Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/36768
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Laicidade, liberdade e identidade religiosa

a tentação da cruz

Laicidade, liberdade e identidade religiosa: a tentação da cruz

Publicado em . Elaborado em .

Ninguém, nem as comunidades religiosas, possui direito ao auxílio do Estado para inculcar seus credos e doutrinas particulares, tampouco para que seus dogmas, símbolos, costumes, normas ou mitos fundacionais se perpetuem através de seus descendentes.

“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus forte, zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.  E uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos.” (Bíblia Sagrada: Deuteronômio 5, 6-21; Êxodo 20, 2-17; Levítico 26, 1).


«Lo que puede un sastre»

Em 1799, comenta Victor Orozco, Francisco de Goya publicou um gravado ao qual intitulou «Lo que puede un sastre». O pintor espanhol desenhou uma árvore seca, cujo tronco e curtos ramos foram cobertos por uma túnica com capuz, representando assim a um santo, à maneira como imaginavam os crentes da época a esses homens e mulheres tocados pela divindade. Ao pé da figura central, uma jovem mulher lhe reza com devoção. Ao fundo se adverte uma procissão fervorosa, de quem vem a render-lhe preiteio, uns chorosos, outros suplicantes, esperançados, com os olhos para o céu ou cerrados, em um êxtase místico. Arriba, estão os traços de “Las Tres Furias”, as deusas mitológicas encarregadas de manter a ordem social e religiosa. Também, um homem, aparentemente um escravo, montado sobre uma coruja, símbolo da sabedoria. As interpretações sobre esta complexa trama ideada por Goya choveram durante duas centúrias.
       

Uma destaca que o pintor crava o afilado dardo da sátira no corpo das crenças religiosas. Se burla da fé, depositada em uma madeira disfraçada. O título não deixa lugar a dúvidas: em mãos de um «sastre», cualquer coisa mundana se transmuta em mágica, divina, milagrosa, onisapiente, onipotente. O desenho resume o fenômeno da alienação, mercê ao qual o indivíduo renuncia a seu próprio «eu» para entregá-lo ao fetiche religioso. E que não é senão uma confecção humana, ideal ou material: é o crucifixo, a relíquia da madre Teresa, a imagem ricamente adornada de um santo (a), Mahoma, Cristo, o totem da tribo, a estátua de madeira ou gesso da Virgem que opera milagres, o escapulário bendito, o céu, o inferno… e ao final, Deus.
       

O gravado de Goya motivou ao longo do séc. XIX uma indignada resposta dos defensores da fé. Os devotos sinceros e ingênuos sentiram que o mordaz desenho ofendia profundamente seus sentimentos religiosos e se burlava de suas crenças íntimas herdadas de pais e avós. Por sua parte, se os clérigos da igreja católica não enviaram ao audaz e traidor artista - que antes havia pintado quadros religiosos -  às chamas da fogueira santa, foi porque os tempos das queimas e os autos de fé já haviam passado de moda. O quadro sobreviveu e ficou para a história como uma das mais geniais denúncias contra a manipulação da credulidade das massas.
   

Não é necessário ser nenhum lince ou estar dotado de um desmedido sentido comum para dar-se conta de que a gráfica representação de Goya ainda diz muito do que significa hoje a identidade católica (sendo justo, de qualquer identidade religiosa), sobretudo no que se refere à barreira mental da idolatria, da frenética devoção e do (ab) uso em espaços públicos do símbolo cristão por excelência, a cruz. Que vantagem para a fé ou para a saúde da alma aporta aos cristãos a imposição do crucifixo, convertido pouco menos que em um elemento de decoração e adorno? Quantos dos que querem que esteja presente nas salas de aula ou prédios públicos obrigam a que seus filhos saiam de casa com um crucifixo ao pescoço ostensivamente exposto? Acrescenta algo o fato de obrigar ao não crente a ter que mirar constantemente em ambientes públicos a representação da cruz e o Crucificado? Não deveriam os fiéis meditar muito seriamente sobre a utilidade que historicamente representou para sua fé a pura imposição, antes mediante a força bruta e agora mediante certos símbolos? Se difunde adequadamente e com sentido um credo religioso dessa maneira? Donde está o plus de mérito ou de virtude ao pretender obrigar aos demais a contemplar gestos e signos que, em uso de idêntica liberdade, talvez não queiram ver ou tenham por incompatíveis com suas crenças, também respeitáveis? Por acaso não percebem que essa «fixação funcional» da cruz como representação da redenção da humanidade através da execução de um carpinteiro palestino é fruto de uma das capacidades mais extraordinárias de nosso cérebro: a de imaginar coisas que realmente não existem? Que classe de religião é essa?


A «loucura» da fé, o Crucificado e a algofilia cristã

Custa trabalho saber quanto há de distorcida ignorância e quanto de espesso maquiavelismo detrás da pretensão fortemente moralizante da religião, e inclusive da visão de que o cristianismo pode determinar (ou determina) os «valores morais»[1]. Mas, estimando com a devida probidade a advertência de Susan B. Anthony de desconfiar “daqueles que sabem tão bem o que Deus quer que façam, porque sempre coincide com seus próprios desejos”[2], estou convencido que qualquer cristão virtuoso e comprometido com a causa deveria reflexionar sobre essas questões com enorme e contundente distância crítica, ser mais humilde com e não fiar-se demasiado de suas próprias crenças[3], buscar o conhecimento antes que a superstição ou a ignorância deliberada, evitar o autoengano e as associações espúrias que difulminam a linha entre realidade e imaginação, entregar-se às evidências, intentar perceber que existe uma realidade alternativa, uma possibilidade de que esteja (radicalmente) equivocado, e rechaçar doutrinas, dogmas ou valores morais que só contam com um respaldo empírico direto anedótico.

Por um lado, porque não resulta nada claro o prazer, a satisfação e/ou o benefício que os devotos cristãos podem obter ao ver os sítios públicos e comuns presididos pelo crucifixo que simboliza e dá sentido a sua fé (que com orgulho Paulo considerava «loucura» e os cristãos dos primeiros séculos proclamavam também com orgulho no «credo quia absurdum»). Pensam acaso que alguém vai seguir ou voltar ao redil religioso por mirar constantemente a representação da crucificação? Não se dão conta de que em tempos de exibicionismo obsessivo de crenças religiosas, todas sobre a mesma base de reafirmar-se em ser mais autênticas que as demais, a exageração do simbolismo com uma força inusitada, digna de outros séculos, prediz que a gente está insegura, que se queixa não somente do que  perdeu (que estaria em seu direito) senão também do que lhe ameaça (quando a gente tem medo, dispara)? Não sabem que suas crenças, por definição, não são e nem podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado? Não lhes preocupa sequer o fato de que a religião consiste na lucrativa atividade de ensinar às pessoas a estar satisfeitas com «não entender» (R. Dawkins)[4] e que a tendência cada vez maior a etiquetar-se e mostrar de forma ostentosa e chamativa determinado símbolo religioso frustra a possibilidade de que os indivíduos, enquanto indivíduos cidadãos, se reconheçam entre si como iguais? E já que estamos: Por que existe um exército de masoquistas que adotam de forma definitiva e incondicional as doutrinas, categorias e dogmas católicos e pastam nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor? Por acaso são doutrinas, categorias e postulados  da «única», «verdadeira» e «legítima» religião?

Não sou religioso e não pratico nenhuma crença teísta, deísta ou animista sustentada por pensamientos mágicos acerca de um deus (deuses) ou sobre a mesma existência mística do ser humano[5]. Acredito na «criatura»[6] («desenhada»[7] por mecanismos evolutivos) e em minhas interações com pessoas religiosas e não religiosas por igual, traço uma linha divisória e restritiva, baseada não em suas crenças concretas, senão em seu grau de dogmatismo. Respeito a fé dos demais, e com mais motivo se a vivem e experimentam com certa congruência, cordura e sentatez (dos que sabem distinguir a falsa piedade da genuína religiosidade ou espiritualidade).

No entanto, considerando que a curiosidade é livre, o respeito pelas crenças alheias tem um limite e a reflexão sobre a religião uma atividade muito conveniente para qualquer que tenha uma mínima inquietude sobre os fenômenos que movem o mundo, admito que em temas como este me resulta francamente difícil entender aos que exigem que os símbolos religiosos se imponham contra vento e maré aos que não os queiram e aos indiferentes: é como crer que movendo o rabo de um cachorro vamos conseguir que seja feliz (J. Haidt). Em termos de apostolado me parece hipocrisia, misticismo e soberbia semelhante estratégia. Meter-se com os demais para defender as representações mundanas de Deus é como declarar o amor a marteladas, coisa de estúpidos, fanáticos e autoritários sem remissão.     

Ao fim e ao cabo, sem o mágico encanto da «loucura» da fé (cuja virtude é precisamente sua irracionalidade, como dizia S. Kierkegaard), a cruz, como objeto de tortura especialmente doloroso e cruel, é um evangelho de desesperação; quero dizer, a crucificação é o que é (e a verdade, por brutal, incômoda e antipática que pareça, não deixa de ser verdade[8]): para o crente símbolo supremo de sua religião, para o que não crê ou não sabe do assunto, uma cena de extrema, despiedada e descomunal violência... um ébrio culto à morte.

Por certo que representa a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico: que o emblema de uma religião seja um crucificado em sua cruz significa que aquela inscreveu a morte de Deus no coração de seu ritual. Ao agonizar, Jesus se converte em “proprietário do sofrimento e da morte” (P. Valéry) e transmuta estes em alegria: dor e ressurreição[9]. O filho de Deus na cruz afirma o trágico da condição humana e a supera para acercar-se à ordem sobrehumana da esperança e do amor: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus Cristo um guia e um amigo que lhe ajude[10]; e com esta condição, seu sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação, de “renovação da energia espiritual” (João Paulo II).

Um modo de pensar e sentir em que não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo para salvar a existência, convertê-lo em incentivo para uma verdadeira transformação. É o fracasso que leva à vitória e, como dizia Lutero, ao condenar ao pecador Deus assegura sua salvação: “Todo hombre se convierte en camino de la Iglesia, especialmente cuando aparece el sufrimiento en su vida” (João Paulo II).  É a  a desdita cingida com o véu da «eloquência da cruz» que promete a ressurreição para apartar aos piedosos do dever de melhorar a condiçao terrenal. “Nunca es lo bastante fuerte, lo bastante grande”; e posto que abre as portas do conhecimento e da sabedoria, “es mejor cuanto más injusto”, dizia Simone Weil[11].

“Un cristiano es un hombre del otro mundo”. (Bossuet)   


«Cérebro espiritual» e laicidade

Mas não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo. A percepção da cruz como uma espécie de mensagem, mistério[12] ou ícone divino por essas almas que sofrem, perfeita para a narrativa e a fábula pela emotividade e poder de sensibilização que tem, é algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas, como la belleza o la moral” (F. Mora).

Tomando sem ônus as palavras de J. Bering, “un estado mental, una ilusión psicológica, una especie de evolucionada imperfección grabada en el sustrato cognitivo esencial del cerebro” que, de vez em quando, comete erros e nos engana. Algo parecido ao que sucede com as ilusões ópticas (ou «erros do cérebro», como chama N. D. Tyson): ainda que entendamos que nos “impide tener momentos sostenidos de claridad”, não desaparecem.  Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que nos inventamos. Somos o que somos, somos nosso cérebro.

Por outro lado, no curso do tempo, o direito à liberdade de consciência[13] se constituiu em peça central das sociedades modernas, inscrito em quase todas as constituições do mundo. Também se converteu no flagelo à alienação religiosa, à superioridade espiritual ou moral dos que abraçam o cristianismo[14] e a comumente intolerante e paranóica reação dos cruzados da fé. Com efeito, sobra dizer que as constituições atuais, de uma maneira geral, determinam que nenhuma confissão religiosa terá caráter estatal, que os Estados são laicos e que permanecem à margem dos credos, considerados todos esses por iguais aos efeitos do trato que hão de receber.

Não há um documento semelhante à «lei das leis» no que se refere às religiões, mas, ao menos as chamadas «do livro», dispõem de uns textos sagrados aos que seus respectivos devotos atribuem uma autoria divina. A igreja católica, por exemplo, dispõe da Bíblia e, formando parte dela, de um Novo Testamento no qual figura, se não recordo mal, a metafórica recomendação feita por Jesus de “dar a César o que é de César e a Deus o que pertence a Deus”. Esta separação entre o mundo laico e o religioso foi um dos fundamentos da aparição dos Estados modernos, porquanto o poder religioso – nomeadamente depois da reforma protestante – “deixou” de atender aos assuntos políticos e de usurpar os poderes legítimos das autoridades civis, centrando-se no que forma parte da mensagem bíblica e dos importantíssimos, complexos e insondáveis assuntos próprios dos sacros dogmas (ainda quando, há que reconhecer, a maioria dos vicários do Senhor continuem a incorrer na denominada contradição «performativa»: “chove, mas não creio que chova“; “meu Reino não é deste mundo, mas atuo tal como se fosse”).

Como a gente culta compreende - e deixando de lado qualquer reflexão que possa ver-se obscurecida por uma complexidade filosófica desnecessária-, as religiões pertencem ao âmbito privado (e a estas alturas já deveria estar claro o motivo), são válidas para quem queira crer em seus tautológicos postulados, mas não são válidas para qualquer sujeito. Isso implica que não deve haver qualquer tipo de interferência do (ou desde o) privado sobre o público. O âmbito público deve estar protegido do privado: no âmbito público não valem as «razões» privadas, precisamente porque no âmbito público se busca o que é suscetível de universalidade e aceitação por qualquer sujeito, comum a todas as pessoas e válido para todos, enquanto que o privado, por definição, é o que vale para uns, mas não para todos.

Em um Estado laico, todos cidadãos e instituições são laicos no âmbito público, quer dizer, quando se trata do que a todos concerne, e logo cada cidadão tem suas próprias crenças e preferências em seu âmbito privado. O laicismo é precisamente a ordem político-jurídica que garante o anterior; e ao que se opõe é justamente a essa identificação do público com uma opção religiosa, protege a liberdade de pensamento no âmbito privado donde é inviolável, assim como sua livre expressão sem mais limite que a ordem pública: a liberdade dos demais. (A. Carmona) E mais: em um Estado moderno, a decisão sobre o bem ou o mal e outras questões morais estão restritas, protegidas e garantidas, ao espaço privado da consciência individual. Desta forma se assegura a liberdade individual para pensar e viver de acordo à própria ética e se proíbe que o poder público possa impor uma religião ou moral particular ao conjunto da sociedade, respeitando assim a liberdade de pensamento, eleição, decisão, ação e crença de cada cidadão.

Por isso se estabelece um «muro de separação» entre os dois âmbitos: o privado e o público. Ninguém pode vulnerar a liberdade de consciência nem de expressão[15], nem um particular, nem a maioria, nem o Estado com suas leis. Nenhum particular, grupo fático ou religioso pode impor suas próprias convicções, doutrinas, ritos e/ou símbolos aos demais. Não por outra razão é que o limite de nossa liberdade é a liberdade dos outros, não suas crenças. A liberdade religiosa[16] não há de significar dar validez ao fato religioso, nem tão pouco implica ou ordena fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto.[17]


«Sociedade decente», catolicismo e a cruz

O grande aporte de uma «sociedade decente» (aquela que, segundo A. Margalit, as instituições não devem humilhar às pessoas e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros, uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações, discriminações e com liberdade) é o laicismo fundamentado na liberdade de consciência (de expressão e de ação), na igualdade e na administração da justiça sem ter em conta as posturas de indivíduos cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre eles e um comportamento repulsivo. Um modelo de sociedade, um modo de vida, que não debilita “al mundo, convirtiéndolo en presa de los hombres malvados, los cuales lo pueden manejar con plena seguridad, viendo que la totalidad de los hombres, con tal de ir al paraíso, prefiere soportar sus opresiones que vengarse de ellas.”(Maquiavelo)

Desnecessário recordar que uma postura como esta fomenta - como não poderia deixar de ser - uma profunda indignação entre os iracundos membros da comunidade formada principalmente por católicos apostólicos romanos que ainda vivem ideológica, servil e acriticamente à sombra do poder e influência da Santa Igreja católica[18] (não aos cristãos em sua totalidade, porque igualmente há cristãos que não são apostólicos romanos e não consideram que o símbolo da cruz seja seu valor essencial). Também resulta quase inútil rememorar que este tipo de argumento dista muito de ser ofensivo para aqueles que são ateus ou não tem religião, como tão pouco parece ultrajante para os que professam outros credos religiosos ou desfrutam de outras formas de mover-se pelo mundo. Aliás, o mais perigoso do laicismo para um fanático é que não tenha religião “fuera del ámbito de su intimidad, o ni siquiera”. (G. Morán)

O fato é que, visto assim, a laicidade, como nêmesis pública da tirania religiosa, constitui um bárbaro atentado e/ou uma abominável heresia ao símbolo da cruz. Uma simbologia extemporânea estabelecida como identidade e característica de um conjunto de crenças, ideias, valores, práticas, instituições, artefatos, costumes e mitos construídos pela imaginação de um determinado grupo humano, e que são passados de uma geração à seguinte (R. F. Baumeister). Uma carga cultural retrógrada, um mundo compartido de sentidos ou significados relacionados com o poder, a dominação e a submissão, em que os católicos, empacados em tempos pré-modernos de uma ordem teocrática medieval, parecem não estar dispostos a renunciar facilmente à ideia de que «devem ser» (ou «são») os gestores exclusivos da religião do Estado e de que a fé «deve ser» (ou «é») assunto público.

Claro que a estupidez, como uma variante da barbárie e filha da ignorância, existiu sempre e que os estúpidos, independentemente de qualquer outra característica, são perigosos e influem sobre outras pessoas com intensidade muito diferente (C. M. Cipolla); o insólito é que, apesar do difícil que resulta imaginar e entender o poder devastador e destrutor da estupidez, esta nunca havia tido tanta transcendência. O que redunda ainda mais espetacular e chocante, em grado sumo, a supina insipiência teológica da maior parte dos que se dizem católicos, consagrados a fazer todo tipo de ginástica mental para vindicar a relevância e a glória do ritualismo, da renúncia da própria autonomia, do obscurantismo, do mais obtuso sentido alegórico da fé, da propagação da «verdadeira» religião e do temor de Deus. Afinal, quantos católicos leem alguma vez (com atenção e sobretudo por inteiro) a Bíblia[19]? Quantos fiéis só conhecem o Novo Testamento através dos fragmentos lidos durante a missa? Quantos já miraram alguma vez, simplesmente por curiosidade, alguma encíclica? Quantos têm uma mínima noção da história da Igreja? 

Pois bem, ao abrir o livro negro dessa tradição nos damos conta de que o catolicismo da Igreja romana esconde, detrás de um crucifixo interpretado como redenção, uma cultura e uma história de violências, intolerâncias, atrocidades e conflitos. Em nome da cruz a religião católica fomentou ativamente o assassinato, a aniquilação e a guerra contra as pessoas que professavam outra religião. No passado, e ainda na atualidade (já não mais de forma sutil e a despeito da doutrina da «revelação progressiva»[20]), fanáticos e fundamentalistas católicos seguem pregando a discriminação de comunidades inteiras, ensinando que Deus quer que disseminem sua sagrada palavra pelo mundo e que, portanto, para a efetiva consecução da «justiça divina», é «bom» excluir, eliminar, destruir, suprimir, discriminar, restringir a liberdade de expressão e «dar socos como resposta» aos inimigos da fé (Papa Francisco).

Essa é a verdadeira mensagem que, em sua essência, transmite hoje a Igreja de Roma, comodamente instalada na avidez da riqueza e na imunidade fiscal, na usurpação espiritual e no sistemático abuso sexual de menores, na intolerância e na marginalização, na exclusão sexual[21] e na pedofilia, no palavreado místico e na dessorada «retórica da atração», na ameaça com o fogo infernal[22] e em mistérios radicalmente inacessíveis ao entendimento humana - e cuja validez, há que dizer, depende exclusivamente do que dizem as Sagradas Escrituras. Uma multinacional dedicada a explorar a corrosiva gangrena da ignorância alheia e das fraquezas do intelecto humano, obcecada com manter a raça humana em um estado constante de miséria e sofrimento, inclusive se para isso necessita recomendar que os pais golpeiem e castiguem a seus filhos (Papa Francisco); um sistema de pensamento ou fenômeno institucional que “ha hecho y sigue haciendo mucho daño al mundo, por más que reivindique que la bondad es su patrimonio” (A. C. Grayling).

Que os fiéis cristãos e os sacerdotes busquem em nome da cruz, e no reino de Deus, impor mediante impacientes impulsos sádicos essa forma de ideologia dominante, discriminatória e excludente é algo que entra em suas prerrogativas inalienáveis. Mas, em uma dimensão mais terrenal e constitucionalmente laica, essa prerrogativa tem um limite muito claro: os direitos próprios dos demais, dos indiferentes e dos avessos ao despotismo religioso e/ou à superioridade moral em nome de um deus qualquer. Daí que a presença de crucifixos no âmbito público pode representar um desconforto e um transtorno para os de indivíduos que professam outras religiões e para os ateus, uma forma de «silenciosa» domesticação ou perigoso condicionamento de que se serve a religião católica para aumentar sua autoridade, supremacia e influência, minando a liberdade de pensamento com determinadas doutrinas (e símbolos) como se fossem verdadeiras e com a intenção de que todos as aceitem independentemente das razões que possam existir a favor ou em contra destas e de outros credos e/ou teorias em disputas.

Um indivíduo pode crer em Deus; outro pode sofrer ao pensar na enorme quantidade de crianças que ainda vivem em situação de extrema pobreza ou denunciar o fato de que inculcar “a los niños las diversas falsedades de las distintas fes que compiten (que compiten, sí) es una forma de abuso infantil y un escándalo” (A. C. Grayling)[23]. Um indivíduo pode aceitar os ditados da Igreja, tolerar os abusos e a pedofilia dos sacerdotes, e condenar «à tort et à travers» aqueles que exercem o legítimo direito de crer que “a palavra Deus não é nada mais que a expressão e produto da debilidade humana, a Bíblia uma coleção de lendas honoráveis mas ainda assim primitivas lendas e a religião uma encarnação das superstições mais infantis” (A. Einstein). Outro pode comungar e/ou ocultar uma espécie de desprezo disfarçado às demais religiões, uma maneira de não considerar os não católicos nunca como iguais ou, baixo a máscara da caridade[24], patrocinar (ativa ou passivamente) o triunfo do preconceito, o amor pela discriminação e o ódio pelo ser humano.

Mas, independentemente de nossas posições pessoais, seja de acordo com uma ideologia progressista ou conservadora, em termos confessionais ou laicos, é absolutamente necessário e indispensável reconhecer que em nome dessa religião e desse «símbolo» já se cometeram os crimes mais inumanos e bestiais de que a história nos mostra todo um catálogo de monstruosos exemplos. E se seguem cometendo com as proibições contra o inalienável direito dos seres humanos de administrar a autonomia do conhecimento e a liberdade individual e sexual. Se é essa  nossa «herança cultural» segundo declaram os que qualificam de «aberrantes» o laicismo e a liberdade, por que não falamos do lado escuro e turvo da cruz como simbologia de poder, dominação e intolerância fanáticas?

Afirmar que o crucifixo tem “uma função simbólica altamente educativa e que sempre foi um sinal de oferta do amor de Deus e de união e acolhida para toda a humanidade", que a religião constitui um “mecanismo eficaz de inibição da violência, da correção de rumos e da solução de desentendimentos”, que “tantos ensinamentos filosóficos que constam das escrituras sagradas (...) poderiam ter levado à solução pacífica dos conflitos e guerras que assolaram a humanidade” ou que “a justiça humana será tanto menos falha quanto mais se inspirar nos valores cristãos e na justiça divina, uma vez que 'fazer justiça' é, de certo modo, exercer um atributo divino”, é fácil, rápido e barato. Uma amostra da intencionada e arbitrária dificuldade na experiência de dar-se conta de que a realidade, para o bem ou para o mal, resiste à distorção mental fácil e, o que é ainda mais grave, de um cinismo atroz e sádico e/ou de uma ignorância imperdoável e irredimível. É «vender» sem remordimentos o que em certa ocasião disse Leibniz sobre a conveniência de negar a evidência: “Es necesario hacer caer al mundo en la trampa, aprovecharse de su debilidad, y engañarlo para curarlo”.

Também não faltam os fiéis de plantão e os habituais peritos em legitimação,  esses mestres das contorções atrelados ao insaciável desejo de mandar e a inexorabilidade de ser mandado[25], para afiançar, justificar e propagar, com airado júbilo, que a retirada do crucifixo dos espaços públicos é «ideológica». Que nos falem então da violência na cultura histórica da Igreja romana apostólica, das fogueiras contra a razão herética que por si só fez avançar a humanidade. Se o que se pretende defender é sua origem salvadora para todos, então há que aceitá-lo e adaptá-lo ao presente, porque ao princípio não era mais que um signo para identificar os lugares clandestinos de oração e culto; um símbolo tardiamente imposto, que vale por um ritual de morte, hostil aos demais, às outras culturas, histórias e religiões. Com efeito, a qualquer pessoa dos tempos de Jesus[26] lhe haveria resultado igual de ridículo, patético e chocante ver a um cristão com uma cruz ao pescoço ou ajoelhado ante a imagem de um crucificado.

A postura de restringir este símbolo cristão ao âmbito privado não somente plasma toda uma «declaração de princípios», senão que também (i) afirma a máxima segundo a qual em uma sociedade decente, livre e aberta, as crenças fundamentais relativas a compromissos religiosos e axiológicos devem adotar-se de maneira autônoma e voluntária; (ii) recorda que as normas da moral a que chamamos civilizada proíbem privilegiar uma crença religiosa em detrimento de outras; (iii) assegura o imperativo segundo o qual ninguém, nem as comunidades religiosas, tem direito a solicitar o auxílio do Estado para que os ajude a inculcar seus credos e doutrinas particulares, nem tão pouco para que seus dogmas, símbolos, costumes, normas ou mitos fundacionais se perpetuem através de seus (e de outros) descendentes[27]; e (iv) garante a premissa segundo a qual em uma sociedade liberal, pluralista e multicultural o Estado tem a obrigação e a responsabilidade ético-jurídica de promover, em condições de igualdade, a tolerância e o reconhecimento de valores diferentes, religiosos e não religiosos.

Mantendo-se tudo igual, a liberdade é sempre melhor. Não existe nenhum argumento moral sólido em sentido contrário, tenhamos em conta ou não todas as crenças religiosas que nos ensinam a amar a opressão, a adorar todos os meios que nos reduzem à passividade e à inércia, a admirar aqueles que anulam nossa capacidade para pensar com autonomia e sensatez (“a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais”, para dizer com Adam Smith).    


Liberdade, autonomia e religião

Qualquer devoto ou fariseu que insista na defesa de que o Estado deve assumir uma política que possa implicar no desprezo da tolerância ou no desconhecimento do pleno, inalienável e incondicional direito dos indivíduos a assumir por si mesmos crenças e valores diferentes, é um perigo de excepcional perversidade para o exercício pleno da liberdade e autonomia cidadã. Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e se converte, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em costume ou tradição obrigatória para todos os cidadãos, está servida a mesa para a incompreensão, o fanatismo, a subjugação e a intromissão arbitrária e despótica em nossa individualidade.

Dito de forma um pouco grossa: se arrancamos o misticismo, as abstrações da intrincada teologia e o dogmatismo religioso, obteremos uma postura humanista fundada na «criatura», no ser humano «desenhado» para a cooperação, o diálogo e a argumentação, na  capacidade de qualquer para buscar o próprio bem e formular os projetos de vida que melhor se adapte ao seu temperamento e caráter, na possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência, na liberdade para fazer o que gostamos sem impedimento por parte de nossos congêneres e sempre que nosso comportamento não lhes cause nenhum dano; na liberdade, enfim, para sermos felizes ainda que pensem que nossa conduta é “estúpida, perversa ou equivocada.” (John Stuart Mill).

Nada obstante, a religião, especialmente a católica como produto de uma pomposa e orgulhosa incivilidade que envenena, é algo muito distinto. A única garantia de uma contínua colaboração entre os seres humanos é uma boa disposição para  modificar nossas idéias  (e o comportamento resultante)  por meio do diálogo e dos legítimos argumentos, à luz das evidências e das “boas e sólidas razões” (B. Spinoza)[28]. Se eu creio no fatalismo divino e me conformo com a infalibilidade papal, então nada do que diga outra pessoa logrará persuadir-me, porque me encontro entregado a uma fé que me faz imune ao poder do diálogo e da deliberação sobre o bem comum, deixando de lado as diferenças particulares. Em realidade, a sacralização de um conjunto de normas, costumes e símbolos é uma extraordinária fonte de poder e o modo mais eficaz de cortar pela raiz ou borrar por completo “de bajo los cielos” (Éxodo 17:14) o diálogo, a liberdade e a autonomia individual.

E se admitimos como boa a afirmação anterior e nos aprofundamos um pouco mais, chegamos a uma cadeia causal segundo a qual a liberdade consiste precisamente no fato de que o homem é livre quando dispõe da capacidade de tomar em suas mãos seu próprio obrar, suas convicções (filosóficas e religiosas) e seus planos de vida. Somos nós que temos que escolher e decidir nosso destino, partindo já de umas tendências e intuições inatas, baixo a orientação (a virtude e a obrigação moral) do bom conhecimento e o poder da boa razão (e das boas emoções) para superar os prejuízos mais comuns e o sistema de crenças “en el que jamás escogimos creer”[29]. A liberdade de eleger e decidir nos abre um amplo campo de possibilidades e objetivos que cada um de nós deve pôr em prática de acordo com seu modo peculiar de ser e suas circunstâncias.

Eleger e decidir livremente sobre nossos planos de vida implica a liberação de tudo aquilo que nos escraviza: ser livre é ir liberando-se pouco a pouco daquelas amarras que não permitem ter um domínio ou controle pleno sobre si mesmo. O interesse humano pela verdadeira liberdade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da laicidade, em um convite a viver dignamente nossa existência na construção e eleição conjunta de alternativas reais e factíveis que priorizem nossa inalheável e inata capacidade moral para decidir o que é bom e o que é mau.

Para existir como indivíduo é, pois, e ao menos, necessária a garantia plena da liberdade; é necessário não ser condicionado, domesticado e/ou perseguido por interesses ou crenças religiosas degeneradas e, principalmente, não ser tratado como um instrumento, uma «ovelha», «cordeiro» ou «servo» do Senhor, senão como um fim em si mesmo. A liberdade é o contrário da servidão: é livre quem não pode ser arbitrariamente interferido por outros em seus planos de vida (não somente por parte do Estado senão também de todos os demais agentes sociais ou espirituais, reais ou imaginários).

Esta não interferência arbitrária, característica de nossas democracias, é um dos princípios fundamentais e valor incondicional que deve ser utilizado de forma categórica para a garantia dos direitos constitutivos do homem no âmbito de sua vontade soberana (pessoalmente, prefiro falar de «vontade», porque a evidência aponta que o livre-arbítrio é uma ilusão) e que habilitam publicamente sua existência como «in-divíduo»: definitivamente, a liberdade de governar a própria vida é condição necessária da individualidade, de um existir separado e autônomo.

Sobretudo em tema de crenças religiosas, o que realmente conta, no concernente à liberdade de consciência ou pensamento, é a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos, eleições e decisões; de se, com independência de qualquer dever ou dogma religioso, são motivos, eleições e decisões que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. Somente aos indivíduos que abraçam uma existência de cidadãos plenamente livres lhes é dado julgar essas circunstâncias, e não à caterva arrogante de sacerdotes empenhados em decidir por eles. A vida, a liberdade e a formação virtuosa do caráter é algo demasiado importante como para deixá-lo à contingência de uma sinistra, retorcida e perniciosa manipulação eclesiástica de determinadas crenças, imperativos, mitos e símbolos religiosos.[30]

Para resumir de alguma maneira mais desafetada: nenhum livro sagrado, nenhum deus (es), mandado, imagem ou ideologia religiosa, nenhum, pode valer mais que a vida e a liberdade de um só ser humano, do indivíduo de carne e osso, da «criatura» com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, amar, mirar e sofrer. É absoluta a antítese entre liberdade e servilismo religioso.


Evolução, religião e fé

Por todo o dito, resta ainda uma última reflexão. Se a seleção natural «apaga» os genes mais prejudiciais e ativa os mais favoráveis, por que existem os eclesiásticos? Se, através da evolução e da cultura, o animal humano melhorou a qualidade de sua vida, ampliou o alcance de sua inteligência e conseguiu dotar-se de uma consciência ética que lhe impulsa a amar a seus semelhantes, a respeitar suas vidas e suas liberdades, e que lhe reprocha intimamente, insuportavelmente, suas misérias e sua capacidade para o mal, como é que não se desembaraçou dos clérigos?

Que função evolutiva pode ter uma Igreja que, por intermédio de seus  entusiasmados vicários e intérpretes de uns deuses atávicos, condenou aqueles que se arriscaram a pensar por sua conta e a viver de acordo com sua natureza e crenças, acendeu fogueiras e queimou hereges e bruxas, se manteve omissa e tolerante com as selvajarias perpetradas por Hitler e por Mussolini, fomenta a intolerância, a discriminação e se mostra inimiga da verdade, atua como freio ao crescimento moral e humanístico, encarniça a autonomia individual, amordaça a palavra e condena a liberdade da alma ao castigo eterno do inferno, restringe a liberdade de expressão, prega a homofobia e a misoginia[31], protege a pedofilia e reprime as demais religiões donde manda e exige liberdade de culto donde não manda?

Por que sobrevivem seres que desafiam toda a moral e são capazes de enganar a sabendas aos mais débeis e desvalidos dos humanos? Por que persistem seres que enganam aos demais atribuindo vontade e sentido a símbolos e objetos inanimados, inventam demônios e deuses em que temos que crer, adorar, dar vida própria e independente, e atribuem a entidades sobrenaturais controle e poder sobre nós mesmos, seus únicos criadores? Por que se embarca a gente rapidamente em crenças e posturas normativamente «corretas» e onde os anelos de unanimidade coletiva superam sua motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas? Suponho que somente desde Darwin[32] parece possível explicar a existência de tais criaturas: provavelmente devem ser vestígios, um «resíduo evolutivo», de nossos antepassados os répteis.

É um colossal e soberano equívoco conceder a petição de princípio de que a moral é monopólio da Igreja. Ao contrário, quiçá a maior tragédia “en toda la historia de la humanidad puede haber sido [precisamente] el secuestro de la moralidad por parte de la religión” (A. C. Clarke). À parte disso, a religião[33] e a «loucura» da fé constituem uma das principais causas do potencial para o dogmatismo, o fanatismo, a intolerância e o mal:  servem para dividir e criar diferenças humanas e se convertem facilmente em perigosas porque carregam consigo, quase inevitavelmente, “la semilla del conflicto” e a crença de que fim justifica os meios (“salvo en los casos en que no se alcancen los fines, por lo que entonces se echará toda la culpa a los medios”)[34]. Se estás lutando pelo bem absoluto, ou por Deus, tudo está justificado, e qualquer que se oponha a isso demonstra sem nenhum gênero de dúvidas que é um malvado, porque, quem pode opor-se à utopia, ao bem absoluto, a Deus, senão os malvados puros?

À custa da religião e da «fé» miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. E aqueles «outros» que não pensam como nós dizemos que não estão no mundo real, quando o que queremos dizer é que não habitam nosso modelo do mundo, que não compartem nossa visão ou crença de como são as coisas. Como estamos cegamente convencidos de que não há mais que um Deus verdadeiro, uma única maneira correta de ver a realidade - a saber, por meio dos caprichos de nossa «fé» – e totalmente persuadidos de saber o que é a «verdade» (até o ponto de fazer inecessária toda comprovação ulterior), alçamos a mirada desdenhosa por encima dos demais sem ver a umbrática superfície sobre a qual caminhamos.

Linda Skitka, por exemplo, encontra que quando a gente tem fortes sentimentos morais acerca de um assunto se salta as normas, as pessoas e os procedimentos, e querem que os  «bons» se livrem de tudo e os «maus» paguem por tudo. E logo vem o autoengano maior, “que todo lo abarca: somos la medida de lo que es bueno, representamos lo mejor, profesamos la verdadera religión y, en tanto creyentes, somos superiores a todos los que nos rodean. (Estamos “salvados”; ellos no). Nuestra religión promueve el amor y el cuidado por el mundo entero, nuestro Dios es un Dios justo, de modo que nuestras acciones no pueden ser malas porque las realizamos en nombre de Dios” (R. Trivers).

Simplificando, o certo é que miramos através da lente deformante de nosso evolucionado cérebro: não vemos mundo que é, vemos o mundo que somos; somos uma idiossincrasia com patas movida pelas distorções que alteram a percepção da realidade de maneira sistemática (consciente ou inconscientemente) para atender aos nossos interesses e desejos[35]. O problema é que “quando a única ferramenta que possuímos é um martelo, tendemos a tratar cada problema como se fora um cravo” (A. Maslow).

Em questão de deuses, crenças, fé, símbolos... só há opiniões, pontos de vista, formas de ver as coisas entre as várias possíveis.[36]


Sacrificium intellegentiae e indignação ativa

Em nosso particular mundo perfeito, aquele em que as pessoas se comportam de maneira congruente com nossos interesses e em que os recursos físicos e biológicos estão controlados, falar de religião dispara em seguida todos os alarmes e paranóias. Como a maioria das verdades amargas, não reporta muita simpatia que nos recordem a falsidade de nosso mundo, que temos uma imagem do mundo (crenças, pensamentos, preferências, memória, etc.) distorcida e construída de uma percepção distorcida e construída[37], todas contextuais e ao serviço da narrativa baixo a qual está operando nosso cérebro. O nosso é o mundo verdadeiro; desquiciados, falsos, ilusórios, excêntricos, profanos, disparatados ou ao menos estúpidos são os mundos dos «outros».

Mas, quando os fatos ou alguém viola nossas expectativas de idiossincrásica normalidade, quando nossa magnanimidade choca com a realidade, a realidade costuma sair ganhando. E dado que a religião e a fé (especialmente a católica) partem do duplo assassinato da inteligência e da vontade, o que estamos «obrigados» a fazer é simplesmente não “quedarse encogido en un rincón oscuro esperando pacíficamente el momento de morirse”(Diderot) e, ao estilo de Goya, duvidar e refutar os discursos, os fetiches e as crenças de mentalidade medieval que insistem em questionar, atacar e censurar o laicismo, a liberdade e a autonomia desde suas intransigentes posições aferradas à «fé cega» e com os caprichos que lhes atribui os símbolos e as disparatadas mitologias predicadas pela religião.

Na mesma medida, tratar de apartar de uma vez por todas o irracional, o transcendente, o inadmissível, o inverossímil e o indemonstrável (precisamente porque é indemonstrável) e deixar que o âmbito do público volte a ser um espaço criativo, livre de religiões, incapaz de impor a ninguém as obrigações opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a promessa, moralmente repugnante, de alívio ao sofrimento, de resignada aceitação da miséria humana e  salvação eterna. [38]

E se, depois de tudo, nenhum desses esforços for suficiente para mover nem um milímetro a opinião daqueles que teimam em permanecer «ad absurdum et ad nauseam» no obscuro reino das ideias e símbolos delirantes, esperar ao menos que os problemas de comunicação com o Espírito Santo se dissipem e que este «pássaro sedutor» intervenha junto a essas almas que sofrem (não, evidentemente, com a mesma intenção e objetivo com que apareceu à entregada Virgem) para que se disponham a mirar com alguma virtuosidade a pulcritude e os benefícios que o laicismo e a liberdade representam para o pleno e secular exercício da verdadeira cidadania... E “Livre-nos do mal”.


Notas

[1] Uma caricatura desta “falácia cristã“ é a história contada por Edmond Rostand, em sua comédia Chantecler, de um galo “que creía que gracias a su canto el sol salía todos los días”. Para mim, as religiões, e particularmente as três religiões monoteístas, são a negação total e absoluta do humanismo, isto é, da ideia de que qualquer concepção ética deriva de uma boa compreensão da natureza humana e da condição humana no mundo real. Isso implica que “en los planteamientos humanistas sobre la bondad y sobre nuestras responsabilidades, bajo ningún concepto prevalecerán supuestos astrológicos o fabulosos, ni creencias sobrenaturales, ni animismo, politeísmo, o cualquier otra herencia del ignorante pasado remoto de la humanidad” (A. C. Grayling). Desde o ponto de vista teórico e empírico, portanto, é perfeitamente possível uma atitude humanista para encontrar em nossa natureza os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da justiça e da ética, sempre e quando os valores e imperativos morais se considerem uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.     

[2]  “Desconfío de aquellas personas que saben muy bien lo que Dios quiere que ellos hagan, porque me doy cuenta que siempre coincide con sus propios deseos”. Susan B. Anthony

[3] Como sugere Daniel Kahneman: “Não há que confiar em ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”.

[4] O que leva alguns devotos a perderem de vista o valor moral de não elidir a advertência de que uma “das enfermidades mais perigosas que pode contrair o espírito humano é ignorar sua própria ignorância”.

[5] Sublinho que ao não aceitar nenhuma das ideologias e categorias sem fundamento das diferentes religiões e seitas (monoteístas ou politeístas) organizadas e/ou praticadas pela humanidade, a questão de «crer» ou «não crer» em algo, em suas respectivas posturas e/ou postulados extremos, perde todo seu interesse e acaba por perder também seu sentido. Contudo, como diria Homer Simpson: “Que no me importe no significa que no lo entienda”.

[6] Assim as últimas e comovedoras meditações do Frei Girolamo Savonarola, o dirigente do partido dos pobres, perseguido, encarcerado, torturado e executado pela Santa Inquisição (em 23 de maio de 1498, na Piazza della Signoria de Firenze), precisamente um ano depois de que o Papa Borgia, Alejandro VI, desde Roma, "la Babilonia de todos los vicios", lhe houvera excomungado: “Contra Ti sólo he pecado, delante de Ti he hecho  el mal (...) Contra Ti sólo, precisamente porque me has mandado que te ame a Ti por Ti mismo y que refiera a Ti el amor de las criaturas, y yo he amado más a la criatura que a Ti, al amarla por sí misma. ¿Qué es pecar sino amar a la criatura por sí misma?” Para dizê-lo com as palavras de Spinoza: “El hombre es un Dios para el hombre”.

[7] Para que nos entendamos: ao usar o termo «desenho» não me refiro a nenhum tipo de postura «criacionista» ou de «desenho inteligente», senão a algo «desenhado» pela seleção natural». Na prática, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (R. Dawkins, D. Dennett).

[8]A filosofia analítica e o positivismo lógico diferenciam tradicionalmente entre duas acepções da palavra 'verdade': a 'verdade' como correspondência (quer dizer, a coincidência entre o que se afirma e a realidade das coisas) e a 'verdade' como coerência (cabe dizer, a ausência de assertos contraditórios em um sistema lógico-dedutivo que parte de umas determinadas premissas). Embora pululem na atualidade outras concepções da 'verdade', para evitar digressões filosóficas de amplo perímetro me permitirei a reserva de considerar, com H. Frankfurt, que há uma dimensão da verdade que nem sequer a mais enérgica – ou mais laxa – compreensão da (inevitável) subjetividade pode atrever-se a vulnerar, uns limites relativos à margem de variação e fantasia que faz com que a indiferença à verdade seja uma característica indesejável e inclusive criticável. O núcleo da verdade e da racionalidade (epistêmica) consiste na coerência, e ser coerente, em ação e pensamento, supõe como mínimo atuar de maneira tal que não nos enganemos a nós mesmos e que, “por tanto, la charlatanería es algo que debemos evitar y condenar”. O que leva (e levou) alguns filósofos a sinalar, com notável insistência, que a mentira e o engano debilitam a coesão da sociedade humana de maneira irreparável (Kant e Montaigne, por exemplo): “Sólo si reconocemos un mundo de una realidad, hechos y verdades obstinadamente independientes, podemos reconocernos a nosotros mismos como seres distintos de los demás y articular la naturaleza específica de nuestras propias identidades. Si esto es así, ¿Cómo podemos no tomarnos en serio la importancia de la facticidad y la realidad? ¿Cómo podemos no preocuparnos por la verdad?”. (H. Frankfurt). Apesar disso, como animais «domesticados» por uma constelação de crenças transmitidas, prejuízos inconscientes e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência, de quando em quando nos falta perspectiva para entender e aceitar que a realidade - “un concepto de lo que nos limita, de lo que no podemos cambiar o controlar mediante un mecanismo de nuestra voluntad” (H. Frankfurt) - sempre será realidade, inexoravelmente independente e obstinadamente “distinta de nosotros”, sem importar o que pensemos, creiamos ou anelemos. E uma vez chegado a esse ponto, o apego à razão pode ser prova de sacrilégio e “el grado de creencia en algo se transforma en la medida de su valor de verdad” (R. Trivers).

[9] A propósito, visto que não se definem precisamente por sua moral, nenhuma das religiões cristãs pode prescindir da figura de Jesus Cristo. “Si se pudiera demostrar que tal ser humano nunca existió, o que era un ser humano como todos, sin nada divino y sin milagros absurdos, desaparecería el cristianismo tal como lo conocemos. No se sostendría solo con sus preceptos morales. De la misma manera, las religiones islámicas no se sostienen sin Mahoma y los hechos legendarios a él atribuidos. Ni el judaísmo sin toda su mitología y su historia inventada como pueblo elegido por un dios, ni los mormones sin su Joseph Smith y sus hechos tan o más absurdos que los de Jesucristo, ni los cienciólogos sin Hubbard y sus disparates, ni el hinduismo sin sus cientos de miles de dioses al estilo de la mitología griega, ni los diversos animismos sin creencias en ánimas a la manera que sea. La razón es que son esos seres o esos hechos legendarios o mitológicos los que establecen la conexión entre una o muchas deidades y el ser humano. Para las religiones esa conexión es lo importante, sin la cual muchos creyentes se sienten perdidos. Y ese es justamente el nefasto legado de las religiones. Por dos razones. Primero, porque a esos creyentes se les impide tener la claridad de miras suficiente como para desarrollar preceptos morales sin necesidad de la parte crédula del asunto. Esto hace que los preceptos morales sean sagrados y no se cuestionen libremente en sociedad. A su vez, esto implica una dificultad para convivir con tales creyentes. Creerán que sus opiniones morales tienen más base que las de los no creyentes, que están por encima de la ley y, como consecuencia estarán poco dispuestos al diálogo, a la revisión de sus creencias y al compromiso necesario para la vida en una sociedad diversa. Segundo, los creyentes, necesitando esa conexión para su moral, tenderán a atribuir a los no creyentes una inmoralidad, pues creen que también los no creyentes la necesitan para ser morales. También estarán ciegos ante la evidencia en contra de esa afirmación”(J. Luis Ferreira).  

[10] Na atenta observação de Robert Trivers (ao tratar da religião e o autoengano), a deificação do profeta Jesus (o mito evangélico de Cristo) não tem paragão na concepção dos profetas no islamismo e o judaísmo. Não há nessas outras duas religiões nada similar ao seu insólito nascimento, nada parecido aos milagres que lhe atribuem, nada que se assemelhe ao sofrimento de uma morte cruel que expia o pecado da humanidade e posterior ressurreição três dias mais tarde, e definitivamente nada que implique uma sorte de transformação de Jesus, enquanto Deus encarnado, em um terço (1/3) do espetáculo constituído pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo. E quanto mais os cristãos deificam o mito de Cristo e maior é o delírio da imaginação ou fé insana em uma divindade arquitetada pelo judeu helenizado Paulo de Tarso (e elaborada pelos evangelistas teologicamente ex post e, a sua vez, com a tergiversação ominosa do Jesus histórico), menor é a atenção que prestam à doutrina que, segundo os Evangelhos, predicou o profeta em sua breve travessia pela terra. A “cristomania” e o “jesuismo”, essa esquizofrênica amálgama de crenças sui generis centrada na secular convicção e eufórica exaltação da deidade de Jesus, estão de moda, um fenômeno cada vez mais extremo e difuso, consumível por todos e a todas as idades, à gosto do consumidor, em todo momento, em casa, fora de casa, à distância e on-line. Quer dizer, como se fosse um suplemento oficial de contrapeso da alma materialista, servindo versões lights e multifuncionais de um Cristo mais adequado para nosso delicado e sobreexcitado ego; um tipo de amigo invisível, um guru espiritual, fictício, onipresente e camaleônico ao alcance de todos e que serve, à custa de um sem-número de interpretações bíblicas, para qualquer pessoa que anele aceitá-lo como seu Senhor e salvador pessoal. Como disse Dante, “hemos perdido el camino recto”. (A. Fernandez)

[11] Com isso coloca o sofrimento, não a alegria, no centro da experiência humana: “Bienaventurados los afligidos, porque ellos serán consolados” (Las Bienaventuranzas). Para o cristianismo a «vida é um vale de lágrimas», viemos ao mundo para sofrer e passar misérias;  esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original. Daí esta inquietude real dos desgraçados que vai acompanhada pela glutonaria da desdita: “Fazer o bem com o sofrimento e fazer o bem a quem sofre” (Papa Francisco, recordando as palavras de João Paulo II). Por isso há uma necessidade compulsiva de apoderar-se da desgraça dos demais, como se a própria não bastasse (P. Bruckner). Claro que o Vaticano pode impregnar os cérebros teologicamente condicionados de seus cordeiros com preconceitos e valores infundados e anacrônicos; o que não pode (e não deve) é intentar impor essa moral fundada no sadismo ou na glorificação demencial do sofrimento (e sua respectiva simbologia) como norma obrigatória a todo mundo. Nem sequer aqueles que creem na existência de um Deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós, seriam capazes de afiançar que os poderes mais altos da Igreja perambulam pelo mundo com ideias que desafiam a inteligência de uma criança de dez anos ou menos. Desconfiemos daqueles que idolatram a desgraça, que se irritam com nossa liberdade e que avocam o direito ou a autoridade moral de dignificar nossos infortúnios. Desconfiemos de todos aqueles que professam adorar ou preocupar-se pelo sofrimento alheio. Em sua solicitude se oculta uma espécie de desprezo disfarçado, um sussurro para reduzir aos miseráveis a sua angústia. Somente se lhes perdoa a vida se sofrem, ainda que ideia de que a dor e o sofrimento santificam jamais se demonstrou cientificamente. Recordemos as palavras de Cicero: “Sentir piedad implica sentir envidia, porque si uno sufre por las desgracias de los demás, también es capaz de sufrir por su felicidad”. “Delectatio in felicitate alterius”, dizia Leibniz: “Disfruta con el placer de los que te rodean. Hay más nobleza de alma en gozar de la alegría de los demás que en afligirse por sus desgracias”.

[12] «Mistério»: este “curioso mecanismo que permite, graças à ausência de resposta, que tenhamos resposta para tudo; uma noção empregada de forma desmesurada que se converte em um mero sofisma para justificar o injustificável” (Marcel Conche). Aliás, seja dito de passagem, uma das maiores vantagens constitutivas das religiões sobre as ideologias laicas é a denominada «inutilidade da prova». As ideias, contos, símbolos e fabulações que nos apresentam não têm escala humana ou temporal, ao contrário de nossos ideais terrestres, obrigados a resignar-se às leis da verificação e da persuasão racional. Como a sentença de Descartes que Spinoza adotou como máxima para orientar-se: “Nada debe ser considerado como verdadero excepto aquello que haya sido probado con buenas y sólidas razones”.

[13] Dizer liberdade de consciência é dizer liberdade de expressão e de ação.

[14] Paulo de Tarso, o “décimo terceiro apóstolo histérico e masoquista” (para usar as palavras de Michel Onfray), foi o verdadeiro fundador do cristianismo e quem expôs as ideias com as que este triunfou: o elogio do gozo da submissão, a obediência, a passividade, a escravidão baixo os poderosos com o pretexto falaz de que o poder vem de Deus e que a situação social do pobre, o modesto e o humilde emerge da vontade celestial ou da decisão divina (M. Onfray). Com sua apologia da dominação e renúncia ao mundo, Paulo fixou claramente desde o começo a doutrina da natureza humana pecadora, caída e maleável, e, a partir dela, sua dura (e misógina) postura acerca dos poderes terrenal e celestial.

[15] Nas sensatas (e extensas) palavras de Steven Pinker: “La libertad de expresión es la única manera de adquirir conocimientos sobre el mundo. Tal vez el mayor descubrimiento en la historia humana —uno que es lógicamente anterior a cualquier otro descubrimiento— es que todas nuestras fuentes tradicionales de creencia son, de hecho, generadores de error y deben ser descartados como fuentes de conocimiento. Estos incluyen la fe, la revelación, el dogma, la autoridad, el carisma, el augurio, la profecía, la intuición, la clarividencia, la sabiduría convencional, y el cálido resplandor de la certeza subjetiva. Sólo adquirimos conocimiento atacando las ideas y viendo cuáles resisten los intentos de refutarlas. [...] Ahora sabemos que los sistemas de creencias de las religiones y las culturas tradicionales de todo el mundo —sus teorías sobre los orígenes de la vida, los seres humanos y las sociedades— son objetivamente falsos. Sabemos, pero nuestros antepasados no sabían, que los seres humanos pertenecen a una sola especie de primate africano que desarrolló la agricultura, el gobierno y la escritura tarde en su historia. Sabemos que nuestra especie es una pequeña ramita de un árbol genealógico que abarca a todos los seres vivos y que surgió de productos químicos prebióticos hace casi cuatro mil millones de años. Sabemos que vivimos en un planeta que gira en torno a una de las cien mil millones de estrellas en nuestra galaxia, que es una de las cien mil millones de galaxias en un universo de 13.8 mil millones de años de edad, posiblemente, uno de un gran número de universos. Sabemos que nuestras intuiciones sobre el espacio, el tiempo, la materia y la causalidad son inconmensurables con la naturaleza de la realidad en escalas que son muy grandes y muy pequeñas. Sabemos que las leyes que rigen el mundo físico (incluidos los accidentes, las enfermedades y otras desgracias) no tienen metas referentes al bienestar humano. No hay tal cosa como el destino, la providencia, el karma, los hechizos, las maldiciones, los presagios, la retribución divina, u oraciones respondidas — aunque la discrepancia entre las leyes de la probabilidad y el funcionamiento de la cognición pueda explicar por qué las personas creen que los hay. Y sabemos que no siempre supimos estas cosas, que las queridas convicciones de todos los tiempos y culturas pueden ser decisivamente falseadas, sin duda, entre ellas algunas de las que tenemos hoy en día.”

[16] A liberdade religiosa é uma consequência ou aplicação da liberdade individual. Não se justifica (a liberdade religiosa), em modo algum, como homenagem ou consideração às religiões ou aos grupos religiosos enquanto titulares de direitos ou interesses mais altos que os dos indivíduos. A liberdade religiosa se protege para que qualquer sujeito possa decidir se professa alguma religião ou não professa nenhuma, e para que possa viver em consequência e, em seu caso, concorrer aos ritos ou práticas correspondentes, no que não resultem incompatíveis com a liberdade de todos e cada um e com a ordem pública mais básica. Entre outras coisas, porque a liberdade, a autonomia e/ou a vontade individual nesta vida é assunto mais sério que a complacência dos deuses, o capricho dos sacerdotes de qualquer credo ou o legítimo desejo que alguém tenha por fazer-se um espaço na vida eterna ao lado do Grande Chefe, com anjos ou querubins.

[17] Ignacio de Loyola dizia que o sarifício que mais agradava a Deus de todos os sacrifícios possíveis era o sacrifício do intelecto, quer dizer, a disciplinada e cega subordinação da razão à fé; o “creo a pesar de que es absurdo” ou precisamente “porque es absurdo”, como dizia Tertuliano. É o «sacrificium intellectus», «el sacrifizio dell’inteletto como le gustaba decir al vasco universal». Mas isto não é uma característica ou prerrogativa da religião católica. Não existe nenhuma religião viva que não exija de algum modo o sacrifício do primogênito do homem, a «Razão».

[18] “A Puta de Babilônia”, como chamavam os albigenses à Igreja de Roma ao perorar contra “las riquezas y la corrupción del clero”, segundo a expressão do alucinado Livro que escreveu São João na Ilha de Patmos aos 100 anos, o Apocalipse: “Ven y te mostraré el castigo de la gran ramera con quien han fornicado los reyes de este mundo. La mujer estaba vestida de púrpura y escarlata; resplandecía de oro, de piedras preciosas y perlas; y tenía en la mano una copa de oro llena de las inmundicias de su fornicación, y escrito en la frente su nombre en forma cifrada: Babilonia la grande, la madre de las meretrices y abominaciones de la tierra (Apocalipsis 17:1-5). [...] “Al papa lo llamaban «el Anticristo»." (F. Vallejo)

[19] Que, segundo Saramago, “es un manual de malas costumbres, un catálogo de crueldad y de lo peor de la naturaleza humana”. Uma genial e singular resenha literária da Santa Bíblia como uma antologia de horror de escala e longitude épicas: http://revoltdaily.org/review-of-the-holy-bible/.

[20] A crença cristã de que Deus foi revelando pouco a pouco sua mensagem à humanidade. E, nesta revelação, uma mensagem pode suplantar a anterior. A teologia de São Paulo é talvez a mais emblemática disto: “Con Cristo, muchos aspectos de la antigua revelación, contenida en la Ley de Moisés, quedan superpuestos por la nueva revelación. Y, por regla general, en el cristianismo, la revelación que superpone a la anterior suele ser más pacífica. No es del todo cierto que en el Nuevo Testamento todo sea paz y amor, […] pero sí podríamos decir que, en términos generales, el Dios del Nuevo Testamento es más amable que el vengativo Yahvé del Antiguo Testamento”. (G. Andrade) 

[21] Quatro séculos depois de Paulo outro Santo, Jerônimo (coetâneo de Santo Agostinho), o pai ocidental da Igreja e autor da versão latina – a  Vulgata – da Bíblia oficialmente admitida pela Igreja romana (e a única versão canônica depois de Trento, em 1548), havia transformado a misoginia paulina em aberta ginecofobia: “La mujer es el portal del diablo, el camino  de la  maldad, el aguijón del alacrán, en una palabra, una cosa peligrosa”. “Dicho sea de pasada, otra fórmula ginefóbica de Jerónimo gozó de mucha reputación durante toda la Edad Media y el primer renacimiento: es aquella que declara la sabiduría filosófica incompatible con la atención a la mujer: "non posse simuli uxori et philosophiae servire" (Adversus Iovianum). Hans Baron describe la influencia de esta consigna de Jerónimo entre los humanistas italianos del trecento.” (A. Domènech).

[22] Ao castigo eterno no lugar mais mais horrível, para sempre, muito distante da persuasão racional. Afortunadamente, nem sempre esse signo de intransigente condenação/salvação presidiu este tipo de iniciativa. A função dos sacramentos, sobretudo o da penitência, é aliviar ao fiel de uma terrível tensão e permitir-lhe alternar a culpa, o arrependimento e absolução em um vai e vem que escandalizava tanto a Calvino como a Freud. Por outro lado, não há dúvidas de que foi um verdadeiro golpe de gênio por parte da Igreja inventar no século XII, baixo pressão popular e em resposta aos milenarismos, a noção de Purgatório, essa grande sala de espera, um lugar entre o Paraíso e o Inferno que autoriza aos seres humanos de vida medíocre, nem muito boa nem muito má, a saldar suas dívidas com o Altíssimo. Ao modificar “la geografía del más allá”, o Purgatório instaurou todo um sistema de “mitigação de condenas”, introduziu na fé a noção de ragateio com todos os excessos que conhecemos e que desencadearam a fúria dos reformados, e se converteu em uma técnica, um tranquilizante psicológico que permite que qualquer falta deixe de acarretar uma infinita e eterna degradação no Inferno (S. Freud, em seu prefácio a Los hermanos Karamazov, de F. Dostoyevski). Ademais, esta espécie de recuperação póstuma, sempre condicionada e dependente da infinita misericórdia do Criador, também proporciona aos vivos um meio para obrar e dialogar com os defuntos graças às orações (P. Bruckner).          

[23] Richard Dawkins o expressa assim: “Creo que todos deberíamos hacer una mueca de dolor cuando oímos que un niño pequeño es etiquetado como perteneciente a una religión particular o a otra. Los niños pequeños son demasiado jóvenes como para decidir sus puntos de vista sobre los orígenes del Cosmos, sobre la vida y sobre la moral. El propio sonido de la frase “niño cristiano” o “niño musulmán” nos debería dar tanta dentera como las uñas arañando una pizarra (…) Nuestra sociedad, incluido el sector no religioso, ha aceptado la ridícula idea de que es normal y correcto adoctrinar a niños pequeños en la religión de sus padres, y colocarles etiquetas religiosas –“niño católico”, “niño protestante”, “niño judío”, “niño musulmán”, etc.-, aunque no acepta otras etiquetas comparables: no se dice niño conservador, niño liberal, niño republicano, niño demócrata. Por favor, por favor, mejoren su conciencia acerca de esto y súbanse por las paredes cuando lo escuchen. Un niño no es un niño cristiano, ni un niño musulmán, sino un niño de padres cristianos o un niño de padres musulmanes. Esta última nomenclatura, por cierto, sería una pieza excelente para la mejora de la conciencia de los propios niños. Una niña de quien se dice que es “hija de padres musulmanes” inmediatamente se dará cuenta de que la religión es algo que ella puede elegir –o rechazar- cuando sea lo suficientemente mayor como para hacerlo.”

[24] Não percamos de vista que a caridade é a antítese dos direitos humanos. A dignidade humana é pisoteada pela caridade e sua forma cristã de humanitarismo, donde as espórtulas de «aceitação», «aproximação» e «redenção» se oferecem de forma seletiva ou são impostas desde o exterior de maneira caprichosa, contingente e temporal. A caridade, pelo geral, só beneficia ao doador, quase sempre em algum tipo de ato público interessado, e ofende a humanidade daqueles que se encontram no lado receptor (D. Raventós & J. Wark).

[25] “El vicio de la servidumbre voluntaria”, para empregar a expressão do autor do famoso « Discours de la Servitude volontaire», Étienne de La Boétie. Recordemos algo que, provavelmente, olvidamos no caminho: tal e como aponta La Boétie, a reflexão, a observação, os livros e a educação, mais que qualquer outra coisa, realmente  «brindan el juicio para comprender la propia naturaleza de la tiranía y aborrecerla. […] No les pido que coloquen las manos sobre el tirano para derribarlo, sino simplemente que ya no lo apoyen más, entonces lo verán, como un gran coloso cuyo pedestal ha sido apartado, caer por su propio peso y romperse en pedazos». É interessante reflexionar sobre a razão pela qual La Boétie considerava a servidão voluntária um vício e não uma virtude, tal e como se encarregaram de sublinhar durante largos e monótonos séculos os fundadores do cristianismo, as sucessivas religiões do mundo e as convenções sociais mais arraigadas em nossas carnes. A chave estriba em que, segundo La Boétie, a servidão contradiz, na verdade, nossa própria natureza: a libertade é um bem cuja perda para toda «persona de honor hace que la vida sea amarga y la muerte un beneficio».

[26] Nota bene: “Jesús no fue nunca cristiano. Era un hebreo observante, que permaneció como tal hasta su muerte y que jamás habría imaginado dar origen a una nueva religión y mucho menos fundar una «Iglesia». No se proclamó jamás y rechazó siempre el título de Mesías. Joshua bar Joseph era un profeta judío itinerante, exorcista y sanador, un misionero apocalíptico que anunciaba en las aldeas de Galilea el euangelion (buena noticia) de la llegada inminente, más aún amenazadora, del Reino por obra de Dios, el triunfo del Reino en donde los últimos serían los primeros. Predicaba en arameo, exclusivamente para sus correligionarios judíos, y si alguno de los apósteles barruntó que fuese Cristo (traducción griega del hebreo meshiah y del arameo mashiha, «ungido») lo fulminó con un anatema: «Vade retro me Satana!» (Marcos 8, 33) [expresión de la Vulgata latina, incorporada al uso proverbial, con el que Jesús rechaza violentamente la esperanza de Pedro («Tú eres el Cristo», 8, 29)]. La idea de ser considerado «Dios verdadero de Dios verdadero, engendrado, no creado, de la misma naturaleza que el Padre» - según el «Credo» del concilio de Nicea, aún en vigor en la Iglesia católica – le habría ocasionado un indecible horror.” (P. Flores d´Arcais).

[27] Afinal de contas, todos “los niños nacen ateos; ellos no tienen idea de dios”. Paul Henri Thiry d'Holbach

[28] Michael Martin, em The Case Against Christianity: ¿“Bajo qué condiciones deberíamos creer en las doctrinas cristianas? No hay duda de que la respuesta razonable y de sentido común es la siguiente: en igualdad de condiciones, sólo deberíamos creer en ellas si existen buenos motivos para hacerlo.[...] Según la interpretación estricta, deberíamos evitar creer en algo que contradiga la evidencia y entender que las únicas buenas razones para creer que las doctrinas son verdaderas son las razones epistemológicas. Si tenemos en cuenta esos puntos, podemos decir que existe un deber tanto moral como espistemológico para no creer en las doctrinas cristianas, a menos que haya buenas razones epistemológicas para creer en ellas...Y no las hay. […] Se trata, sin duda, de creencias aprendidas y que difícilmente pueden ser provocadas por unas condiciones ampliamente comprobables, como la de contemplar los cielos estrellados.”

[29] O ideal de vida elegida não se corresponde com o modo em que vivemos. Não somos os autores plenipotenciários de nossas vidas; não somos sequer artífices parciais dos fatos que nos marcam (ou nos marcaram) mais profundamente. Não pudemos eleger quase nada do que tem maior importância em nossa existência: o momento e o lugar em que nascemos, nossos pais e irmãos, a primeira língua que falamos ou a religião que professamos são resultados da casualidade e do que nos ensinaram, não da “livre” eleição (nunca tivemos a oportunidade de eleger o que crer e o que não crer, nem sequer escolhemos nosso próprio nome). Aprendemos a viver segundo os pontos de vista e crenças dos demais por medo a não ser aceitado ou de não ser o suficientemente “bom” para satisfazer as expectivas e as exigências de outras pessoas. A vida de cada um de nós é um capítulo de acidentes e sabemos que nada pode fazer-nos invulneráveis à fortuna e à casualidade. (J. Gray)

[30] “Esto es: tomad la resolución de no servir y seréis libres” (La Boétie). Há que ser moralmente autônomo, dono de tua vida em igualdade com os demais: “de lo que se rechaza y de lo que se elige nace el futuro; de lo más banal a lo más importante” (Sócrates). Este o imenso socavão na ética da obediência e da conformidade que herdamos do velho filósofo grego: não refugiar-se na absoluta certeza de alguma «verdade revelada», lutar a diário por nossa independência e buscar a liberdade em nós mesmos, exatamente igual que a alegria, a autoestima e a felicidade (e isso não é fácil; não pode ser fácil). Porque a liberdade nada tem de bíblica maldição, senão de ditoso direito que se «desapareciese por completo de la tierra, muchas personas la inventarían» (La Boétie); e não cabe democracia madura e apresentável em «sociedades indecentes» nem entre gentes moralmente infantis. E não olvidemos que foi o anjo mais altivo do Céu, Lúcifer, o primeiro que lutou pela liberdade. Dominado por uma obscura indignação, se insurgiu e incitou à rebelião em nome da liberdade e a igualdade, negando-se a viver de “rodillas ante Dios”: “Tronos, dominaciones, principados, Virtudes, potestades, si estos títulos Ilustres permanecen todavía Como no meramente nominales Ya que otro se arroga todo el poder Y nos deja eclipsados con su nombre De Rey ungido.”[…] ¿Quién puede, pues, por derecho o por razón, Asumir la monarquía de quienes Viven por derecho como sus iguales, Si no con tanto poder y esplendor, Iguales sí en la libertad? ¿Quién puede Dictarnos leyes e imponer decretos A quienes aún sin leyes nunca yerran?”. Finalmente expulsado ao inferno junto a todos seus seguidores, ali permaneceu 20.000 anos “sin otra ocupación que la de  rascarse la tripa y estar continuamente angustiado”, segundo Daniel Defoe em seu erudito The Political History of the Devil. Enquanto isso, Deus observava bastantes espaços vazios no Céu depois dessa sublevação de proporções estalinistas, mas considerou que em lugar de criar mais anjos, provaria algo novo, pondo esta vez mais ênfase na obediência de suas criaturas: “(…) Yo sabré Reparar esta pérdida, si tal Puede considerarse al perder A los que se perdieron a sí mismos, Y en un momento crearé otro Mundo, Y de un hombre una raza innumerable De hombres para que vivan allí, No aquí, hasta que elevados gradualmente Según sus propios méritos se abran Hasta aquí con el tiempo su camino Probados por una larga obediencia Y la Tierra sea convertida en Cielo”. Quer dizer, em última instância, tanto os seres humanos como o mundo que habitamos existem devido a essa rebelião celestial. Graças a Satanás, em suma. [Nota bene: O Apocalipse de São João já menciona os convulsos acontecimentos que levaram ao Diabo a habitar o Inferno. Mas foi uma das obras chave da literatura universal, El paraíso perdido de John Milton, a que nos deu a conhecer em detalhe o falido golpe de Estado celestial, liderado por um anjo singularmente majestoso e audaz que quis arrebatar o trono do Céu ao mesmíssimo Deus (J.Bilboa)].

[31] Como advertia severamente um dos pais da Igreja, Tertuliano: “mujer, tú eres la puerta del diablo. Eres tú quien ha tocado el árbol de Satanás, y la primera que ha violado la ley divina (…) mujer, deberías ir siempre de luto, estar cubierta de harapos y entregada a la penitencia, a fin de pagar la falta de haber perdido al género humano”.

[32] Quem melhor que ninguém soube expressar essa mescla de defesa radical da liberdade de pensamento e tolerância. Disse Charles Darwin (depois de haver decretado e anunciado a «morte de Deus») em uma de suas cartas: “Aunque soy un fuerte defensor de la libertad de pensamiento en todos los ámbitos, soy de la opinión, sin embargo – equivocadamente o no –, que los argumentos esgrimidos directamente contra el cristianismo y la existencia de Dios apenas tienen impacto en la gente; es mejor promover la libertad de pensamiento mediante la iluminación paulatina de la mentalidad popular que se desprende de los adelantos científicos. Es por ello que siempre me he fijado como objetivo evitar escribir sobre la religión limitándome a la ciencia”.

[33] Há autores (Boyer, Atran, Norezayan, Bering...) que estudam a religião desde o punto de vista evolucionista e estão chegando todos à conclusão de que a tendência a produzir deuses forma parte da natureza humana e que a religião está aí porque oferece vantagens adaptativas, une ao grupo e aumenta o número de genes que se transmitem à descendência, em definitiva.Entretanto, que a religião forme parte de nossa natureza não é, evidentemente, um argumento para não combatê-la; sempre está bem combater a irracionalidade, apesar do equívoco em pensar que é possível combater a irracionalidade com razões. Demonstrar que as crenças  religiosas são errôneas (que o são!) parece que não funciona; à evolução nunca lhe interessou a verdade (nem a felicidade, tampouco), sua preocupação é promover tudo o que ajuda a deixar mais cópias, e umas crenças errôneas são capazes de cumprir esse objetivo. Como diz Paul Bloom: “A força motriz da seleção natural é a sobrevivência e a reprodução, não a verdade. Se não intervêm outros fatores, para um animal é melhor crer coisas verdadeiras que coisas falsas; é preferível a percepção precisa que as alucinações. Mas às vezes intervêm outros fatores”. Assim que, para o bem ou para o mal, parece que as ilusões cognitivas que nos induzem a pensar em um (ou vários) Deus (es) onipresente e observador atento, que fomos criados para uma finalidade especial, que há vida depois da morte ou que os acontecimentos naturais contêm mensagens importantes procedentes de outro mundo, favoreceram a nossos genes, razão suficiente para manter intensamente vivas essas ilusões no cérebro humano. E essas ilusões podem ser tão convincentes que perfeitamente podemos negar-nos a admitir que são uma ilusão (J. Bering). Na certeira advertência de John Gray: “No se puede acabar con la religión, y reprimirla es como reprimir los instintos sexuales: una empresa imposible. Intentar erradicar la religión sólo consigue que ésta reaparezca en formas más grotescas y degradadas”. Em primeira pessoa, digo (e repito) apenas que não sou ateu em absoluto porque, de sê-lo, estaria seguro de que nenhum Deus existe. Mas não é assim. Muito pelo contrário; claro que existe: como toda e qualquer ideia construída pelo cérebro humano, Deus existe metido dentro da mente de alguns membros de nossa espécie. Essa é a verdade. “Lo juro por Dios”.

[34] É muito famosa a cita do Prêmio Nobel Steven Weinberg: “La religión es un insulto a la dignidad humana. Con o sin religión siempre habrá buena gente haciendo cosas buenas y mala gente haciendo cosas malas. Pero para que la buena gente haga cosas malas hace falta la religión.” 

[35] Nossa interpretação do mundo tem suas raízes nas narrativas que construímos acerca de nós mesmos e de nosso mundo social: somos os fabricantes dos significados e do sentido que damos à nossa vida. “Pero todos nosotros tenemos la sorprendente idea de que el modo como vemos el mundo refleja el mundo en su objetivo ser así. Y no caemos en la cuenta de que somos nosotros los que atribuimos una significación a ese mundo. […] Si nosotros lo creyéramos, sabríamos que no solo somos los creadores de nuestra desdicha, sino también de nuestra felicidad” (P. Watzlawick). O certo é que ao construir nossa experiência subjetiva da realidade o cérebro-mente humano é (e funciona como) uma máquina de produzir significados: “No son las cosas las que atormentan a los hombres, sino las opiniones que se tienen de ellas” (Epicteto).

[36] Na atualidade sabemos que a experiência pessoal não é evidência de nada e que o que «se sente» como real, inclusive quando esses pensamentos são compartidos com outras pessoas ajuizadas, sanas, totalmente normais, nem sempre é uma boa medida do que «é» real. De fato, já contamos com demostrações claríssimas de que nossos amados sentidos e nosso sobrevalorado cérebro podem ser enganados, e nos enganam, com bastante facilidade. Daí o conselho de Richard P. Feynman: “El primer principio es que no debes engañarte a ti mismo, y tú eres la persona más fácil de engañar”.

[37] Não somente interpretamos cada situação segundo nossos desejos, crenças, expectativas e intenções, senão que também reconfiguramos constantemente o passado para proteger-nos. De fato, grande parte do que vemos o inventa alegremente nosso cérebro, modificando as instantâneas da realidade como se dispusera de um sofisticado PhotoShop. Os recordos de nosso passado em realidade são reconstruções, não autênticos reflexos do que aconteceu, com independência de que nos tenhamos involucrados emocionalmente ou estejamos completamente seguros de que as coisas passaram tal e como recordamos. Às vezes, estas distorções se produzem em pequenos detalhes; mas, outras vezes, reconstruímos recordos completos com um grande número de detalhes falsos que em realidade nunca tiveram lugar. Em resumo, a memória é "uma amiga desleal"; é distribuída e reconstruída. Não reside em nenhum lugar específico de nosso cérebro e, a um nível mais profundo e biológico, todos nossos recordos são falíveis e incompletos. Mas essa é outra história.

[38] No cálculo cristão da fantasia religiosa está, por exemplo, a «aposta da eternidade»: prometer uma recompensa pelas misérias deste mundo, uma esperança de outra vida e retribuição de felicidade celestial no Paraíso, um lugar de delícias absolutas donde já não existem nem a fome nem a sede, nem a maldade nem o tempo, e o único modo de pôr fim ao escândalo da prosperidade do malvado e do infortúnio do justo. “Lo maravilloso de la muerte”, escreve S. Bossuet citando a Santo Antônio, “es que, para el cristiano, no pone punto final a la vida, sino a los pecados y peligros a los que ha estado expuesto. Al abreviar nuestros días Dios abrevia nuestras tentaciones, es decir, todas las ocasiones de perder la verdadera vida, la vida eterna, puesto que el mundo tan sólo es nuestro común exilio”. Os teólogos, diz o radical Spinoza, utilizam descaradamente a possibilidade de uma recompensa e um castigo eternos “para intimidar a las masas”: uma abominação, “un fraude de dimensiones globales concebido para justificar la opresión en este mundo con la promesa vacía de una justicia en el más allá”.


Autor

  • Atahualpa Fernandez

    Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

    Textos publicados pelo autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Laicidade, liberdade e identidade religiosa: a tentação da cruz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4284, 25 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36768. Acesso em: 25 abr. 2024.