrutura política ou administrativa não é mais imutável do que uma estrutura orgânica; é um arcabouço sujeito a todas as forças que atuam na sociedade por ela abrangida. E o Ministério Público não se furta a essa contingência de repensar sua estrutura e sua trajetória dentro da sociedade brasileira[1].

O passado de lutas institucionais do MP para se firmar, constitucionalmente, como uma instituição indispensável para a sociedade brasileira, não pode, no momento de revisar sua estrutura e seus fins, ser esquecido. O seu passado, justamente porque passou, porque se passou com a instituição, continua existindo (integrado ao presente). E também, como observam T. Veblen (1934, p. 9) e Carl J. Friedrich (1972, p. 17), a mudança de padrões e pontos de vista é gradual; ela raramente resulta na subversão ou total supressão de um ponto de vista aceito no passado.

O MP Resolutivo não implica num combate irracional e iconoclasta ao perfil demandista da instituição (e nem poderia em face da Constituição). E sim num fortalecimento do perfil proativo, uma mudança necessária para preservar e não para destruir a própria natureza da instituição. É a junção do passado com o futuro, construindo o presente[2]. É vinho novo despejado em barril velho. Não se luta diretamente contra o passado, pois esquecido ou jogado fora, ele volta irremediavelmente. O futuro o domina quando é nutrido por ele, por suas lições. Não se busca, portanto, inventar um novo Ministério Público.

O presente é o resultado do entrelaçamento da tradição com o progresso, com a mudança necessária. Até mesmo na ciência, adverte Carl Friedrich (1972, p. 40), o progresso é condicionado pela tradição, não é possível fazer qualquer contribuição importante sem conhecer as realizações passadas.

O passado tem uma razão, a sua. Se não lhe damos essa que tem, voltará para reclamá-la, e mais, para impor a que não tem (Ortega y Gasset, 1957, p. 95) com todos os seus sintomas mórbidos. O perfil puramente demandista da instituição tinha uma razão (e ainda tem)[3], e essa razão tem que ser dada per saecula saeculorum. Mas não tinha toda a razão, e essa que não tinha é preciso que lhe seja tirada. É por essa brecha que se insinua o atual elemento resolutivo: é o novo surgindo sobre os traços do antigo.

Não se busca construir uma nova instituição do Ministério Público, como se fosse algo absolutamente novo, sem passado, sem história, sem tradição. Como dizem R. MacIver (1965, p. 269) e B. Magee (1974, p. 74), nenhum admirável mundo novo pode ser construído de novo: a organização mais nova que possamos realizar, não importa quão audaciosos sejam seus experimentos, tem de ser uma continuação do passado e do presente, tal e qual a nova geração de homens é uma continuação dos que se foram antes. A ideia, portanto, de que é viável começar qualquer coisa do nada, sem dívidas para com o passado ou para com os semelhantes, é uma ideia completamente errônea.

Por outro lado também, a história ou o passado não determina o futuro, mas pode limitar ou excluir certas alternativas (Polin, 1972, p. 185). O passado demandista do MP, inscrito em cores fortes na Constituição e na legislação infraconstitucional não impede o desenvolvimento de um perfil resolutivo, mas limita a possibilidade de uma instituição exclusivamente resolutiva, dissociada da demanda judicial.

De qualquer modo, uma instituição flexível e dinâmica sempre está disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe a ser como dever e exigência social. O Ministério Público, enquanto instituição dinâmica, nunca está feito, ou está sempre se fazendo ou se refazendo. Como garantir, por exemplo, o progresso democrático do país? O simples processo de manter esse ambiente democrático já é, por si, extremamente complexo e recheado de sutilezas incalculáveis. Imagine-se, então, o que é necessário para alavancar o progresso, a evolução constante desse élan democrático. Daí, porque, qualquer instituição, a exemplo do MP, que tenha, por imperativo constitucional, uma responsabilidade direta, deve estar permanentemente preparada para as boas práticas exigidas pelo processo e progresso democráticos.

Este perfil resolutivo não se desliga do passado, não o nega, mas tende a ir adiante, atento às novas necessidades sociais e às circunstâncias históricas que apontam para um futuro certo. E fortalece-se com a perspectiva sombria de que o Ministério Público precisa assumir uma identidade própria sob pena de ficar, eternamente, orbitando o Judiciário (condicionando a eficiência de suas funções ao maquinário roto ou emperrado da justiça), ou pior ainda, à deriva no mare magnum das instituições públicas sem rumo definido, sem um programa de ação, sem um projeto identitário[4].

Para se saber aonde vamos é imprescindível termos um caminho prefixado, uma trajetória predeterminada. E essa trajetória e esse planejamento devem ser traçados pelas gerações presentes que vivem o dia-a-dia do MP, não pelo passado ou por quem fez o roteiro do passado. Parafraseando Paine (2007, p. 15), como o MP e toda sua organização foram moldados para os vivos e não para os mortos, são somente os vivos que têm qualquer direito de nele interferir. Aquilo que pode ser considerado correto e conveniente numa época pode ser considerado errado e inconveniente em outra. Em tais casos, a quem cabe decidir, aos vivos ou aos mortos?

Não é fora de propósito lembrar as lições de John Stuart Mill (1964, p. 07) e Popper (1998, p. 81-142), para quem as instituições são obra dos homens (embora vez por outra se ignore a proposição), devendo a origem e a existência inteira (bem como o desenvolvimento) à vontade humana. Não acordaram os homens em manhã de estio para com elas deparar completas. Nem se assemelham às árvores que, uma vez plantadas, “estão sempre a crescer” enquanto os homens “estão a dormir”. Em qualquer estádio da existência são o que são pela atuação voluntária do homem.

As instituições são como fortalezas. Devem ser bem ideadas e guarnecidas de homens. E elas, como alavancas, nos possibilitam fazer realizar qualquer coisa superior à força de nossos músculos. Como máquinas, as instituições multiplicam nosso poder para o bem e para o mal. Como máquinas, necessitam de supervisão inteligente por parte de alguém que compreenda seu modo de funcionar e, acima de tudo, seu objetivo, pois não as podemos construir para que trabalhem de todo automaticamente. Além do mais, sua construção e aperfeiçoamento requer certo conhecimento das regularidades sociais que impõem limitações ao que pode ser realizado pelas instituições.

A reengenharia do Ministério Público foi fruto de uma vontade institucional, um movimento de dentro para fora, pelo empenho de gerações de promotores que, em geral, mais acertaram que erraram. Como diz Arantes (2002, p. 15), foi um movimento endógeno o responsável por transformar a instituição num agente político independente dos outros Poderes do Estado, além de se tornar um instrumento de luta em defesa da sociedade democrática e não simplesmente do Estado.

A capacidade de inserção e de articulação social do MP[5] cresceu de tal forma, e por ter assumido tal proporção tropeça numa organização montada para demandar, exclusivamente, perante o Judiciário, dentro da qual já não cabe. É importante realçar, entretanto, que o passado puramente demandista do Ministério Público fez com que chegasse a essa nova etapa de sua vida institucional; mas, ao mesmo tempo, as estruturas sobreviventes desse passado são insuficientes, por si sós, para a atual expansão resolutiva. E a instituição agora se vê obrigada não a abandonar esse velho perfil, mas a fortalecer um novo estilo de atuação, superando a si própria. E essa intuição, mais uma vez, nasce no seio da própria instituição.


2- Ministério Público Resolutivo: conceito

O Ministério Público Resolutivo é um conceito comparativo e obtido por contraste, pois pressupõe uma relação com a outra face da moeda: o Ministério Público demandista. São dois perfis de necessária convivência, um sendo o complemento do outro. Não obtida a solução para um fato concreto pela atuação resolutiva ou extrajudicial, entra em cena o perfil demandista. E vislumbrada, previamente, a ineficiência de uma abordagem judicial, a atuação resolutiva assume importância decisiva e prioritária.

Essa forma binária de atuação do MP (demandista e resolutiva)[6] exige uma dupla interpretação. E não podemos aceitar que uma dessas formas possa nos parecer de um lado boa e de outro má. As circunstâncias de cada caso ou fato e as escolhas feitas para o devido enfrentamento responderão pelo triunfo ou fracasso do exercício funcional.

O Judiciário, para esse perfil resolutivo ministerial, assume o que sempre deveria ter representado: a ultima ratio, a última trincheira. A composição prévia e extrajudicial dos conflitos ou de eventuais violações à lei pelo Ministério Público insere-se no plano de ação resolutiva como a prima ratio.

A concepção estruturante desse novo perfil institucional, como diz Ortega y Gasset (1987, p. 49) em feliz imagem, não nasceu do ar, como as orquídeas, que se diz serem criadas no ar sem raízes. A ideia de uma instituição resolutiva surge como um desdobramento natural do amadurecimento democrático da sociedade brasileira, que torna o povo mais exigente de resultados e eficiência em relação às suas instituições e serviços públicos, bem como pela natural crise do Poder Judiciário em dar respostas à complexa litigiosidade atual.

Dadas as mudanças aceleradas e a sutileza dos problemas decorrentes, os conceitos herdados de algumas décadas revelam-se hoje inoperantes. Foram úteis para encontrar soluções de fato cem vezes menos sutis que as exigidas na atual conjuntura histórica. Maturescência democrática imersa num mundo globalizado e problemas complexos formam uma cultura que não se satisfaz com as fórmulas antigas. As condições atuais são cada vez mais difíceis e complexas, exigindo que os meios para enfrentá-las (e resolvê-las) sejam também perpassados por uma onda contínua de aperfeiçoamento e renovação.

O MP Resolutivo não se presta a uma definição rígida; trata-se de uma tendência e não de algo já concretizado. A definição perfeita só se aplica a uma realidade completa (Bergson, 1994, p. 13). A um estado, não a uma tendência.

Temperados por essas considerações, podemos, então, definir o MP Resolutivo como uma instituição que assume uma identidade proativa específica, atuando antes que os fatos se tornem irremediavelmente patológicos e conflituosos, utilizando seu poder de articulação e mecanismos extrajudiciais para equacioná-los sem a necessidade de acionar ou demandar, como prima ratio, a justiça.


3- Características da dinâmica institucional resolutiva

3.1- Proatividade

A postura proativa pode ser definida como a busca espontânea por novos paradigmas e boas práticas no ambiente de trabalho, equacionando e antecipando-se aos problemas, dentro de uma projeção de resultados que agregue valor aos fins institucionais. Seus principais atributos são: iniciativa, contínuo aperfeiçoamento, planejamento e superação de dificuldades.

O Ministério Público de perfil antigo (ou clássico, como queiram) se caracteriza por simplesmente reagir aos fatos sociais, aguardando que os fatos se tornem patológicos, conflituosos, para serem submetidos ao crivo judicial. É uma postura institucional reativa (inercial, fragmentária) a negar parcela valiosa de atribuições extrajudiciais do MP e que, claramente, se inspira no antigo art. 1º. da Lei Complementar n. 40/81:

“O Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...”.

Esse entendimento responde por uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo (Barroso, 1996, p. 396).

Essa mentalidade reativa conta ainda com defensores (Costa Machado, 1998:74) e ainda prevalece, embora não mais atenda às exigências da cidadania inclusiva no mundo globalizado. Além disso, o Ministério Público preponderantemente demandista, dependente do Judiciário, é um desastre, pois o Poder Judiciário continua a responder mal às demandas que envolvem os direitos massificados e os pleitos da cidadania (Goulart, 1998, p. 120; Almeida/Parise, 2005, p. 612; Sadek/Lima/Araújo, 2001, p. 41).

O caráter reativo bem como a instrumentalização do MP na tarefa de apaziguamento social são teses insustentáveis na atual quadra histórica e atreladas ainda a uma interpretação nostálgica da ordem jurídica destronada com a CF/88. Que o Ministério Público é indispensável ao Judiciário, na realização do mister institucional deste (prestação da tutela jurisdicional), não há a menor dúvida (Rodrigues, 1999, p. 128; Porto, 1998, p. 17). Mas outras funções, tão ou mais importantes, são desenvolvidas extrajudicialmente, tanto que o próprio art. 127, da Constituição de 88 ao dizer que o MP é essencial à função jurisdicional do Estado, acrescenta-lhe a incumbência da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, aspectos mais abrangentes e igualmente relevantes da vida de um Estado, que não são necessariamente desenvolvidos perante o Judiciário.

Quando instaura inquérito civil, fiscaliza fundações, prisões e delegacias de polícia, promove audiências públicas para discutir problemas comunitários ou ainda quando estabelece compromissos de ajustamento, nota-se que o Ministério Público alarga e extrapola a órbita judicial, daí ter dito o legislador constituinte menos do que devia, na medida em que a instituição também se revela essencial em tarefas não jurisdicionais a si incumbidas (Porto, 1998:17).

A fatia de atribuições extrajudiciais (um rol sempre crescente) tem obrigado a instituição a adotar uma postura assumidamente proativa e resolutiva, em que passa a concentrar seus recursos e esforços na busca de respostas preventivas para os problemas comunitários. Ao invés de reagir contra incidentes ou fatos consumados (que em boa parte das vezes não encontram uma solução adequada com a submissão judicial), o MP passa a trabalhar para a solução dos próprios problemas em conjunto com a comunidade[7]. Neste novo perfil institucional, o promotor de justiça, como dizia Nietzsche (2004, p. 255), deve ser um homem antecipador, ou seja, deve se antecipar aos fatos, o que pressupõe uma nova atitude mental e uma renovada disposição para a ação.

3.2- Dinamismo

Dentro de uma sociedade estática, conservadora ou fixa, uma instituição burocrática e pesada pode sobreviver e até se revelar indispensável, pois não existem alternativas, e se existem, o caminho que leva até elas inexiste. Numa sociedade sem mudanças, o presente escraviza-se à reprodução do passado, os problemas são sempre os mesmos e as soluções passam de geração para geração, sem modificações apreciáveis. O espaço para a especulação e a crítica é limitado: a função do pensamento não é questionar, mas aceitar uma dada situação.

Num meio social dinâmico, entretanto, onde são criadas sem cessar novas tendências ou alternativas e em que as mudanças processam-se num ritmo alucinante, as instituições precisam ser flexíveis, dinâmicas e eficientes, pois se permanecem imobilizadas na tradição estão fadadas ao colapso. Como dizia Bacon (Uris, 1967, p. 218), aquele que não aplica novos remédios, deve esperar novos males. As soluções de hoje podem se tornar os problemas de amanhã, exigindo-se das instituições públicas agilidade, flexibilidade e uma capacidade de adaptação às exigências modernas. E acima de tudo, espera-se que o foco institucional esteja voltado para eficiência e resultados.

Como diz C. Julien (1975, p. 117), “toda instituição que se torna puramente defensiva num mundo em que as condições de existência, as técnicas de produção, as ideias recebidas e as inspirações dos povos se transformam rapidamente e são alteradas pelo próprio ritmo de uma vida diária que se recusa a ser reduzida a um simples ritual, acaba morrendo”. Diante da perene mudança dos assuntos humanos e sociais, com seus conflitos, inconvenientes e perigos sempre recorrentes, é necessário fazer frente por meio de novos recursos e artifícios a fim de que tudo siga, pelo menos, tão bem como anteriormente.

Esse ambiente social cambiante requer um perfil diferenciado de Ministério Público, não mais meramente demandista ou parecerista, e sim dotado da capacidade de buscar resultados (estando aberto a inovações e aperfeiçoamentos) e de enfrentar, se necessário, o caudal dos interesses econômicos e políticos. E para nadar contra a corrente, como parece ser da natureza histórica da instituição, ela deve contar com bons nadadores, ágeis, dinâmicos e resolutivos.

3.3- Intersetorialidade

A intersetorialidade ou transetorialidade consiste na articulação entre órgãos públicos, instituições e diversos outros setores da sociedade civil, integrando interesses, necessidades, conhecimentos (experiências) e poderes, com o fim de enfrentar os problemas sociais cada vez mais complexos. Implica numa forma nova de administrar, de governar e de moldar políticas públicas capazes de agregar todo o potencial cooperativo das estruturas sociais em prol dos objetivos definidos institucionalmente. Antes de ser um conceito teórico, a intersetorialidade é uma prática social voltada ao enfrentamento de problemas reais.

A necessidade de coordenação do Ministério Público com outros órgãos e entidades funda-se na perspectiva moderna do relativo descrédito do conhecimento cartesiano e setorial que já não consegue trabalhar com a multiplicidade de variáveis que tornam os problemas sociais impossíveis de uma leitura pela visão unilateral ou escoteira de uma instituição especializada. Cada instituição detém uma parte da verdade, das explicações, dos saberes, mas não da totalidade. Em relação a todas as técnicas que não pertecem à sua estrita área de atuação, o técnico é tão ignorante quanto o cidadão comum. A tecnificação do mundo tem como inevitável contrapartida certa extensão da ignorância humana. E quanto mais o saber-fazer se diferencia e aumenta em eficácia, menos é possível o controle intelectual do homem sobre o conjunto das operações que efetua ou das quais participa (Fougeyrollas, 1960:11/12).

O atual estágio da ciência exige uma nova visão de mundo, diferente e não fragmentada. A abordagem que analisa e tenta compreender o mundo em partes independentes já não funciona. Já não se pode prescindir de uma visão mais ampla, integradora, global, para que a mente humana funcione de modo mais harmonioso no sentido de colaborar para a construção de uma sociedade mais ordenada, justa, humana, fraterna, estável e segura (Moraes, 1997:20; Behrens, 1999, pp. 383-403).

Há na sociedade, paralelamente, órgãos públicos e entidades da sociedade civil atuando isolados, em setores, sobre necessidades e expectativas sociais. Na segurança pública, por exemplo, temos de um lado, a polícia, o Ministério Público, o Judiciário, o sistema prisional, cada um com seus princípios, suas metas, suas estratégias, trabalhando sobre o mesmo fundo. E de outro lado, trabalhando sobre o mesmo tema, mas com princípios, estratégias e metas próprias, temos outros atores como associações diversas, entidades não governamentais de defesa dos direitos humanos etc. As forças, as experiências, os interesses embora ligados pela identidade do problema social, acabam dispersando-se e pulverizando-se em atuações isoladas, setoriais, em prejuízo de resultados produtivos, concretos e duráveis sob o pálio da cooperação, coordenação e intersetorialidade.

3.4- Intercambialidade

Todas as características da dinâmica institucional resolutiva se implicam e se interpõem. Para termos agentes ministeriais proativos, por exemplo, fazem-se necessárias três coisas: conhecimento sobre sua área de atuação, saber como os colegas trabalham e adquirir (ou trocar) experiências com eles. Os dois últimos pontos são impossíveis se não é estabelecido um diálogo institucional interno ou uma intercambialidade.

A Constituição ao dotar o Ministério Público de unidade e indivisibilidade (art. 127, § 1º, CF)[8], possibilitou a qualquer agente ministerial que, ao atuar, impute sua vontade funcional à instituição (Carneiro, 1995, pp. 43-44). Qualquer ato praticado por um promotor ou procurador de justiça, no exercício de suas funções, automaticamente é atribuído ao Ministério Público. Não há dualidade de pessoas (ente curador dos direitos ou interesses – MP – e a pessoa que os exerce – membro) como na representação, legal ou voluntária. Há unidade: é uma só pessoa – a pessoa coletiva, a instituição – que persegue o seu interesse, mas mediante pessoas físicas – as que formam a vontade, as que são suportes ou titulares dos órgãos[9].

Diante disso, seria extremamente traumática para a instituição a existência de tantos interesses ou vontades quantos fossem o número de membros a compô-la. Ou ainda, a justaposição de promotorias mais ou menos especializadas, sem diálogo e sem cooperação entre si. Não haveria convergência de energias, mas o caos anárquico e improdutivo conducente a uma espécie de anomia institucional. Os múltiplos agentes independentes devem repousar suas individualidades e idiossincrasias sobre um núcleo irredutível que confira uma base segura para o desempenho linear das funções da instituição[10] e não sobre fatores irracionais que interferem no curso da ação individual. Esse núcleo não é outro senão a ordem jurídica e o diálogo institucional.

O diálogo institucional ou a solidariedade interna entre os agentes do Ministério Público, com delimitação precisa de atribuições, disposição de atuar em conjunto e uma interação funcional sujeita a princípios, normas e regras, onde cada órgão pode complementar a atividade do outro, é o passo decisivo para uma gestão fundada no resultado. Isso porque a reunião de uma série de energias (os diversos membros numa instituição) gera um somatório razoável, mas a multiplicação dessas energias reunidas só é possível se entre elas estabelece-se um diálogo ou uma forma de comunicação produtiva.

As múltiplas promotorias especializadas com suas respectivas atribuições de uma grande comarca representam a expansão, por imperativo das dimensões demográficas, da promotoria solitária e conglobante de uma comarca pequena. A promotoria única com seu promotor titular engloba em si todas as especialidades de um grande centro: proteção ao idoso e às pessoas portadoras de deficiência, infância e juventude, criminal (acidentes de trânsito, drogas, Júri, violência doméstica, execução penal etc), família, meio ambiente e urbanismo, fazenda pública, proteção ao consumidor, patrimônio público, cidadania, registro público, acidente de trabalho etc.

Numa promotoria única todas essas atribuições são exercidas por um único agente. O diálogo e a intercomunicação entre elas (atribuições) são fundamentais para aferir os resultados alcançados pelo Promotor de Justiça. E seria impensável, para o êxito funcional, que o promotor não vislumbrasse uma continuidade e uma interlocução entre suas diversas atribuições[11]. Nos grandes centros e comarcas a mesma questão é posta: necessidade de diálogo e intercomunicação entre as diversas atribuições. Mas em tal contexto especializado estabelecem-se espaços isolados infensos ao diálogo e ao cooperativismo (numa espécie de integração horizontal). A multiplicidade de agentes, de ideias e de percepções aliada a uma deficiente estruturação normativa resulta num caos funcional e em tremenda dissipação de energia e dinheiro público.

Esse caos ou anarquia funcional reduz a eficiência, a eficácia e a efetividade das funções ministeriais. As diversas forças e energias da instituição, que numa promotoria genérica são convergentes, nas diversas promotorias especializadas são divergentes e dissipadas em atuações estanques e descontínuas. As informações de uma promotoria não são acessíveis, em tempo real, por outra promotoria. E, com isso, muitas vezes, ocorrem conflitos positivos ou negativos de atribuições, cujo deslinde tardio representa pesado golpe no perfil resolutivo da instituição.

O Ministério Público se debate, na prática, entre a independência funcional de seus agentes moldando um corpo heterogêneo, desunido, flutuante e de curso instável, ao sabor das idiossincrasias de cada um e, de outro lado, com a necessidade do diálogo institucional interno plasmador de um corpo uno e homogêneo, atuando sob o signo de uma energia convergente. Na disputa entre esses dois pólos, temos o desperdício de recursos públicos e muita energia coletiva (cujo símbolo, por exemplo, são os eternos conflitos de atribuições, em regra, negativos), resultados que não atendem ao interesse público em tempos de orçamentos curtos e busca ansiosa por eficiência e resultados.

Para alcançar esse diálogo institucional alguns desafios devem ser postos claramente: I- criação de condições efetivas para os órgãos de execução e de administração atuarem como uma equipe (com unicidade de propósitos), estabelecendo uma rede estreita de vínculos e compromissos; II- estabelecimento de condições para enfrentar diferenças internas criando motivação para ações cooperadas; III- extrair da interação entre os órgãos cooperantes soluções capazes de mudar a realidade (retroalimentando a aliança orgânica); IV- eliminação ou expurgo da cultura burocrática avessa ao diálogo e ao agir compartilhado (que pressupõe uma atitude mental absolutamente nova[12]); V- aumento das redes de comunicações formais (relatórios, circulares, memorandos, reuniões etc) e redução das informais (Lapassade/Lourau, 1972, p. 103).

Debates, estudos, intercâmbio de informações, realização periódica de congressos (estaduais, regionais e nacionais) reunindo a categoria, assim como as campanhas internas para os cargos eletivos dos órgãos superiores e da associação de classe criam espaços de formulação e discussão de temas jurídicos e problemas institucionais (Silva, 2001, p. 130). Essas atividades geram um discurso próprio à categoria e, em consequência, um diálogo permanente.

3.5- Planejamento

É certo que o MP ainda goza de amplo prestígio social, mesmo contando com um modelo de atuação antigo e claramente superado (demandista), e um novo que ainda luta para se impor na mentalidade dos membros (resolutivo). Esse prestígio social deve-se mais ao êxito de iniciativas individuais de agentes ministeriais do que como decorrência natural de um modelo de gestão baseado num planejamento estratégico.

A instituição não pode avançar rumo ao futuro sobre os velhos trilhos de tentativa e de erros, típico modelo de um passado recente. Impõe-se um planejamento estratégico-institucional capaz de assegurar uma justa correspondência entre as demandas ou expectativas sociais e os resultados apresentados pela instituição.

3.6- Inovação

A inovação pode se referir a uma ideia, método ou objeto concebido que foge aos padrões anteriores, às fórmulas consagradas. No caso do Ministério Público, a postura inovadora pode ser definida como a capacidade de fazer mais e melhor (com ganho de eficiência) com menos recursos, na prestação de serviços afetos à instituição.

No perfil demandista, o poder de inovar da instituição sofre grande limitação, pois o membro acaba confinado à função passiva de acompanhar fórmulas processuais e acaba desenvolvendo um trabalho rotineiro, mecânico e burocrático. Além disso, os problemas são submetidos a um estreito exercício intelectual (a clássica lógica legal-racional) e há uma solene indiferença por resultados extra-autos.

O verdadeiro espaço que se abre ao inovadorismo institucional é o modelo resolutivo, em que o agente ministerial assume a responsabilidade pela condução de problemas complexos sem fórmulas pré-definidas para a solução. Nesse roteiro, o agente ministerial desenvolve um trabalho criativo, pragmático, detendo o domínio de seu curso e buscando resultados socialmente relevantes.

3.7- Eficiência e gestão de resultados

Os membros do MP, até pela forma rigorosa de seleção a que se submetem para ingressar na instituição, detêm um invejável cabedal jurídico e cultural. Na função também passam a deter prerrogativas e dispor de mecanismos jurídicos aptos a serem utilizados para tentar mudar a realidade de sua comarca, para tentar criar coisas que façam a diferença e não apenas para executar um trabalho burocrático (apresentando-se à sociedade como um ramo especializado da burocracia). Assumem o supremo desafio de aplicar a lei em uma sociedade submetida a rápidas e constantes transformações[13].

As necessidades sociais, os modos de vida, a organização das relações entre os homens evoluem e evoluirão sem cessar segundo o progresso das ciências e das técnicas. Devido ao progresso do pensamento e do conhecimento e ao aumento do domínio sobre as forças do mundo físico, passaram a existir novas possibilidades de crescimento, dando origem a novas exigências que devem ser satisfeitas, se não se quiser frustrar aqueles que as manifestam (Russell, 1958, p. 13). Como diz o sociólogo alemão Leopold von Wiese (1932:41), a “eterna mudança das coisas só permite o surgimento de fenômenos circunstancialmente condicionados”, ou seja, que se submetem ao vai-e-vem histórico. Neste movimento dialético, tensões e conflitos são constantes. Iniciativas e ajustes, igualmente, surgem como necessários a cada estágio (Marchais, 1974, p. 25). E é nesta etapa que a atuação do membro do MP pode ser muito útil à sociedade.

Instituições como o Ministério Público tendem a enfraquecer e estiolar-se quando fracassam em satisfazer os anseios de justiça e de liberdade dos homens. Assim, no dizer de Bertand Russell (1958, p. 15-16), se se quiser o desenvolvimento de uma sociedade orgânica, é necessário que as nossas instituições sejam fundamentalmente transformadas de molde a representarem esse novo respeito pelo indivíduo e pelos seus direitos, exigido pelo sentimento moderno.

O direito, instrumento que é dado ao Ministério Público manusear, nasce da vida e à vida serve[14]. E a vida é um complexo homogêneo de funções: fisiológicas, psíquicas, sociais, assim como físico-químicas, que se defronta constantemente com novos problemas a exigir novas soluções. O direito, e por via de consequência, o Ministério Público, não pode, diante dessa realidade cambiante, ser apenas um instrumento de estabilização e de ordem[15]. Assume, por imperiosa necessidade da vida, uma função revolucionária: mudar para preservar ou resgatar uma ordem justa.

O Direito guarda uma inocultável vocação pragmática, estando predisposto, como instrumento da sã racionalidade humana, a resolver e equacionar problemas. Não se fazem leis pelo prazer bizantino de fazê-las[16], mas para montar esquemas práticos de proteção de interesses e anseios legítimos dos cidadãos.

Um sistema jurídico não é montado com o fim de ser apreciado em seus detalhes teóricos ou sutilezas estéticas, mas para lidar com questões práticas e funcionais, criar normas de regulação do convívio humano, propiciar a resolução justa de conflitos, garantir a adoção de medidas ordenadoras etc. O ethos do Direito é profundamente pragmático e utilitário.

Para evitar a terrível acusação de um jurista americano de que o “direito é apenas um mecanismo vazio, desprovido de conteúdo específico próprio e recebendo seu conteúdo das várias instituições não-jurídicas” (Hall, n/d, p. 111), o Ministério Público, como um dos principais aplicadores e intérpretes do Direito, assume a responsabilidade de pensar a ciência jurídica e seus mecanismos como alavancas de progresso social dentro de uma cultura de inovação e de contínuo reajuste. E para isso é preciso sair dos gabinetes e encontrar com o Direito nas ruas, deixando de ser apenas um feixe de competências a serviço do Estado (Foucault, 1979:09).

Chegado a esse ponto, percebemos, claramente, que o Ministério Público se debate entre dois tipos ideais de promotor: promotor de gabinete e promotor de fatos. O primeiro tipo pode ser definido como aquele que, embora utilize procedimentos extrajudiciais no exercício de suas funções, dá tanta ou mais relevância à proposição de medidas judiciais e ao exame e parecer dos processos judiciais dos quais está encarregado. Detalhe: o promotor de gabinete não usa os procedimentos extrajudiciais como meios de negociação, articulação e mobilização de organismos governamentais e não governamentais. O segundo tipo, o promotor de fatos, conquanto proponha medidas judiciais e realize atividades burocráticas ligadas à sua área, dá tanta ou mais importância ao uso de procedimentos extrajudiciais, mobilizando recursos da comunidade, acionando organismos governamentais e não governamentais e agindo como articulador político (Silva, 2001, p. 134-135).

Por fim, pode-se dizer que uma gestão da atividade-fim do Ministério Público para alcançar resultados (um Ministério Público resolutivo) deve apresentar algumas características ou adotar certas medidas: I- uma nova cultura organizativa que realce a busca por resultados, pondo destaque na formação de agentes de iniciativa e de mente aberta que escutem com interesse ideias novas; II- introdução de um parâmetro analítico apto a rever o desempenho dos objetivos estratégicos e a forma de sua execução; III- inserção de uma nova mentalidade onde o promotor possa perceber que entre as atribuições constitucionais e a lei tem um significativo espaço para definir suas prioridades e criar métodos de trabalho (Silva, 2001, p. 127); IV- estabelecimento de um diálogo institucional interno entre os diversos órgãos (de execução e de administração) com o fim de otimizar a cooperação e os círculos de inovação. V- criação de um núcleo de estudos e pesquisas em eficiência funcional.


4- Busca por uma identidade própria ao Ministério Público

A consolidação do perfil resolutivo do MP, além de conferir maior agilidade na resolução dos conflitos sociais, empresta uma identidade própria à instituição. Doravante, o MP não se faz conhecido ao povo somente pelo atuar processual, alimentando na cabeça do vulgo a falsa crença de que não passa de um apêndice (passivo) do Judiciário. Esse conjunto de ideias e de práticas que acompanha a dinâmica resolutiva da instituição tem a força de deslocar o centro de gravidade do Ministério Público para si mesmo, afastando-o da dependência ou submissão a elementos extrínsecos e colocando em suas mãos o curso de seu destino.

Estimular e aperfeiçoar os mecanismos resolutivos conquistados pela instituição pode propiciar que ela, por conduzir seus próprios procedimentos e ter o domínio sobre o curso a ser atribuído a cada um, tenha um maior conhecimento sobre suas estruturas e seus mecanismos de ação. Este autoconhecimento institucional implica em um maior fortalecimento no desempenho das atribuições conferidas pela Constituição, pois não pode ser senhor de si e de suas ações quem antes não se compreende. E aqui não podemos esquecer a clássica lição do maior dos estrategistas:

“If you know the enemy and know yourself, you need not fear the result of a hundred battles. If you know yourself but not the enemy, for every victory gained you will also suffer a defeat. If you know neither the enemy nor yourself, you will succumb in every battle” (Tzu, 2003, p. 18)[17].


5- Diferenças entre o MP Demandista e o MP Resolutivo

MP Resolutivo

MP Demandista

Proativo

Reativo

Assunção de responsabilidade

Transferência de responsabilidade

Proximidade com o cidadão

Distanciamento da comunidade

Resgate da legitimidade democrática

Perda de legitimidade democrática

Problemas complexos e sem uma fórmula pré-definida

Problemas submetidos a um exercício intelectual (lógica legal-racional)

Trabalho criativo e pragmático

Trabalho rotineiro e formal

Unidade de ação e domínio de seu curso

Ação difusa, mecânica e burocratizada

Busca por resultados (“fazer a diferença”)

Indiferença por resultados extra-autos (ou extraprocessuais)

Art. 127 da CF: Ao MP incumbe: “...a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Art. 1º. da LC n. 40/81:

“O MP, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...”.

Art. 127 da CF: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado...”.

5.1- Proatividade e reatividade

O Ministério Público de perfil demandista se caracteriza por simplesmente reagir aos fatos sociais, aguardando que os fatos se tornem patológicos, conflituosos, para serem submetidos à apreciação judicial. É uma postura institucional reativa (inercial, fragmentária) a negar parcela valiosa de atribuições extrajudiciais do MP e que se inspira no antigo art. 1º. da Lei Complementar n. 40/81:

“O Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...”.

O fato mais evidente e grave da vida institucional do Ministério Público nos dias de hoje é a manifesta incapacidade dessa velha prática demandista e de outros mecanismos tópicos ligados a essa prática de assegurar a eficiência ao serviço prestado pela instituição. Como ruínas ou escombros, só conservam a aptidão para impedir novas germinações ou o desenvolvimento de novas práticas.

Ultimamente, a instituição tem sido obrigada a adotar uma postura assumidamente proativa e resolutiva, em que seus recursos e esforços são concentrados na busca por respostas preventivas para os problemas comunitários. Ao invés de reagir contra incidentes ou fatos consumados (que em boa parte das vezes não encontram uma solução adequada com o crivo judicial), o MP passa a trabalhar para a solução dos próprios problemas em conjunto com a comunidade. Neste novo perfil institucional, o promotor de justiça assume um caráter antecipador, ou seja, passa a se antecipar aos fatos, nutrindo uma nova atitude mental e uma renovada disposição para a ação.

5.2- Assunção e transferência de responsabilidade

O MP demandista funciona como uma correia de transmissão: simplesmente transmite o conflito social às mãos do Judiciário. E ao transferir perde, sensivelmente, o controle do curso e do tempo da ação para solucionar o conflito, submetendo-se aos mecanismos emperrados da máquina judiciária.

Além disso, assume uma postura burocrática de “evitar responsabilidades” (shuns responsibility – MacIver, 1965, p. 241), refugiando-se por trás da máquina do Judiciário. Duas situações podem ocorrer: a justiça soluciona a contento o conflito ou não. Em ambas as situações, o promotor demandista, de forma oportunista, obterá alguma vantagem. Se o resultado for ineficiente (sem relevância social), terá um bode expiatório ao alcance da mão (a ineficiência judicial); se obtiver êxito na demanda, colherá os frutos de uma demanda iniciada por ele.

Já o perfil resolutivo assume, primariamente, a responsabilidade de conduzir um conflito com o objetivo de encontrar-lhe a solução mais adequada.

5.3- Proximidade e distanciamento da comunidade

O promotor resolutivo, por lidar com problemas cuja abordagem não conta com uma fórmula pré-definida, tende a dialogar mais, a buscar soluções que têm na persuasão um elemento importante, e, por isso, sua proximidade com o cidadão e com a comunidade é maior.

O grande mérito de uma autoridade democrática é fazer com que o poder que lhe é atribuído tenha sua maior expressão na persuasão. As sociedades democráticas impõem um esforço justificativo especial por parte daqueles que exercem o poder. O mero argumento de autoridade já não satisfaz no âmbito de uma cultura que desconfia do poder e que se nutre do pluralismo (Vigo, 2010, p. 56). E no dizer de B. Russell (1949, p. 139), o derradeiro objetivo de qualquer reformador que tenha em vista a liberdade só poderá ser atingido mediante persuasão. A tentativa de impor-se a liberdade pela força (ou naked power, na definição do próprio Russell, 1948, p. 39) sobre aqueles que não desejam aquilo que consideramos liberdade, terá sempre de constituir um fracasso.

Em toda sociedade há um elemento de força e um elemento de persuasão, e onde seu progresso e desenvolvimento dependem mais da persuasão e menos da força, temos uma melhor sociedade (Murray, 1941, p. 50), dada a perspectiva factível de minimização dos conflitos.

Não há espaço na arena jurídica, ensina Atienza (1991, p. 25), para o determinismo metodológico (em que as decisões jurídicas não precisam de uma justificação, porque procedem de uma autoridade legítima ou são o resultado de simples aplicações de normas gerais), nem para o decisionismo metodológico (em que as decisões jurídicas não podem ser justificadas, já que são puros atos de vontade). Exigem-se hoje, em tempos de expansão do princípio democrático, razões justificativas (e não meramente explicativas) onde sejam identificados os valores que tornam a decisão correta, boa e conveniente para uma dada situação.

A aplicação pura e simples da lei sem uma justificação especial, através de meios judiciais, conquista a submissão do cidadão pelo temor da pena, mas não conquista a adesão e a cooperação ativas.

O agente demandista, por conta dos ritos e da linguagem que envolvem os processos judiciais, sem falar na ambiência solene e formal, cava um abismo entre si e a comunidade. Esse distanciamento e desconexão entre o agente ministerial e o sistema social resulta numa deformada e insuficiente resolução dos conflitos de uma sociedade democrática pós-moderna.

5.4- Perda e resgate de legitimidade democrática

O confinamento do promotor em seu gabinete, em torno de prazos e procedimentos mecânicos, torna-o, na prática, um burocrata sem responsabilidade perante a população. Essa burocratização da instituição ministerial afasta-a, cada vez mais, dos parâmetros democráticos. O perfil resolutivo reaproxima os membros da comunidade e de seus problemas, possibilitando o resgate da legitimidade democrática.

5.5- A forma de solucionar os problemas

O Ministério Público demandista encaminha os problemas como num jogo de palavras cruzadas: junta os fatos na horizontal e aguarda as soluções na vertical, num estreito exercício intelectual guiado por fórmulas processuais, mais ou menos mecânicas, num trabalho rotineiro e irracionalizador. A vertente resolutiva da instituição lida com problemas complexos (pois ainda não reduzidos à procedimentalização oficial), carentes de uma abordagem uniforme e ortodoxa e, por isso mesmo, a exigir um trabalho criativo de diálogo e de persuasão, uma nova forma de gestão e de resolução.

5.6- Trabalho criativo ‘versus’ labor rotineiro

A heterogeneidade e a variabilidade dos conflitos conduzidos pelo MP resolutivo exigem uma abordagem distinta e criativa na busca por uma solução substancialmente adequada (relevante socialmente). O agente ministerial resolutivo está especialmente obrigado a ser hoje mais inteligente que ontem e amanhã mais que hoje, a reprimir seus preconceitos, suas limitações e estreitezas intelectuais. Se não houver uma determinação em dar maior evidência, concreção e elegância às atitudes e pensamentos aplicáveis ao exercício de uma função pública fecunda, tudo será em vão.

Todo agente resolutivo está animado de um dinamismo finalista, vez que não se satisfaz com a mera observância das fórmulas legais.

O perfil demandista, por seu turno, contenta-se com respostas processuais, mediante análise rotineira e formal de questões procedimentais. E tudo quanto se torna rotineiro perde, por uma lei universal, segundo Mill (1964, p. 78), o princípio vital e, não possuindo mais espírito atuante diante de si, continua a girar mecanicamente embora a obra a que se destina fique por fazer.

De fato, esse caráter mecânico e infrutífero se revela em muitas ações submetidas à justiça que acabam extintas sem a resolução do mérito, ou seja, não solucionam, efetivamente, o conflito. Isso significa que o Judiciário embora tenha como função “decidir” o conflito, na maioria das vezes não o elimina, a “obra fica por fazer”.

5.7- Busca por resultados efetivos (ou socialmente relevantes) e a indiferença por resultados extraprocessuais

O Ministério Público puramente demandista nunca se preocupou em alcançar resultados socialmente relevantes, conformando-se com os prazos e os resultados processuais. O problema é que a estatística e os números processuais (tanto na área cível quanto na criminal) podem impressionar pela quantidade, mas não repercutem, na forma devida, nos complexos problemas sociais[18].

E por que nas duas décadas seguintes à Constituição, a instituição não despertou para o problema? Isso porque as gerações de agentes ministeriais nutridas por esse modelo não se imaginavam dentro de uma estrutura política maior e cooperativa, com uma responsabilidade sociopolítica bem definida. E com essa postura indiferente, burocrática e mecânica, o MP brasileiro, desde a Constituição de 88 (que em suas disposições já houvera dotado a instituição de uma nova roupagem), contraiu uma séria dívida política com a sociedade brasileira: a de participar ativamente na solução dos problemas sociais que afligem dita sociedade, como insegurança pública, degradação do meio ambiente, corrupção política, caos na saúde e na educação, ineficiência na prestação dos serviços públicos etc.

Essa dívida só começará a ser solvida quando o perfil resolutivo da instituição (já indicado na CF/88, art. 127, caput) for efetivamente consolidado na prática diária dos milhares de promotores de justiça espalhados pelo país. Dotada desse elan resolutivo, a instituição terá condições de lutar por resultados substancialmente relevantes para a sociedade. Mas para isso precisa se colocar, efetivamente, dentro da estrutura política do Estado.


6- Estratégias de crescimento institucional que privilegiam o demandismo

6.1- Alegada hipossuficiência da sociedade e a função paternal da autoridade

Durante os trabalhos constituintes, o MP trabalhou com a hipótese da hipossuficiência da sociedade brasileira para conseguir mecanismos importantes na sua tutela. Conseguiu, inclusive, impedir a criação do ombudsman, sob o argumento de que já existia uma instituição apta a desempenhar as mesmas funções, o próprio Ministério Público. A partir da Constituição de 1988, conforme constata Arantes (2007, p. 327), veio se construindo no Brasil uma espécie de subsistema jurídico, caracterizado pelo surgimento de novas leis que substituem a titularidade individual pela titularidade supraindividual de direitos e por meio do qual o MP vem se transformando em órgão tutelar da sociedade.

O Estado democrático é extremamente expansivo[19] e com pouco senso de responsabilidade histórica, pois tende a exercer uma tutela sobre a sociedade e o indivíduo só comparável ao Estado totalitário. Até mesmo o antigo Estado absoluto, como diz Ortega y Gasset (1987, p. 130), respeitava instintivamente a sociedade. Essa tendência tutelar busca fortalecer o Estado democrático à custa da sociedade e do indivíduo, e para isso, a estratégia é interferir (e restringir) em suas esferas próprias e autônomas. É a criatura nutrindo-se dos criadores.

Quando o Estado ou suas instituições (Ortigão, 1888, p. 136) se constitui protetor ou tutor universal da sociedade torna-se objeto de uma superstição grosseira e perigosa. A fé posta na proteção do Estado é uma derivação da fé no milagre. Essa fé dissolve todas as aptidões, todas as iniciativas, todas as forças de uma sociedade.

Há uma firme crença de que o Estado democrático ao corresponder ao desejo da maioria deve conceder remédio a todas as misérias humanas, de qualquer espécie que sejam. E nestas circunstâncias de aliviar todas as dores, não ocorre a ninguém em pensar se existem outros meios ou recursos para evitar algumas delas ou se aquelas tratadas em cada caso concreto, efetivamente receberam o melhor tratamento (um tratamento compatível com a situação dada). E é claro que a intervenção do Estado a cada desvirtuamento ou miséria da sociedade ou do indivíduo gera uma espécie de círculo vicioso: à medida que aumenta a intervenção governamental, mais se fortalece o pensamento de sua necessidade e com mais insistência pede-se a sua extensão. Instala-se uma espécie de “estatolatria”.

E essa “estatolatria”, vertida no vezo de acionar o Estado para solucionar todo e qualquer problema, acaba tornando a estrutura estatal pesada e ineficiente, pois, como diz Spencer (1977, p. 38), a cada nova regulamentação (ou intervenção) implica a nomeação de novos servidores, aumento da burocracia e do poder dos órgãos administrativos.

A doutrina do estatismo (no caso do MP, o demandismo) implica a estatização da vida, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado, ou seja, a anulação da espontaneidade histórica, que definitivamente sustenta, nutre e impulsiona os destinos humanos. Quando a massa se sente insatisfeita, ou simplesmente tem algum forte desejo, é para ela uma grande tentação essa possibilidade permanente e segura de conseguir tudo – sem esforço, luta, dúvida ou risco -, sem precisar fazer nada além de apertar a mola e ligar a portentosa máquina estatal (no caso, representar ou requerer ao Ministério Público).

Para os defensores do estatismo (Hobhouse, 1927, p. 136), os diretores da democracia são criaturas ignorantes que podem ser arrastadas facilmente pelo caminho que devem seguir, como se fossem ovelhas. A arte de governar consiste em conseguir que os homens façam o que querem as inteligências diretoras, sem que saibam, realmente, o que estão fazendo, conduzindo-lhes sem mostrar-lhes o fim perseguido até que seja já demasiado tarde para voltar atrás.

Essa teoria concebe os homens como conglomerados de seres pessimistas e débeis, a que se deve tratar protetoramente. O Estado não pode ser um narcótico paralisante das ações individuais produtivas, mas um estímulo para o esforço pessoal.

A noção de que a sociedade precisa ser tutelada é uma dessas verdades parciais que levam a erros totais, como o de que o povo ainda não está maduro para viver a democracia plenamente. Daí admitir pré-condições para o exercício da democracia é um desdobramento lógico fácil de alcançar e de aceitar.

Qualquer corpo social cuja autonomia seja permanentemente substituída pela autoridade paternalista é mantido num estado perpétuo de infância e dependência. Consequentemente, se as decisões coletivas sempre forem tomadas por autoridades paternalistas isso significa, muito claramente, que, no âmbito dos negócios públicos, as pessoas jamais sairão da infância política e jamais obterão cidadania plena.

A tutela da sociedade pelo Estado (entenda-se, suas múltiplas instituições) ou uma autoridade de tipo paternal pode até ser legítima, desde que seja provisória e parcial, principalmente em sociedades desassistidas econômica e socialmente (ou imaturas). Isso porque o fim principal dessa tutela é proporcionar a capacidade da sociedade de dirigir-se a si mesma. Se a autoridade estatal prolonga-se para além da época prevista para o seu desaparecimento, falha em alguma coisa; se ela própria prolongar-se, e para tal se organiza, pratica abominável abuso. O uso desse poder tutelar (função paternal da autoridade, no dizer de Y. Simon, 1955, p. 16) tem caráter substitutivo e pedagógico e, portanto, aspira ao próprio desaparecimento.

Em relação ao bem próprio, quer do indivíduo quer do grupo, a possibilidade de autogoverno determina o desaparecimento da autoridade; e a possibilidade de progresso em direção ao autogoverno cria, para a autoridade, a obrigação de encaminhar-se em tal sentido. A indevida procrastinação do autogoverno nunca pode escusar-se com a invocação do princípio de autoridade de tipo paternal, no qual se inclui um requisito: o de gerar a autonomia. Na medida em que um governo (em todos os seus setores) exerce autoridade paternal, é tranquilamente certo afirmar-se que o melhor governo é o que menos governa (Simon, 1955, p. 23). O exercício bem sucedido da autoridade está em condições de desaparecer ou ter reduzido seu alcance.

O dinamismo da autonomia, contido na essência do estatismo ou da autoridade paternal, conforma-se ao espírito democrático, mas seu alcance ainda é maior, pois é traço comum a todo governo justo, democrático ou não. Um regime democrático que procede de acordo com a justiça não pode exercer autoridade do tipo paternal sem se dedicar, ao mesmo tempo, e de forma completa, ao esforço de criação da autonomia. Mas um regime não-democrático, desde que justo, não agirá diferentemente. É uma questão de justiça, não de democracia, a extinção da autoridade paternal por força da possível realização da autonomia (pessoal e coletiva).

O estatismo é precário e um sucedâneo à autorregulação social, e não oferece meios eficientes para uma educação cívica do povo. Isto só vivendo a democracia, pois é o ambiente democrático o melhor educandário para o povo, onde ele passará a aprender dentro do próprio processo democrático, tornando-se responsável por seu destino; sem vivência democrática não se formará no povo a ideia do que seja democracia (os hábitos democráticos, só praticando, se adquirem), o que, similarmente, ocorre com o cego de nascença que não tem a noção de cor, nem o surdo a dos sons, e que experimentam um choque quando pela primeira vez são expostos a tais sensações. Bom ou ruim, o som e a cor devem ser experimentados pelo indivíduo falto de sensibilidade apurada, assim como a democracia, pelo povo carecido de condições ideais de cultura ou de riqueza.

A prática democrática com seus desdobramentos procedimentais (igualdade política, sufrágio universal, participação efetiva etc.) é tão importante que chega a neutralizar diferenças de capacitação intelectual. Para esta neutralização basta que seja conferido um considerável relevo à informação e à discussão dos negócios públicos, com exposição clara das questões para possibilitar um entendimento perfeito por parte do cidadão participante.

Se a melhor ordem política é aquela na qual os membros ganham, individual e coletivamente, maturidade e responsabilidade ao enfrentar escolhas morais, isso significa que eles devem ter a oportunidade de agir com autonomia. Assim como a autonomia individual necessariamente inclui a oportunidade de errar, bem como a de agir corretamente, isso também se aplica a um povo. Na medida em que um povo é privado da oportunidade de agir com autonomia e é governado por guardiães (instituições como Ministério Público, Judiciário etc.), ele tem menos probabilidade de desenvolver um senso de responsabilidade por suas ações coletivas. Na medida em que é autônomo, ele pode às vezes errar e agir injustamente (Dahl, 2012, p. 306), mas com o tempo aprenderá a agir com responsabilidade e justiça.

Ao adotar a hipossuficiência da sociedade para se arvorar em seu defensor legítimo, o Ministério Público adotou uma política institucional de vistas curtas e fortaleceu o estatismo, implícito em tal doutrina (retardando o ímpeto emancipatório da sociedade brasileira), e privilegiou o seu perfil demandista, pois era a vitrine que, na época, melhor o expunha aos olhos da sociedade.

Todavia, a emancipação da sociedade civil da autoridade paternal ou do estatismo libera energias novas, para cujo domínio requer-se um revigorado esforço e uma nova mentalidade institucional. E essa nova mentalidade parece ser a via que leva ao Ministério Público Resolutivo.

6.2- A prática de “ocupar espaços”

Historicamente, o Ministério Público adotou a política de “ocupar espaços” a todo transe, numa ampliação de suas atribuições como forma de firmar-se e fortalecer-se como Instituição (Rodrigues, 1999, p. 133; Sinhoretto, 2006, p. 173) [20]. Além disso, o legislador infraconstitucional tem, a todo propósito, aberto novas formas de intervenção do MP, seja quando regula a proteção ao idoso, à criança e ao adolescente, ao portador de deficiência etc., seja no que se refere a questões fundiárias, parcelamento do solo urbano, usucapião, defesa de investidores no mercado financeiro etc.

Há, sem dúvida alguma, como fruto dessas posturas uma sobrecarga funcional dos membros do Ministério Público na área civil nem sempre compatível com a letra e o espírito da Constituição Federal. Por tal perspectiva não é difícil lobrigar a impossibilidade prática da instituição de se desincumbir de todas essas atribuições de forma, substancial e formalmente, adequada. E essas dificuldades funcionais têm rendido algumas críticas nem sempre justas. No dizer de Marchais (1974, p. 44) “sobrecarregam o burro e gritam com indignação quando ele tropeça”.

Se uma instituição é criada e estruturada constitucionalmente com o propósito expresso e exclusivo de atender certos objetivos, é provável que realize essa tarefa com alguma vitalidade. Todavia, se os objetivos não são bem definidos ou são desvirtuados, abrindo margem a que se agreguem novas atribuições, há uma tendência natural a certo relaxamento institucional no desempenho. Por isso que a política de “ocupar espaços” pelo MP trouxe inúmeros prejuízos à instituição, cujo preço começa a ser cobrado pela insurgência de contrainstituições.

Atualmente, a preocupação sobre as atribuições do Ministério Público gira em torno da eficiência e da efetividade da intervenção do MP, especificamente, no processo cível. E para tanto, a solução que se apresenta, jurídica e tecnicamente adequada, é uma categoria dialeticamente paradoxal: a restrição/ampliação de suas atribuições. A restrição diz respeito às atribuições compatíveis com sua finalidade constitucional (“defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”). A ampliação liga-se à atuação, dentro destes limites finalísticos e constitucionais, de forma qualificada e com largos mecanismos disponíveis, dentro da máxima consagrada de que quem tem fins deve dispor de meios. Esse enxugamento de atribuições, sob o foco da Constituição, ajuda a tornar a instituição flexível e adaptada às potencialidades e exigências de uma nova época em que a busca por resultados e eficiência é o núcleo vital.

6.3- Modelo de equiparação ao Judiciário (garantias, prerrogativas, vedações, estrutura e divisão funcional)

O Ministério Público adotou durante anos, como fórmula de crescimento e evolução institucional, a equiparação à Magistratura. Cresceu, permitam-nos o prosaísmo, como uma anêmona grudada num tubarão! Graças a isto e a toda uma doutrina construída em torno, a instituição se firmou como essencial e fundamental ao regime democrático, sendo insculpida constitucionalmente em matizes bem fortes.

Todavia, tudo tem seu preço: a assemelhação ao Poder Judiciário, que se refletiu em sua organização administrativa e de carreira, em sua postura funcional, na natureza de suas atribuições, provocou um fenômeno que se poderia chamar de “jurisdicionalização” do Ministério Público e perda de identidade.

Há quase 20 anos, Freyesleben (1993, p. 162-163) escrevia que o Ministério Público “recebeu novas e importantes atribuições com a nova ordem constitucional sem a correspondente estrutura para exercê-las a contento. E que a estrutura foi criada e é mantida para ser composta de Promotores de Justiça pareceristas. O grande defeito do Ministério Público está em seguir vivendo à semelhança da estrutura do Judiciário. Este sim, pode e deve ter estrutura de pareceristas! O Ministério Público é dividido em entrâncias e em instâncias, porque assim se divide o Judiciário. Na administração, possui os mesmos e correlatos órgãos, alterada a denominação, mas funcionando identicamente e para os mesmos propósitos. Não há uma única Promotoria de Justiça que não exista em razão de uma Vara. Esse é o problema estrutural do Ministério Público e que, se não resolvido, continuará lhe afetando e emperrando.(...) A maior dificuldade residirá na ruptura com uma mentalidade que não consegue ver um promotor sem juiz”.

Toda essa doutrina de equiparação e de simetria colocou o Ministério Público na órbita do Judiciário como um satélite, uma peça acessória, sem identidade e sem um objetivo institucional que não seja o de, eternamente, despachar processos e cumprir prazos processuais, alheio aos reais problemas sociais que constituem o pano de fundo de todo litígio ou demanda judicial.

Ao adotar esse hábito mimético, pleiteando todas as garantias do Judiciário ao longo de sua evolução institucional, o MP colheu onde não semeou. Esgotado este modelo, assume a instituição a hercúlea tarefa de arregaçar as mangas e provar, com trabalho eficiente, que faz jus a todas as garantias e prerrogativas que lhe foram atribuídas por descolamento da estrutura judiciária.


7- Causas que levam ao MP Resolutivo

7.1- Amadurecimento democrático da sociedade (expansão do princípio democrático)

Vivemos um novo movimento, uma nova onda, que poderíamos denominar de a segunda onda da era contemporânea do Ministério Público. É o movimento da eficiência, da busca por resultados e legitimidade social, de um novo perfil institucional mais adequado à quadra histórica de aprofundamento e amadurecimento democrático.

Esse movimento é simbolizado pela Emenda Constitucional n. 19 de 1998 que, dentre outras medidas, guindou a eficiência a princípio constitucional da Administração Pública, ao lado da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

Se uma lição segura pode ser extraída da história política é a seguinte: o povo é impelido por vários sentimentos e impulsos conflitivos, tendo necessidades e exigências que variam de tempos e tempos (MacIver, 1965, p. 08). Por isso, o ambiente democrático gera demandas com muita rapidez, mas se revela lento em atendê-las. Ou como diz N. Bobbio (1986, p. 36), a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil. E essa tendência reivindicativa da sociedade aprofunda-se com o processo de amadurecimento democrático, com a sociedade tornando-se cada vez mais cônscia de seus direitos, exigente e participativa.

O desenvolvimento pessoal (e coletivo) que alguns autores atribuem à cidadania numa ordem democrática é, em grande parte, um desenvolvimento moral (Dahl, 2012, p. 163): a aquisição de um senso mais maduro de responsabilidade pelos próprios atos, uma consciência mais ampla dos efeitos dos próprios atos sobre outrem, uma disposição maior para refletir sobre as consequências desses atos para os outros e também para levá-las em consideração e assim por diante. É provável que poucas pessoas venham a contestar a premissa normativa de que é desejável promover o crescimento dessas qualidades.

O ímpeto ascensional da cidadania democrática sempre foi um fator atuante nas incessantes transformações do Estado. Toda a estrutura de poder, em consequência, sofre um processo contínuo de mudança. Todo avanço ou conquista social aumenta o ímpeto por novas conquistas.

Forças novas penetram em nossa sociedade como o largo desenvolvimento tecnológico com suas repercussões sociais e econômicas, o incremento da industrialização, especialização e alto nível de urbanização, uma grande diversidade ocupacional, ampla alfabetização, a organização de poderosos grupos industriais e financeiros, de organismos internos e externos, a facilidade das comunicações e um ritmo avassalador de mudanças. Tudo isso revoluciona os encargos e as responsabilidades do Estado e de suas instituições.

À medida que a sociedade democrática evolui, bem como se intensificam o sentimento democrático e os instrumentos postos à sua disposição, cresce também seu nível de exigência em relação ao Ministério Público. Se a instituição deixa de responder eficazmente às contínuas e cada vez mais complexas demandas sociais (Júnior, 2005, p. 714), corre o risco de, cedo ou tarde, ter sua legitimidade de defensora da sociedade questionada.

7.2- Crise do Poder Judiciário

O Judiciário sempre se notabilizou por ser uma instituição extremamente conservadora. De acordo com Wollkmer (2000, p. 186), os magistrados são homens de mentalidade conservadora em relação a todos os grandes problemas econômicos, sociais e políticos de sua sociedade. As autoridades governamentais, responsáveis pela nomeação e promoção dos juízes, buscam, quase sempre, favorecer aqueles que justamente possuam tais concepções reacionárias.

No cenário pré-88 (e até nos poucos anos seguintes à promulgação da Constituição), bem ou mal, o Judiciário respondia às demandas da sociedade e do MP (ainda não tornadas complexas pela expansão do princípio democrático). E como o Ministério Público (demandista) retirava seus dividendos de reconhecimento da atuação perante o Judiciário, esse modelo atendia plenamente às expectativas institucionais.

No momento em que o Judiciário se mostrou ineficiente em atender às novas demandas de novos tempos (interesses coletivos, difusos e metaindividuais)[21], e sendo o Ministério Público o agente mais importante na defesa de direitos coletivos pela via judicial, a instituição se ressentiu (afinal sua sorte estava atrelada à do Judiciário e não gozava do status de “Poder”). E essa inoperância coincidiu com uma maior exigência da sociedade por eficiência de suas instituições. A partir daí, o Ministério Público se viu obrigado a buscar novas alternativas de fortalecimento institucional, visto que o puro demandismo era modelo esgotado ou, no mínimo, em profunda crise.


8- Exigências e desafios trazidos pelo novo modelo resolutivo

8.1- Nova leitura do postulado da independência funcional

Como já dissemos acima, a Constituição ao dotar o Ministério Público de unidade e indivisibilidade (art. 127, § 1º, CF), possibilitou a qualquer agente ministerial que, ao atuar (com base no Direito e em sua consciência), impute sua vontade funcional à instituição (Carneiro, 1995, pp. 43-44). Qualquer ato praticado por um promotor ou procurador de justiça, no exercício de suas funções, automaticamente é atribuído ao Ministério Público. Não há dualidade de pessoas (ente curador dos direitos ou interesses – MP – e a pessoa que os exerce – membro) como na representação, legal ou voluntária. Há unidade: é uma só pessoa – a pessoa coletiva, a instituição – que persegue o seu interesse, mas mediante pessoas físicas – as que formam a vontade, as que são suportes ou titulares dos órgãos.

Diante disso, seria extremamente traumática para a instituição a existência de tantos interesses ou vontades quantos fossem o número de membros a compô-la. Ou ainda, a justaposição de promotorias mais ou menos especializadas, sem diálogo e sem cooperação entre si. Não haveria convergência de energias, mas o caos anárquico e improdutivo conducente a uma espécie de anomia institucional, comprometendo todo o esforço coletivo antes que, pelo seu desenvolvimento necessário, tenha sequer a oportunidade de exercer-se. Os múltiplos agentes independentes devem repousar suas individualidades e idiossincrasias sobre um núcleo irredutível que confira uma base segura para o desempenho linear das funções da instituição e não sobre fatores irracionais que interferem no curso da ação individual.

Todas as atividades desenvolvidas pelo Ministério Público obedecem a uma série de atos organizados de tal forma que conduz a um fim previamente traçado. É o que se chama de racionalidade funcional. Todavia, no caso específico do MP, agrega-se a racionalidade substancial, pois todos os atos, embora previamente traçados pelo legislador (racionalidade funcional), também devem ser pensados durante sua realização pelos agentes (racionalidade substancial), atentos à finalidade última, ao valor funcional de cada ato em relação ao todo e dotados da faculdade de atuar em situações dadas com capacidade de juízo reflexivo, construindo uma própria inteligência das conexões. E é neste ponto que entra a independência funcional com sua carga valorativa.

A independência funcional colocada diante da racionalidade funcional/substancial leva, necessariamente, ao fenômeno da autorracionalização. E por autorracionalização entende-se o controle sistemático dos impulsos que o indivíduo se impõe de antemão quando quer realizar ou ser inserido numa estrutura objetiva de atividade funcional-racional (Mannheim, 1969, p. 42). O objetivo do todo exige que sentimentos, impulsos e traços idiossincráticos sejam, senão sacrificados, pelo menos regulados em níveis razoáveis, o que restringe a independência funcional, relativizando-a.

Um promotor do meio ambiente busca na sua atividade um aspecto específico do bem comum, mas há, ao lado dele, um corpo institucional que transcende a divisão de trabalho e tem como objeto próprio o bem comum geral, do qual diferentes aspectos constituem outros tantos objetivos próprios de cada um de seus membros, quando estes não se reúnem nem atuam como um corpo. Reunidos todos os agentes, o promotor do meio ambiente, por exemplo, não é mais apenas um membro cuja ação está dedicada exclusivamente ao meio ambiente; é, na circunstância apontada, um membro da instituição dedicado aos fins institucionais gerais, compreendidos e desejados em sua integridade, com todas as relações de prioridade e intercambialidade que implica o bem comum de uma sociedade. É uma tarefa árdua, todavia, abstrair do exercício de uma função ministerial específica para ressaltar o zelo pelos fins gerais da instituição. Aqui nos defrontamos com o maior dos inimigos: os hábitos mentais dos especialistas.

É certo que os membros de uma estrutura administrativa e funcional (a exemplo do Ministério Público), com frequência, não compreendem, de modo suficientemente claro, o que, coletivamente, estão fazendo e nem sempre desejam, com igual entusiasmo, o efeito de sua ação comum. Isso indica que na medida em que há falta de conhecimento ou de engajamento afetivo (vontade, devotamento e elevado senso de dever), relativamente ao objeto de ação comum, a instituição acaba sendo precariamente integrada, insuficientemente organizada e com um padrão incerto de eficiência.

Fortemente influenciada por antigos princípios doutrinários hauridos da tradição francesa, diz Mazzilli (2002), a Constituição brasileira de 1988 consagrou como princípios institucionais do Ministério Público a unidade e a indivisibilidade, mas, em vez de a eles acrescentar o princípio hierárquico do Parquet francês, ao lado dos primeiros somou o princípio da independência funcional.

Carvalho/Leitão (2010, p. 403) em estudo sobre o novo desenho institucional do Ministério Público e o processo de judicialização da política concluem que a independência funcional dos promotores e a consequente falta de uma estrutura hierárquica criam uma barreira à formação de políticas institucionais uniformes. Por um lado, existe alguma vantagem, já que os promotores e procuradores têm mais liberdade para se adaptar às realidades específicas, “podendo tomar medidas inovadoras que seriam dificultadas se fosse necessário esperar uma ordem da cúpula do Ministério Público” (Kerche, 2003, p. 119)[22]. Por outro lado, esse desenho diminui a garantia de que todos os cidadãos devem ter seus direitos defendidos de forma isônoma.

De fato, como diz Yves Simon (1955, p. 27), a unidade de ação depende da unidade de juízo, e esta se obtém por via da unanimidade ou por via da autoridade; terceira hipótese não é concebível. Ou bem julgamos todos que devemos agir de um determinado modo, ou damos por entendido, entre nós, que, sejam quais forem nossas preferências, assentiremos em uma só decisão e seguiremos a linha de ação que ela prescreve. Pode o juízo em questão ser formulado por uma pessoa com função dirigente, pela maioria, ou por uma maioria dentro de uma minoria dirigente: no caso, a diferença é mínima. Mas submeter-me a um juízo que não exprime, ou pelo menos pode não exprimir, o meu ponto de vista próprio, a respeito de algo a se fazer, é obedecer a uma autoridade. Logo, se é incerta a unanimidade, e só quando o é, torna-se necessária a autoridade para assegurar a unidade de ação. O ponto está em saber se haverá um modo melhor que o casual de estabelecer unanimidade entre agentes independentes.

Se não podemos formatar a unidade de ação sobre o requisito da autoridade pelo fato da instituição não possuir e nem aceitar (constitucionalmente) uma estrutura hierarquizada (no viés funcional), sempre é possível que haja unanimidade ou assentimento majoritário em torno de propostas de ação, basta que sua demonstração se evidencie a todos (com inteligências científica e institucionalmente bem preparadas). Além disso, num meio funcional constituído de agentes perfeitamente inteligentes, bem informados e com a virtuose do Direito, haverá seguramente acordo entre eles, relativamente a juízos prudenciais que se refiram à melhor forma de alcançar e preservar o interesse público da comunidade – acordo que não é devido a nenhuma demonstração, mas à retidão comum de suas aspirações jurídicas e institucionais para o fim público.

É óbvio que a problemática da situação não reside no fim, mas nos meios para alcançar o fim. Se existe mais de um meio para obter o bem comum, nenhum deles goza de superioridade e não há fundamento de espécie alguma para a unanimidade. Qualquer divergência é permitida, sem que importe em erro de vontade ou de inteligência. No caso do Ministério Público, o único meio disponível para atingir o fim comum é o Direito, sendo tanto possível a unidade de ação (por unanimidade ou assentimento majoritário) quanto a exclusão da autoridade para a ação uniforme. Todavia, a independência funcional fundada na consciência de cada agente é um elemento que gera indeterminação dos meios para alcançar o fim. Variáveis como a falta de cultura, espírito de rotina, deficiência de intercambialidade e posições político-ideológicas fazem surgir uma pluralidade de meios onde, na realidade, existiria um meio só.

Como destaca Fiona Macaulay (2005, p. 20), a estrutura do Ministério Público com as suas unidades especializadas e de alto grau de autonomia, resulta em “células” ativistas relativamente isoladas de seus colegas e superiores e de outras instituições de justiça. Além disso, pulveriza as suas ações de acordo com as visões pessoais de seus agentes (ressentindo-se de uma certa homogeneidade de ação).

É por isso que o princípio da independência funcional deve ser pensado e operacionalizado sobre novas bases, de modo a impedir que a atuação da instituição disperse-se em múltiplas atuações individualistas e fragmentadas, sem obedecer a um somatório organizado de esforços tendente ao cumprimento das metas e atingimento dos objetivos estratégicos traçados institucionalmente.

8.2- Insuficiência de recursos materiais e humanos

A assunção e a implantação consciente desse novo modelo resolutivo não podem ficar limitadas às iniciativas individuais de membros à frente de seu tempo, mas deve ser fruto de um planejamento estratégico da própria instituição. Como objeto de uma ação coletiva e institucional, o novo método de atuação vai exigir um maior aporte de recursos materiais e humanos.

O atual modelo demandista requer da instituição para funcionar um espaço físico mínimo (muitas vezes não pertence à instituição, mas é cedido nas dependências dos fóruns e tribunais), material de escritório e tempo. Já o perfil resolutivo, por implicar num projeto identitário, exigirá, além de uma profunda (e permanente) capacitação dos membros, novos serviços auxiliares (como equipe técnica pericial e multidisciplinar – contadores, técnicos ambientais, especialistas em saúde, educação etc.), programas de aperfeiçoamento contínuo dos servidores etc.

8.3- Novo regime de capacitação e mobilização dos agentes ministeriais

Com a ineficiência do modelo puramente demandista em responder às demandas ou aos conflitos sociais, surge no horizonte institucional meios alternativos de resolução de conflitos. Esses meios, entretanto, pressupõem que a instituição esteja devidamente aparelhada, tanto em estrutura física quanto humana, para fazer frente aos novos desafios.

Como esse novo momento institucional implica numa quebra de paradigma, é necessário que os agentes ministeriais estejam devidamente capacitados para exercer as novas funções que se espera deles. Mediação, negociação, transação e conciliação são alguns mecanismos que, doravante, farão parte do manual de atuação do Ministério Público. Portanto, técnicas de persuasão, de diálogo e de articulação deverão, necessariamente, fazer parte de seu aperfeiçoamento funcional.


9- Ética dos resultados

A busca por resultados não pode romper com as amarras éticas que pautam a instituição. Entre a ética dos princípios (amparada na moral deontológica como a kantiana) e a ética dos resultados ou das consequências (alavancada numa moral teleológica como a utilitarista), o pêndulo deve sempre acertar o compasso pela primeira. E nem poderia ser diferente, pois o Ministério Público é uma instituição jurídica que se desenvolve num Estado democrático de direito (entenda-se governo das leis e moderno constitucionalismo) e embora seja “presentada” por chamados agentes políticos não desempenha uma atividade designadamente político-partidária ou político-ideológica.

Como diz Bobbio (2011, p. 74), quem age segundo princípios não se preocupa com o resultado das próprias ações: faz aquilo que deve, e que aconteça o que for possível (ética da convicção ou dos princípios). Por outro lado, quem se preocupa exclusivamente com o resultado, não procede com muita sutileza no que diz respeito à conformidade com os princípios: faz aquilo que é necessário para que aconteça aquilo que deseja (ética da responsabilidade ou dos resultados).

O juízo positivo ou negativo da ação desenvolvida pelo MP não será aferido, tão-somente, pelo sucesso ou insucesso de suas iniciativas. É possível uma coincidência entre os dois juízos (ética dos princípios e dos resultados), mas a verdade é que na maioria das vezes não. A observância de um princípio dá bons resultados ou os bons resultados só podem ser alcançados observando-se os princípios, mas, por vezes, principalmente no âmbito político, os efeitos bons dependem de certo afastamento ou completa inobservância dos princípios.

Diante da ética dos princípios estaria o MP impedido de buscar resultados? Não. O MP não pretende exclusivamente o resultado, mas o busca dentro da moldura das normas e dos princípios característicos do Estado democrático de direito. Até porque os meios devem ser apropriados ao fim, vistos como caminhos para o fim, constituindo, por assim dizer, o próprio fim em processo de elaboração (Maritain, 1966, p. 60). Corresponde à hierarquia dos meios em que a ordem dos meios corresponde à ordem dos fins. Um fim digno (justiça, liberdade, segurança etc.) deve ser buscado por meios dignos.

O desvio de meios não se justifica nem pelos mais nobres e elevados fins, pois, no futuro, podem servir a outros propósitos e finalidades desagasalhadas da excelsitude ética.

Além de tudo isso, como a resolutividade se dá, principalmente, no campo extraprocessual, o espaço para manobras (articulação, diálogo e estratégias de atuação) é bem maior e, portanto, é possível fazer uso de uma moral teleológica sem romper os limites éticos (derivados da ética dos princípios) autoimpostos à instituição.


10- Conclusões

Frequentemente, o prestígio ou a autoridade gozada por algumas instituições durante um tempo considerável parece evaporar-se subitamente. Evapora-se pelo fato de fracassar em compartilhar novos valores e novos anseios sociais. Isso as priva da capacidade de uma reelaboração racional de um novo curso às suas práticas funcionais. Se o MP não acordar para a nova realidade social e não buscar um reajustamento adequado pode, com facilidade, inserir-se no rol dessas instituições que perderam o ritmo da história.

Uma sociedade em constante mudança requer um contínuo reajuste de suas instituições para atender eficientemente às novas demandas. O Ministério Público, nesse contexto, apresenta-se como uma instituição moldada para defender os interesses, não mais do Estado ou de uma sociedade simplesmente, mas de uma complexa sociedade democrática. Dentro desses objetivos alguns desafios são postos e sintetizados nas conclusões seguintes:

I- O MP Resolutivo define-se como uma instituição que assume uma identidade proativa específica, atuando antes que os fatos se tornem irremediavelmente patológicos e conflituosos, utilizando seu poder de articulação e mecanismos extrajudiciais para equacioná-los sem a necessidade de demandar, como prima ratio, a justiça.

II- O caráter resolutivo não implica num combate irracional e iconoclasta ao perfil demandista da instituição (e nem poderia em face da Constituição). E sim num fortalecimento do perfil proativo. Este perfil resolutivo não se desliga do passado, não o nega, mas tende a ir adiante, atento às novas necessidades sociais e às circunstâncias históricas que apontam para um futuro certo. O Ministério Público exclusivamente demandista cumpriu sua história. Agora, para continuar sendo útil deve ceder espaço e dividir a cena com o Ministério Público Resolutivo.

III- A dinâmica institucional resolutiva apresenta alguns atributos indispensáveis como proatividade, dinamismo, intersetorialidade, relação interna dialogal, planejamento, inovação, eficiência e gestão de resultados.

IV- São estratégias de crescimento institucional que privilegiam o perfil demandista da instituição: alegada hipossuficiência da sociedade, doutrina de “ocupar espaços” e modelo de equiparação ao Judiciário.

V- São causas que levam ao perfil resolutivo do Ministério Público: expansão do princípio democrático (amadurecimento democrático da sociedade) e crise do Poder Judiciário (ineficiência em responder às novas demandas sociais).

VI- O modelo resolutivo traz algumas exigências e desafios ao Ministério Público como: nova leitura do postulado da independência funcional; novo regime de capacitação e mobilização dos agentes ministeriais; e insuficiência de recursos materiais e humanos disponíveis à instituição.

VII- O princípio da independência funcional deve ser pensado e operacionalizado sobre novas bases, de modo a impedir que a atuação da instituição disperse-se em múltiplas atuações individualistas e fragmentadas, sem obedecer a um somatório organizado de esforços tendente ao cumprimento das metas e atingimento dos objetivos estratégicos traçados institucionalmente. A cooperação e o diálogo interno podem temperar, nos limites constitucionais, o novo desenho desse princípio, fazendo com que a instituição ganhe vigor resolutivo.

VIII- O atual perfil binário do Ministério Público (demandista e resolutivo) engendra dois tipos bem definidos de agentes. De um lado, o promotor demandista (ou de gabinete): propositor de medidas judiciais e reativo; agente burocrático e processual; parecerista; preocupado com prazos e resultados processuais. De outro, o promotor resolutivo: agente antecipador e proativo (nova atitude mental e renovada disposição para a ação); agente político articulador; agente preocupado com positivas transformações na realidade social.

IX- O MP não é mais uma instituição que se ajusta mimeticamente à realidade, mas que aceita e acompanha as mudanças sociais e se revela capaz de resolver os novos problemas que o cenário comunitário lhe apresenta. E nesta perspectiva, o MP não se coloca apenas como mais um ator inserido nessa sociedade dinâmica, mas como um agente promotor dos reajustes sociais.

X- A consolidação do perfil resolutivo do MP, além de conferir maior agilidade na resolução dos conflitos sociais, confere uma identidade própria à instituição, fugindo à cega mecânica do demandismo. Esse conjunto de ideias e de práticas que acompanha a dinâmica resolutiva tem a força de deslocar o centro de gravidade do Ministério Público para si mesmo, afastando-o da dependência ou submissão ao demandismo judiciário e colocando em suas mãos o curso de seu destino.


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Notas

[1] Uma instituição como o Ministério Público não deve recear ser reformada, aperfeiçoada em sua atuação funcional ou ter alguns conceitos submetidos a uma permanente revisão crítica, pois isso sugere que ela é imprescindível e capaz de ter uma estrutura mais eficiente. No dizer de Ortega y Gasset (1957, p. 148), “the best that humanly speaking can be said of anything is that it requires to be reformed, for that fact implies that it is indispensable, and that it is capable of new life”.

[2] Para Ortega y Gasset (1987, p. 30), o presente é apenas a presença do passado e do futuro, o lugar onde efetivamente existe passado e futuro.

[3] Ao enfatizar a relatividade entre tradição e modernidade ou o entrelaçamento de tradicionalismo e progressismo, Carl Friedrich (1972, p. 20) afirma que nada é bom só porque existiu por um longo tempo, assim como nada é ruim porque deixou de existir (ou de ser aceito em determinado momento).

[4] Sem um plano ou uma estratégia identitária, o MP corre o risco de ficar à deriva, entregue à cega mecânica do demandismo.

[5] Essas características credenciam os membros do MP como excelentes “interlocutores institucionais” com ampla legitimidade deliberativa.

[6] Na verdade, o perfil do MP pode ser, mais precisamente, dividido em três: demandista (propositor ou promotor de medidas judiciais), parecerista (atuação como custos legis em ações não promovidas pela instituição) e resolutivo (atuação extrajudicial). O perfil parecerista, focado na intervenção opinativa em alguns feitos cíveis, sofreu duro golpe com a Recomendação n. 16, de 28.04.2010, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

[7] Os mecanismos para isso existem às mancheias, e sempre surgem novos, engendrados por uma saudável cultura de inovação que se dissemina entre os membros do Ministério Público.

[8] Sobre os aludidos princípios e o alcance conceitual vide Nogueira, 1992, p. 81; Sauwen Filho, 1999, pp. 209-210; Donizetti, 2009, p. 152.

[9] Diante desses princípios, talvez não seja correto dizer que entre a instituição do MP e seus membros estabeleça-se uma relação metassociológica de todo e parte. Essas equações tendem a se confundirem.

[10] Agindo conjuntamente sobre o mesmo objeto (defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis), os membros do MP coordenam as suas condutas e a conduta total passa a possuir uma unidade análoga à de um grupo de músculos num movimento coordenado (Siches, 1968, p. 427).

[11] Um único agente é capaz de ser mais unificado em seus atos do que um grupo, e muito mais unificado do que vários grupos cooperando uns com os outros (Keller, 1967:110).

[12] Thoreau, o curioso naturalista/filósofo americano, de modo perspicaz achava que as reformas materiais de nossas instituições não se realizariam sem que houvesse, preliminarmente, uma reforma interior do indivíduo e que, se esta última se realizasse, a primeira passaria a ser supérflua (Dreiser, s/d, p. 169).

[13] Sociedade a que Hermann Heller (1968, p. 235) apropriadamente designa de “sociedade de mutação”.

[14] Não sem razão Carlos Maximiliano, citando Jean Cruet, diz: “A jurisprudência é um perpétuo comentário, que se afasta dos textos ainda mais porque é, malgrado seu, atraída pela vida” (s/d, p. 69).

[15] O direito embora condicionado pelas realidades (cultural, econômica, social e política) do meio em que se manifesta, age também como elemento condicionante. Há uma ativa interação entre todos os componentes de um complexo cultural. Cada um desses componentes ou elementos que exercem influência na vida social são, ao mesmo tempo, condicionante e condicionado. Assim, por exemplo, o fenômeno jurídico é, por esse modo, reflexo da realidade social circundante, mas também fator condicionante dessa realidade.

[16] Diz textualmente Sieyès (1988, p. 04-05): “Não se fazem leis pelo prazer de fazê-las…O legislador é estabelecido não para conceder senão para proteger nossos direitos”. O direito deve ser entendido como uma regulação predominantemente útil (Zippelius, 1997, p. 31; Ferrara, 1987, p. 130).

[17] Tradução livre: “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, você não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece, mas não o inimigo, para cada vitória ganha você sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, você sucumbirá em cada batalha”.

[18] Nesse ponto ainda assiste razão a Herbert Spencer (1908, p. 68) quando diz que o Estado, nos pleitos, se preocupa mais em atender as regras do combate (normas processuais) do que fazer justiça à parte lesada (solucionar ou eliminar o conflito).

[19] “Todo poder político, seja tirânico ou democrático, é por essência, expansivo” (Gadamer, 2001, p. 90).

[20] O Ministério Público por muitos anos procurou atribuições, sendo generoso o legislador, sempre se lembrando da instituição quando não tinha para quem destinar as atribuições. Os tempos mudaram e o Ministério Público precisa abdicar de atribuições que não digam respeito ao seu novo perfil constitucional. É preciso conscientização de novos tempos e coragem de deixar de lado atribuições dispensáveis, de interesse individual e de pouca ou nenhuma repercussão social (Santin, 1999, p. 141).

[21] A dificuldade de obter uma tutela jurisdicional satisfatória no âmbito dos direitos sociais reside no caráter coletivo desses direitos. Ainda que se possa dizer que cada indivíduo tenha um direito à saúde, um direito à educação, ao trabalho e à moradia, a realização desses direitos é algo que só é possível se pensada coletivamente. Os procedimentos judiciais, sobretudo no Brasil, não estão, contudo, aptos a dar vazão a pretensões judiciais dessa natureza. Todo direito processual é pensado - e as raríssimas exceções não mudam esse quadro – para uma litigância individual (Silva, 2011, p. 243).

[22] É inegável que a independência funcional gera novos pensamentos, ideias e ações inovadoras, impensáveis numa estrutura hierarquizada. A inovação, o passo a frente, decorre mais de uma insatisfação individual, do que propriamente de um desejo do grupo homogêneo. 


Autor

  • João Gaspar Rodrigues

    Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. A nova dinâmica resolutiva do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4240, 9 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30584. Acesso em: 23 abr. 2024.