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Colaboração premiada: reflexões práticas

Colaboração premiada: reflexões práticas

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Examina-se a decisão judicial sobre o pedido de colaboração, a vinculação do juízo aos termos do acordo, a necessidade de assegurar a imparcialidade do julgador, a participação da defesa no regime da colaboração, os critérios para valoração da prova e as consequências do descumprimento do acordo.

Sumário: 1) Introdução; 2) Os fundamentos da criminalização das OCs; 3) os prêmios ou benefícios legais; 4) o modelo brasileiro de colaboração premiada; 5) decisão judicial sobre o pedido de colaboração; 6) a vinculação do juízo aos termos do acordo7) a necessidade de assegurar a imparcialidade do julgador; 8) a participação da defesa no regime da colaboração premiada; 9) critérios para valoração da prova; 10) consequências do descumprimento do acordo; Conclusão.


1) Introdução

A criação de mecanismos de sanção premial[1] a colaboradores em crimes de alta gravidade, como os econômico-financeiros, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública, sequestro, latrocínio, terrorismo, narcotráfico, tráfico de pessoas etc, é uma tendência generalizada em diversos países, parte das estratégias na investigação e repressão a esse tipo de criminalidade, para a qual o vigente modelo de reação, com os seus meios de respostas pensados para a criminalidade ordinária, parecem ineficazes e inadequados[2].

Um dos mais importantes mecanismos para enfrentar esse fenômeno criminoso é o da colaboração premiada. A Lei brasileira nº 12.850/2013, “Lei de Combate ao Crime Organizado”, trouxe regulamentação inovadora em relação à delação premiada prevista para crimes graves, visando colmatar lacunas que colocavam em risco a segurança jurídica dos acusados e a eficácia da persecução penal.

O acordo de colaboração premiada é um ato jurídico da maior relevância, por meio do qual um possível criminoso se dispõe a fornecer informações às autoridades encarregadas de investigar e promover a ação penal pública em crimes graves, em troca de benefícios pessoais de caráter penal. O legislador, ciente dos riscos inerentes a esse tipo de pacto, o cercou de regras cogentes e o submeteu ao controle judicial de legalidade estrita, tanto sob o aspecto formal quanto material.

O propósito desse artigo é analisar o significado e alcance das regras procedimentais e do controle judicial sobre o instituto da colaboração premiada. Não é nossa intenção abordar em profundidade aspectos de política criminal, mas apenas fazer análise sobre a aplicação do direito positivado, à luz do princípio constitucional do devido processo legal.


2) Os fundamentos da criminalização das Organizações Criminosas[3]

Antes de abordar o tema específico deste artigo, convém apontar sumariamente os fundamentos da criminalização dessa figura, questão importante para a explicação da regulamentação dessa técnica de produção de prova, chamada colaboração premiada.

Tal como diz Silva Sanches, a organização criminosa é um sistema social em que as relações entre os elementos do sistema (basicamente pessoas) se acham funcionalmente organizadas para obter fins delitivos[4]. Desse ponto de vista se conceitua OC como um sistema de injusto que apresenta uma dimensão institucional e, mais concretamente, de instituição antissocial, que não se constitui como a soma das suas partes (membros), configurando uma realidade independente dela[5].

Esse sistema de injusto[6], per se, vulnera bens jurídicos como a segurança geral e a paz pública[7]. O caráter associal da organização, desvalorada penalmente por ser desestabilizadora da sociedade, é a forma da conduta antijurídica[8].  

A explicação da punição da OC não deriva, segundo Polaino-Orts, do injusto dos delitos fim, isto é, aqueles que se pretendam praticar, mas consiste na lesão atual de segurança, não no perigo futuro para alguns bens jurídicos, os protegidos no delito fim, cujo princípio de realização nem sequer é exigido pelo legislador[9].

Assim, sendo a OC uma associação disfuncional, isto é, um sistema de injusto que desestabiliza a estrutura social, todo sujeito que se associe com os membros dessa agrupação, convertendo-se desse modo em membro dela, está se arrogando uma esfera de organização delitiva que excede em muito simples pensamentos. Daí duas consequências claras na dinâmica delitiva dos delitos de organização: por um lado, a conduta objetiva de filiação a uma organização criminosa deixa de ser neutral para ter um significado objetivo de organização delitiva; e por outro lado, os fins delitivos com que se reúnem os sujeitos deixam de ser meros pensamentos de cometer delitos futuros, isto é, deixam de ser periculosidade não só hipotética senão prescindível, para converter-se em projeções atuais de uma gestão incorreta e perigosa do papel que lhes incumbe como cidadãos respeitosos das normas em seu conjunto[10].      

Sanchez Garcia de Paz, especialista na matéria, disserta que a soma de forças, o planejamento racional, a divisão de tarefas e a profissionalização dos membros da OC fundamentam claramente um maior perigo para os bens jurídicos que se pode estimar relevantes, ainda que este comportamento esteja afastado deles. E sustenta que a comissão de delitos em sede de OC provoca um debilitamento das possibilidades de defesa da vítima e um asseguramento do resultado delitivo. Em suma: tem muito mais possibilidades de êxito a extorsão, a ameaça ou o sequestro etc, praticada por uma OC que o levado a cabo por um indivíduo[11].

O reconhecimento da OC como crime autônomo levou o legislador a introduzir regras objetivas, tanto de direito material, quanto de procedimento, para viabilizar o estímulo à colaboração para a investigação e repressão dos crimes, por parte de suspeitos e/ou acusados de serem integrantes ou partícipes de crimes praticados.

Examinemos as principais regras e aspectos desse mecanismo. 


3) Os prêmios ou benefícios legais

Sob o vocábulo colaboração premiada a lei premia investigados e/ou acusados cujas informações permitam ao Estado alcançar um ou mais dos resultados previstos no art. 4º da referida lei, durante a persecução penal. Ao prever a possibilidade de perdão judicial, redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direitos, para quem tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, amplia-se a chamada delação premiada, que recompensava a confissão e a delação de implicados nos fatos criminosos.

A opção legislativa foi a de não vincular diretamente o prêmio à confissão ou delação do colaborador, orientando-se, antes, por condicioná-lo a qualquer forma de colaboração que leve aos resultados necessários. Assim, muito embora a identificação dos demais coautores e partícipes da OC e das infrações penais por eles praticadas seja um dos resultados (art. 4º, I), o prêmio depende fundamentalmente dos resultados proporcionados pelas informações, que podem ou não incluir confissão e delação - do colaborador[12].  

Assim, ainda que o colaborador não tenha delatado diretamente a outrem, se sua colaboração foi importante para a identificação de coautores ou partícipes ou para outros resultados, parece possível a premiação.  

Além de benefícios que pressupõem processo criminal contra o colaborador, a lei instituiu, no §4º do mesmo artigo 4º, o chamado acordo de imunidade, já previsto no art. 26, item 3, da Convenção de Palermo e no art. 37 da Convenção de Mérida[13], por meio do qual o MP deixa de oferecer a denúncia contra o colaborador em caso de cooperação substancial na persecução penal. É um avanço significativo, que confere ao MP a disponibilidade da ação penal, rompendo com a obrigatoriedade até então existente, de oferecer denúncia contra o colaborador para que só ao final do processo ele pudesse fruir benefícios penais.

A vedação prevista na lei para o acordo de imunidade, em caso de ser o colaborador o líder da organização criminosa, visa impedir que líderes de OC, prevalecendo-se de seu poder, domínio estrutural (informações, meios materiais e humanos), sejam eximidos de responsabilidade penal, enquanto subordinados ou cúmplices delatados suportariam as sanções penais, contrariando a finalidade legal de desarticular e reprimir as OCs., nelas incluídas as suas lideranças como alvos prioritários. A segunda exigência, isto é, se o pretenso colaborador for o primeiro a prestar efetiva colaboração, visa encorajar a que integrantes ou partícipes atuem prontamente, entregando às autoridades competentes informações substanciais, que permitam descobrir crimes desconhecidos ou em andamento, levando a resultados a que não se chegariam sem essa colaboração[14].

A previsão do § 3º do art. 4º, de suspensão do prazo para o oferecimento de denúncia em relação ao colaborador, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, com a suspensão do respectivo prazo prescricional, é essencial à racionalidade do sistema e à segurança jurídica, destinado ao acompanhamento e averiguação das informações, por parte das autoridades, a fim de certificar a sua veracidade e a relevância, evitando atuação fraudulenta de falsos colaboradores.

A interpretação sistemática dos §§ 1º ao 4º do art. 4º induz à conclusão de que o MP deve requerer a suspensão do prazo ao juízo para, só após o cumprimento do acordo por parte do colaborador, se for o caso, pronunciar-se pela concessão do benefício, pois a não suspensão do processo forçosamente teria como efeito negativo o curso do prazo de prescrição contra o Estado.

A decisão de não oferecer denúncia, previsto no art. 4º, § 4º da Lei, é questão entregue à liberdade de formação da opinião jurídica do MP. Mas, cuidando-se de decisão vinculada a duas condições legais, a promoção do arquivamento pelo MP deve ser fundamentada e submeter-se ao controle judicial, aplicando-se o disposto no art. 28 do CPP – como norma geral de aplicação subsidiária – caso o Juiz discorde do arquivamento. Por certo que a qualificação de líder depende do resultado das investigações e pode variar em graus, conforme a natureza e espécie de OC. e do papel do agente na sua estrutura funcional, havendo casos em que a liderança é oculta ou compartilhada, v. g., em células autônomas ou associadas[15].

De qualquer modo, líderes de organização criminosa – que não devem ser confundidos com chefes supremos – embora não possam ser beneficiados com o acordo de imunidade, podem obter o perdão judicial, redução de pena privativa de liberdade em até 2/3 (dois terços) ou a substituição da pena por restritiva de direitos. Sempre, é claro, observadas as condições previstas no § 1º do art. 4º da Lei.

Observe que os benefícios – prêmios – previstos na lei vão desde substituição de pena privativa de liberdade por restritivas de direito; reduções de pena, em caso de condenação; e, mudança de regime de cumprimento de pena, até o perdão judicial ou a própria imunidade, os quais dependem do alcance dos resultados previstos no art. 4º da Lei e das peculiaridades do caso concreto.


4) O modelo brasileiro de colaboração premiada

A admissão de formas de colaboração com a Justiça tem dado origem a dois modelos básicos no direito comparado: 1) no primeiro modelo, o arrependido entra em cena como testemunha do juízo e é obrigado a depor como condição para não ser acusado (grant of immunity), expondo-se a uma situação de perigo especial, e assim outorga-se-lhe a condição de testemunha protegida. É o modelo que se pode encontrar nos países anglo-saxões, como Estados Unidos, os da Grã-Bretanha e também na Polônia, desde 1998; 2) no segundo modelo, o arrependido intervém fundamentalmente na fase de instrução do procedimento (investigação), colaborando com as autoridades de persecução penal no esclarecimento dos fatos e no descobrimento dos culpados, conduta premiada geralmente de modo facultativo pelo juiz, com diminuição ou, inclusive, uma exclusão da pena. Como não tem necessariamente que aparecer perante o tribunal como testemunha, nem sempre há um programa de proteção para ela; é o modelo adotado na Alemanha, Suíça, Áustria, Holanda e também no Direito espanhol. Na Itália encontram-se elementos de ambos os modelos[16].

O sistema brasileiro, conforme pode-se constatar no art. 4º, §§ 9º e 12 da lei, assemelha-se ao primeiro modelo, pois nele o colaborador é ouvido tanto na fase de investigação como em juízo, sob o compromisso legal de dizer a verdade, renunciando ao silêncio, como se fora testemunha e, nessa condição, é titular do direito de proteção.  No nosso direito está afastada, portanto, a possibilidade de colaboração premiada oculta, à revelia da defesa[17].

O colaborador não tem direito ao anonimato, mas apenas à preservação de seu nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais, não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito (art. 5º, II e V da Lei 12.850/2013). Embora ele tenha os direitos de ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes, participar das audiências sem contato visual com os outros acusados e cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados, não tem o direito de se ocultar ou de se eximir de inquirições por parte da defesa de investigados e/ou acusados, estando igualmente obrigado a dizer a verdade em relação às perguntas defensivas[18].   

A lei optou por excluir o julgador das tratativas e da formalização do acordo entre as partes (art. 4º, § 6º, da lei), assegurando autonomia às autoridades encarregadas da investigação e da ação penal pública – as legitimadas para a proposta –, reservando ao Juiz de Direito apenas competência de controle a posteriori, reafirmando a posição tradicional do juiz como terceiro imparcial na relação jurídico processual. Instituiu-se, então, um duplo controle: do MP sobre as tratativas da polícia com o investigado e do juízo sobre a proposta formalizada.

O art. 4º § 1º, da lei prevê: § 1o Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração, a apontar que se cuida de decisão submetida à criteriosa análise, não apenas quanto aos requisitos objetivos, mas também quanto à personalidade do colaborador.

O investigado não tem direito subjetivo à colaboração premiada. Trata-se de medida disponibilizada ao Estado, que por meio de seus agentes qualificados, o Delegado de Polícia e o membro do Ministério Público, em regime de interação, podem, sopesando os diversos fatores referidos na lei e as necessidades decorrentes das investigações[19], propor acordo com um ou mais dos envolvidos, se verificarem que poderão prestar colaboração relevante para o alcance de uma ou mais das finalidades previstas no art. 4º, I a V, da Lei[20].

Sem embargo, o investigado ou o acusado que não tenha aceitado acordo inicial pode fazê-lo no curso das investigações ou do processo criminal. Essa é a interpretação que resulta da análise combinada dos artigos 3º, 4º, §§ 2º e 5º da Lei 12.850/2013, por meio da qual se identifica a clara finalidade de estímulo ao arrependimento, à desistência e à colaboração do integrante de OC, em todos os momentos da persecução penal. 

Se a lei prevê a possibilidade de concessão de perdão judicial em favor do colaborador a qualquer tempo, ainda que esse benefício não tenha sido previsto no acordo já homologado (art. 4º, § 2º), admitindo a possibilidade de redução de pena ou a progressão de regime[21], até mesmo depois da sentença condenatória, não faria sentido impedir que o investigado ou acusado que, por algum motivo, não quis ou não pôde firmar o termo anteriormente – basta lembrar a possibilidade de coação –, se tornasse colaborador no curso do processo penal, se as informações que se propõe a dar são novas e relevantes para o alcance dos objetivos previstos no art. 4º da Lei[22].

A única condição para isso, a meu ver, é que o acordo seja submetido a prévio controle judicial, pois a opção do legislador foi a de condicionar qualquer benefício a acordo formalizado e homologado, de modo a impedir acordos extra-autos. E, claro, o acordo e as informações novas no curso do processo devem ser submetidas ao crivo da defesa dos demais acusados em respeito ao princípio do contraditório, suspendendo-se o processo e o prazo prescricional. 


5) A decisão judicial sobre o pedido de colaboração

Realizado o acordo, o termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, que deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente ouvir o colaborador na presença de seu defensor (art. 4º § 7º da Lei 12.850/2013). O juiz poderá recusar homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto, diz o § 8º, art. 4ª da Lei.

Entre esses requisitos legais observa-se a legitimidade do Delegado de Polícia para o requerimento de perdão judicial ao colaborador, durante o inquérito policial, condicionada, porém, a aceitação do MP (art. 4º, § 2º), posto que, como dominus litis, responsável jurídico pela persecução penal, não pode, logicamente, ser compelido a levar a juízo qualquer proposta que envolva disposição ou afetação do jus puniend. 

A decisão judicial, conforme se observa, não é limitada à verificação da regularidade formal. É claro que, satisfeitos os requisitos legais, em princípio o julgador deve homologar a proposta; mas a isso o juiz não estará obrigado se, por exemplo: a) tiver dúvidas acerca da voluntariedade do colaborador; c) se a contribuição não for potencialmente[23] apta a alcançar um dos resultados previstos no art. 4º da lei e prometidos pelo colaborador.

Nesses casos, portanto, o juiz exerce crivo sobre a regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo, podendo tanto recusar tout court o termo, como glosar cláusulas e/ou reformulá-las, adequando-as ao direito. É possível, por exemplo: a) que o termo não esteja acompanhado dos demais documentos exigidos; ou: b) que não conste a assinatura do defensor; c) que as cláusulas sejam ilícitas. Mas é possível também que: d) a colaboração não tenha sido efetiva ou relevante.

Enquanto nas primeiras hipóteses há correção do termo de acordo, sanando-se irregularidades; na última, o acordo já terá sido homologado e o controle incidirá sobre o seu conteúdo ou eficácia – juízo só possível, logicamente, no momento da sentença.

Em qualquer caso é facultado ao juiz ouvir, em sigilo, o colaborador na presença de seu defensor, principalmente quando tiver dúvidas sobre a voluntariedade de seu consentimento, o que supõe a capacidade de compreender os significados positivos e negativos da colaboração.

A decisão sobre a colaboração premiada deve ser fundamentada, com particular atenção à extensão e à relevância concreta da ajuda do colaborador para a investigação ou apuração dos fatos no curso da instrução criminal. O amplo espectro de benefícios previstos na lei e a condição de sujeito titular da promessa judicialmente homologada exigem exposição clara do raciocínio judicial que conduza à concessão, ou não, do prêmio em espécie e/ou quantidade consideradas justas e adequadas[24], que há de manter correlação lógica com os resultados que as informações promoveram.


6) Vinculação do juízo aos termos do acordo 

O controle judicial do acordo funda-se na necessidade de tutelar a lisura da transação sobre direitos e liberdades fundamentais. O acordo envolve disposição de direitos fundamentais processuais do investigado/acusado (de manter-se em silêncio, com a obrigação de dizer a verdade, o que pode incluir confissão de crimes);  por outro lado, como o Estado não pode, no nosso sistema, renunciar ao direito de punir, salvo nas hipóteses que lhe forem autorizadas por lei, deve submeter os termos do compromisso ao Estado-Juiz, a fim de que este avalie se a pretensão estatal se ajusta aos limites e às condições autorizadas em lei.  

A natureza dessa decisão, a nosso ver, mais que declaratória, é constitutiva, posto que, incidindo sobre uma pretensão correspondente ao próprio conteúdo do “negócio jurídico” entabulado pelas partes[25], podendo o juiz alterá-lo e adequá-lo, produz uma situação jurídica nova, da qual defluem os efeitos jurídicos previstos na lei, concretizáveis na sentença (art. 4º, § 11).

A vinculação do juízo aos termos do acordo homologado deve ser considerada à luz da natureza desse ato jurídico que, mesmo homologado judicialmente, é retratável pelas partes, o que mostra o seu caráter precário, de compromisso bilateral, sujeito a resultados correspondentes às obrigações pactuadas entre as partes (MP e colaborador)[26]. Por isso, não é possível afirmar que o juízo esteja obrigado a cumprir acordo feito na fase de investigação, em que, p. ex., se prometeu o perdão judicial se, ao fim da instrução, ficar caracterizada a pouca ou escassa contribuição do colaborador.

Em princípio, em respeito à lealdade, o juízo e o MP estão obrigados a cumprir o acordo homologado; mas disso não se conclui haver uma vinculação absoluta, pois se cuida de compromisso de resultado, consoante o sentido pragmático da lei. Sem colaboração efetiva que leve a resultados concretos não há prêmio.

A vinculação depende sempre da satisfação das condições entabuladas formalmente, daí a necessidade de haver congruência no trinômio: promessa-colaboração e resultados efetivamente alcançados[27]. Essa a razão porque o MP ou o Delegado de Polícia devem exigir informações específicas em relação a certos resultados (art. 6°, I) – a serem investigadas conforme o princípio da oficialidade) – e não devem prometer benefícios específicos, como quantidades fixas de redução de pena ou a substituição de pena ou o perdão judicial, mas limitar-se a prever as possibilidades legais dos benefícios, pois só ao final do processo será possível saber, numa análise global, o prêmio justo e adequado ao colaborador em cada caso[28].


7) A necessidade de assegurar a imparcialidade do julgador    

É fora de dúvidas que o combate à impunidade dos crimes praticados em sede de organizações criminosas tem como reverso da medalha a segurança jurídica de investigados e acusados, como deve ocorrer em qualquer processo penal. A colaboração premiada, como o próprio nome já diz, premia ações que contribuam para as finalidades da persecução penal, o que só se legitima no âmbito do devido processo legal, com respeito aos direitos fundamentais do investigado/acusado.

Questão relevante é a de se saber se o Juiz de Direito que exerce controle de legalidade sobre o acordo de colaboração premiada, tomando conhecimento das investigações sobre fatos, a estrutura e funcionalidade da organização criminosa, ouvindo o investigado sigilosamente e adotando medidas cautelares, conhecendo os resultados dessas diligências etc, poderia manter-se imparcial em grau desejado, a fim de entregar a futura prestação jurisdicional adequada e justa, como se deseja. 

Uma resposta tradicional é a de que não haveria comprometimento à imparcialidade nessa situação, assim como não há impedimento do juiz nos casos em que defere medidas cautelares na fase inquisitorial. Entretanto, essa resposta não parece satisfatória, pois a atuação judicial aqui não é idêntica àquelas. No caso da lei 12.850/2013 o juiz conhece os termos do acordo, faz controle de legalidade, conhece o teor e o “programa das investigações”, sabe o que o colaborador se propõe a revelar aos investigadores, é obrigado a velar pela legalidade das cláusulas do compromisso, podendo readequá-lo, recusá-lo e, inclusive, aquilatar se o colaborador age voluntariamente – o que implica saber até mesmo suas motivações pessoais –, podendo, para tanto, ouvi-lo sigilosamente na presença de seu defensor (art. 4º, § 7º).

Ainda que a lei afirme que o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração (art. 4º, § 6º), parece-nos que as tarefas impostas ao juiz ainda na fase inquisitorial podem comprometer sua equidistância de terceiro imparcial na futura prestação jurisdicional, notadamente se inquire o pretenso colaborador. Difícil sustentar, com razoabilidade, que um juiz que acompanha desde o início as investigações, determina medidas sigilosas de busca e apreensão, interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e fiscal, ouvindo pessoalmente o pretenso colaborador - que lhe revela crimes em detalhes e aponta coautores e partícipes, e obtém, inclusive, proteção pessoal - consiga manter o nível de imparcialidade desejado, de acordo com o devido processo legal concebido no Estado de Direito Democrático.

Nos termos da lei 12.850/2013, o juiz passa a atuar para além de um supervisor ou garantidor de direitos fundamentais, como até então se tem entendido na doutrina e jurisprudência[29]. Com a máxima vênia, dizer que o juiz não faz juízo de valor nessa hipótese, e por isso não compromete sua imparcialidade, é ignorar a realidade de uma investigação sobre OC. A magnitude de certos casos, quando um integrante se dispõe a colaborar, atraindo quase sempre a atenção midiática, gera altas expectativas na sociedade, rendendo grande notoriedade às autoridades, que muitas vezes passam à condição de quase “heróis”, do dia para a noite, fenômeno muito conhecido na literatura do direito comparado[30].

A imparcialidade é pressuposto de validade da própria jurisdição; e já não se pode “isolar a autoridade do julgador”, separando-a de sua humanidade e de suas circunstâncias, notadamente na era da comunicação tecnológica instantânea e planetária, as quais podem retirar as condições objetivas que inspiram a confiança social no juiz. O aumento da atividade do juiz na fase inquisitiva, antes mesmo de formalizada a denúncia, é elemento perturbador ao postulado acusatório e à garantia do terceiro imparcial, não se afigurando relevante se ele fez ou não juízo de valor, ou antecipou opinião sobre o objeto do processo, embora muitas vezes esses juízos sejam inevitáveis nas decisões sobre medidas cautelares.   

Nessas condições, parece aconselhável que o juiz que tenha atuado com tal amplitude na fase investigatória, conhecendo toda a trama delituosa e o plano das investigações, controlando o termo de colaboração e ouvindo o pretenso colaborador, se exima de presidir o futuro processo criminal, pois frente a tal protagonismo, ele dificilmente reuniria as condições psicológicas necessárias para um julgamento justo e imparcial[31]. 


8) A participação da defesa no regime da colaboração premiada

Outra indagação de primeira ordem diz respeito à validade da prova produzida em regime de colaboração premiada contra quem não teve oportunidade de contraditar e/ou contrastar suas declarações.

A lei cuidou de paliar essa preocupação defensiva assegurando, no art. 23, em caso de decretação de sigilo da investigação, o direito do defensor, no interesse do representado, de ter amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.

No parágrafo único especificou o direito do defensor, quando do depoimento do investigado, de prévia vista dos autos no prazo mínimo de 3 (três) dias antecedentes ao ato, ampliável a critério da autoridade responsável pela investigação,  mesmo quando estiver sob sigilo.

A lei, sopesando o direito fundamental de liberdade individual e o dever de investigação de delitos para a segurança e proteção aos bens jurídico-penais, deu prevalência a este último. Assegurou plena liberdade às autoridades encarregadas da investigação, tornando os autos do pedido de homologação do termo de colaboração restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações. Sem embargo disso, obtemperando o conflito, assegurou ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento. (art. 7º, § 2º).

O defensor não tem, portanto, direito de participar das diligências investigatórias em nome do seu constituinte; só tem direito de conhecer o resultado das diligências documentadas nos autos, isto é, os elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa (cf. Súmula Vinculante nº 14-STF). Toda investigação transcorre sem a presença da defesa, como é tradicional nas investigações criminais em geral. O único elemento novo, de contramedida ao interesse persecutório, diz respeito ao direito de vista dos autos três dias antes da inquirição do investigado[32].

Note-se que a lei não diz qual deve ser o prazo para submissão do termo de acordo de colaboração ao juízo, pois, como se viu, a colaboração pode ocorrer a qualquer tempo, antes, durante a ação penal e até após sentença condenatória. Em consequência disso, as tratativas são conduzidas exclusivamente pelo Delegado de Polícia e/ou Ministério Público junto ao pretenso colaborador e o seu defensor.

Tal circunstância, que a princípio pode parecer um problema, em realidade não é, pois que o Estado submete-se à prescrição da pretensão punitiva e a demora em toda investigação corre contra os seus interesses, não da defesa[33]. Se não há acordo de colaboração formalizado, não há risco ao direito de liberdade; relevante é que, homologado o acordo, o defensor tenha acesso aos autos e ao termo de colaboração premiada para preparar desde logo a “defesa” de seu cliente, acompanhando a sua inquirição. 

A questão que se põe é: se o colaborador pode ser ouvido pela defesa em juízo, por previsão do art. 4º, § 12, da Lei, a defesa poderia inquiri-lo na fase inquisitorial? Parece-nos que, tratando-se de situação em que o colaborador faz acusações a supostos copartícipes de crimes ou integrantes de OC, sendo isso parte do termo de colaboração homologado judicialmente, os imputados têm evidente interesse jurídico de inquirir o delator, por se tratar de elemento de prova que dizem respeito ao exercício do direito de defesa, conforme prevê o art. 7º, § 2º, da lei nº 12.850/2013.

Se a lei confere à defesa o direito de obter vista dos autos e do termo de acordo de colaboração, quando nele hajam elementos de prova que digam respeito ao seu constituinte, mesmo quando sigilosa a investigação, como estabelecem os artigos 7º e 23 da Lei - inclusive para preparar as linhas de defesa com três dias de antecedência do depoimento - não seria razoável negar pedido para inquirir o delator no curso da investigação criminal, a fim de refutar elementos que poderiam levá-lo a um processo criminal temerário ou indevido.

Note-se que, de acordo com o § 9º do art. 4º da Lei, mesmo depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, acompanhado de seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações. Tendo a lei assegurado ampla liberdade à investigação, exigindo a presença do defensor do colaborador, como condição de validade do acordo e do depoimento na fase de investigação, seria estranho que os delatados pelo colaborador não pudessem contestar as acusações antes do oferecimento da denúncia.

De se reconhecer que esse talvez seja o ponto que mais suscitará desenvolvimentos doutrinários, porque a colaboração premiada - assim como todos os outros meios de obtenção da prova previstos no art. 3º – embora possa ser utilizada em qualquer fase da persecução penal, é mais usual na fase de investigação, quando os impactos jurídicos sobre a esfera de direito individual tendem a ser mais intensos e, contraditoriamente, o investigado pode ficar exposto a acusações falsas e criminosas, sem possibilidades de reação adequada, enquanto o delator – que em regra é integrante da OC - está assistido de advogado.  

E deve-se atentar, por fim, que no sistema da lei o colaborador obrigatoriamente assume a condição jurídica de testemunha com o compromisso legal de dizer a verdade. Então, negada a possibilidade de inquirição pelos delatados, seria caso único de testemunha que não poderia ser inquirida pela parte interessada.


9) Critérios para valoração da prova

A orientação doutrinária e jurisprudencial acerca dos critérios para a valoração da prova em regime de colaboração premiada é a de que o juiz não deve fundar a decisão condenatória unicamente na acusação do computado – proibição agora expressa no art. 4º, § 16, da lei nº 12.850/2013 –, mas num conjunto de fatores, tanto de ordem subjetiva, como objetiva.

O Tribunal Supremo da Espanha, em cujo ordenamento não há regras de reconhecimento do valor probatório das declarações prestadas por colaboradores - como a que contém o artigo 192.3 do CPP italiano (desde a sentença de 12 de maio de 1986), vem assentando um corpo de doutrina ajustado às teses italianas (espontaneidade, univocidade, coerência lógica e reiteração).

Entende aquele tribunal que, para que la implicación correal (chiamata in correi, como se diz na Itália) possa ser tomada em conta como verdadeira prova, deve-se atentar para duas notas: a) a subjetiva, derivada dos brocardos nemo tenetur se detegere y non edere contra se, eliminando a eficácia probatória se há finalidade da própria exculpação; b) a também subjetiva (e necessariamente objetivada) de que exista entre delator e delatado uma relação de inimizade ou ressentimento ou qualquer outra finalidade espúria"[34].

Esses critérios, valiosos sem dúvida, devem ser vistos apenas como possíveis motivos para a delação. O que se deve aferir é a existência, ou não, de outras provas além das declarações do agente colaborador, pois, do ponto de vista legal, no nosso direito, os motivos pessoais, egoísticos, de vingança etc., da delação não têm, por si, relevância para a higidez da prova.  Aliás, esses são precisamente os motivos que levam o partícipe de um crime ou integrante de OC a delatar alguém, como a experiência demonstra.

O processo penal rege-se pelo princípio da verdade real, em que todas as provas têm valor relativo, e o juiz forma sua convicção pela livre persuasão racional. A valoração da prova obtida em sede de colaboração premiada não difere, a nosso ver, da dos métodos tradicionais, cumprindo ao juiz averiguar o relato do colaborador e inseri-lo no contexto das demais versões apresentadas para, estabelecidos os pontos controversos, examinar se está, ou não, apoiado em outras provas, ao menos indiciárias, dados ou circunstâncias externas, que consolidem ou confirmem a coerência e a solidez das informações, numa visão de conjunto.

A coerência interna nas declarações do colaborador – as quais certamente terão passado pela crítica da defesa – pode ser aferida pela constância e uniformidade com que são expostas. Então, se o juiz se convenceu de que a versão encontra ressonância nas demais provas dos autos, a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (art. 4, § 1°) entram em cena posteriormente, como critérios de avaliação do benefício prometido ao colaborador.   

Por fim, deve-se lembrar que, ao contrário do que ocorre noutros sistemas onde o delator não tem o dever legal de dizer a verdade e, por isso, o risco de delações falsas é maior, em nosso direito o colaborador abre mão do direito ao silêncio e compromete-se a dizer a verdade, sob pena de perder os benefícios, reduzindo a problemática sobre a credibilidade de suas informações. 

A opção do nosso sistema, em conferir ao colaborador tratamento equiparado ao de testemunha, somada à desvinculação da delação como condição ao benefício, contribui para a racionalidade e a segurança da prova, praticamente afastando o interesse, por parte do colaborador, de delatar apenas com a finalidade da própria exculpação.    


10) As consequências do descumprimento do acordo       

A renúncia ao direito constitucional ao silêncio e o compromisso legal de dizer a verdade são, como visto, condições essenciais à colaboração premiada (art. 4º, § 14). Assim como pode ocorrer em qualquer contrato, não sendo cumprida a obrigação, entram em ação os mecanismos de coerção ou de sanção pela inexecução, o que levará, no caso, a ineficácia da cláusula de benefício prometido.

A verdade a que o colaborador se obriga a dizer é naturalmente aquela sobre fatos de seu conhecimento; o compromisso não incide sobre a verdade ontológica ou absoluta[35], eterna aporia do conhecimento.

É o desestímulo legal a tentativas de ludibriar as autoridades, pois a simples constatação de que o pretenso colaborador não disse toda a verdade que sabia – sejam lá quais forem os motivos - pode significar não apenas a perda dos benefícios legais e a sujeição às sanções do processo criminal, mas também a imputação pelo crime do art. 19 da Lei 12.850/2013, Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas.

O legislador, com essa exigência, procura eliminar o grave problema existente noutros sistemas onde o colaborador não assume o compromisso legal de dizer a verdade e, ao delatar falsamente alguém, não pode ser responsabilizado por falsa imputação.

Em verdade, antes mesmo da lei nº 12.850/2013, a lei 9.807/99 já conferia ao colaborador tratamento equiparado ao de testemunha, conforme veio a ser reconhecido e validado pelo STF no julgamento da AP 470, o caso Mensalão. Trata-se de acertada opção legislativa, constituindo elemento vital no sistema da colaboração premiada, sem o que grassariam os falsos colaboradores.       

A gravidade desse risco, a nosso ver, deve chamar a atenção das partes e do próprio Juiz de Direito, fazendo-se constar, ad cautelam, do termo de acordo de colaboração (art. 6º, III, da Lei) todas as advertências, a fim de se prevenir acordos irrefletidos, mal compreendidos ou mal orientados, e futuras arguições de desconhecimento ou falta de compreensão exata das consequências legais[36]. 


Conclusão:         

A colaboração premiada, dirigida ao descobrimento de crimes graves, à desestruturação das OC, à prevenção e à repressão de crimes graves, é instrumento de inestimável utilidade, que tem produzido resultados altamente significativos em vários países. O Brasil, após vários anos de experiência com a aplicação da chamada delação premiada, presente em diversas de suas leis, com a nova regulamentação promove significativo aperfeiçoamento do instituto; de um lado amplia-se o poder de transação penal do Estado, conferindo maior autonomia às autoridades encarregadas da investigação e da ação penal; e, de outro, se estabelece um controle judicial de legalidade estrita, visando melhor garantir os direitos fundamentais dos investigados e acusados.

Os integrantes do Sistema de Justiça Criminal passam a contar com o que há de mais atual na experiência doutrinaria e jurisprudencial sobre esse meio de produção de prova que, ao lado de outros instrumentos igualmente importantes, pode contribuir decisivamente para a aurora de novos tempos, em que as demandas sociais por legalidade e punição de criminosos de altas esferas econômicas, políticas e sociais, sejam finalmente respondidas com a seriedade que se espera num Estado de Direito responsável.

A opção legislativa, frente a alternativas extremas[37], orientou-se claramente pela busca de equilíbrio entre os interesses e direitos fundamentais em jogo, procurando assegurar a efetividade na investigação e a repressão dos crimes praticados por e em sede de OCs, com a preservação dos direitos fundamentais dos afetados, à luz do devido processo constitucional.

Não se percebe na lei restrições a garantias e a direitos processuais dos investigados/acusados na regulamentação do instituto da colaboração premiada. Ao contrário, o legislador cuidou de manter o standard de proteção vigente para os acusados por outros tipos de delitos graves.

A técnica de obtenção de prova por meio da colaboração do próprio investigado/acusado sob a exigência de renúncia ao direito ao silêncio é incensurável do ponto de vista constitucional. Assunção do compromisso com a verdade é uma condição para a realização prática dos fins do instituto; o investigado/acusado não tem qualquer obrigação ou dever de aceitação aos termos do acordo, e o fazendo de maneira livre e voluntária, devidamente assistido e orientado por seu defensor – afastada qualquer imposição ou coerção estatal –, não há violação ao princípio da não autoincriminação[38].

Na nova fase do enfrentamento do fenômeno do crime organizado no Brasil, onde a expansão da ilegalidade, com fraudes e ataques ao erário é alarmante e insuportável, o mecanismo, se aplicado com a necessária inteligência, sensibilidade, prudência e discernimento pelas autoridades, certamente contribuirá para o resgate do sentimento de respeito aos valores do direito e da Justiça, a exemplo do que ocorreu na experiência recente de outros povos.


Notas

[1]  A origem do Direito Penal Premial é muito antiga, remonta ao Direito Romano, a propósito dos delitos de lesa magestade (na Lex Cornelia de sicariis et veneficis), passando depois ao Direito Canônico e Comum medieval. Beccaria, em sua obra Dos Delitos e das Penas, se pronunciara contrariamente a premiação de delatores, prática comum no antigo regime dos procedimentos seguidos na Inquisição. Na literatura, uma das primeiras referências favoráveis a este tipo de instituição se acha na obra de J. Bentham, paradigma do pensamento utilitarista anglo-saxão aplicado ao âmbito jurídico-penal, quem, por entender preferível "a impunidade de um dos cúmplices que a de todos", se mostrava partidário das disposições premiais para o delator. (García de Paz, Isabel Sánchez, EL COIMPUTADO QUE COLABORA CON LA JUSTICIA PENAL: Con atención a las reformas introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003, RECPC 07-05 (2005)). A delação premiada esteve presente no Brasil nas Ordenações Filipinas (1603-1830) e retornou com a lei 8.072/90.

[2] No direito comparado identifica-se o instituto nos principais países da Europa, como os da Grã-Bretanha, a chamada crown witness (“testemunha da Coroa”) que obtém imunidade (grant of immunity) em troca de seu testemunho, e as situações de transação penal (plea bargaining); no Direito Italiano,  para os denominados "collaboratori della giustizia" o "pentiti", que contribuíram decisivamente – no contexto da legislação excepcional dos anos 70 e 80 – contra o terrorismo e a máfia; na Espanha, França, Holanda, nos países de língua alemã (Alemanha, Suíça, Áustria), onde são conhecidas como Kronzeugenregelungen (regras de testemunha principal ou da Coroa). (ibidem).

[3] De agora em diante abreviadas como OCs.

[4] Pertenencia o intervención, apud Polaino-Orts, Miguel, in Derecho Penal Del Enemigo: fundamentos, potencial de sentido y limites de vigência, Bosch, Barcelona, 2009, p. 401.

[5] Ibidem.

[6] Conforme leciona Cezar Bitencourt, “Injusto é a forma de conduta antijurídica propriamente: a perturbação arbitrária da posse, o furto, a tentativa de homicídio etc. A antijuridicidade, por sua vez, é uma qualidade dessa forma de conduta, mais precisamente a contradição em que se encontra com o ordenamento jurídico”. (Tratado de Direito Penal- Parte Geral 1, 19ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2013, p. 390).

[7] Enquanto no crime de associação criminosa do art. 288 do CP o bem jurídico tutelado é, segundo a doutrina majoritária, a perturbação da paz pública, os bens jurídicos protegidos no crime de OC são a paz pública e a segurança geral. Daí os elementos objetivos do tipo de um e de outro crime serem gradualmente distintos.

[8] Polaino-Orts, Miguel, in Derecho Penal Del Enemigo: fundamentos, potencial de sentido y limites de vigência, Bosch, Barcelona, 2009, p. 402.

[9] Ante a crítica da doutrina, de que a OC como injusto sistêmico autônomo conforma um injusto por sua mera existência, vulnerando o princípio do fato, responde o autor que o combate a um grupo criminoso por sua própria existência, isto é, por ser um fator disfuncional para a sociedade, não significa em absoluto que se prescinda do princípio do fato; muito ao contrário, significa que a conformação da associação criminosa, isto é, a associação do sujeito a essa estrutura como fato objetivo imprescindível, colore ou tinge de caráter delitivo a pertinência e a associação com fins ilícitos. (ob. cit. p. 410)

[10] É certo que a tipificação da OC é adiantamento da punição, vista da perspectiva dos delitos fim. Mas é muito mais que isso, é uma instituição criminosa dinâmica, existente na sociedade e contrária a seus fins, uma empresa criminosa que se opõe sistematicamente, e com um perigo cuja latência e atualidade é especialmente desestabilizadora para a composição e estrutura social. Representa não só um conteúdo comunicativo ou simbólico, mas um perigo real. (Polaino-Orts, op. cit. p. 410.).

[11] Problemas de legitimidad de una respuesta excepcional frente a las organizaciones criminales, apud Polaino-Orts, Miguel, ob. cit. p. 411. Por ser um foco atual de desestabilização – e não só porque os sujeitos levam a cabo no futuro os delitos que pretendem cometer - prossegue Orts - que o legislador decidiu analisar a OC sob lupa, controlando-a com meios assecuratórios como a antecipação das barreiras de punibilidade. Se vierem a ser executados os propósitos criminais da OC ser-lhe-ão imputados aqueles delitos autônomos.

[12] O fato de se ter conferido prioridade a resultados não quer dizer que o colaborador deva substituir-se às autoridades. O princípio da oficialidade continua vigente em toda sua plenitude, de modo que incumbe ao Estado apurar a procedência das informações do colaborador, com a eficiência necessária, mesmo que não tenha ele confessado ou delatado alguém.     

[13] Convenção das Nações Unidas Sobre Crime Organizado de 12 de dezembro de 2000 (Resolução da Assembleia Geral 55/ 25) prevê a introdução de medidas que intensifiquem a cooperação com as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei, como a atenuação da pena em casos de cooperação substancial (art. 26. 1 e 2) ou até mesmo a imunidade judicial (art. 26. 3), e a necessidade de prever medidas de proteção para essas pessoas, semelhantes as das testemunhas (art. 26.4). Norma idêntica contém a Convenção da ONU, de 2003 (art. 37) contra a corrupção.

[14] A interpretação combinada das condições legais aponta o sentido da lei em priorizar o acordo de imunidade para integrantes de OCs que disponham de informações relevantes, se situem em posições estratégicas na estrutura operacional e possam contribuir efetivamente para o desmonte da empresa criminosa. A economia é a nota!

[15] A decisão de imunizar o criminoso é, em princípio, problemática, devendo ser fruto de ampla reflexão, que pondere sob todos os aspectos o interesse público na exclusão da responsabilidade penal de alguém que deveria ser submetido a processo criminal, em respeito ao princípio da igualdade. Vedando a lei acordo de imunidade em favor de líderes, deve-se priorizar acordos que envolvam reduções, substituição de pena, regime de cumprimento mais favorável e até perdão judicial, e só excepcionalmente optar-se pela exclusão da punibilidade, já que é sempre possível que o beneficiário exerça algum tipo de liderança na OC e isso venha a ser confirmado na instrução criminal. Por outro lado, a definição da liderança envolverá, muitas vezes, uma interpretação dependente do conceito e natureza da OC É possível que em algumas haja uma forte descentralização operacional com uma presença maior de líderes, que outras; nesse caso, parece possível o acordo de imunidade, se um pequeno líder dispõe de informações que levem aos líderes maiores.

[16] García de Paz, Isabel Sánchez, ob. cit.

[17] Mas não se deve esquecer que o colaborador não é, de fato, testemunha, mas alguém que dá testemunho sobre fatos que conhece por estar neles implicados. Por isso, se de um lado suas informações têm o valor próprio de quem participa ou realiza o fato probando, por experiência direta, sem intermediários, por outro lado têm o selo de origem de quem pode ser – e muitas vezes é – tão culpado quanto os que acusa. Daí a necessidade de cautelas maiores que as que devem ser adotadas em relação às testemunhas. Isso, contudo, não é questão ligada a juízo de legalidade, mas de credibilidade da prova. 

[18]  O Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH – nas sentenças de 20 de novembro de 1989 (caso Kostovski contra Países Baixos) e 27 de setembro de 1990 (caso Windisch contra Austria) (cfr. também a de 5 de junho de 1992, caso Lüdi contra Suiza) considerou contrária a Convenção Europeia de Direitos Humanos (art. 6. 3. d) a condenação baseada em testemunhos anônimos, entendendo por tais as declarações de pessoas cuja identidade é desconhecida pelo Tribunal, a defesa, ou ambos, pois isso supõe uma restrição dos direitos de defesa – ao impedir o contraditório ante o órgão judicial encarregado de decidir sobre a inocência ou culpabilidade –, de tal modo que considera tais declarações só indícios para levar a cabo uma investigação.

[19] É sempre casuística a decisão de oferecer acordo. Daí a necessidade de definição prévia de standards de orientação.

[20] O exame da personalidade do agente pode ser fator de prognóstico para aferir o grau de sua confiabilidade e o seu real interesse em colaborar para as investigações.  O requisito subjetivo isolado, todavia, não é o bastante.

[21] Se pensarmos que o réu teve todo o tempo disponível durante as investigações e o processo, e não quis colaborar para a apuração do crime, a premiação depois da condenação poderia parecer um contrasenso, especialmente quando outros colaboradores assumiram responsabilidades e expuseram-se a riscos graves. Mas a premiação é ainda possível porque, a partir da condenação, vêm as medidas executórias, entre as quais, as que dizem respeito à localização/recuperação de vítimas e valores públicos desviados, outros condenados etc., e se o condenado colabora para esse fim parece razoável que possa ter a pena reduzida até a metade ou obter a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. Se não se admitisse a premiação para atender a finalidades executórias, não faria sentido a própria ideia de efetividade do instituto, que não é a de obter apenas a condenação – um título executivo –, mas prevenir outros crimes, desestruturando a organização criminosa.

[22] Uma característica das OCs é a compartimentalização de informações para a “segurança dos negócios”. Algumas funções operacionais, ou sucursais, são isoladas e suas informações costumam ser restritas a poucos indivíduos. Outra característica é o segredo pela infusão do medo e ameaças aos integrantes e a seus familiares, especialmente quando estão em jogo os produtos do crime. Por isso, a decisão de colaborar depende de um nível de segurança psicológico nem sempre alcançável no início das investigações. O risco de condenação é poderoso fator de estímulo.  

[23] Fala-se potencialmente em oposição a situações nas quais se identifica a priori incongruências entre determinados resultados prometidos e o nível de conhecimento do suposto colaborador, a indicar falta de sinceridade e/ou simples adequação.  Questão distinta é se o juiz pode recusar a homologação por considerar desnecessário o acordo. Parece-nos que tal consideração implica juízo de valor incompatível com a lógica da lei, que não pretendeu criar um controle vertical quanto ao mérito do negócio jurídico.

[24]  HC 99.736, STF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Brito, 20.05.2010.

[25] Tomando-se a classificação feita por Pontes de Miranda, quanto a carga de eficácia das sentenças, (declarativas, Constitutivas, de Condenação, Mandamentais e Executivas), para quem cada ação não tem apenas e exclusivamente uma carga de eficácia, é possível fazer uma aproximação à decisão proferida no pedido de homologação da colaboração premiada. As parte submetem a sua pretensão ao crivo do juiz que, homologando o acordo, declara-o conforme a lei e, desse modo, constitui uma situação jurídica definida em termos que não podem ser alterados ao arbítrio de outrem. Os efeitos jurídicos do negócio judicial devem ser concretizados no momento da sentença, e só poderão ser recusados caso a colaboração não tenha sido eficaz, em decisão fundamentada.

[26] Trata-se de um negócio jurídico cujos efeitos estão subordinados a condição suspensiva. Enquanto esta não se verificar (a colaboração efetiva que leve aos resultados prometidos), o colaborador não tem assegurado nenhum direito (art. 125 do Código Civil). Teria aplicação aqui a clausula rebus sic stantibus. Se, p. ex., a instrução mostra que o colaborador cometeu outros crimes além dos confessados, obviamente que deverá ser processado por eles. 

[27]  Um comportamento meramente passivo do acusado, que resolvesse confessar e/ou apontar integrantes ou partícipes já conhecidos não deve ser substancialmente valorizado. Para essa postura processual normal a lei penal prevê atenuantes e fatores outros de diminuição de pena.

[28]  É claro que é possível fazer um prognóstico dos benefícios conforme os resultados prometidos, mas não se sabendo a priori o grau de conhecimento e a quantidade e qualidade das informações, a cláusula genérica é mais indicada. E nos parece claro que o descumprimento das clausulas por parte do beneficiário deve levar a continuidade da persecução penal, a semelhança do que se dá no caso de descumprimento dos termos da transação penal (Súmula 35-STF).

[29] STF, HC 97553 / PR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, 16.06.2010.

[30] P. ex. Jueces Estrellas na Espanha, Juízes e Promotores midiáticos ou vedetes no Brasil.

[31] O problema talvez pudesse ser evitado se, aplicando-se as regras da lei 12.694/2012, que criou o juízo colegiado em primeiro grau em crimes praticados por organizações criminosas, se distribuísse funções pré-processuais a juiz diferente do juiz da instrução e julgamento. Isso compatibilizaria as exigências de imparcialidade e de garantia a direitos.

[32] Esse direito – que não é apenas prerrogativa do defensor - é sumamente relevante ao direito fundamental de liberdade, potencializando a regra contida no art. 188 do CPP - que prevê o contato entre o defensor e o acusado antes do interrogatório- permitindo que o advogado, conhecendo previamente o teor das provas documentadas e os termos do acordo de colaboração premiada, adote as estratégias de defesa dos interesses de seu constituinte.

[33] A suspensão do prazo prevista no § 3o do art. 4º logicamente só se aplica ao colaborador, não aos demais investigados ou acusados.

[34] (SSTS de 29 de outubro de 1990 -RJ 1990, 8365-, 28 de maio de 1991 -RJ 1991, 5022-, 4 de dezembro de 1991 -RJ 1991, 8970-, 15 de abril de 1992 -RJ 1992, 3059-, 6 de julho de 1992 -RJ 1992, 6125- e 17 de novembro de 1992 -RJ 1992, 9353-, García de Paz, Isabel Sánchez, ob. cit.).

[35] Conforme ensina Ada Pelegrine Grinover, “O conceito de verdade, como já dito, não é ontológico ou absoluto. No processo penal ou civil que seja, o juiz só pode buscar uma verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza...” (O processo: Estudos e Pareceres, 2ª Ed., DPJ, São Paulo, 2009, p. 339).

[36] Nesse ponto é curial que o acordo preveja a proibição do colaborador modificar, alterar, retificar informações substanciais que tenha livremente prestado, com base nas quais se tenha feito imputação criminal a outrem, por se tratar de comportamento desleal, que pode trazer graves consequências processuais.  

[37] As alternativas extremas poderiam ser: 1) ignorar as OCs como se se tratasse de um crime comum de quadrilha ou bando e 2) buscar a eficácia total na persecução penal das OCs à custa do sacrifício dos direitos e garantias fundamentais do Direito penal e do processo penal. O equilíbrio assenta-se precisamente no reconhecimento, feito pela lei, da existência jurídica do crime, que afeta gravemente o interesse social, a paz e a segurança pública, e, consequentemente, a regulamentação desse importante mecanismo de desconstrução ou desmonte do engenho criminoso, de um lado, e a busca pela manutenção do compromisso constitucional de respeito a um núcleo duro de valores de direito penal liberal: princípios da legalidade, do fato, da culpabilidade, da ampla defesa, da lealdade, boa fé e da proporcionalidade, de outro lado.     

[38] O STF, no HC 78.708, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16.4.99, entendeu que o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer em silêncio tem por escopo assegurar ao acusado a escolha entre permanecer em silêncio e a intervenção ativa. A escolha desta última – naquele caso, no curso do processo – importara renúncia do direito de manter-se em silêncio e das consequências da falta de informação oportuna a respeito.


Autor

  • Mauro Viveiros

    Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, Mestre em Direito pela UNESP e Doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madrid. Professor dos Cursos de Especialização da Escola Superior do Ministério Público.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIVEIROS, Mauro. Colaboração premiada: reflexões práticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6232, 24 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36040. Acesso em: 25 abr. 2024.