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A evolução das garantias fundamentais.

Mandado de segurança contra ato corporativo

A evolução das garantias fundamentais. Mandado de segurança contra ato corporativo

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SUMÁRIO: 1.O Estado reduzido; 2. Legislação no lugar de atuação; 3. As similitudes e diferenças entre a atuação pública e a privada. Análise evolutiva; 4. Evolução histórica do instituto do mandado de segurança; 5. Dos agentes capazes de praticar atos contra legem sujeitos ao controle judicial; 6. Mandado de segurança contra atos corporativos; 7. Aspectos jurídicos do procedimento e sua utilização; 8. Conclusão


RESUMO:

         Com a alteração das atribuições executivas do Estado e com a evolução das relações entre este, algumas corporações e indivíduos nas sociedades modernas, surge a necessidade de adaptar-se as garantias constitucionais aos novos direitos. As novas relações com entes detentores de poder de fato e de direito demonstram a não evolução eficaz dos instrumentos de amparo constitucional. A ampliação da sujeição passiva do mandado de segurança é uma das possibilidades para adaptar o instrumento garantidor de direitos fundamentais à nova realidade de atribuições do Estado.


1.O Estado reduzido

         Desde a Revolução Industrial a humanidade vem alterando aspectos de convívio e relacionamento sociais, dantes esteados numa base agrícola e industrialização comedida, quase artesanal, de economia.

         A ideologia liberal, especialmente a adotada pelo ideal americano, em contra censo ao comunismo oriental, teve grande importância na evolução dos meios de produção e das políticas econômicas globais, com isso, a liberdade dos homens passou a ganhar uma conotação cada vez mais ampla, e cada vez mais presente, efetiva.

         A liberdade ideologicamente posta pelo sistema anglo-saxônico - atualmente pelo sistema americano – trouxe não apenas o afloramento dos direitos humanos, numa concepção ocidentalizada, burguesa e liberal, mas também trouxe reflexos na concepção do próprio Estado, tornando-o mais liberal.

         O absolutismo deu lugar ao que seria concebido posteriormente como um Estado de Direito, onde, se inicialmente este tinha uma presença em funções essenciais e abrangentes, hoje caminha para uma redução estratégica de suas áreas de atuação, notadamente as relativas ao exercício do Poder Executivo – as funções administrativas - muito mais após o Estado Mínimo implementado pela Primeira Ministra britânica Margareth Tatcher.

         As atividades administrativas do Estado estão reduzindo-se desde a Revolução Industrial, dando lugar a particulares que passam a ocupar as funções tidas, a até muito pouco tempo, como de incumbência exclusiva do Estado. Foi a evolução do Estado absolutista para o Estado de Direito inspirado no ideário de liberdade ocidental.

         Esta redução da participação efetiva do Estado em determinadas áreas, importantes para o desenvolvimento de qualquer nação, e até em áreas consideradas vitais na vida social e política, é uma realidade no mundo ocidentalizado. No Brasil, esta realidade se apresentou com a abertura econômica realizada pelo então Presidente Fernando Collor, chamada de "Era Collor", mas com maior percepção e concretividade através das seguidas privatizações de empresas tidas como símbolos da unidade nacional.

         O Estado cedeu espaço aos conglomerados privados internacionais, que passaram a ocupar aquelas funções até então tidas como estratégicas, para que esse pudesse se ocupar de temas mais próprios, estabelecidos por uma nova concepção de objetivos e fundamentos do Estado moderno.

         Além dos serviços propiciados exclusivamente pelo Estado que foram passados, a partir das privatizações, ou seja, a partir da transferência de funções administrativas estatais, para particulares, necessário notar-se que as pessoas jurídicas de direito privado, com a redução do Estado, passaram a exercer um poder legal e de fato por sobre a sociedade. Determinadas empresas multinacionais, exercem um domínio tamanho sobre o público que suas atividades, mesmo as com características eminentemente privadas assemelham-se às estatais, se observado o aspecto do poder exercido sobre as relações sociais.

         De outro lado, do ponto de vista do cidadão comum, a inserção de um particular em uma relação de extremo desequilíbrio e com escopo absolutamente diverso do ente Estatal, ou seja, com o propósito de lucro, trouxe uma enorme preocupação de setores da sociedade, no sentido de verem os direitos fundamentais preservados nestas relações.

         Mas não foram apenas setores chamados de conservadores que tiveram grande preocupação com a garantia dos direitos, o próprio Estado também cuidou de lançar-se, de forma diversa, sobre aquelas funções, através de meios de regulação, criação de agências de controle e através de leis específicas que visaram proteger o lado mais fraco da relação.

         Portanto, se o Estado reduziu sua participação naquelas atividades que podemos caracterizar como administrativas, ou próprias do Poder Executivo, de outro lado, aumentou sua participação no campo legislativo, ao regular situações que até então detinha o monopólio, fazendo com que o desequilíbrio relacional entre dois entes privados (conglomerados empresariais e "consumidores") fosse minorado.


2.Legislação no lugar de atuação

         Neste panorama novo, onde as organizações privadas, em sua maioria compostas por capitais sem pátria ou por capitais estrangeiros, atuando efetivamente na administração de atividades cujos interesses são tão amplos e tão intrinsecamente ligados à vida social moderna que podem, e ainda o são, denominados de interesses públicos, o Estado tem uma participação diferente, com a valorização de seu poder de legislar e judicar.

         Desde MAQUIAVEL que a estrutura estatal é rigidamente a mesma, apenas alterando-se a preponderância de suas atividades sobre determinados aspectos, em determinados momentos históricos. Sob a égide da lei - o império da Lei -, o Estado, passou de uma insubordinação normativa através do poder exercido por seu soberano absoluto, como exposto por HOBBES em O Leviatã, a um total acatamento das normas de direito, que se deu, em grande monta, após o surgimento da teoria normativista de KELSEN, e tomou corpo com o crescimento do constitucionalismo, até alcançar as novíssimas concepções defendidas por R. ALEXY e F. MÜLLER, onde o Estado submete-se ao direito, como norma e como valores fundamentais, direito este composto por normas que são meras regras e normas que são verdadeiros princípios orientadores do sistema normativo sob o qual o Estado deve se assentar e se submeter.

         O fato é que o Estado, neste novo modelo mais reduzido, alterou suas funções executivas, passando a atribuir a particulares a administração de atividades que ele próprio, e a própria sociedade, reputavam prescindível de uma atuação estatal pura. Certo que as modernas técnicas de administração de empresas privadas, com resultados de grande eficiência impulsionaram a opinião pública - através de agentes formadores de opinião evidentemente -, de forma a abrirem mão de um serviço com a "garantia" do Estado, para poder usufruir do que seria uma melhor eficiência na prestação de determinados serviços, traduzida inicialmente numa redução de custos e de impostos.

         Com efeito, tal influência na sociedade deveu-se aos interesses internacionais privados nos setores que seriam privatizados, a forte presença dos meios de comunicação em massa lançando opiniões formadas sobre as benesses das privatizações, propiciou aos estudiosos da formação do Direito, a verificação e comprovação da teoria da "ação comunicativa" proposta por HABERMAS.

         Pois bem, se num primeiro momento, o Estado pensou poder abster-se de participar em determinadas áreas – abster-se integralmente – de outro lado, viu-se forçado a lá permanecer, somente alterando o escopo de suas funções.

         Não se pode esquecer que a presença do Estado não é limitada à participação como Administração Pública no exercício do Poder Executivo, ou numa definição mais jurídica, que tem unicamente o escopo de fazer cumprir a lei, com a característica do agere. O Estado também se faz presente quando produz o direito em sentido estrito, ou seja, quando positiva normas, bem como, quando dirime conflitos, através da jurisdição. Esta que na mais moderna definição é a "função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva." [1]

         Se o Estado deixa de praticar atos administrativos naquelas estreitas esferas onde atuava, deixando em seu lugar um ente privado, dotado das mesmas obrigações e com as mesmas responsabilidades, certo é que não poderia deixar de estender o conceito de tal ato, de forma a atingir também àquele particular, fazendo que juristas do calibre de HELLY LOPES MEIRELES definissem o ato administrativo como "a declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional." [2]

         Ora, na antiga concepção, a frase grifada não atingiria o enfoque que se pretende dar a este estudo, vez que sempre houveram entidades (em sentido amplíssimo) que fizeram as vezes do Estado, as quais podemos citar os órgãos da administração pública indireta, onde o Estado tem uma participação secundária. Todavia, neste modelo privatista de Estado, ou reducionista da atividade Estatal, ampliou-se a gama dos sujeitos que têm legitimidade para "fazer as vezes do Estado", e este é o motivo pelo qual o estudo das garantias fundamentais, no aspecto da evolução quanto a sua abrangência, seus sujeitos, enfim, a proteção do indivíduo e da sociedade contra atos praticados por estes agentes que substituem a atuação estatal, ou a ele se assemelham em razão de um poder legal ou de fato, merece ser revista.


3.As similitudes e diferenças entre a atuação pública e a privada. Análise evolutiva

         Se tomarmos em conta os aspectos históricos, traçando uma linha evolutiva no tocante à participação do Estado através de funções executivas próprias, poderemos notar um rumo de abandono de parte de tais atividades para, em contrapartida, a aglutinação de valores num Estado, mais garantidor do que executor de certos direitos.

         É claro que, quando o Estado garante a observação de um direito, está, de certa forma, sendo responsável pela execução do direito, até na concepção de ato administrativo acima colacionada. Mas não é o sentido de determinação ou imposição que é dado ao termo execução, mas execução no aspecto de realização, de operação mesmo. O Estado mostra-se cada vez mais incapaz de gerir uma gama muito grande de atividades, mostra-se ineficiente, lento e dispendioso. Por essas razões de ordem prática e por outras, que aqui veremos, o Estado caminhou, historicamente no sentido de uma total presença e influência na vida individual humana para uma distanciação da relação direta com o indivíduo, colocando em seu lugar um ente com maiores condições (operacionais, econômicas, administrativas etc.), de executar certos atos.

         Neste compasso, o Estado absolutista difere brutalmente do Estado Democrático de Direito não apenas pela questão ideológica, mas precisamente - no enfoque deste trabalho -, na participação do Estado nas relações diretas com o indivíduo e com a sociedade. O Estado moderno, posto como um Estado Democrático de Direito é um Estado garantidor de direitos, e não executor de atividades administrativas.

         Também é importante destacar que, nesta nova era da economia globalizada, determinadas pessoas jurídicas de direito privado, ganharam tamanha dimensão, tanto em recursos como em verdadeiro poder de direcionar, alterar e conduzir determinadas atividades, hoje vistas como essenciais, que estes entes passaram a assemelhar-se com o próprio Estado. KELSEN compara o Estado a uma corporação, visto ser este também "uma comunidade que é constituída por uma ordem normativa que institui órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, órgãos esses que são providos na sua função mediata ou imediatamente." [3]

         Tais corporações efetivamente agem com uma característica de preponderância em determinadas relações e, juntamente com a redução das funções administrativas do Estado, coloca-as numa forte e desequilibrada posição em relação àqueles que utilizam-se ou necessariamente sofrem pelos atos por elas praticados. Para melhor elucidar trazemos a exemplo os meios de comunicação que exercem um poder de fato realmente notável, tanto que HABERMAS fundamenta sua teoria numa "ação comunicativa" com os meios de comunicação em massa ocupando uma posição de grande destaque para formação do Direito.

         Outro exemplo visível desta mudança esta exatamente na privatização de setores que, até muito pouco tempo, eram considerados de interesse nacional. As telecomunicações, a distribuição de energia elétrica, alguns setores do sistema financeiro, entre outras tantas atividades, somente para citar as privatizadas em nossa pátria, são algumas funções onde a presença do Estado não se dá mais da forma que conhecíamos, mas de outra, agora apenas como garantidor de direitos e não como executor administrativo.

         Ocorre que esta garantia estatal não é perfeita, na medida em que os instrumentos postos à disposição da sociedade para fazer valer o regular exercício dos direitos não evoluiu no mesmo compasso com o que foram operadas as transformações sociais.

         Refere-se aqui às proteções instrumentais constitucionais contra atos da administração pública, ou de quem estiver no exercício de suas atribuições, que atinjam direitos fundamentais, precisamente no tocante à evolução do mandado de segurança.


4.Evolução histórica do instituto do mandado de segurança.

         Para a conclusão que se fará neste estudo é necessária uma passagem pela evolução histórica do instrumento posto à disposição da sociedade como forma de garantir a observância de seus direitos, principalmente no que se refere aos direitos fundamentais.

         A grande maioria dos juristas pátrios, e outros como EDUARDO COUTURE e MAURO CAPPELLETTI, atribuem a criação do mandado de segurança, na forma como hoje conhecemos, ao gênio brasileiro, que adaptou diversos institutos alienígenas dando-lhes a definição e utilização atuais.

         Se a criação no nomem iuris deveu-se a JOÃO MANGABEIRA com a inclusão do termo "mandado de segurança" na Constituição de 1934, pode-se afirmar que o instrumento teve seu nascedouro na conjunção de diversas fontes. As Ordenações Filipinas portuguesas, talvez sejam a mais longínqua delas. Naquelas normas, o soberano, através do juiz, emitia ordens para que a autoridade "segurasse" o requerente de seu direito, impedindo ou retardando a execução do ato administrativo. Isso ainda à época absolutista da monarquia lusitana.

         As seguranças reais somente eram dadas quando o agente agressor era um particular. Evidentemente, em pleno absolutismo real não se poderia imaginar um instrumento que fosse utilizado contra os atos do próprio soberano. Entretanto, embora com uma concepção de utilização diversa da hoje formulada, é esta a origem remota do instrumento que mais se assemelhou ao nosso mandado de segurança.

         É verdade que a origem do mandado de segurança, ou de um recurso que visasse a proteção de direitos ameaçados de lesão por ato ilegal teve inspiração nos direitos possessórios. O interdito, a manutenção e a reintegração de direitos têm, embora limitada, uma grande aproximação com o escopo do mandamus.

         Inegável portanto, conforme teoriza ALFREDO BUZAID, que o mandado de segurança teve como origem de seu escopo a tutela da posse e da propriedade, trazendo a visão privatista do Direito Romano, e disciplinando-a nas Ordenações Filipinas.

         Mais recentemente, o direito mexicano contribuiu em larga demanda para o surgimento do remédio. Foi no juicio de amparo mexicano que inspirou-se o Ministro MUNIZ BARRETO em 1922 para justificar, em pronunciamento feito no Congresso Jurídico realizado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a necessidade da implementação de um instrumento em nosso direito positivo, nos moldes daquele amparo. Ainda naquela época o amparo tinha uma forte conotação de direito possessório, notada pela utilização do termo "reintegrar o direito violado" na referida apresentação do e. ministro.

         Modernamente, o amparo mexicano guarda diferenças procedimentais importantes com relação ao mandado de segurança brasileiro, principalmente por prever a realização de uma audiência, onde se produzirá a prova oral, o que vai de encontro aos pressupostos do mandamus brasileiro, que coloca como condição a existência do direito líquido e certo, sendo este o que "se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração" [4]. Ou ainda, segundo HELY LOPES MEIRELES direito líquido e certo "é direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior, não é líquido nem certo, para fins de segurança."

         Certo que o sistema mexicano que introduziu o amparo para proteção dos direitos violados por atos do Estado, teve sua origem no projeto de Constituição elaborado para o Estado de Yucatam, em 1840, mas é inegável a influência do sistema americano para o controle dos atos estatais na concepção mexicana.

         Os anglo-saxões com seus writ’s também contribuíram para a criação e aperfeiçoamento de um sistema que visasse a restrição ou o impedimento da pratica de atos pelo ente público, que fossem violadores de direitos do cidadão.

         Os americanos também adotaram esta forma de concepção inglesa, onde podemos citar como marco histórico, o famoso caso Marbury X Madison onde o órgão judiciário fora suscitado para determinar que um órgão administrativo deixasse de praticar determinado ato, de modo a restabelecer, no dizer do requerente Marbury, seu direito a tomar posse em função administrativa.

         Embora, neste caso histórico, a pretensão não tenha obtido êxito, o que importou efetivamente foi que a Suprema Corte Americana entendeu haver a possibilidade de efetuar um controle dos atos do Estado pela via jurisdicional. E este marco histórico deu lugar ao início da discussão sobre o controle difuso dos atos normativos, ou seja, dos atos com força de imposição praticados pelo Estado, no exercício de suas funções, mas que ofendessem as normas constitucionais.

         O advento da Segunda Grande Guerra foi sucedâneo para o nascimento do Constitucionalismo, reforçando a necessidade do controle de constitucionalidade. O modelo austríaco idealizado por KELSEN em 1920, sensivelmente remodelado na Constituição de 1929, teve uma concepção diversa do modelo americano, nesse existe uma Corte Constitucional com funções específicas para efetuar o controle da constitucionalidade de forma concentrada. Com a evolução do sistema de controle concentrado, introduziu-se na Áustria e também no sistema alemão, um recurso de amparo, onde se admite provocar o órgão constitucional sobre a constitucionalidade de atos do poder público que firam, concretamente direitos fundamentais. Entretanto, o controle neste modelo adotado em quase toda a Europa, é feito por um órgão específico, concentrado num único órgão, que não é o órgão supremo do poder judiciário, mas uma Corte Constitucional, destacada do judiciário, e com funções restritas e exclusivas de proceder ao controle de constitucionalidade.

         O modelo de controle americano, apresenta uma concepção diferente onde os particulares podem provocar diretamente o Poder Judiciário a se manifestar sobre a aplicabilidade de normas que entenderiam incompatíveis com a Constituição. É o chamado controle difuso da constitucionalidade.

         O mandado de segurança, como hoje conhecemos somente tem lugar em razão da influência, predominante em nossa Constituição de 1824, do sistema americano de controle de constitucionalidade, ou seja, o sistema difuso ou por via de exceção. Mas o processo do juicio de amparo mexicano é, com as devidas adaptações, a fonte mais próxima do instituto do mandamus brasileiro.

         Atualmente nosso sistema de controle de constitucionalidade é misto, ou seja, admite o controle concentrado, qual seja o feito por um determinado órgão legitimado para este fim (no caso pelo C. Supremo Tribunal Federal, por meio do disposto no artigo 102, inciso I da Constituição de 1988), e que profere decisões com efeito erga omnes. Ao mesmo tempo, há o controle difuso que patenteou-se através da possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal, quando se "questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do estado for contra ela." (artigo 59, §1º, alínea "a" da Constituição de 1891). Na Carta Constitucional em vigor há previsão do controle difuso no artigo 102, inciso III.

         O sistema de controle difuso tem em seu seio o próprio fundamento do poder jurisdicional, portanto, é natural que o exercício do controle de constitucionalidade seja feito pelo órgão máximo do Poder Judiciário, o que não se aplica ao controle concentrado, que, em sua formulação original, caracteriza-se pela existência de um órgão com competência exclusiva para dirimir as questões de afronta à Constituição. Daí a sugestão feita por alguns juristas quando ainda da reunião em 1988 da Assembléia Nacional Constituinte em propor a criação de uma Corte Constitucional, independente do Poder Judiciário, incumbida do controle concentrado, proposta esta rejeitada pelo forte lobby dos magistrados que invocaram a tradição secular do Supremo Tribunal Federal nas funções que já desempenha.

         Veja-se portanto que o remédio heróico é um instrumento dos mais eficazes contra atos do Estado contra particulares, que possam violar direitos destes, representando uma salvaguarda constitucional (atualmente) capaz de impedir abusos, arbitrariedades, enfim, sendo um instrumento da manutenção do Estado de Direito.


5.Dos agentes capazes de praticar atos contra legem sujeitos ao controle judicial.

         É evidente que aqui não se pretende dar a amplitude que o sub-título induz, se desconsiderado seu estrito contexto. Os atos referidos que são contrários à lei em sentido amplo são aqueles capazes de originar um dano na esfera jurídica de alguém, através da negativa, da afronta ou da violação de direitos fundamentais tendo em vista a relação entre uma parte extremamente forte e grande, e outra relativamente pequena e insuficiente capacitada.

         Não é atoa que CARNELUTTI define a administração pública como uma grande parte, tão grande que tornava a outra extremamente pequena, permanecendo no entanto com a característica de parte, possuindo os mesmos direitos processuais da outra. Seria necessário então a criação de mecanismos que possibilitassem o equilíbrio das relações de forma a propiciar a estabilidade na relação subjetiva.

         É claro que qualquer pessoa pode praticar atos contrários à lei, entretanto, se esta "pessoa" dispõe de meios muito mais robustos para a prática de quaisquer atos, dispõe de condições organizacionais, financeiras, de alcance, exerce enfim, um certo poder, tanto de ordem legal como de ordem fática, que passa a ser merecedora de atenção do Estado de modo que sua atuação seja sempre sujeita a um tipo de controle.

         Evidente que se está falando do controle realizado pelo Poder Judiciário através dos diversos instrumentos garantidores dos direitos dos cidadãos. Mas - e ai vem a questão nodal do presente trabalho -, nos dias atuais, somente o Estado, com sua administração pública direta ou indireta, é quem detém esta característica de preponderância de poder que levou gerações de teóricos e doutrinadores a buscarem um instrumento capaz de por a salvo o indivíduo contra atos praticados sem a observância da legalidade ou da Constituição?

         Será que somente o Estado, quer por si próprio, quer por agentes que estejam executando funções de imperium podem praticar atos com notável preponderância de condições sobre o cidadão comum?

         É o Estado o único sujeito capaz de figurar passivamente nas ações constitucionais instrumentais que visem a resguardar, proteger, tutelar, enfim, os direitos fundamentais?

         Sobressaem-se inúmeros questionamentos sobre a atualidade dos instrumentos garantidores de direitos no tocante ao seu uso para fins de proteção em face de entes que não se confundem com o Estado, se tomada sua natureza, sua composição ou finalidade formal, mas têm com este grande similitude ao deterem condições tão avantajadas, tamanha robustez de recursos e meios à disposição, que o cidadão comum, o indivíduo detentor de direitos fundamentais, não possui instrumentos capazes de, com a mesma rapidez e eficiência, dar-lhe proteção imediata contra atos capazes de sufragar-lhe tais direitos.

         Ou seja, entes particulares ocupando funções de caráter público, ou entes particulares que, mesmo exercendo funções caracteristicamente privadas, possuam uma condição legal ou fática tal que os efeitos de seus atos possam acarretar danos nos direitos individuais fundamentais tão relevantes e tão imediatos que a busca por uma resposta ou um restabelecimento deste direito não possa sofrer os percalços de um processo ordinário comum, como os disponíveis atualmente para aforamento em face de entes privados.

         Com efeito, na sociedade moderna a relação com inúmeros entes privados espantosamente gigantes em sua composição, em seus recursos e em sua capacidade de influência direta na vida social dos cidadãos, e por conseguinte atingindo o campo delimitado de seus direitos fundamentais, faz aflorar a necessidade da criação ou um aperfeiçoamento de um sistema de garantias que contemple a proteção para relações jurídicas entre estes sujeitos.

         Necessário abrir-se um pequeno parênteses para que se tenha bem situado o efetivo estágio da evolução conceitual dos direitos fundamentais. Acompanhando o ideal da revolução francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, os direitos fundamentais estão em sua terceira geração, protegendo agora os direitos difusos, sejam estes o direito a um meio ambiente saudável e ao crescimento econômico, dentre outros. BRESSER PEREIRA os denomina de "Direitos Republicanos", inserindo também o direito que os cidadãos teriam de cobrar do Estado a correta utilização dos recursos financeiros governamentais. O mesmo autor traz a definição de uma nova cidadania, abarcando os direitos republicanos em sua plenitude.

         Muito bem, neste contexto, onde os chamados direitos republicanos, difusos ou ainda de "terceira geração" são protegidos, onde o Estado abandonou atividades que lhe eram pertinentes até muito pouco tempo; onde os recursos financeiros de certos serviços de interesse público não são mais destinados exclusivamente ao Estado, mas a particulares, detentores de uma força administrativa extremamente desproporcional em relação aos cidadãos comuns. Instala-se então a polêmica da existência, da abrangência e da eficácia dos instrumentos disponíveis para a proteção dos direitos fundamentais em relação a estes entes, que não o Estado, nem partes dele.


6.Mandado de segurança contra atos corporativos.

         Se CARL SCHMITT revisitasse HOBBES nos dias atuais, que em muito diferem dos de sua época principalmente nas relação econômicas e portanto nas relação de preponderância de parte a parte, talvez teríamos a presença não de um único LEVIATÃ, mas de um grupo que, unido, teria as mesmas características.

         É inevitável a dependência dos Estados a entes que são, até certo ponto, intangíveis ou não identificáveis, por exemplo: o mercado de capitais. O Brasil, nos dias atuais, é extremamente dependente das ocilações que o "mercado" impõe, com suas regras estapafúrdias (ou não, em raras vezes), mas sempre atendendo a um interesse próprio, restrito, embora difundido entre os seus membros. Poderia o chamado "mercado" ser o novo Leviatã.

         O Estado não detém a necessária distância que possa abstê-lo de relacionar-se de forma perniciosa com este tipo de "entidade", o que traz à sociedade uma total submissão aos atos de certas "corporações", quer sejam identificáveis como algumas empresas ou grupo de empresas com interesses extra nacionais, quer de certas "pessoas" ou reunião destas, impossíveis de serem apontadas individualmente como causadoras de perturbações no estado de direito das pessoas. Infelizmente ainda não se dispõe de suficiente evolução teórico-jurídica que possa viabilizar a criação de um sistema protetivo em relação a estes entes não identificáveis, como o "mercado", portanto somente podemos nos delimitar a um estudo contra aqueles que possam efetivamente ter a qualidade de sujeitos numa relação jurídica, in casu, as grandes corporações econômicas.

         É contra estas pessoas, corporação gigantescas com poderes às vezes mais amplos e mais irrestritos que certos Estados, e contra estes entes digamos atécnicamente "despersonificados" que o cidadão vê-se inteiramente desprovido de meios para fazer valer seus direitos fundamentais.

         Se um grande conglomerado de empresas resolve por fim a um determinado serviço ou majorá-lo de forma que lhe atenda aos interesses de seus acionistas, ou ainda pior, se o mesmo ente afrontar diretamente direitos fundamentais do cidadão desrespeitando por completo sua dignidade humana, este teria que padecer esperando a providência estatal, pois não dispõe de meios eficazes e ágeis, que de plano poderiam restabelecer seus direitos sufragados.

         Em se tratando de direito comparado, importa destacar que há países que admitem a impetração de recursos judiciais (semelhantes ao nosso mandado de segurança), contra atos de particulares, exatamente quando estes revestirem-se das qualidades já mencionadas alhures – parte extremamente grande em relação a um indivíduo ou um conjunto de indivíduos. Temos como exemplo o adotado na Costa Rica, onde é possível a impetração do amparo constitucional para a salvaguarda de direitos fundamentais, em face de entes particulares que detenham uma condição extremamente mais benéfica e que, por essa condição, reduzam a margem de atuação do indivíduo, dificultando-lhe a preservação e garantia dos direito fundamentais.

         A existência efetiva de um poder legal ou de fato que se sobrepõe ao indivíduo faz com que as mesmas razões que fizeram surgir o instrumento de amparo constitucional, e isso pode ser verificado na próxima história do instituto, apontem para a necessidade de uma reformulação dos dispositivos garantidores, de modo a dar-lhes alcançar a proteção dos direitos quando violados por entes particulares, no exercício de funções próprias do Estado, ou ainda em funções privadas onde o poder de fato seja evidente.

         Na Costa Rica, além de estar previsto o amparo contra particulares "é permitido quando – ainda realizando a função privada – o sujeito de direito privado se encontrar numa posição jurídica ou fática de poder em face do amparado, que faça com que os mecanismos processuais comuns sejam lentos ou ineficazes para tutelar o seu direito adequadamente." [5]

         Numa concepção atual de direitos fundamentais, um instrumento como o mandado de segurança com possibilidade de impetração em face de conglomerados econômicos seria um instrumento extremamente ágil, seria como vislumbrar-se a existência do mandado de segurança como hoje conhecemos numa época de imperialismo absolutista. Seria uma inovação tremenda.

         Há inúmeros casos cuja finalidade ampliada do remédio heróico traria uma enorme vantagem e uma garantia muito ampla aos cidadãos, uma das hipóteses seria na violação à honra perpetrada por um órgão de comunicação. O cidadão vitimado poderia impetrar mandado de segurança postulando a imediata publicação de errata, sanando-se a situação gravosa na mesma medida, com a mesma intensidade e com grande agilidade.

         A possibilidade de impetração contra grandes corporações também não elimina a possibilidade de aviamento em face dos particulares detentores de antigas funções atribuídas unicamente ao Estado. Aqui se refere aos setores privatizados.

         Se hoje é muito clara a lembrança de todos os setores recentemente privatizados, há de se cogitar que, sendo a jurisprudência uma das fontes do direito, e esta é mutável, ou seja, se no futuro, por força do entendimento jurisprudencial, passar-se a entender que o exercício de funções públicas não contempla por exemplo as telecomunicações, então se deixaria de viabilizar a impetração de mandado de segurança contra empresas deste ramo. Basta a evolução do conceito das atribuições estatais para se deixar de admitir a viabilidade do mandado de segurança contra inúmeros atos, já que a norma dispõe a possibilidade de impetração contra atos de "autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público." (artigo 5º, inciso LXIX, da CF/88).

         É preciso que os juristas tenham a preocupação de regular, pela formação de opinião da sociedade, as situação futuras, já que é as alterações na economia e nas relações do Estado com a sociedade vêm modificando-se a nível internacional, de forma assustadoramente rápida. Seria inimaginável na década de 70 que se privatizasse setores considerados vitais como as telecomunicações ou de distribuição de energia elétrica, pois eram vistos como intrínsecos à própria função estatal, indelegáveis.

         Atualmente, não se admite pensar em privatizar o setor da saúde, por exemplo, mas não estar-se-ia cometendo o mesmo equívoco de nossos antepassados ao duvidar-se de uma evolução social que admita a possibilidade de um serviço de saúde privatizado?

         Claro que com o passar dos anos as funções tidas como essenciais, ou próprias do Estado vão alterando-se e, não é impossível que dentro de alguns anos, ninguém mais admita ser uma função do Estado, por exemplo, prospectar petróleo, ou atuar na distribuição de energia elétrica, ou ainda, na educação.

         O que importa é que, no estagio atual do desenvolvimento, o sistema de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo não acompanhou a evolução das relações do Estado com a sociedade.


7.Aspectos jurídicos do procedimento e sua utilização

         Embora nossa Constituição tenha apresentado inovações na impetração do mandamus, a lei de regência dos procedimentos data de 1951 (Lei nº1.533), portanto, inadequada aos anseios deste século XXI. A atual Carta Magna ampliou a possibilidade de impetração estendendo-a não somente a autoridades como dispunha a retro citada lei federal, mas a quaisquer agentes de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (artigo 5º, inciso LXIX, CF).

         Não se pode negar que houve uma ligeira evolução, admite-se. Todavia esta ampliação da sujeição passiva da impetração não é suficiente para impedir as inúmeras violações cometidas por agentes que, embora não executem uma função precipuamente de interesse público, ferem, da mesma forma que feriria uma autoridade administrativa, os direitos fundamentais daqueles com que se relacionam.

         Não é necessário que se retome a enumeração das empresas e entes privados ou privatizados capazes de atingir de forma fulcral os direitos protegidos constitucionalmente pelo Estado. São inúmeras as corporações econômicas, as gigantes empresas privatizadas, enfim, de forma geral, empresas de domínio particular e interesses não compatibilizados com aqueles que seriam do Estado, mas que detém um poder extremo em relação aos cidadãos. São estas as pessoas que também deveriam estar sujeitas à impetração do mandamus.

         Em outras palavras, o mandado de segurança deveria ter aplicação para tutelar direitos fundamentais violados por organizações que detenham demasiada preponderância de meios em face do cidadão comum.

         Pode-se dizer que o sistema processual pátrio já dispõe de meios eficazes e rápidos, capazes de superar a inexistência de um remédio como o proposto neste trabalho, neste sentido o disposto no artigo 273 do Código de Processo Civil, através da antecipação dos efeitos da tutela.

         É forçoso admitir, como admite toda a majoritária doutrina, que o próprio fundamento contido no artigo 7º, inciso II da Lei nº1.533/51 traz os mesmos pressupostos para o deferimento da antecipação de tutela no procedimento ordinário. Mas, o procedimento a qual se submete o impetrante de um mandado de segurança e o que submete-se o autor de uma ação ordinária com pedido de antecipação de tutela é muito diverso.

         O mandado de segurança é meio cuja utilização é restrita e, neste sentido, cumpre destacar que neste enfoque de estudo, somente se pode pensar o mandado de segurança contra ato corporativo que viole (controle repressivo) direitos fundamentais (somente estes), não se dando a amplitude de possibilidades de defesa dos direitos infra constitucionais. Neste compasso, a impetração destina-se a coibir a manutenção ou perpetuação de atos violadores de direitos fundamentais.

         A propósito, no Novo Código Civil em seu Capítulo II, que trata dos "Direitos da Personalidade", especificamente em seu artigo 12 onde está disposto que "pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei." O dispositivo civil não distingue contra quem pode-se exigir a cessação da ameaça ou da lesão a direito da personalidade, mas explicita claramente que a cessação do ato lesivo a um direito fundamental do indivíduo, merece um tratamento ímpar, em razão de sua extrema relevância no ordenamento jurídico como um todo. O impedimento de consumação ou de continuação de lesões a direitos fundamentais ganha força no aspecto subjetivo, entretanto, não há a devida correspondência no âmbito do direito adjetivo. Não há instrumentos capazes de dar a garantia aos direitos fundamentais da pessoa se o violador de tais direitos for um particular – ao menos não na intensidade que o legislador civil pretendeu. Pergunta-se: quão eficaz seria a existência de um instrumento como o mandado de segurança contra ato de particular? Haveria uma grande efetivação assecuratória do direito insculpido no artigo 12 do Novo Código Civil.

         O remédio heróico é instrumento célere, sem dilação probatória, onde o direito se proclama de forma muito rápida. A rotina diária dos tribunais vem mostrando que os juizes decidem rapidamente as questões aviadas em mandados de segurança, tornando efetiva a busca pela tutela jurisdicional. Ao contrário, as demandas onde há uma grande dilação probatória têm seu julgamento definitivo sufocado pela enorme gama de atos a serem praticados.

         A inexistência de dilação probatória e a necessidade de prova robusta ab initio do direito invocado (direito líquido e certo) como pressuposto da formação da relação processual atinente ao mandado de segurança são requisitos que fundamentalmente divergem daqueles que seriam capazes de em tese, viabilizarem o deferimento de medida liminar antecipando os efeitos da tutela jurisdicional. A impetração como aqui proposta teria o condão de ampliar os sujeitos passivos do mandamus e não alterar sua formação procedimental.

         A finalidade do instrumento garantidor de direitos fundamentais estaria restrita a esses casos exclusivamente, obrigando o impetrante a buscar a via ordinária se não conseguisse provar seu direito líquido e certo, como se faz hodiernamente.

         O processo do mandado de segurança é muito eficiente, de modo que impossibilitar seu uso para proteção de direitos fundamentais contra atos de corporações detentoras de condições privilegiadas em face dos indivíduos seria como impedir a plena realização destes direitos.


8.Conclusão

         Na verdade, pode-se concluir que com as alterações da atuação do Estado em determinadas áreas, deixando este de ter uma participação como poder executivo, para apenas legislar sobre relações subjetivas que foram criadas com sua retirada de certas atribuições, não implica, de pronto, à total abstenção do Estado em tratar de questões ligadas à proteção dos direitos evolvidos nestas relações.

         Necessário que os instrumentos de proteção evoluam de forma a garantir a observância de direitos fundamentais. O mandado de segurança mostra-se um instrumento pronto para esta garantia, todavia, sendo merecedor de uma ampliação em sua utilização de modo a alcançar sujeitos que, com a alteração das atribuições do Estado, tornaram-se os agentes preponderantes de políticas de interesse público.

         A própria necessidade de proteção que fez surgir os instrumentos de amparo, pressupõe a existência de uma relação jurídica desproporcional, onde o Estado ocupava a posição mais elevada. Atualmente a evolução das sociedades traz uma nova figura numa relação bastante similar, a figura das corporações, que, num mundo globalizado, de Estados reduzidos e com suas atribuições privatizadas, ganham, em parte, a posição até então ocupada unicamente pelo Estado.

         A forte preponderância de interesses dessas corporações, aliada à evolução do conceito de atividades inerentes ao poder público, com a nítida abstenção de certas atividades - inclusive com a plena aceitação da sociedade -, demonstra a necessidade de iniciar-se um debate sobre a modificação ou a ampliação dos instrumentos que visam garantir a observância de direitos fundamentais.

         Como já dito, na Costa Rica há a possibilidade de impetração do amparo constitucional contra atos de particulares praticados em atribuições substitutivas da atividade estatal, como em atividades privadas, mas desde que os sujeitos detenham poder legal ou de fato por sobre o impetrante que lhe impeça, diminua, ou torne ineficaz as possibilidades de defesa de seus direitos fundamentais pelas vias ordinárias.

         Todo este trabalho nada tem de inovador se se pensar em termos históricos onde no Estado Absolutista, as Ordenações Filipinas admitiam a concessão de seguranças reais contra atos de particulares.

         Certo que as motivações dos dois exemplos são nitidamente diversas, e no Estado Democrático de Direito a possibilidade de impetração de mandado de segurança contra ato de corporação que viole ou ameace de lesão direitos fundamentais vem espelhar a plenitude das garantias jurídicas, numa nova concepção das relações de um Estado que caminha para o abandono da execução de atos administrativos strictu sensu para aprimorar-se na legiferação e na garantia de direitos por meio de instrumentos da jurisdição.

         A presença de "entidades" equivalentes (em certos aspectos) ao Estado, faz surgir a necessidade de uma regulação própria desses organismos, de forma a tentar inibir a sujeição dos indivíduos a interesses que desrespeitem seus direitos fundamentais garantidos pela Constituição. A ocupação das corporações transnacionais nas funções estatais ou em "condições de Estado" faz brotar a necessidade de reformas instrumentais.

         O Estado Democrático de Direito é um Estado garantidor de direitos, não se admitindo que um Estado assim se proclame como respeitador dos direitos, se não garantir em sua plenitude a observância dos direitos fundamentais, principalmente o direito à dignidade humana - supra sumo dos direitos fundamentais.

         Nosso ordenamento jurídico já possui a formação necessária para assimilar esta alteração, mas para isso seria necessário que os agentes da formação do direito demostrassem as mudanças nas relações sociais e estatais, certificando-se que o caminho de tais relações é diverso do tomado pelos instrumentos de garantia fundamentais. Há um nítido descompasso.

         Também os direitos evoluíram, já se fala nos direitos republicanos, direitos fundamentais que garantem o bom uso da coisa pública, o uso racional do meio ambiente e seus recursos, o uso adequado aos anseios sociais do capital do Estado, enfim, os direitos já adquiriram uma terceira dimensão, e em contrapartida, os instrumentos de garantia destes direitos permanecem os mesmos da década de 50, quando não se falava em direitos difusos, globalização, privatização e redução da participação do Estado em certas atribuições.

         É sabido que os direitos e as garantias fundamentais são intrinsecamente ligados de modo que nada adianta ter a um se não se tiver ao outro, ou seja, nada adianta haver a positivação de inúmeros direitos fundamentais se não se garantir, através de mecanismos eficientes, a efetiva observância de tais direitos. Portanto, a evolução dos direitos sem a evolução dos instrumentos de garantia é totalmente inócua, salvo para deixar clara a necessidade da evolução do outro.

         A proposta de ampliação da sujeição passiva do mandado de segurança contra atos corporativos que ameacem ou lesionem direitos fundamentais, representa a aceitação de um maior alcance do controle estatal e de um maior equilíbrio das relações jurídicas modernas.

         Se o gênio brasileiro foi capaz de dar ao mandado de segurança sua característica fundamental, discernindo-o do Habeas Corpus, será capaz de realizar este grande passo, mas não sem antes aprimorar as idéias, aperfeiçoando-as de forma a atender de maneira mais firme, as exigência do novo cidadão.


NOTAS

         01. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II.

         02. LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª ed. Ed. Malheiros. Pág. 82

         03. in TEORIA PURA DO DIREITO. Martins Fontes. 2000. Pág. 321.

         04. CAVALCANTI, Themistocles. Do mandado de Segurança. P. 83

         05. PÉREZ, CARVAJAL MARVIN. O Amparo e o Mandado de Segurança como meios de proteção dos direitos fundamentais... Tese de doutoramento - USP. 2000.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEÓLA, Luís Fernando. A evolução das garantias fundamentais. Mandado de segurança contra ato corporativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3737. Acesso em: 18 abr. 2024.