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Jogador de futebol: mercadoria ou empregado?

Jogador de futebol: mercadoria ou empregado?

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Abordam-se os aspectos normativos do contrato de trabalho e da transação de jogadores de futebol. Partindo de uma análise histórica do tema, procuramos elucidar conceitos do Direito Desportivo. O caso Oscar permite uma interpretação sistêmica do presente estudo.

Resumo: O presente artigo visa a abordar, de forma didática e sucinta, os aspectos normativos do contrato de trabalho e da transação de jogadores de futebol. Partindo de uma análise histórica do tema — passando-se pela extinção do passe através da edição da Lei Pelé (9.615/98) e pela forma como se aplica, de modo acessório à relação empregatícia, o vínculo desportivo do atleta com o seu clube —, procuramos elucidar alguns conceitos, frequentemente mal compreendidos pelos próprios profissionais que atuam no âmbito desportivo, de suma importância para o entendimento da matéria, quais sejam, o passe, a cláusula indenizatória desportiva, a multa rescisória e os direitos federativos e econômicos. Por fim, analisamos o caso do jogador Oscar dos Santos Emboaba Junior, sob a ótica normativa — delineada no artigo —, contrapondo-a à midiática (o caso Oscar permite uma interpretação sistêmica do presente estudo).          

Palavras-chave: Direito desportivo. Passe. Lei Pelé (Lei 9.615/1998). Esporte. Futebol. Transferência de jogadores. Caso Oscar.


1.         INTRODUÇÃO

A maioria das conclusões a que chegaremos aplica-se às modalidades desportivas em geral, de modo que a eleição do futebol como objeto de estudo deu-se única e tão somente em razão da aproximação do povo brasileiro com essa modalidade e do caso eleito como paradigma — o caso Oscar.

O futebol alcançou espaço especial sob os holofotes do esporte mundial, tornando-se cada vez mais valorizado e atraindo investimentos milionários. Megatransferências, como as de Neymar ou de Cristiano Ronaldo, roubam as capas dos periódicos desportivos e afagam a curiosidade popular, em especial a do brasileiro, e tornam-se carro-chefe das conversas, seja em bares, em restaurantes, em escolas ou em locais de trabalho.

Acontece que no afã das discussões, e mesmo nos noticiários teoricamente especializados, percebe-se um total desconhecimento dos institutos que regem essa relação desportiva. O mal uso de conceitos como “passe”, “compra”, “venda”, “multa”, “transferência” e diversos outros recorrentemente geram inquietações e até indignações dos torcedores mais apaixonados, que veem seus ídolos deixando os clubes pelos quais têm grande admiração.

Cotidianamente, e em razão mesmo desses equívocos, atletas, torcedores, jornalistas e cartolas pronunciam frases como as seguintes: “São Paulo deixa de ser dono do jogador Oscar”; “Real Madrid garante a compra do craque Cristiano Ronaldo”; “Empresa de investimentos compra parte do passe de Paulo Henrique Ganso”; “Neymar recebe apenas uma pequena parte do valor de sua própria negociação”; “Por que os jogadores de futebol podem ser vendidos para outro clube e eu não posso ser vendido para outra empresa do mesmo ramo da minha?”; dentre outras.

Pois bem. Apesar de recorrentes, essas frases possuem vícios de conceitos fundamentais, que uma vez esclarecidos poderão tornar mais aceitáveis os resultados das negociações e a destinação de suas verbas. É à clarificação desse tema — tão presente em nossos dias, quanto equivocadamente interpretado pelos próprios profissionais que atuam no âmbito desportivo — que nos dedicaremos, visando a tornar compreensível cada uma das expressões utilizadas, como “passe”, “cláusula compensatória”, “cláusula indenizatória”, “multa rescisória”, “direitos federativos” e “direitos econômicos”, valendo-nos, para isso, de casos concretos que circularam na grande mídia e terão o condão de aproximar o leitor ao debate.

Desde já, fica perceptível que a questão vai muito além de saber quem é “o dono” do jogador.


2.         Das Amarras do Passe

2.1.      A economicidade do desporto

O futebol, como vários outros esportes, trilhou, nas últimas décadas, caminho diverso do idealizado por seus criadores, afastando-se — e continua a se afastar — do arquétipo de lazer para se tornar uma verdadeira atividade empresarial. Essa transformação e a conjuntura daí originada fizeram necessária a tutela jurídica do Estado, com vista a garantir a higidez das relações que agora deixavam de ser intercomunitárias para tornarem-se mundiais.

A lucratividade tomou o foco do futebol, de modo que os times tornaram-se verdadeiras empresas, que visam à lucratividade e a uma boa oportunidade de investimento no mercado de jogadores. Esse predadorismo capitalista deu origem ao instrumento do passe, criado para dar garantia ao clube que investiu no desenvolvimento do atleta e assegurar-lhe retorno financeiro suficiente para suprir o desfalque ocasionado pela transferência.           

2.2.      O passe como garantidor dessa economicidade

Tal instituto fora positivado no ordenamento jurídico brasileiro nos idos de 1976, no artigo 11 da Lei nº 6.354, e teve seu último suspiro no artigo 26 da lei nº 8.672/93 — a “Lei Zico” —, que assim dispunham, respectivamente:

Art. 11. Entende-se por passe a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas pertinentes.

Art. 26. Caberá ao Conselho Superior de Desportos fixar o valor, os critérios e condições para o pagamento da importância denominada passe.

O passe surgiu, no Brasil, como importante mecanismo de incentivo ao investimento na formação de novos atletas, pois passou a garantir aos clubes um retorno financeiro, ou, para alguns, uma premiação pela transformação de um anônimo em um profissional capacitado e apto a alimentar, com o seu desempenho em campo, a empresa-clube adquirente.

A despeito de a FIFA, instituição mundial máxima do futebol, reconhecer o instituto do passe, considerando-o necessário à proteção dos investimentos, tal regulação cabe à legislação ordinária de cada país, não tendo ela competência legiferante para instituir esse mecanismo. Possíveis transações entre países adotantes e países não adotantes do instituto resolver-se-ão pelas convenções de comércio internacional e pela liberalidade alçada ao Direito Contratual.

2.3.      O fim do passe no Brasil      

Aquele instituto que houvera nascido com um fim nobre, qual seja, incentivar novos investimentos na formação de atletas, acabou por transmudar-se em verdadeiro aprisionamento dos jogadores de futebol ao seu clube revelador.

Em uma evidente violação à liberdade constitucional de trabalho, o passe tornou-se o “chicote dos Senhores do futebol”, que passaram a ter ingerência sobre aqueles que se formavam em suas categorias de bases. O escândalo chegava ao descalabro de alguns jogadores ficarem privados da possibilidade de atuar por diversos meses, sujeitos ao bel prazer da anuência de liberação por seus dirigentes, por vezes vingativos com atletas que não corresponderam às suas expectativas em campo.

Com o passe, o jogador somente podia ser transferido mediante ao pagamento do valor estipulado, que muitas vezes era altíssimo, ou mediante o aval de seu clube. Acrescentemos a isso, então, a efemeridade da carreira de um atleta de alto nível, que, em média, perdura menos de 15 anos, e veremos a insustentabilidade criada por esse instituto no âmbito do desporto (!).

Ora, o dano causado a um profissional que depende de sua forma física, de sua juventude e de sua visibilidade no mercado futebolístico é imensurável diante da possibilidade de que esse fique proibido de atuar e demonstrar sua habilidade nas vitrines do futebol — os gramados.

O instituto do passe, por todos esses motivos, teve seu fim decretado pelo advento da Lei nº 9.615/98 — a Lei Pelé —, mais especificamente em seu artigo 28, que agora se transcreve, e a leitura se aconselha, em razão da importância que terá para todo o doravante abordado:

Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:

I - cláusula indenizatória desportiva, devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses: 

a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo; ou 

b) por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses; e 

II - cláusula compensatória desportiva, devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas hipóteses dos incisos III a V do § 5o.

§ 1º O valor da cláusula indenizatória desportiva a que se refere o inciso I do caput deste artigo será livremente pactuado pelas partes e expressamente quantificado no instrumento contratual: 

I - até o limite máximo de 2.000 (duas mil) vezes o valor médio do salário contratual, para as transferências nacionais; e 

II - sem qualquer limitação, para as transferências internacionais.

§ 2º São solidariamente responsáveis pelo pagamento da cláusula indenizatória desportiva de que trata o inciso I do caput deste artigo o atleta e a nova entidade de prática desportiva empregadora. 

§ 3º O valor da cláusula compensatória desportiva a que se refere o inciso II do caput deste artigo será livremente pactuado entre as partes e formalizado no contrato especial de trabalho desportivo, observando-se, como limite máximo, 400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão e, como limite mínimo, o valor total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato.

§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes: 

I, II, III, IV, V e VI – omissis;

§ 5º O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais: 

I - com o término da vigência do contrato ou o seu distrato; 

II - com o pagamento da cláusula indenizatória desportiva ou da cláusula compensatória desportiva;

III - com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei; 

IV - com a rescisão indireta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e

V - com a dispensa imotivada do atleta. 

§ 6º (Revogado)

§§ 7º, 8º e 9º  Omissis.

§ 10.  Não se aplicam ao contrato especial de trabalho desportivo os arts. 479 e 480 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

Esse dispositivo de lei transmitiu aos atletas verdadeira sensação de libertação, de quebra das correntes que os ligavam aos seus senhores, dizemos, donos do passe.

O passe era visto como verdadeira reificação do atleta, que deixava seu futuro “sob a deliberação soberana do empregador, que decide a seu respeito como decide a respeito das coisas de sua propriedade”.[1]

Com o advento da Lei Pelé, passou-se, portanto, a falar em “passe-livre” e em defesa constitucional do direito ao trabalho e à profissão dos atletas, com guarida nos artigos 5º, XIII, e 6º, ambos da Constituição da República e que oportunamente transcrevemos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

O passe consistia em um vínculo desportivo entre jogador e clube e havia se tornado principal a qualquer outra relação entre esses sujeitos. Assim, a extinção desse mecanismo enfraqueceu o vínculo desportivo que existia entre o atleta e a entidade de prática do desporto, abrindo espaço para que novas relações alçassem-se lugar de destaque. No futebol, o vínculo trabalhista tomou esse espaço, sendo hoje o carro chefe da proteção aos clubes formadores. É o que se passa a aprofundar.

2.4.      A acessoriedade do vinculo desportivo em relação ao trabalhista

Primeiramente, importante esclarecer que o jogador de futebol possui vínculo trabalhista com o clube pelo qual atua, além do vínculo desportivo inerente à natureza da relação.

            Necessário, portanto, explicitar o que vem a ser tal relação desportiva — pois incomum — e tentar entender sua influência nos contratos de trabalho dos atletas profissionais.

Um bom ponto de partida para alcançar esse entendimento é o próprio tema até então em debate, qual seja, o passe. Enquanto esse possuía vigência no Brasil, a relação entre o vínculo desportivo e o vínculo trabalhista era ombreada, de modo que não bastava que esse desaparecesse para que o atleta estivesse livre para atuar em outras equipes, visto que, enquanto aquela ainda subsistisse, o jogador estaria amarrado ao clube, despido do direito constitucional de exercer sua profissão.

Eliminado o instituto do passe, com o advento da Lei Pelé, essa relação desportiva tomou novos rumos, enfraquecendo-se, de modo que, atualmente, constitui vinculo apenas acessório, legando ao atleta plena liberdade de exercício profissional, seja lá qual for a vontade de seu clube. Suficiente, para isso, observar o disposto no contrato de trabalho, o qual, esse sim, possui estatura de predominância.

O destaque negativo dessa conjuntura deve ser atribuído ao predadorismo dos empresários de jogadores, verdadeiros oportunistas seduzíveis pela melhor proposta financeira e sem vínculo de nenhuma natureza com o clube que alçou o jogador ao mercado de trabalho. Foram eles, sem dúvidas, uns dos grandes responsáveis pela mercantilização do futebol.

A par da evolução histórica do instituto do passe até a sua derrocada final, feita sem grandes interferências opinativas, devemos agora alertar os leitores para o risco da construção de uma “zona de livre circulação” entre clubes, porquanto tal situação tornaria a atividade desportiva desinteressante e os resultados das competições previsíveis.

É que, não houvesse qualquer mecanismo de proteção aos clubes em relação a uma garantia de permanência dos jogadores, o clube mais capitalizado levaria da equipe que se destacasse no campeonato seus melhores jogadores, tornando o resultado final totalmente manipulável.

Consciente dessa previsível consequência advinda da extinção do passe, sem, para tanto, afastar-se da proteção dos direitos constitucionais — já citados — dos atletas, o legislador instituiu mecanismos diversos de proteção aos investimentos e à imprevisibilidade inerente ao esporte, que, a nosso ver, compensou satisfatoriamente a exclusão do passe, com grandes ganhos, em verdade, aos atletas e ao espetáculo.           

2.5.      Novos mecanismos de proteção

Como anteriormente delineado, os descontentamentos lançados pelos clubes são, em verdade, infundados, pois diversos outros mecanismos com vista à proteção do investimento realizado na revelação e preparação de novos atletas foram criados.

Defensores do passe viram com maus olhos sua extinção, sob o fundamento de que se tratava de um verdadeiro mecanismo de proteção do esporte, visto que evitava a concorrência desleal e o esvaziamento da competição pelo aliciamento antidesportivo de jogadores. O receio sempre foi de que clubes poderosos financeiramente se valessem dessa vantagem para realizar um “desmanche” nas equipes adversárias que lograssem êxito na classificação do campeonato. A ideia era evitar pensamentos antiesportistas, como “se não dá para ganhar do Santos, compre o Neymar”.

Feita a cova do instituto do passe, e antes que o leitor comece a se filiar aos argumentos dos clubes, importante demonstrar que a Lei Pelé preencheu a lacuna deixada pela supressão deste instituto com outros mecanismos, agora condizentes com a Constituição Federal e com o ordenamento jurídico como um todo.

Entender a proteção aos clubes que investem em novos talentos após a edição da Lei Pelé há de ter como ponto de partida o artigo 29 dessa lei — em especial o caput e o §7º —, que assegura ao clube formador o direito de firmar o primeiro contrato profissional do atleta, com prazo de até 5 (cinco) anos e a preferência de renovação por até mais 3 (três). Desse modo:

Art. 29.  A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos. (...)

§ 7º A entidade de prática desportiva formadora e detentora do primeiro contrato especial de trabalho desportivo com o atleta por ela profissionalizado terá o direito de preferência para a primeira renovação deste contrato, cujo prazo não poderá ser superior a 3 (três) anos, salvo se para equiparação de proposta de terceiro. (...)

Toda a mistificação em que se envolta o instituto do passe torna-se pueril diante desse dispositivo de lei. É que, por celebrar um contrato formal, e, portanto, receber regência do Direito Civil, o clube pode valer-se dos diversos mecanismos de proteção dos acordos, como, por exemplo, a cláusula penal.[2]

Nesse ponto, vem à tona, uma vez mais, a natureza jurídica da relação clube-jogador, que, com o desaparecimento do passe, deixou de ser predominantemente desportiva para tornar-se trabalhista. O vínculo desportivo persiste ainda hoje, no entanto, em caráter apenas acessório à relação trabalhista.

A cláusula penal rescisória, estipulável no contrato de trabalho, tornou-se hábil substituto ao passe, uma vez que supre satisfatoriamente a intenção daquele, qual seja, a indenização do clube pela transferência, pois, como se verá, é fixada em valor suficiente para que o clube que porventura tenha seu jogador aliciado antes do prazo previsto no contrato possa substituí-lo por outro de qualidade semelhante.

Outrossim, o fato de as cláusulas penais desportivas não serem limitadas ao valor da obrigação principal — contrato de trabalho —, pois inaplicável o artigo 412 do Código Civil ao caso, reforça ainda mais a proteção ao clube. A despeito disso, a Lei Pelé traz, no § 1º do artigo 28, algumas disposições que limitam o valor dessa cláusula a 2000 (duas mil) vezes a remuneração anual do jogador, quando se tratar de transferências nacionais. Tratando-se de valores internacionais, salvo acordos entre confederações, permanece a ausência de barreiras ao valor dessa garantia.

§ 1º O valor da cláusula indenizatória desportiva a que se refere o inciso I do caput deste artigo será livremente pactuado pelas partes e expressamente quantificado no instrumento contratual: 

I - até o limite máximo de 2.000 (duas mil) vezes o valor médio do salário contratual, para as transferências nacionais; e 

II - sem qualquer limitação, para as transferências internacionais.

Outro mecanismo de proteção financeira é a conhecida porcentagem do clube formador, positivada no artigo 29-A da Lei Pelé, que garante àquele que realmente revelou o jogador para o mundo do esporte uma recompensa pelas transações que envolvam o atleta.

Quanto à proteção às transações sorrateiras, realizadas com o fim de impedir o bom desempenho dos clubes no campeonato, outro instituto, também de conhecimento geral, preenche tal lacuna, qual seja, as chamadas “janelas de transferência”, que impede que jogadores sejam aliciados no decorrer do campeonato, quando os técnicos e preparadores já esquematizaram e treinaram suas equipes.

De todo o exposto, extrai-se que o estado da arte da proteção aos clubes formadores, a despeito do fim do instituto do passe pela Lei Pelé, é aceitável e ainda garante alta rentabilidade às transferências. Desse modo, na ponderação entre o aprisionamento dos atletas e a concessão de garantias aos clubes, a solução alcançada mostra-se adequada e equilibrada: extinguiu-se a relação quase que de caráter de direito real do time sobre o jogador, sem que se desestimulasse o investimento em novas revelações.

Tendo em vista os reiterados equívocos na conceituação dos novos e velhos institutos que circundam a relação entre o clube e o atleta, e por julgarmos conveniente ao esporte, como a qualquer outro ramo, o correto emprego destes, passamos a uma breve delimitação de cada um deles.


3.         Da necessária delimitação teórica — passe; cláusula indenizatória E COMPENSATÓRIA desportiva; multa rescisória; direitos federativos; direitos econômicos

Como visto, logo após sancionada a Lei Pelé, foram instituídas mudanças em virtude da extinção do passe. Houve, entretanto, significativas alterações com o advento da Lei 9.981/2000, da Medida Provisória 2.141/2001, da Lei 10.672/2003 e da Lei 12.395/2011.

Das importantes modificações operadas nesse período, devemos dar atenção às dadas pela edição e pelas reedições da Medida Provisória 2.141/2001, que fez com que preponderassem no ordenamento jurídico, por certo tempo, as indenizações de formação e de promoção, ambas previstas no regulamento da FIFA.

De acordo com a modificação dada ao artigo 29 da Lei Pelé pela medida provisória:

Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com este, a partir de dezesseis anos de idade, o primeiro contrato de trabalho profissional, cujo prazo não poderá ser superior a cinco anos. (...)

§ 3º. Apenas a entidade de prática desportiva formadora que, comprovadamente, firmar o primeiro contrato de trabalho com o atleta por ela profissionalizado, terá direito de exigir, do novo empregador, indenização de:

I - formação, quando da cessão do atleta durante a vigência do primeiro contrato, que não poderá exceder a duzentas vezes o montante da remuneração anual, vedada a cobrança cumulativa de cláusula penal;

II - promoção, quando de nova contratação do atleta, no prazo de seis meses após o término do primeiro contrato, que não poderá exceder a cento e cinquenta vezes o montante da remuneração anual, desde que a entidade formadora permaneça pagando salários ao atleta enquanto não firmado o novo vínculo contratual.

A indenização de formação era a garantia dada ao clube em caso de transferência do atleta por ele formado e profissionalizado. Se fosse cedido o atleta durante a vigência desse primeiro contrato – vedada a cobrança cumulativa da cláusula penal –, teria lugar a cobrança da indenização de formação.

A indenização de promoção, prevista no transcrito inciso II, tem características semelhantes, mas considera que o contrato de trabalho já se extinguiu – assim não há que se falar de cláusula penal, já que esta se torna inexigível após o término do contrato.

A regulação dessas indenizações foi suprimida a partir das modificações trazidas pela Lei 10.672/2003. Assim, é privilegiado, atualmente, o direito de preferência de renovação do contrato desportivo. O clube formador do atleta terá, portanto, de acordo com a atual redação do artigo 29 da Lei Pelé, direito de assinar o primeiro contrato especial de trabalho desportivo e também o direito de preferência na renovação desse contrato.

A entidade de prática desportiva formadora terá, nos moldes do caput do artigo 29 da Lei Pelé, o direito de firmar com o atleta o primeiro contrato de trabalho, por até cinco anos. Ademais, o § 7º do referido artigo prevê o direito de preferência para a renovação do contrato por período não superior a três anos, salvo se para equiparação de proposta de terceiro.

Consolidou-se que o clube tem direito, sim, à indenização pelos gastos e esforços despendidos, caso o atleta se vincule a outro clube antes de assinado o primeiro contrato, como forma de garantir a justiça. A indenização será devida, também, caso a entidade não possa assinar o primeiro contrato de trabalho por oposição do atleta. É o que prevê o § 5º do artigo 29 da Lei Pelé (em sua atual redação, dada pela Lei 12.395/2011):

§ 5º A entidade de prática desportiva formadora fará jus a valor indenizatório se ficar impossibilitada de assinar o primeiro contrato especial de trabalho desportivo por oposição do atleta, ou quando ele se vincular, sob qualquer forma, a outra entidade de prática desportiva, sem autorização expressa da entidade de prática desportiva formadora, atendidas as seguintes condições: 

I - o atleta deverá estar regularmente registrado e não pode ter sido desligado da entidade de prática desportiva formadora; 

II - a indenização será limitada ao montante correspondente a 200 (duzentas) vezes os gastos comprovadamente efetuados com a formação do atleta, especificados no contrato de que trata o § 4º deste artigo. (grifos aditados)

Outro aspecto a ser analisado é o do mecanismo de solidariedade introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, muito semelhante ao previsto no regulamento da FIFA para transferências internacionais de jogadores. Segundo esse mecanismo – que considera que o atleta tem seu período de formação compreendido entre 14 e 20 anos de idade –, os clubes que participaram da formação do atleta têm direito a 5% do valor de cada transferência nacional realizada.

Quanto à cláusula indenizatória e à cláusula compensatória, importante ressaltar que ambas substituíram a antiga cláusula penal utilizada nos contratos trabalhistas entre jogadores e entidades desportivas, em face da nova regulação dos contratos especiais de trabalho desportivo trazida pela Lei 12.395/2011.

A cláusula indenizatória desportiva, prevista pelo artigo 28, inciso I, da Lei Pelé, é devida à entidade de prática desportiva se o atleta for transferido durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo ou por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses. Seu valor será livremente pactuado pelas partes até o limite de 2.000 (duas mil) vezes o valor médio do salário do atleta contratualmente estabelecido. Esse limite vale para as transferências nacionais; para as internacionais não há limite (artigo 28, § 1°, incisos I e II).

A cláusula compensatória desportiva, por sua vez, prevista pelo artigo 28, inciso II, da referida lei, é aquela devida ao atleta por inadimplemento salarial, rescisão indireta ou dispensa imotivada. Assim como acontece com a cláusula indenizatória, o valor será livremente pactuado.

A diferença está no valor máximo: no caso da cláusula compensatória, é de 400 vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão. Além disso, é fixado o limite mínimo, que é o do valor total de salários mensais a que o atleta teria direito até o término do contrato (artigo 28, § 3º).

Nota-se, aqui, que o limite à cláusula penal atestada pelo artigo 412 do Código Civil, segundo o qual não pode ser superior ao valor da obrigação principal, não é aplicável. Ademais, até o advento das modificações trazidas à Lei Pelé pela Lei 12.395, era aplicável, em caso de rescisão do contrato, a multa rescisória prevista no artigo 479 da CLT, que prevê o pagamento de metade do valor que o trabalhador deveria receber até o término do contrato.

Com tantas modificações trazidas ao âmbito do direito desportivo, principalmente com o fim do instituto do passe, deve-se mostrar que os tão comentados direitos federativos, relacionados ao vínculo desportivo, têm sua abrangência severamente limitada, já que tal vínculo só perdura até o fim do contrato de trabalho celebrado entre o clube e o atleta.

Direitos federativos podem ser conceituados como aqueles adquiridos pela entidade de prática desportiva que celebra um contrato trabalhista com algum atleta. A partir do início da vigência do contrato, e até seu fim, o clube passa a ter o direito ao vínculo desportivo, não obstante possa o atleta rescindir, a qualquer momento e mediante pagamento de indenizações avençadas, seu contrato de trabalho.

Atualmente, pode-se falar também em direitos econômicos, que são aqueles resultantes do vínculo que o atleta mantém com a entidade desportiva, referentes à obtenção de lucros decorrentes do contrato de trabalho e da cláusula indenizatória. É comum a negociação de percentuais dos valores que porventura seriam recebidos em face da cláusula indenizatória, como forma de real investimento realizado por terceiros, assim como é comum, no Brasil, a exportação de jogadores para times europeus e asiáticos. Além disso, grande parte da receita obtida pelos times ao redor do mundo não se encontra mais na venda de ingressos para os jogos, mas na transmissão televisiva, nos patrocínios, na imagem de seus jogadores.

Embora o regulamento da FIFA vede tal prática, indicando que cláusula indenizatória deve se ater às partes do contrato desportivo – prevendo, inclusive, medidas disciplinares àqueles que cederem os direitos ao eventual recebimento de valores referentes a essa cláusula –, é comum a negociação de clubes e atletas com empresários e investidores. Dessa forma, são negociados os riscos e os benefícios, o que gera um forte e dinâmico mercado dos direitos econômicos dos atletas.


4.         CASO OSCAR

Feitas todas as considerações anteriores, consideramos oportuno elucidar o significativo caso do futebolista brasileiro Oscar dos Santos Emboaba Júnior, meio-campista que atualmente possui vínculo contratual com a equipe inglesa Chelsea Football Club e tem participado de relevantes competições internacionais pela seleção brasileira. O caso permite o esclarecimento, em aplicação concreta, dos conceitos acima explanados, bem como o real deslinde dos fatores que permearam a sua transferência do São Paulo Futebol Clube para o Sport Club Internacional, clubes pelos quais Oscar atuou antes de firmar contrato com o Chelsea FC.

No ano de 2007, Oscar dos Santos Emboaba Júnior, quando ainda contava com 15 anos, celebrou, com anuência da mãe, contrato laboral de três anos com o São Paulo FC, com vigência a partir 09.09.2007, data em que completou 16 anos. Foram estipuladas as condições seguintes: salário de R$ 7.500,00, durante o primeiro ano de contrato, R$ 8.500,00, no segundo ano, e R$ 9.500,00, no terceiro ano, bem como cláusula penal internacional de US$ 40.000.000,00. Ademais, a título de luvas pela assinatura do contrato, Oscar recebeu R$ 70.000,00. Destaca-se que no período havia previsão legal para o pagamento de luvas a atletas em virtude da assinatura de contrato com algum clube (art. 12 da Lei 6.354, de 1976: “Entende-se por luvas a importância paga pelo empregador ao atleta, na forma do que for convencionado, pela assinatura do contrato.”)

Ocorre que, cerca de três meses depois (05.12.07), SPFC e Oscar celebraram novo contrato, este último já tendo sido emancipado à época, de modo que poderia firmar pacto laboral por período superior a três anos. Nesse novo contrato, com vigência de 05.12.2007 a 04.12.20012, estipularam-se as condições seguintes: salário de R$ 7.500,00, durante o primeiro ano, R$ 8.500,00, no segundo ano, R$ 9.500,00, no terceiro ano, R$ 12.000,00, no quarto ano, e R$ 16.000,00, no quinto ano, além de cláusula penal internacional de € 40.000.000,00. Dessa vez, Oscar recebeu, a título de luvas, R$ 120.000,00.[3]

Entretanto, no final de 2009, após atrasos nos reajustes salariais pactuados, Oscar ajuizou Reclamação Trabalhista (nº 02770-2009-040-02-00-1) na Justiça do Trabalho de São Paulo. O jogador pleiteou, primeiramente, a declaração de nulidade do segundo contrato, com base nos arts. 9º e 468, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho. Por oportuno, transcrevem-se os dispositivos:

“Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”

“Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.”

Para tanto, Oscar alegou que as alterações lhe foram desfavoráveis, pois o aumento da cláusula penal internacional seria prejudicial, pois isso levaria a maiores dificuldades caso o jogador objetivasse rescindir o contrato sem justa causa. Ademais, Oscar também aduziu, para obter a declaração de nulidade do segundo contrato, que as alterações tiveram o intuito de postergar a majoração salarial e elastecer o prazo de vinculação, o que lhe seria danoso.

Quanto a esse pedido, o juízo da 40ª Vara da Justiça do Trabalho da 2ª Região proferiu:

"(...) com base nos artigos 9º e 468 da CLT, declara-se a nulidade das alterações levadas a efeito em 05.12.07, devendo prevalecer as condições estipuladas no primeiro contrato de trabalho, no que tange à duração do pacto, aos salários estabelecidos e à cláusula penal internacional".[4]

Por outro lado, Oscar dos Santos postulou a rescisão indireta do seu contrato de trabalho com o São Paulo Futebol Clube, sustentando mora no pagamento de salários por mais de três meses e descumprimento da legislação aplicável ao seguro de vida, o que ensejaria a aplicação do art. 483, d, da CLT, e do art. 31 da Lei Pelé (Lei 9.615/1998). Veja-se:

“Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:

(...)

d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;

(...)

§ 3º - Nas hipóteses das letras "d" e "g", poderá o empregado pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações, permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo. (Incluído pela Lei nº 4.825, de 5.11.1965)”

“Art. 31. A entidade de prática desportiva empregadora que estiver com pagamento de salário de atleta profissional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a 3 (três) meses, terá o contrato especial de trabalho desportivo daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para se transferir para qualquer outra entidade de prática desportiva de mesma modalidade, nacional ou internacional, e exigir a cláusula compensatória desportiva e os haveres devidos. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).”

Diante disso, determinou o magistrado:

“(...) a rescisão indireta do contrato de trabalho do reclamante, a partir desta data [14.06.2010], com base nos artigos 31, da Lei nº 9.615/98 e 483, alínea “d”, da CLT, em virtude de mora salarial parcial e descumprimento de obrigação contratual (manutenção de seguro de vida)” e deferiu ao jogador “o pedido de multa prevista no art. 479 da CLT, correspondente à metade do que o reclamante teria direito no período compreendido entre a presente decisão e o termo do contrato (09.09.10 – em razão da nulidade reconhecida).”[5]

Desse modo, rescindido o pacto laboral com o SPFC, Oscar celebrou contrato com o Sport Club Internacional, em 24.08.2010 (Contrato especial de trabalho desportivo nº RS2011009170).

Acontece que São Paulo Futebol Clube havia interposto Recurso Ordinário, ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, à retromencionada sentença. Todavia, o clube não conseguiu atribuir efeito suspensivo a esse recurso, o qual somente foi julgado em 08/02/2012.

No julgamento de tal recurso, entendeu a 16ª Turma do TRT da 2ª Região que na celebração do segundo contrato de Oscar com o SPFC não estariam configuradas lesões ao jogador, razão pela qual não haveria que se falar em ofensa aos arts. 9º e 468, da CLT.

Outrossim, considerou o Juízo que não teria ocorrido conduta faltosa grave do São Paulo Futebol Clube que pudesse ensejar a extinção do contrato de trabalho pelos arts. 483, d, da CLT, e 31, da Lei Pelé. Isso porque não teria havido mora salarial, mas apenas o cumprimento dos reajustes na forma como previstos no segundo contrato, além de que o descumprimento legal no que concerne ao seguro de vida seria passível de simples regularização.

Em virtude desse entendimento, a Turma deu provimento ao Recurso Ordinário para “reconhecer a validade do contrato celebrado em 05.12.2007" e afastar "a rescisão indireta do contrato de trabalho, absolvendo o reclamado dos demais títulos decorrentes, diferenças salariais, multa do artigo 479 da CLT e anotação de baixa na CTPS.”[6]

Posteriormente, por meio do julgamento de embargos declaratórios opostos por ambas as partes, aquele Juízo elucidou a decisão para declarar restabelecido o vínculo desportivo entre Oscar e São Paulo Futebol Clube.

Diante de tal situação, os advogados de Oscar dos Santos Emboaba Júnior impetraram habeas corpus (HC nº 030493/2012-9), com pedido de liminar, perante o Tribunal Superior do Trabalho, requerendo que a ordem fosse concedida para

"autorizar o paciente a livremente exercer a sua profissão, participando de jogos e treinamentos, em qualquer localidade e para qualquer empregador (clube de futebol e/ou seleção brasileira, inclusive olímpica), conforme sua livre escolha, resguardados os efeitos pecuniários de eventuais rompimentos contratuais".[7]

Asseverou-se, em síntese, que a decisão proferida pela 16ª Turma do TRT da 2ª Região afrontaria diretamente o direito de ir e vir do jogador, pois teria determinado uma prestação obrigatória de serviços.

O Ministro Caputo Bastos, na decisão liminar, proferiu entendimento segundo o qual o acórdão do TRT da 2ª Região estaria em ofensa aos princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, pois estaria impondo ao jogador o seu labor em local e para empregador indesejáveis.

Ademais, o Ministro expôs que

“o prévio afastamento do empregado em caso de alegação de rescisão indireta configura exercício regular de um direito a ele garantido pela norma jurídica, ao passo que, eventual improcedência do seu pleito não acarreta o seu retorno ao antigo trabalho, mas dá ensejo, apenas, às consequências previstas em lei, quais sejam, a absolvição do empregador da falta a ele imputada e a conversão da rescisão indireta em pedido de demissão, com as respectivas consequências pecuniárias.”[8]

Nesse sentido, se reformada a decisão, não haveria que se falar em restabelecimento do vínculo desportivo com o São Paulo FC. Apenas seria devida a cláusula penal por parte de Oscar, devida ao clube quando o atleta transfere-se para outra agremiação desportiva durante a vigência de seu contrato.[9]

Declarou, por fim, o Ministro Caputo Bastos:

“Dito isso, tenho, em primeira análise, que a decisão judicial que determina o restabelecimento obrigatório do vínculo desportivo com o SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE, em contrariedade à vontade do trabalhador, cerceia o seu direito fundamental de exercício da profissão, razão pela qual concedo a liminar em habeas corpus para autorizar o paciente a exercer livremente a sua profissão, participando de jogos e treinamentos em qualquer localidade e para qualquer empregador, conforme sua livre escolha.”[10]

Dito isso, verificou-se que teria surgido, com o acórdão da 16ª Turma do TST, que se encontrava pendente de julgamento de Recurso de Revista interposto pelo jogador Oscar, apenas a obrigação de pagar a indenização decorrente da rescisão unilateral do contrato, ou seja, a cláusula penal firmada no contrato. Frise-se: assim como consignou o Ministro Caputo Bastos, o inadimplemento dessa obrigação não autoriza o clube a cobrar do jogador a prestação de serviços.

Em virtude da pendência de recursos de Oscar e SPFC, respectivamente, na Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1 e no habeas corpus nº 030493/2012-9, Sport Club Internacional e São Paulo Futebol Clube firmaram acordo para dar fim à discussão judicial. O internacional decidiu por pagar ao SPFC uma quantia de aproximadamente R$ 15.000.000,00, valor pactuado como referente à cláusula indenizatória (R$ 9.200.000,00) e perdas e danos pelo tempo em que o São Paulo FC esteve sem os serviços do jogador.

Fixados e alumiados os aspectos da transferência de Oscar para o São Paulo FC, nota-se que, muito mais do que uma simples mercadoria, como parecia ser antes da extinção do “passe” pela Lei Pelé (9.615/98), os jogadores de futebol atualmente possuem relações empregatícias comuns aos trabalhadores em geral com os clubes em que atuam, existindo o vínculo desportivo como mero acessório.

Evidencia-se tal assertiva quando se observa que, após longa discussão judicial, o Tribunal Superior do Trabalho – consideramos – bem atuou ao aplicar à conjuntura os direitos dos empregados comuns e, por conseguinte, de todos cidadãos brasileiros, assegurados pelos princípios e normas garantidos na Constituição da República de 1988.

Em que pese a existência de críticas quanto ao remédio processual utilizado in casu, conclui-se que, para os propósitos do presente estudo, é de suma importância sedimentar que, ao entender pela supremacia do direito de ir e vir do jogador, isso é, à sua livre escolha, bem como do direito fundamental de exercício da profissão, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou expressamente a extinção das considerações de outrora quanto à objetificação da pessoa do esportista.


5.         CONCLUSÃO        

O desporto no Brasil, atualmente ainda na espera por maiores pesquisas acadêmicas e, consequentemente, uma ampla literatura, sofre com a difusão de conceitos incertos. Isso porque, presente em todos os extratos sociais, o esporte está diretamente relacionado à cultura da massa populacional, o que faz com que a compreensão quanto ao fenômeno seja, muitas vezes, uma simples reprodução de conclusões equivocadas transmitidas pela mídia.

Como se tentou demonstrar, especialmente no que diz respeito ao futebol, alguns conceitos como “passe”, “multa rescisória”, “compra e venda” e “transferência” de jogadores são costumeiramente mal aplicados a situações concretas que exigem maiores considerações.

O grande problema dessa proliferação de conceitos imprecisos está exatamente no alcance cultural que o esporte possui, sempre acompanhado pelos holofotes de qualquer âmbito social. Por meio do desconhecimento dos institutos que regem as mais diversas relações desportivas, espalham-se concepções equivocadas, considerações falsas e interpretações insubsistentes, criando-se opiniões e sentimentos calcados em bases imperfeitas, os quais são observados diariamente como cruciais no estabelecimento de relações entre os indivíduos.

Por tais motivos, objetivou-se elucidar, através das considerações aqui postas, ainda que de forma introdutória diante da amplitude com que se pode abordar cada ponto discutido, aspectos das relações entre jogadores e clubes, especialmente no que concerne ao vínculo empregatício existente entre ambos.

Sob este ângulo, constatou-se que, anteriormente à edição da Lei Pelé (Lei 9.615/1998), notava-se uma verdadeira violação a garantias constitucionais hoje já sedimentadas. Os atletas eram privados de seu direito de ir e vir, bem como do direito fundamental ao exercício da profissão. Isso porque o atleta somente podia ser transferido a outra entidade desportiva mediante o pagamento do valor estipulado referente a seu passe, muitas vezes extremamente excessivo, ou com o aval do clube a que estava vinculado.

Por meio da extinção do passe, decretada pela mencionada Lei, ocorreu uma verdadeira libertação das amarras outrora existentes entre os jogadores e seus respectivos clubes.

Neste sentido, passou a existir a previsão, precisamente no art. 28 da Lei Pelé, segundo a qual o vínculo desportivo do jogador com o clube possui natureza meramente acessória ao vínculo empregatício. Em outras palavras, as relações dos atletas com as agremiações desportivas em que atuam são aquelas comuns aos trabalhadores em geral, estando a eles garantidos os mesmos direitos legais e constitucionais sob os quais estão amparados todos os cidadãos.

Esses aspectos são exatamente o que se observou da análise do caso Oscar, onde ficou clara, em decisão proferida pelo Ministro Caputo Bastos, do Tribunal Superior do Trabalho, em liminar de habeas corpus cujo paciente era Oscar dos Santos Emboaba Júnior, a forma como está consolidada a compreensão quanto ao vínculo empregatício no desporto. Agora, os atletas são muito mais do que simples mercadorias. Ou seja, a reificação da pessoa do esportista findou-se naquele tempo em que a relação dos jogadores com seus clubes mais se assemelhava à noção de propriedade.

Ficam, assim, anunciadas tais considerações, sem o intento de esgotar a matéria, mas com a finalidade de propiciar mais um passo para a formação das bases de uma ampla construção acadêmica perante o desporto brasileiro. Esperamos, deste modo, sirva o exposto como apoio para os demais que se aventurarem no estudo do Direito Desportivo e como esclarecimento, para o público em geral, de conceitos hoje difundidos de forma imprecisa.


REFERÊNCIAS

AIDAR, Carlos Miguel Castex. Aspectos normativos e retrospectiva histórica da legislação desportiva infraconstitucional. Em: Curso de Direito Desportivo sistêmico: Coordenação: Rubens Approbato Machado; Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi; Otávio Augusto de Almeida Toledo; Ronaldo Crespilho Sagres; e Wagner Nascimento. Vol. II, 1ª edição. Quartier Latin, 2010.

BRASIL. 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Acórdão em Recurso Ordinário na Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. Recorrente: São Paulo Futebol Clube; Recorrido: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Juiz Relator Nelson Bueno Prado. DJ, 17 fev. 2012.

BRASIL. 40ª Vara da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Sentença em Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. Reclamante: Oscar dos Santos Emboaba Júnior; Reclamado: São Paulo Futebol Clube. Juíza do Trabalho Eumara Nogueira Borges Lyra Pimenta. DJ, 16 jun. 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

BRASIL. Decreto-Lei no 5.452/43 (Consolidação das Leis do Trabalho). Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei no 9.615/98 (Lei Pelé). Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei nº 10.406/02 (Código Civil). Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 09 jul. 2006.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Decisão Liminar em Habeas Corpus nº 030494/2012-9. Paciente: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Autoridade Coatora: 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Ministro Relator Caputo Bastos. DJ, 26 abril. 2012.

CORREIA DE MELO, Bruno Herrlein; CORREIA DE MELO, Pedro Herrlein. A Lei Pelé e o fim do “passe” no desporto brasileiro. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 35, dez 2006. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1523>. Acesso em jul 2013.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed., São Paulo: Saraiva, 1996.

RUSSOMANO JR., Victor; RUSSOMANO NETO, Mozart Victor; SOUZA, Fábio Tomás de. Habeas corpus nº 030494/2012-9. Paciente: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Autoridade Coatora: 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Brasília, 2012.


Notas

[[1]] RUSSOMANO, Mozart Victor apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 361-365.

[2] Aqui, utilizou-se o termo cláusula penal em sentido lato, meramente como a estipulação negocial de uma pena privada em virtude do inadimplemento de uma obrigação. Veja-se, em “3. Da necessária delimitação teórica”, que a Lei nº 12.395/2011, modificando o art. 28 da Lei Pelé, trouxe inovações quanto ao conceito da cláusula penal aplicada ao contrato especial de trabalho desportivo.

[3] Informações referentes a datas e valores retirados de: BRASIL. 40ª Vara da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Sentença em Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. Reclamante: Oscar dos Santos Emboaba Júnior; Reclamado: São Paulo Futebol Clube. Juíza do Trabalho Eumara Nogueira Borges Lyra Pimenta. DJ, 16 jun. 2010.

[4] BRASIL. 40ª Vara da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Sentença em Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. cit.

[5] BRASIL. 40ª Vara da Justiça do Trabalho da 2ª Região. Sentença em Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. cit.

[6] BRASIL. 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Acórdão em Recurso Ordinário na Reclamação Trabalhista nº 02770-2009-040-02-00-1. Recorrente: São Paulo Futebol Clube; Recorrido: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Juiz Relator Nelson Bueno Prado. DJ, 17 fev. 2012.

[7] RUSSOMANO JR., Victor; RUSSOMANO NETO, Mozart Victor; SOUZA, Fábio Tomás de. Habeas corpus nº 030494/2012-9. Paciente: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Autoridade Coatora: 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Brasília, 2012.

[8] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Decisão Liminar em Habeas Corpus nº 030494/2012-9. Paciente: Oscar dos Santos Emboaba Júnior. Autoridade Coatora: 16ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Ministro Relator Caputo Bastos. DJ, 26 abril. 2012.

[9] Deve-se destacar que, conforme demonstrado no presente estudo, em tempo posterior à celebração de contrato entre o jogador e SPFC, a cláusula penal foi transformada em cláusula indenizatória desportiva, através da edição da Lei nº 12.395/2011, que modificou o art. 28 da Lei Pelé.

[10] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Decisão Liminar em Habeas Corpus nº 030494/2012-9. cit.


Autores

  • Alberto Malta

    Sócio-fundador do escritório Malta Advogados; Professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília - UnB; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Condominial da OAB/DF; Mestre em Direito, Estado e Constituição, com ênfase em Direito Imobiliário Registral, pela Universidade de Brasília - UnB; Pós-graduado em Direito Imobiliário pelo Instituto Brasiliense de Direito Público 0 IDP; Master in Business Administration em Gestão de Negócios de Incorporação Imobiliária e Construção Civil pela Fundação Getulio Vargas - FGV; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Alberto Emanuel Albertin Malta

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  • Rodrigo Santos Valle

    Advogado, sócio-fundador do Escritório Malta Valle Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB (2010-2014). Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP (2015-2017).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALTA, Alberto; VALLE, Rodrigo Santos et al. Jogador de futebol: mercadoria ou empregado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4229, 29 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31633. Acesso em: 19 abr. 2024.