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Lei Gabriela Leite: a legalização da prostituição sob uma nova perspectiva no Direito Penal brasileiro

Lei Gabriela Leite: a legalização da prostituição sob uma nova perspectiva no Direito Penal brasileiro

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O presente estudo analisa as nuances do Projeto de Lei n. 4211/2012, que tem como objetivo regulamentar a atividade de profissionais do sexo. Explora, ainda, a relação entre o estigma da prostituição existente em nossa legislação.

RESUMO

O presente estudo analisa as nuances do Projeto de Lei n. 4211/2012, que tem como objetivo regulamentar a atividade de profissionais do sexo. Busca, através de um estudo comparado entre o atual Código Penal Brasileiro e a redação atual do Projeto de lei, quais as principais mudanças a serem implementadas no ordenamento jurídico nacional. Explora, ainda, a relação entre o estigma da prostituição existente em nossa legislação, como fruto de uma construção social nacional patriarcalista e preconceituosa.

Palavras-chave: Prostituição. Dignidade da pessoal humana. Direito Penal Brasileiro.

Não existe outra via para a solidariedade humana senão a procura e o respeito da dignidade individual.

(Pierre Nouy)


1 INTRODUÇÃO

Aristóteles (384 - 322 a.C.) afirmou certa vez que “o homem é um animal social”, no intuito de explicar a necessidade do convívio humano em sociedade. Assim como todo ser que convive em comunidades, os humanos são influenciados por fatores do seu nicho social, que exercerão uma forte influição na formação do seu caráter social.

O machismo, o patriarcalismo e o moralismo estão presentes para comprovar o quão os seres humanos são frutos de fatores sociais herdados e construídos ao longo da evolução histórica. As ideias de que o homem exerce domínio sobre a mulher, semeada na sociedade desde Roma Antiga, com o pater familiae; e a influência da igreja católica sobre a formação do Estado Ocidental – propagando a teoria da monogamia de Santo Agostinho e a concepção que a mulher é fruto de uma costela do homem – inseriram estas ideologias em nossa sociedade, que perduram até a atualidade, apesar das lutas e movimentos tendentes a abolir comportamentos.

A prostituição é apenas uma vertente social que sofre com tais preconceitos ainda existentes. Apesar de claramente presente no Brasil e no mundo, as profissionais do sexo ainda são vistas como escória social, recebendo tratamento político e social incompatíveis com a dignidade que merecem. Tal fato, conforme veremos no decorrer do estudo, somente piora as condições das profissionais do sexo no Brasil, uma vez que as priva de tratamento adequando nas mais variadas vertentes, como a tratamentos de saúde, direitos trabalhistas, entre outros. O que se faz, então, é renegar uma situação que já é fato em nosso país, por meros anseios (falso) moralistas que ainda permeiam nossa sociedade.

Deste modo, como um modo de estimular debates sobre o tema de relevante importância para o cenário social e jurídico nacional, o presente estuda busca, através de uma análise da conjectura social atual, da doutrina dominante e do Projeto de Lei 4.221/2012, analisar as possíveis mudanças implementadas com a publicação do referido Projeto na sociedade brasileira, utilizando, para isto, um viés jurídico e sociológico.


2 O PROJETO DE LEI ORDINÁRIA N. 4.211/2012

Em 12 de julho de 2012, foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 4.211/2012, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys, do Partido Socialista/RJ, com o propósito de regulamentar a atividade dos profissionais do sexo no Brasil. Em regime de tramitação ordinária a pouco menos de três anos da data de elaboração deste artigo, o Projeto de Lei teve sua última ação legislativa em 06 de fevereiro de 2015, quando foi desarquivado nos termos do artigo 105 do RICD, pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.[1]

O assunto tem fomentado calorosas discussões na Casa Legislativa, na mídia nacional e nas redes sociais, trazendo consigo uma pluralidade de opiniões, mobilizando tanto os parlamentares mais conservadores (em regra, representantes das classes religiosas) como os mais liberais, que defendem tal projeto como uma forma de cumprimento do direito fundamental do “livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”, previstos no art. 5º, XIII da nossa Carta Maior.

Cabe ressaltar que o autor do Projeto de Lei ora analisado propôs também sua intitulação como “Lei Gabriela Leite”, em homenagem à profissional do sexo de mesmo nome, militante dos Direitos Humanos e da causa dos profissionais do sexo desde o final da década de 70. O próprio Jean Wyllis afirma que o Projeto de Lei foi fruto de anseios sociais da própria Gabriela Leite, que desde a década de setenta vem lutando no combate a descriminalização das profissionais do sexo[2]. Para contextualizar o assunto e fornecer substratos mais concretos que nos permitam discutir a proposição da nova lei, optamos como ponto de partida a peculiar trajetória de vida da homenageada.


3 BREVE HISTÓRICO DE GABRIELA LEITE: SUA IMPORTÂNCIA PARA O PROJETO DE LEI 4.211/2012 E AS LUTAS SOCIAIS EM FAVOR DAS PROFISSIONAIS DO SEXO

Gabriela Silva Leite nasceu em 22 de abril de 1951, em São Paulo. Durante o regime militar, cursava faculdade de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e trabalhava como secretária em um escritório da Capital Paulista. Sentia-se particularmente privilegiada por frequentar círculos da boemia intelectual paulistana.

Abandonou o curso universitário e movida pelo sentimento de fazer sua própria revolução começou a trabalhar como prostituta nos anos 70 e 80 na Boca do Lixo em São Paulo, passando pela Zona Bohemia em Belo Horizonte, até se estabelecer na Vila Mimosa no Rio de Janeiro, onde decidiu começar a colocar em prática, de modo mais sistemático, a defesa dos direitos das prostitutas. O site do movimento “Um beijo para Gabriela” afirma que ela “iniciou trabalho nacional de organização da categoria, a partir da desconstrução de representações socialmente aceitas sobre a prostituição, dando-lhe novos sentidos e buscando o seu reconhecimento como profissão”.[3] A queda do regime militar fomentava o gosto pela militância, iniciada em 1979, combatendo as atitudes arbitrárias e violentas por parte do Estado, através da Polícia do Estado de São Paulo, contra prostitutas e travestis.

Em 1987, Gabriela Leite ajudou a organizar o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas. Em 1991, fundou a Organização Não Governamental “Davida”, que pretende promover a cidadania das mulheres com ações nas áreas de educação, saúde, comunicação e cultura, fomentando políticas públicas para o fortalecimento da cidadania das prostitutas, mobilização e organização da categoria para a promoção de seus direitos. Em 2005, criou a “Daspu” – redução de “Das putas” e um jogo com o nome “Daslu”, marca internacionalmente conhecida - uma grife feminina pensada para gerar visibilidade e recursos para os projetos da ONG “Davida”, realizando desfiles em várias cidades do país em busca de projeção nacional, conseguiu que a moda Daspu obtivesse, inclusive, repercussão internacional.

Em 2009, lançou o livro intitulado “Filha, mãe, avó e puta: a história da mulher que decidiu ser prostituta”. Lê-se na primeira página:

Adoro homens, gosto de estar com eles, e não conheço homem feio. Outra coisa que adoro é falar o que penso, sem papas na língua. Quem ler este livro vai perceber isso.Existe uma terceira coisa que eu prezo muito, talvez a que mais prezo, aliás, que é a liberdade, liberdade de pensar diferente, de se vestir diferente, de se comportar diferente (2009, p. 1).

O trecho citado resume de modo sucinto quais os objetivos das lutas de Leite, que ultrapassavam a defesa das profissionais do sexo: a tutela da liberdade individual. Para ela, seus movimentos não deveriam se restringir à defesa das prostitutas, apesar de ser essa a bandeira principal levantada por ela. Deveria ir além, defendendo o direito à liberdade de cada um de ser feliz do modo que bem entender.

Gabriela teve duas filhas, uma neta e ajudou a criar o filho do marido, o jornalista Flávio Lens, mantendo-se ativa na militância intelectual através de palestras, eventos, alguns inclusive a convite do Ministério da Saúde e do Exército Brasileiro. Leite faleceu no Rio de Janeiro, às 19 horas do dia 10 de outubro de 2013, vítima de câncer de pulmão.

De forma objetiva e pontual, como um modo de introduzir alguns de seus pensamentos mais importantes acerca da prostituição, destacamos alguns argumentos defendidos por Gabriela Leite, transcrevendo trechos de entrevista concedida ao Programa Roda Viva e publicada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) em 02 de junho de 2009, dia internacional da prostituta. Entender a forma de pensar da mulher que pode vir a dar nome a uma lei apresenta grande utilidade para que se discuta a regulamentação da prostituição no Brasil.

A prostituição no Brasil não é crime. Crime é manter casa de prostituição. E como tudo que é proibido cria máfias, existe uma máfia muito grande no meio dos chamados exploradores da prostituição, que não pagam direito nenhum para as prostitutas. Então, a gente (sic) está lutando para tirar do Código Penal esses senhores e senhoras, para que eles assumam os seus deveres com as prostitutas. E nada impedindo também que a prostituta consiga, como autônoma, pagar todos os seus impostos e também receber os seus direitos.

[...]

Eu acho que a princípio é muito boba essa história de querer salvar as pessoas da prostituição. É de uma pretensão imensa. E salvar o quê? As pessoas fazem suas opções, às vezes as opções são menores, às vezes um “pouquinho” maiores, mas as pessoas fazem.

[...]

A questão da prostituição deve estar inserida dentro das questões da sexualidade, das políticas da sexualidade, dos direitos sexuais... E a prostituição, na minha opinião, é um direito sexual.

[...]

E, de mais a mais, as pessoas esquecem que as prostitutas estão lá no seu trabalho, trabalhando, porque tem alguém que vai lá procurar elas. Então existe demanda, existe na sociedade. E para mim a grande história é sair debaixo do tapete, se mostrar e dizer: olha, eu sou uma delas e estou aqui, sou uma mulher inteirona, como qualquer outra mulher.”


4 O SURGIMENTO DA BUSCA PELA REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL: A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Primordialmente, deve-se compreender que a prostituição não é crime. Ilegais são as casas de prostituição, que dão margem aos mais diversos tipos de abusos, desencadeando uma cadeia de exploração, corrupção e violência. A ideia defendida por Gabriela Leite há décadas tem ganhado corpo, buscado consolidação teórica em princípios basilares do Direito contemporâneo, mobilizado a opinião pública e, como esperado, incomodando muito as classes conservadoras que veem o direito e a sociedade de modo estacionário, que não deve acompanhar os avanços sociais.

Invoca-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, exigindo da sociedade contemporânea um Direito que respeite e caracterize as pessoas como sujeitos de tais prerrogativas independente de qualquer fator, sem fazer qualquer distinção de território, cor, religião, país, com especial respeito à autonomia de sua vontade. JACINTHO (2006, p. 31) afirma com exatidão que:

Em síntese apertada, podemos dizer que a dignidade humana está sendo construída não apenas como uma ideia abstrata que deve guiar o trabalho de interpretação do direito, ou de orientar a atividade legiferante. É um valor supremo, e, como tal, adquire foros de obrigatoriedade, não apenas pela sua carga axiológica, mas principalmente porque se consubstancia através de normas jusfundamentais [...].

SARLET (2001, p. 41) aborda de modo claro como o princípio da dignidade humana é inerente à pessoa, independente de suas escolhas, ao afirmar que ela é uma qualidade irrenunciável e inalienável da pessoa humana, de modo que é impossível condicionar a dignidade à determinada pretensão pessoal. SANTANA (2011, p. 4) define bem a aplicabilidade deste princípio, ao afirmar, com base no pensamento kantiano, que tal dignidade é um ideal que supera as distinções convencionais da sociedade.

Há quem aduza ao Princípio da Máxima Efetividade dos Direitos Fundamentais como base para criar novas normas que protejam as condutas dos profissionais do sexo, no intuito de efetivar o disposto em nossa Carta Magna. Tal fundamentação se demonstra acertada, uma vez que, conforme dispõe SILVA (2005, p. 290) o direito social ao trabalho é uma condição necessária à plena efetividade da dignidade da pessoa humana e a uma existência digna, se desdobrando tal fato na necessidade do Estado conceder diversos direitos que asseverem a realização de qualquer trabalho, emprego ou ofício de modo decente.

Em 1997, a Comissão de Trabalho, na Câmara dos Deputados, analisou o Projeto de Lei n. 3.436/1997 do deputado Wigberto Tartuce (PSDB-DF) que propunha a definição de regras para o exercício da atividade e a garantia do direito à aposentadoria pelo Instituto Nacional de Seguridade Social, às profissionais do sexo brasileiras.  Como resultado inequívoco das transformações sociais anunciadas, a prostituição passou a constar na Classificação Brasileira de Ocupações de 2002 (CBO) como um ofício legal e assim permanece.

O Código Brasileiro de Ocupações de 2002, regulamentado pela portaria do ministério do trabalho nº 397, de 09 de outubro de 2002, para uso em todo território nacional. Regulamenta a seguinte forma, os profissionais do sexo.

[...]

CBO 5198: Profissionais do sexo. CBO 5198-05 - Profissional do sexo - Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do sexo, Transexual (profissionais do sexo), Travesti (profissionais do sexo).

A classificação cita ainda os incisos abaixo:

 I – Condições gerais de exercício trabalham por conta própria, na rua, em bares, boates, hotéis, rodovias e em garimpos, atuam em ambientes a céus abertos, fechados e em veículos, horários irregulares. No exercício de algumas das atividades podem estar expostas à inalação de gases de veículos, a poluição sonora e a discriminação social. Há ainda riscos de contágios de DST e maus – tratos, violência de rua e morte.

II – Formação e experiência, para o exercício o profissional requer-se que os trabalhadores participem de oficinas sobre o sexo seguro, oferecidas pelas associações da categoria. Outros cursos complementares de formação profissional, como, por exemplo, curso de beleza, de cuidados pessoais, de planejamento de orçamento, bem como cursos profissionalizantes para rendimentos alternativos também são oferecidos pelas associações, em diversos Estados. O acesso à profissão é livre aos maiores de dezoitos anos; a escolaridade média está na figura de quarta a sétima séries do ensino fundamental. O pleno desenvolvimento das atividades ocorre após dois anos de experiência.

III – ÁREAS DE ATIVIDADES:

A - Batalhar programa; B - Minimizar as vulnerabilidades; C - Atender Clientes; D - Acompanhar Clientes; E - Administrar orçamentos; F - Promover a organização da categoria; G - Realizar ações educativas no campo da sexualidade .

Outro projeto que tramitou entre 1998-2003, que dispunha sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprimia do Código Penal os Artigos 228, 229 e 231, defendido pelo movimento organizado de prostitutas e encaminhado pelo Deputado Federal Fernando Gabeira (Partido Verde), recebeu parecer contrário da Câmara, em 2007, curiosamente, no mesmo ano em que o Ministério da Cultura liberou aproximadamente quatro milhões de reais para a produção cinematográfica da biografia de uma “garota de programa”. Um tanto contraditório.

O projeto de lei apresentado em 2012 dialoga com a Lei alemã que regulamenta as relações jurídicas das prostitutas (Gesetz zur Regelung der Rechtsverhältnisse der Prostituierten - Prostitutionsgesetz – ProstG) e com o PL 4.244/2004, do ex-Deputado Eduardo Valverde, que saiu de tramitação a pedido do autor; além de atender às reivindicações dos movimentos sociais que lutam por direitos dos profissionais do sexo.

Os movimentos sociais buscaram pressionar a aprovação da proposta antes de 2014, argumentando o aumento da exploração sexual durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016[4], buscando, em um caráter de urgência, a regulamentação das casas onde são prestados serviços sexuais. Ocorre que tal argumento não foi suficiente para fazer o Projeto ser votado antes da Copa do Mundo de 2014.

Defendendo sua propositura e a celeridade no processo legislativo, argumenta o Deputado Federal Jean Wyllys (documento online, não paginado) que a prostituta é marginalizada e tem um estigma negativo, pois geralmente a sua figura está atrelada às casas de prostituição – prática considerada criminosas em nosso país. Afirma ainda que a prostituição é um fato que não pode ser eternamente renegado pelo Estado Brasileiro. Prossegue o Deputado autor do Projeto de Lei afirmando:

Mas esse projeto tem um objetivo maior, que é garantir dignidade às profissionais do sexo, reconhecer seus direitos trabalhistas. Atualmente, elas não contam com dignidade, são exploradas por redes de tráfico humano, por cafetões e por proxenetas. Por que isso acontece? Porque a prostituição não é crime no Brasil, mas as casas de prostituição são. E são poucas as prostitutas que trabalham de maneira absolutamente autônoma, sem precisar de um entorno e de relações. Então, a maioria delas acaba caindo em casas que operam no vácuo da legalidade. O projeto quer acabar com isso. Garantir, portanto, direitos trabalhistas e uma prestação de serviço em um ambiente absolutamente seguro. Outro objetivo do projeto é o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Um erro muito cometido pela imprensa, um erro comum, é falar em prostituição infantil. Não existe prostituição infantil. A prostituição é uma atividade exercida por uma pessoa adulta e capaz. Se uma criança faz sexo em troca de dinheiro, em troca de objetos, seja lá o que for, esta criança está sendo abusada sexualmente, e exploração sexual é crime. Atualmente, muitas crianças são exploradas em casas de prostituição, justamente porque essas casas são ilegais, elas não têm fiscalização. Quando a polícia consegue investigar uma casa, o policial acaba recebendo propina. E as prostitutas adultas não podem sequer denunciar. Se denunciarem, o proxeneta mata. É uma situação que não pode continuar. O que pode resolver este estado de coisas é um projeto que regulamente a atividade das prostitutas e torne legais as casas de prostituição.[5]

Assim, vemos que a regulamentação da profissão do sexo e as alterações apresentadas para o Estatuto Repressivo refletem também a preocupação eminente com o tráfico de pessoas, a exploração sexual e o turismo sexual. O Brasil ocupa posição de crescimento econômico e que sediou e vai sediar dois grandes eventos esportivos que atraem milhões de turistas. A regulamentação da profissão do sexo permitirá maior grau de fiscalização pelas autoridades competentes, além de possibilitar e até mesmo incentivar o Poder Executivo a direcionar políticas públicas para esse segmento da sociedade.


5 A IMPORTÂNCIA JURÍDICA E SOCIAL DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE PROSTITUIÇÃO E EXPLORAÇÃO SEXUAL

Impor a marginalização do segmento da sociedade que lida com o comércio do sexo é permitir que a exploração sexual aconteça, pois atualmente não há distinção entre a prostituição e a exploração sexual, sendo ambos marginalizados e não fiscalizados pelas autoridades competentes. Regulamentar a prática da prostituição e tipificar a exploração sexual para que esta sim, seja punida e prevenida, é condição essencial para a redução dos danos sociais e, sobretudo, violação dos direitos das profissionais do sexo.

A exploração sexual se conceitua pela apropriação total ou maior que 50% do rendimento da atividade sexual por terceiro(s); pelo não pagamento do serviço sexual prestado voluntariamente; ou por forçar alguém a se prostituir mediante grave ameaça ou violência. É crime previsto no Código Penal – mais precisamente em seus artigos 229 e 230 - e se tipifica independente da maioridade ou da capacidade civil da vítima, devendo, contudo, ser penalizado mais severamente no caso da vítima ser menor de dezoito anos, absolutamente ou relativamente incapaz, ou ter relação de parentesco com o criminoso.

A exploração sexual - quando a vítima é menor de dezoito anos - é tipificada como crime hediondo tanto pelo Código Penal, nos artigos 214 e 218, quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, dos artigos 240 ao 241-E. O exercício da atividade do profissional do sexo deve ser voluntário e diretamente remunerado, podendo ser exercido somente por absolutamente capazes, ou seja, maiores de idade com plenas capacidades mentais.

 O profissional do sexo é o único que pode se beneficiar dos rendimentos do seu trabalho. Consequentemente, o serviço sexual poderá ser prestado apenas de forma autônoma ou cooperada, ou seja, formas em que os próprios profissionais auferem o lucro da atividade.  Há quem critique a expressão “prostituição de crianças e adolescentes”. Trata-se, isso sim, de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes e se tipifica como crime severamente punido pelo Código Penal.

Na grande maioria das cidades brasileiras os trabalhadores do sexo sujeitam-se a precárias condições de trabalho, sofrem com o envelhecimento precoce e com a falta de oportunidades da carreira, que cedo termina. Daí a necessidade do direito à Aposentadoria Especial, consoante o artigo 57 da Lei 8.213/1991, com redação dada pela Lei nº 9.032/1995.

O autor da Lei Gabriela Leite argumenta que para existir coerência com sua proposição, é necessário que a redação atual do Código Penal, dada pela Lei nº 12.015/2009, seja modificada em alguns de seus artigos. Os artigos 228 e 231 do Código Penal utilizam a expressão “prostituição ou outra forma de exploração sexual” equiparando a prostituição a uma forma de exploração sexual. DELMANTO et al (2010, p. 713) afirma que o texto do artigo 228 já sofreu alterações, “que antes era apenas “Favorecimento da prostituição”, foi alterada para “Favorecimento da prostituição e outra forma de exploração sexual”, pela Lei n. 12.015/2009”.

O projeto de lei em questão visa justamente distinguir esses dois institutos visto o caráter diferenciado entre ambos; o primeiro sendo atividade não criminosa e profissional, e o segundo sendo crime contra dignidade sexual da pessoa. Por isso, nos institutos legais, propõe-se a alteração da expressão por “prostituição ou exploração sexual”. BITTENCOURT (2004, p. 922) afirma que o objetivo do artigo 228 é “evitar o incremento e o desenvolvimento da prostituição”, uma vez que tal atividade atenta contra a moralidade pública sexual. Observa-se que o doutrinador, em sua análise, acaba por confundir os institutos da prostituição e o da exploração sexual, o que não pode ser realizado.

Vejamos determinados pontos em que o Projeto de Lei insere tais mudanças no Estatuto Repressivo nacional:

Redação atual:

Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: [...]

[...]

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro: [...]

Redação conforme a proposta:

Art. 228. Induzir ou atrair alguém à exploração sexual, ou impedir ou dificultar que alguém abandone a exploração sexual ou a prostituição: [...].

[...]

Art. 231. Promover a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro: [...].

O artigo 229 se refere a crime de “casa de prostituição”. No entanto, o tipo penal menciona a expressão “exploração sexual” e não prostituição. A alteração proposta só alcança o título do artigo, visto que prostituição não é exploração sexual; o crime de “casa de exploração sexual” se tipifica pelo próprio caput atual do artigo 229; e a casa de prostituição não é mais crime tipificado uma vez que a prostituição se torna profissão regulamentada e poderá ser exercida de forma autônoma ou cooperada.

Redação atual:

Casa de prostituição

Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: [...].

Redação conforme a proposta:

Casa de exploração sexual

Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: [...].

Este Projeto de Lei é mais um instrumento de combate à exploração sexual tendo em vista o caráter punitivo da prática. As casas de prostituição, onde há prestação de serviço e condições de trabalhos dignas, não são mais punidas, ao contrário das casas de exploração sexual, onde pessoas são obrigadas a prestar serviços sexuais sem remuneração e são tidas não como prestadoras de serviço, logo, sujeitos de direitos, mas como objeto de comércio sexual; essas casas, sim, serão punidas.

Além disso, a descriminalização das casas de prostituição deve obrigar a fiscalização, impedindo a corrupção de policiais, que cobram propina em troca de silêncio e de garantia do funcionamento da casa no vácuo da legalidade; e promover melhores condições de trabalho, higiene e segurança.

A vedação às casas de prostituição existente no texto legal atual facilita a exploração sexual, a corrupção de agentes da lei e, muitas vezes, faz com que essas casas não se caracterizem como locais de trabalho digno. As casas funcionam de forma clandestina a partir da omissão do Estado, impedindo assim uma rotina de fiscalização, recolhimento de impostos e vigilância sanitária. Por isso, somente deve ser criminalizada a conduta daquele que mantém local de exploração sexual de menores ou não e de pessoas que, por enfermidade ou deficiência, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato.

O termo “exploração sexual” foi colocado no lugar de “prostituição alheia” no artigo 230 porque o proveito do rendimento de serviços sexuais por terceiro é justamente a essência da exploração sexual. Ao contrário, a prostituição é sempre serviço remunerado diretamente ao prestador.

Redação atual:

Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: [...].

Redação conforme a proposta:

Art. 230. Tirar proveito de exploração sexual, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: [...].

A “facilitação” da entrada no território nacional ou do deslocamento interno de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual deve ser criminalizada conforme proposta dos artigos 231 e 231-A. Optou-se pela retirada da expressão “prostituição” porque a facilitação do deslocamento de profissionais do sexo, por si só, não pode ser crime. Muitas vezes a facilitação apresenta-se como auxílio de pessoa que está sujeita, por pressões econômicas e sociais, à prostituição. Nos contextos em que o deslocamento não serve à exploração sexual, a facilitação é ajuda, expressão de solidariedade; sem a qual, a vida de pessoas profissionais do sexo seria ainda pior.

Não se pode criminalizar a solidariedade. Por outro lado, não se pode aceitar qualquer facilitação em casos de pessoas sujeitas à exploração sexual, principalmente se há vulnerabilidades especiais expostas nos incisos abaixo transcritos.

Redação atual:

Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: [...].

Redação conforme a proposta:

Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para ser submetido à exploração sexual: [...].

Todas as modificações apresentadas na propositura em destaque objetivam tirar os profissionais do sexo do submundo, trazendo-os para o campo da licitude e garantindo-lhes a dignidade inerente a todos os serem humanos. Tipificar a exploração sexual diferindo-a do instituto da prostituição torna-se mister para combater o crime, principalmente contra crianças e adolescentes.


6 CONCLUSÕES

Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil figuram o da erradicação da marginalização (art. 3º, inciso III, da Constituição Federal) e o da promoção do bem de todos (art. 3º, inciso IV, da mesma Carta). Além disso, são invioláveis, pelo artigo 5º da Carta Magna, a liberdade, a igualdade e a segurança. O atual estágio normativo - que não reconhece os trabalhadores do sexo como profissionais - padece de inconstitucionalidade, pois gera exclusão social e marginalização de um setor da sociedade que sofre preconceito e é considerado culpado de qualquer violência contra si, além de não ser destinatário de políticas públicas da saúde. A prostituição existe no mundo real, sempre existiu e vai continuar existindo. Não é à toa que os conhecimentos populares atribuem à prostituição a característica de profissão mais antiga do mundo.

Apesar de sofrer exclusão normativa e ser condenada do ponto de vista moral, religioso ou dos “bons costumes”, se mantém como uma expressão do comportamento e da sexualidade humana desde os primórdios da existência humana.

É de um falso moralismo, causador de grandes injustiças sociais, a negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de contradição causadora de marginalização e de violação de direitos de muitas pessoas merecedoras de dignidade. Trata-se de justiça social.

Verifica-se assim a potencialidade de mudança na proposta apresentada, buscando efetivação da dignidade humana contra a hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento.


REFERÊNCIAS

BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei ordinária PL 4.211/2012. Regulamenta a atividade de profissionais do sexo. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899. Acesso em: 14 set. 2014.

BITTENCOURT. Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

Classificação Brasileira de Ocupações. Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: < http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf>. Acesso em: 17 set. 2014.

DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade Humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2006.

LEITE, Gabriela. Filha, Mãe, Avó e Puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. São Paulo: Abril, 2009.

LEITE, Gabriela. Entrevista de Gabriela Leite ao Programa Roda Viva. TV Cultura, 01 jun. 2009. Entrevista a Heródoto Barbeiro, Kátia Mello, Carla Gullo, Sérgio Torres, Margareth Rago e Carmen Amorim. Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/723/gabriela%20leite/entrevistados/gabriela_leite_2009.htm. Acesso em: 17 set. 2014.

SANTANA, Nathália Macêdo de. O princípio da dignidade humana e sua relação com o direito penal. Revista de Direito UNIFACS. Salvador, n. 127, p. 01 - 29, jan. 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26 ed. São Paulo: Método, 2005.


[1] Projeto de Lei Ordinária n. 4211/2012. Projetos de Leis e outras proposições. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551899>. Acesso em 27 mar. 2015.

[2] NANÔ, Fabiana. Deputado quer aprovar até a Copa Projeto de Lei que regulariza a prostituição no Brasil. UOL, 15 jan. 2013. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/01/15/deputado-quer-aprovar-ate-a-copa-do-mundo-projeto-de-lei-que-regulariza-a-prostituicao-no-brasil.htm>. Acesso em: 24 mar. 2015.

[3] Um beijo para Gabriela. Disponível em: < http://www.umbeijoparagabriela.com/?page_id=293>. Acesso em: 27 fev. 2015.

[4] Segundo estudo elaborado pela Organização Não Governamental Childhood.com, durante a Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul, se registraram – no período de dois meses entre as chegadas das delegações e o término do evento, um aumento de 63% nos casos de exploração infantil (20 mil ocorrências) e um aumento de 83% na exploração de mulheres, o que equivale a 73 mil casos de abusos. O mesmo aumento vertiginoso foi verificado na Alemanha, no período da realização do seu Mundial de Futebol, em 2006, sendo constatado um aumento de 28% na exploração de crianças e de 49% na exploração de mulheres. Para mais informações, acesse: DIAS, Otávio. Exploração sexual de crianças: países-sede tiveram grande aumento de registros durante os eventos esportivos. BrasilPost. 23 mar. 2014. Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/2014/03/23/prostituicao-infantil_n_5018402.html>. Acesso em: 14 fev. 2015.

[5] NANÔ, Fabiana. Deputado quer aprovar até a Copa Projeto de Lei que regulariza a prostituição no Brasil. UOL, 15 jan. 2013. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/01/15/deputado-quer-aprovar-ate-a-copa-do-mundo-projeto-de-lei-que-regulariza-a-prostituicao-no-brasil.htm>. Acesso em: 24 mar. 2014.


Autores

  • Lucas Bezerra Vieira

    Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2015), inscrito na OAB/RN sob o n.º 14.465.

    Ex-presidente e atual membro da Comissão de Direito da Inovação e Startups da OAB/RN.

    Autor do livro “Direito para Startups: Manual jurídico para empreendedores” (ISBN 978-85-923408-0-3); e criador do site “Direito para Startups“, um dos primeiros portais do Brasil especializados na temática.

    Coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do movimento Livres.

    Formação em Proteção de Dados e Data Protection Officer pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ.

    Advogado com atuação especializada no assessoramento jurídico empresarial, com foco em startups, empresas digitais e de tecnologia. Possui em seu card de clientes startups de renome nacional, participantes de programas de fomento ou aceleração como Endeavor Scale Up, Shark Tank Brasil, Inovativa Brasil, Estação Hack from Facebook, ACE Startups e grandes fundos de investimentos, entre outros.

    Mentor legal do Programa Conecta Startup Brasil, um dos maiores programas de aceleração de startups do Brasil (Softex) e do Distrito, maior ecossistema independente de Startups do Brasil.

    Palestrante e autor de artigos publicados em periódicos científicos, como também de artigos publicados em grandes portais nacionais (Estadão, Jota, Conjur, Migalhas, Jornal do Comércio…).

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  • Reginaldo Antônio de Oliveira Freitas Júnior

    Reginaldo Antônio de Oliveira Freitas Júnior

    Doutor em Ciências Médicas, Área de Concentração Tocoginecologia, pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (2003). Atualmente é Professor Associado II do Departamento de Tocoginecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa Alberto Santos Dumont. Graduando do curso de Direito da UFRN.

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