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A repercussão dos “rolezinhos” no ordenamento jurídico brasileiro

A repercussão dos “rolezinhos” no ordenamento jurídico brasileiro

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Avalia-se o movimento dos "rolezinhos" à luz de cada direito constitucional envolvido, buscando entender de que forma repercutem em cada caso.

Sumário: 1.Introdução. 2 . Definição de “rolezinhos”. 3.Os “rolezinhos” e o direito de livre manifestação de pensamento. 4. Os “rolezinhos” e o direito de reunião. 5. Os “rolezinhos” e o direito de propriedade. 6.Os “rolezinhos” e a perturbação do trabalho alheio. 7. Os “rolezinhos” e a lei 7.16/89 – lei que trata dos crimes de discriminação. 8 . Conclusão.


1 Introdução

No fim do ano de 2013 e início do ano de 2014, a imprensa passou a noticiar a ocorrência de eventos alcunhados de “rolezinhos”. Tais eventos consistem em confraternizações de centenas de jovens organizadas por meio das redes sociais. Entretanto muitas dessas confraternizações ocorreram em shoppings, embaraçando seu funcionamento.

O primeiro desses eventos ocorreu no shopping metrô Itaquera, em São Paulo, reunindo por volta de seis mil jovens. Nos dias seguintes, os “rolezinhos” espalharam-se por outras capitais do país, com Brasília e Rio de Janeiro.

O advento da ocorrência dos já citados movimentos trouxe a tona um debate, não só político-social, mas também jurídico, sobre o qual será desenvolvida a presente pesquisa.

Analisando os eventos e sua repercussão, tanto na imprensa, quanto no meio social, verifica-se que há manifesto choque entre os princípios norteadores do nosso ordenamento jurídico.

Constitui, pois, objetivo do presente trabalho acadêmico analisar de forma pormenorizada tais eventos a luz dos direitos constitucionais envolvidos como o direito de locomoção, direito de liberdade de manifestação e o direito de propriedade.

Além disso, serão tecidas considerações acerca da repercussão dos “rolezinhos” no âmbito direito penal, verificando se as condutas perpetradas, tanto pelos “rolezeiros” quanto pelos proprietários dos estabelecimentos, repercutem na seara criminal.

Como os eventos são recentes, não há jurisprudência formada sobre o assunto, apenas alguns julgados, o que reforça a necessidade de ser realizada a presente pesquisa, a fim de esclarecer a natureza jurídica dos “rolezinhos” e discorrer sobre sua repercussão no mundo jurídico, sobretudo no âmbito do direito penal.

Não constitui objetivo do presente trabalho acadêmico tecer análise social do fato, limitando-se a seu exame sob o ângulo jurídico.


2 . Definição de “rolezinhos”

Na definição de Emanuel Motta da Rosa, os “rolezinhos” são “manifestações sincronizadas de uma parcela da população que, a partir de uma provocação descentralizada e sem poder de comando ou controle, provoca uma reunião de pessoas com interesses em comum em áreas abertas ao público.” Segundo ele “tais movimentos caracterizam-se muito mais por uma confluência de interesses individuais inicialmente desvinculados que convergem e tomam forma na medida em que se operam numa mesma circunstância de tempo e lugar. Não se pode dizer que o evento é organizado, ao que parece, é muito mais provocado na medida em que alguém apresenta uma idéia e outras vontades a esta aderem.” Acredito que quando o autor utilizou o termo “manifestações” não se referia propriamente a reivindicações políticas, mas simplesmente a atuação dos jovens no sentido de se confraternizarem.

O primeiro desses encontros foi realizado no dia 07 de dezembro de 2013, no Shopping Metro Itaquera, em São Paulo. O evento foi divulgado previamente na internet e reuniu cerca de seis mil jovens, levando os comerciantes daquele centro comercial a baixarem as portas.

Ao longo do mês de dezembro de 2013 e nos primeiros meses de 2014 os “rolezinhos” intensificaram-se e espalharam-se por outros shoppings da grande São Paulo e de outras capitais do país, como Rio de janeiro, Brasília e Curitiba.

Os participantes normalmente são jovens da periferia adeptos do estilo de vida difundido pelo funk ostentação, uma vertente musical provinda do funk carioca cujo tema central refere-se ao consumo.

Os representantes de tal estilo musical procuram expor a seus admiradores seu grande poder aquisitivo, exibindo carros de luxo, jóias de ouro, motocicletas, bebidas e outros objetos de grande valor. Procuram enfatizar o modo pelo qual adquiriram tal poderio econômico, enaltecendo o desejo, compartilhado pela maioria dos jovens da periferia, de sair da favela e conquistar seus sonhos, sonhos de consumo.

Os eventos repercutiram fortemente na imprensa nacional o que levou a presidente Dilma Rousseff à convocar uma reunião com seus ministros para discutir o assunto. Na mesma semana o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, defendeu que não se deve tomar atitude repressiva aos “rolezinhos”.

A Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop) mostrou-se extremamente preocupada com os eventos. Em reunião com Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, o presidente da associação, Nabil Sahyoun, afirmou que os shoppings iriam fechar as portas sempre que houvesse convocações para os "rolezinhos". Para tanto, Sahyoun argumentou que, em tais eventos, pessoas de má fé estavam infiltrando-se, gerando insegurança. Em suasas seguintes palavras:

“Nós estamos preocupados em ter uma Copa com muita paz, tranquila. A gente sabe que tem gente infiltrada para tentar criar problemas com a Copa do Mundo. Todo mundo pode fazer uma reivindicação sobre os problemas do Brasil.O que estamos preocupados é com pessoas com intenções de criar a quebradeira, a bagunça”.

“A questão do fechamento é muito clara: quando se tem convocação, é peciso tomar a atitude [de baixar as portas] para evitar qualquer tipo de constrangimento. Se continuar tendo convocação [de rolezinhos], os shoppings vão continuar fechando”.

Nabil Sahyoun, também asseverou que os estabelecimentos ligados à associação estarão sempre disponíveis, desde que seja mantida a ordem:

 “Esses adolescentes estarão com as portas abertas para uma confraternização pontual, mas não para entrar com um rádio, para fazer a festa do beijo ou um evento que possa trazer preocupação para pessoas que estão lá dentro”.*


3  Os “rolezinhos” e o direito de livre manifestação de pensamento

O que se percebe, avaliando tais movimentos, é que não há interesse de promoção de ideologias. Os vínculos entre os participantes não se operam no âmbito do direito de livre manifestação de pensamento, tendo em vista que o evento não se compromete em defender qualquer conjunto de idéias, sejam elas de cunho político, social, religioso, etc. O que há, na verdade, é um agrupamento de interesses individuais. O único vínculo entre eles é o fato de serem exercidos ao mesmo tempo, no mesmo lugar.

Não se opera, em tais eventos, um espírito ideológico, que busque proteger determinados interesses coletivos. Não há intenção política. Os jovens participantes não buscam reclamar seus direitos, protestar contra o sistema ou governo, não objetivam levantar bandeiras, ensinar crenças, difundir filosofias. O objetivo do movimento é simplório, a saber: reunir-se, simplesmente.

Forçoso é entender que os “rolezinhos” objetivam protestar em desfavor da desigualdade social e outras tantas mazelas sociais que afligem nosso país. De certo modo, enxergando sob um olhar crítico e buscando realizar uma análise estritamente social, é bem verdade que tais movimentos exteriorizam o desejo desses jovens de serem inseridos no meio social, de serem vistos pela sociedade, de protagonizarem um estilo de vida novelesco, próprio das classes sócias mais favorecidas e não podemos fechar os olhos pra esse fato lastimável.  Entretanto, é evidente que os eventos não pretendem levantar essa bandeira. Em verdade, eles não objetivam levantar qualquer bandeira. Deveras, são vítimas de uma sociedade brutalmente desigual.

Logo, não é possível enxergar os “rolezinhos” como sendo um protesto, um ato político que busca levar a sociedade a refletir sobre a desigualdade social estabelecida em nosso país, apesar de, inevitavelmente, isso ocorrer. Entretanto, reitero, tal reflexão social não constitui objetivo dos movimentos denominados “rolezinhos”.


4 .Os “rolezinhos” e o direito de reunião

A Constituição assegura o direito de reunião em locais abertos ao público.Fazendo a leitura de tal dispositivo, não podemos confundir o termo “locais abertos ao público” como termo “espaços públicos”.

Espaço público é aquele pertencente ao Estado, destinado ao desenvolvimento de atividades coletivas. Já o termo “local aberto ao público” é destinado a definir aqueles locais de livre acesso da população. Este pode ser público, como praças e logradouros, ou privados, como os shopping centers.

Quanto a isso, não há maiores dificuldades. Os shoppingcerters se adequam ao termo “locais abertos ao público”. Entretanto, ao relacionar os “rolezinhos” ao direito de reunião o que salta aos olhos é outro problema, o qual é desenvolvido nos parágrafos seguintes.

O direito constitucional de reunião mostra-se intimamente ligado à liberdade de manifestação. Isso se deve ao fato de que, quando a Constituição normatiza que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público”, não se refere a qualquer reunião, mas sim às reuniões que tenham como finalidade discutir problemas de interesse geral.

Nesse sentido, a liberdade de reunião, assegurada por nossa Carta Constitucional, exibe-se como mero desdobramento da liberdade de pensamento. Mostra-se, vendo sob outra ótica, como sendo um mecanismo pelo qual a liberdade de pensamento pode ser exercida.

Nesse sentido ensina José Afonso da Silva (2010. p.264):

“Reunião, aí, é qualquer agrupamento formado em certo momento com o objetivo comum de trocar idéias ou de receber manifestação de pensamento político, filosófico, religioso, científico ou artístico.” (grifo nosso)

Manoel Gonçalves Ferreira Filho(1979. p. 41) no mesmo diapasão assevera:

Denomina-se reunião o agrupamento de pessoas, organizado, porém descontínuo, destinado à manifestação de idéias. Quatro, pois, são os elementos de uma reunião em sentido constitucional. O primeiro deles é a existência de uma pluralidade de pessoas. É este o elemento pessoal, o grupo que se reúne. O segundo elemento é a organização. No sentido constitucional, a penas existe reunião quando o grupo de pessoas está sujeito a uma organização, por tênue e elementar que seja esta. Isto significa que não existe reunião sem uma orientação, sem uma direção, sem algumas regras que pautem o seu andamento, ainda que essas normas sejam simplesmente a obediência às diretivas de um determinado líder. Em terceiro lugar a reunião se caracteriza pela descontinuidade. O agrupamento de pessoas não pretende permanecer indefinidamente associado. Ocorre para uma atividade que deve realizar-se num período de tempo relativamente curto, sem que isso importe em compromisso para o futuro. Em último lugar, a reunião implica uma manifestação de pensamento, seja esta uma troca de idéias, seja esta simplesmente a comunicação de um entender a quem de direito. Por este último elemento a liberdade de reunião toca perto da liberdade de pensamento prevista neste mesmo artigo (5º, CF) pelo inciso IV.” (grifo nosso)

Nesse sentido afirma Alexandre de Moraes:

O direito de reunião é uma manifestação coletiva da liberdade de expressão, exercitada por meio de uma associação transitória de pessoas e tendo por finalidade o intercâmbio de idéias, a defesa de interesses, a publicidade de problemas e de determinadas reivindicações. O direito de reunião apresenta-se, ao mesmo tempo, como um direito individual em relação a cada um de seus participantes e um direito coletivo no tocante a seu exercício conjunto.” (grifo nosso)

Conforme afirmado por Manoel Jorge e Silva Neto(2012. p. 666):

Acerca do tema dispõe Gilmar Mendes(2004. p. 337):

“As pessoas devem estar unidas com vistas à consecução de determinado objetivo.A reunião possui um elemento teleológico. As pessoas que dela participam comungam de um fim comum – que pode ter cunho político, religioso, artístico ou filosófico. Expõem as suas convicções ou apenas ouvem exposições alheias ou ainda, com a sua presença, marcam uma posição sobre o assunto que animou a formação do grupo. (grifo nosso)

Portanto, entende-se como reunião, pelo menos para fins de interpretação da norma constitucional ora em análise, como sendo o agrupamento de pessoas com uma finalidade específica, a saber: discussões de idéias.

Logo, em relação aos “rolezinhos” não se pode falar em direito constitucional de reunião. Como se viu, os movimentos denominados “rolezinhos” não se prestam a fins políticos, não objetivam reclamar por mudanças, não pretendem defender interesses coletivos. Trata-se de mero agrupamento de pessoas que visão a confraternização.

Não significa que realização dos “rolezinhos” não é tutelada em nossa Carta Constitucional. Esse tipo de evento é assegurado sim, entretanto, por outras formas de exercício da liberdade, como a liberdade de locomoção. É que, apesar de os “rolezinhos” constituírem, efetivamente, uma modalidade de reunião, não se prestam a fins políticos.

A liberdade de reunião, assegurada pela Constituição Federal,trata-se de uma modalidade da liberdade de expressão coletiva. Com a inscrição da liberdade de reunião na Carta Magma o constituinte almejou assegurar aos cidadãos o direito de reunir-se para discutir idéias. Logo, a liberdade de reunião constitucional não se refere a qualquer reunião, mas sim àquelas que se destinam a propagar idéias decunho político, religioso, artístico ou filosófico. Busca-se, desse modo, assegurar a atuação da coletividade em manifestações, passeatas, comícios, etc. Enfim, destina-se a proteger eventos coletivos nos quais temas interessantes para a coletividade são arrolados e debatidos.

Nesse sentido, a realização dos “rolezinhos” é tutelada pela Constituição, porém as tutelas são as mesmas que asseguram a realização de um aniversário infantil, por exemplo.


5  Os “rolezinhos” e o direito de propriedade

Os shopping certers constituem propriedade privada, uma área particular, tendo o proprietário a faculdade de usar, gozar e fruir do estabelecimento, desde que atendidas as exigências legais quanto ao cumprimento de sua função social. São espaços privados, destinados a promover a compra e venda de mercadorias e serviços.

 A finalidade social específica dos shoppings é oferecer à população um espaço seguro, onde são disponibilizados à venda de diversos produtos e serviços. É também um espaço destinado ao lazer, porém esse propósito é incidental, visto que a finalidade primordial de tais centros comerciais é a negociação de produtos e serviços. O lazer oferecido nada mais é que mero atrativo, estratégia utilizada para a consecução do fim principal.

Os diversos empreendedores lá estabelecidos encontram-se exercendo seu direito de propriedade. São pessoas que realizaram notáveis investimentos como a compra de estoque, decoração das lojas, treinamento e contratação de pessoal, locação do espaço e que agora buscam, por meio de seu trabalho, o retorno econômico dos investimentos realizados.

Nota-se que a realização dos “rolezinhos” provoca um desvio de finalidade que acomete o direito de propriedade. É que o shopping é um local erguido para servir ao empreendedorismo. A partir do momento em que, por algum motivo, os empreendimentos ali estabelecidos são impedidos de perseguir seu alvo, isto é, o lucro, tal desvio é manifestado.

Muitos críticos afirmam que, em tais situações, ocorre uma colisão entre diretos. De um lado, o direito de propriedade, do outro, o direito de livre manifestação. Ocorre que, como já discorrido, os “rolezinhos” não constituem manifestação política. Como já foi dito, apesar de os movimentos denominados “rolezinhos” ensejarem uma visão crítica em relação à desigualdade social, os participantes não objetivam propor tal reflexão.

Se, diante dos casos analisados, ocorre uma colisão entre direitos, ela se dá entre o direito de propriedade e o direito de liberdade de locomoção, situação em que o direito de propriedade deve prevalecer.

Ora, não é razoável exigir dos comerciantes, ali estabelecidos, que não impeçam a entrada de pessoas, ou um grupo de pessoas, que, certamente, porão em risco seus empreendimentos. 

Não se pode vitimizar os “rolezeiros” ao ponto de aceitar que a propriedade privada seja posta em risco. Os empreendimentos implantados nos shoppings constituem a fonte de renda para várias famílias. O capital ali empregado provém de árduo trabalho e é imprescindível que seja protegido.


6           Os “rolezinhos” e a perturbação do trabalho alheio

O que se percebe, por meio dos meios de comunicação, é que não constitui objetivo dos “rolezinhos” a promoção de atos que causem transtorno ao bom funcionamento dos shoppingcerters. De forma definitiva, a maioria dos jovens participantes dos eventos ora analisados não visainvadir lojas, pilhar mercadorias, provocar algazarras, promover correrias ou qualquer outro ato que embarace o funcionamento dos centros de compra.

Entretanto, também é evidente que por conta do excessivo número de participantes, os “rolezinhos” acabam, mesmo que involuntariamente, causando algum tipo de transtorno ao estabelecimento comercial, prejudicando o exercício da atividade laboral. Em um dos encontros, por exemplo, foram contabilizados 6.000 (seis mil) participantes. É quase impossível que, em um evento com esse porte, realizado em um espaço impróprio, não haja algum tipo de desalinho.

O Decreto-Lei 3.688/41estabelece em seu art. 42, inciso I, que perturbar alguém o trabalho alheiocom gritaria ou algazarra constitui contravenção penal, punida com prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa.

A lei de contravenções penais busca tutelar o direito ao sossego no momento em que o indivíduo exerce sua atividade laboral. Buscar assegurar ao cidadão a tranqüilidade necessária à realização plena e de forma pacífica de sua atividade profissional. Não é razoável aceitar que o cidadão, em seu trabalho, do qual retira o sustento de sua família, tenha sua paz perturbada.

É evidente que os jovens conservam em seu poder a faculdade de realizar tais confraternizações, faculdade assegurada pela liberdade de locomoção. Entretanto, não se pode olvidar que estão em jogo outros interesses, igualmente relevantes, que devem ser levados em consideração, a saber: o direito de sossego, mais especificamente, o direito de sossego daqueles que se encontram em labor.

A partir do momento em que os participantes dos eventos alcunhados de “rolezinhos”passam a se portar de forma a atingir o direito de sossego dos cidadãos que se encontram no exercício de suas atividades profissionais, atuando de forma desordeira, com gritarias, correrias, algazarras,desviando-se da finalidade do evento, perturbando a paz alheia, passam a incorrer na contravenção supracitada.

Para se ter como exemplo, no dia 08 de dezembro de 2013 o shopping Itaquera, em São Paulo, foi tomado por cerca de 6.000 “rolezeiros”. O abalo provocado pelo evento foi muito além do que pode ser considerado razoável. Os jovens fizeram o uso de gritos de guerra que ecoavam de forma ensurdecedora pelos corredores do shopping, desobedeceram as orientações dos profissionais de segurança, os agredindo verbalmente com palavras ofensivas. Diante do descontrole provocado pelo evento, a gerência do shopping solicitou amparo por parte da polícia militar, que, ao tentar controlar a situação, teve seus agentes feridos por objetos arremessados pelos baderneiros. Os comerciantes se viram obrigados a fechar as portas e os usuários que não participavam do “rolezinho” ficaram acuados nos corredores esperando a oportunidade de sair do local de forma segura.

Na parte externa do shopping, os jovens promoveram um festival improvisado de dança. Uma patrulha de segurança tentou impedir, mas foram hostilizados. Alguns jovens subiram no capô da viatura e enfrentaram os profissionais de segurança, enquanto outros bradavam gritos de incentivo.

Como foi visto, no caso concreto acima exposto, os profissionais do shopping se viram inteiramente obstados de exercer livremente e de forma pacífica suas atividades. Como já foi defendido, não é aceitável que o trabalhador não disponha da tranqüilidade necessária ao exercício de seu labor.


7           Os “rolezinhos” e a lei 7.716/89 – lei que trata dos crimes de discriminação

Com o advento dos “rolezinhos” muitos shoppings intensificaram a segurança. Em alguns deles, foram postos funcionários em seus acessosdestinados a impedir a entrada dos indivíduos que pretendiam participar dos eventos analisados no presente trabalho acadêmico. 

A indagação que surge é se não constitui crime de discriminação o fato de os seguranças impedirem a entrada de determinado indivíduo no shopping, utilizando como critério o suposto fato de que o sujeito se dirige para o local a fim de participar de um pretenso “rolezinho”.

 A lei nº 7.716/89 que cuida dos crimes de racismo assevera em seu art. 5º que constitui crime “recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”.

Entretanto, além dos fatos que configuram crime de discriminação, o legislador também estabeleceu na referida lei elementos motivadores a prática do ato. A lei, em seu art. 1º, assevera que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” (grifo nosso)

O que se percebe é que a lei firma um elemento subjetivo. Para que seja configurado o crime de racismo, o fator motivacional deve estar relacionado à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Significa dizer que, se determinado indivíduo, por motivo não ligado à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, praticar algum ato descrito na lei 7.716/89 tal indivíduo não estará praticando crime de discriminação.

Como o direito penal não admite interpretação extensiva, não se pode interpretar a norma no sentido de também considerar crime de discriminação atos praticados por motivos não previstos na lei.

Por falha legislativa ou desejo político, o fato é que não incorre no crime de discriminação o agente que impede determinado individuo de adentrar no shopping porque suas vestes foram julgadas inadequadas para o estabelecimento, ou porque se encontra embriagado, ou porque padece de distúrbios psicológicos, ou por qualquer outro motivo que não esteja ligado à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Nesse diapasão, se determinado indivíduo for proibido de adentrar no shopping porque se suspeita que ele almeja participar de um “rolezinho” não restará caracterizado crime de discriminação.

Se é ou não justo, não adentrarei nessa seara, tendo em visto que tal discussão foge da tema em estudo.


8  Conclusão

Diante do que foi exposto ao longo do presente trabalho acadêmico, pode-se afirmar, inicialmente, os eventos denominados de “rolezinhos” não se prestam a fins políticos. Como já exposto, os “rolezeiros” não pretendem expor qualquer tipo de pensamento, não buscam expressar publicamente suas ideologias ou mesmo difundir filosofias. Logo, não se pode classificar os “rolezinhos” como sendo um ato político.

Também se pode asseverar que as reuniões alcunhadas de “rolezinhos” não estão protegidas pelo pela norma constitucional que trata do direito de reunião (art. 5º, ). Como foi asseverado, ao editar a referida norma o constituinte desejava resguardar o direito de livre manifestação de pensamento. Logo, o que se busca proteger são as reunião que tenham como fim a discussão de idéias relevantes para a coletividade.Como foi dito, a realização dos “rolezinhos” é tutelada constitucionalmente, porém, não pelo direito de reunião, mas sim por outras tutelas, como a liberdade de locomoção.

Ademais, não é razoável aceitar que eventos como os “rolezinhos” possam perturbar a tranqüilidade daqueles que se encontram no exercício de suas atividades profissionais. Os “rolezeiros” podem sim atuar de forma livre, desde que não molestem o direito ao sossego dos demais cidadãos, mais precisamente, daqueles que se acham em labor.

Como foi dito, a natureza jurídica dos shoppings é de caráter privado, são estabelecimentos particulares, sujeitos ao regime jurídico de direito privado. Não é admissível que os empreendimentos ali estabelecidos tenham seu funcionamento embaraçado. O shopping se destina à compra e venda de mercadorias e serviços, a partir do momento que essa finalidade é desviada os empreendimentos são prejudicados. Não se pode aquiescer que a propriedade privada seja molestada em prol dos “rolezinhos”. Nesse caso, o direito de locomoção deve ser limitado pelo direito de propriedade.

Foi aclarado, também, que o fato de os seguranças dos shoppings impedirem a entrada de determinado indivíduo que se dirija à entrada do shopping a fim de participar de um “rolezinho” não constitui crime de discriminação. É que para ser caracterizado o crime supracitado é necessário que o fator motivacional esteja ligado ou a raça, ou a cor, ou a etnia, ou a procedência nacional. No caso dos “rolezinhos”, o motivo que leva a administração do shopping a impedir a entrada dos “rolezeiros” é outro, a saber: evitar um potencial tumulto no centro comercial. Logo, não há de se falar em crime de discriminação.

Diante de tudo que foi exposto, chega-se a conclusão de que aceitar de forma irrestrita a realização dos “rolezinhos” põe em risco o direito de propriedade. Não é razoável exigir do proprietário que se abstenha de impor medidas para preservar seu patrimônio. Seria, pois, um paradoxo, tendo em vista ser o Brasil um país de sistema econômico capitalista e que tutela, em sua Carta Constitucional, o direito de propriedade.


REFERÊNCIAS: 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33ª ed. Malheiros editores. 2010.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 36ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

MORAIS, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. Editora Atlas. 2002.

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional.3ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

ROSA, Emanuel Motta da. Artigo: um “rolezinho” jurídico. Portal jus brasil. Disponível em: http://emanuelmotta.jusbrasil.com.br/artigos/121943620/um-rolezinho-juridico


*disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/shoppings-vao-fechar-quando-houver-convocacoes-de-rolezinhos-diz-alshop


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, João Cláudio Pinto. A repercussão dos “rolezinhos” no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4617, 21 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34340. Acesso em: 23 abr. 2024.