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Transexuais: a superação da biologização como pressuposto para o respeito à identidade de gênero

Transexuais: a superação da biologização como pressuposto para o respeito à identidade de gênero

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Esse artigo pretende desnaturalizar a visão biologizante que o Direito tem e expõe a necessidade de optar pela subjetividade do indivíduo transexual, em detrimento da visão naturalística da ciência jurídica tão hermética e pouco humanista.

RESUMO: Há uma permanência mascarada nas entranhas da sociedade e da própria seara do Direito, que insiste, por meio de um discurso insidioso, em naturalizar e reiterar a norma binária heterossexual que dá identidade aos sujeitos. Para que se possa compreender que as relações de sexo, de gênero não podem ser reduzidas e simplificadas a uma visão puramente biológica, é indispensável tratar de gênero como uma construção social, para além da constatação da genitália de cada um, tendo em vista a limitação da ciência jurídica em conceber tais demandas de maneira justa e visando a manutenção da concepção subjetiva do indivíduo. Este artigo busca evidenciar questões que sempre ficam ocultas nas estruturas jurídicas, tomadas como óbvias, estabelecidas, imutáveis e verdadeiras.

Palavras-chave: transexuais, biologização, gênero, identidade.


1. A BIOLOGIZAÇÃO E O HERMETISMO DA DOUTRINA JURÍDICA

A princípio, é preciso que se distinga sexo e gênero, tendo em vista ser aparente a confusão. O sexo é definido pela anatomia, considerando os cromossomos expressos em genitálias. O esforço se dá no sentido de provar, de certa forma, que o gênero não é garantido pela biologia. Tanto não é assim que vemos sujeitos – ainda que não sejam indivíduos ‘trans’[2]- apresentarem características femininas ou masculinas em dissonância com sua anatomia.

Parece claro que não se deve atrelar o conceito de gênero ao sexo, genitália que o indivíduo carrega, exclusivamente. Contudo, por meio da disposição biologizante que tem, o Direito insiste em tratar de gênero de forma a torná-lo próprio instrumento da biologia, inclusive no que tange o próprio exercício de direitos e obrigações pautados no sexo biológico.

De onde vem esse determinismo? Será que o normativismo e o descaso, quanto ao aparato social, são os grandes responsáveis pela direção errônea que coube à ciência jurídica? Como considerar o indivíduo unicamente como ser biológico, excluindo-o da vida social e cultural?

Supiot (2007) aponta para o fato de que cumpre ao Direito assumir um papel dogmático de interpretação e de proibição. Assim, o ramo jurídico exerce uma função de natureza particular quando comparado às técnicas existentes, devendo, portanto, ser considerado como uma verdadeira técnica de humanização das relações sociais. Nesse sentido,

a biologização do direito civil tem efeitos destrutivos que não são imediatamente perceptíveis como puderam ser as devastações da industrialização sobre o estado físico da classe operária. Nenhuma classe social está aqui especialmente envolvida, pois não é a constituição física dos operários, mas o equilíbrio psíquico dos indivíduos que está ameaçado por uma redução da identidade humana a uma suposta verdade biológica (SUPIOT, 2007, p. 178).

Aponta Luiz Edson Fachin[3] que o estudo do sujeito feito de forma tradicional se apresenta como um estudo atemporal e sem conexão com a realidade, transformando tudo em noção genérica e esquemática do sistema jurídico. Isso tudo porque o Direito civil apreendeu categorias abstratas, imprimindo forma jurídica e normatizando as relações entre as pessoas; descuidando, pois, do real.

No caso específico dos transexuais, e se tratando de como o Direito reage, notório está que quanto mais próximo da visão biologizante de gênero, maiores serão as exigências para a possível resolução das perturbações e inquietações que carregam aqueles, a exemplo da mudança do nome e do gênero, no registro civil. Tal como alude o jurista supracitado:

O sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e una. Essa rigidez não leva em conta dimensões outras, também relevantes, no plano das questões sociais e psicológicas. Desse modo, o papel de gênero se apresenta como uma expressão pública dessa identidade. O atestado de nascimento é, dessa forma, um registro de ingresso da pessoa no universo jurídico, disposto a conferir segurança e estabilidade nas relações jurídicas. O registro civil exerce, nesse plano, uma chancela normalmente imodificável, que marca o indivíduo em sua vida social. É um sinal uniforme e monolítico, incapaz de compreender a pluralidade psicossomática das pessoas (FACHIN, 2007, p. 96).

A legislação brasileira traz tratamento diferenciado em razão do sexo e resta claro que para analisar o sexo são necessárias suas diferentes acepções para a identificação sexual do indivíduo, abandonando-se a definição pela avaliação apenas do critério do sexo biológico.

O estabelecimento da identidade e, por conseguinte, dos direitos e obrigações decorrentes dessa identidade, a partir do nascimento, do reconhecimento da genitália, exclui a consideração pelos aspectos extrínsecos do ambiente em que se vive.

Butler (2010) delata que as normas que governam os gêneros e os sexos são instituídas, mantidas e estruturadas a partir de uma matriz que estabelece, ao mesmo tempo, a heterossexualidade compulsória[4] e uma hierarquia entre o masculino e o feminino.

É a norma pura e seca que governa a inteligibilidade, que possibilita a legibilidade do social, que estabelece as relações entre o dentro e o fora da norma. Não é admissível que o Direito esteja adstrito a uma verdade biológica carente de análise pormenorizada dos contornos sociais e afetivos do caso concreto. E não há nada para além disso. Por essa visão, ou se nasce homem ou se nasce mulher e nada poderá alterar a predestinação escrita nos hormônios.


2. A SUPERAÇÃO DO BIOLOGISMO NO SABER SOCIOLÓGICO CONTEMPORÂNEO

A superação do biologismo quanto às diferenças de gênero, se dá a partir da necessidade real de se suplantar os limites do senso soez, que, por sua vez, são ratificados pelo que dispõe o Estado e seus instrumentos “socializadores”.

Apesar da tendência em se manter engessado em seu normativismo, o Direito está compelido a seguir o caminho das mudanças sociais e se amoldar a essas. Obviamente, o estudo de gênero e dos indivíduos ‘trans’, por conseguinte, não podem ser deixados à mercê da interpretação daqueles que maculam a seara jurídica com visões arcaicas e puramente biologizantes. A ciência jurídica deve caminhar lado a lado com a dignidade da pessoa humana e o exercício dos direitos das minorias. Registre-se, neste caso, que:

infelizmente, apesar do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da supremacia deste pe­rante as demais normas infraconstitucionais, ainda assim, vemos muitos juízes proferirem decisões que contrariam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (SCHWACH, 2012, p. 75).

Na contramão de tudo que leciona o conservadorismo doutrinário da seara jurídica, a Antropologia e a Filosofia desempenham o papel de elucidadores da realidade no tocante ao gênero.

Ao longo da história é possível encontrar registros do critério da separação sexual para o desempenho de atividades: a mulher, compreendida como sujeito frágil e incapaz de se colocar no mesmo patamar produtivo do homem. Estava a colheita, a organização do lar e cuidado dos filhos para as mulheres, como estava a caça para o homem. E mais, trazendo o que comer para casa, estava desempenhado, com louvor, o papel de macho. Mas não era o trato biológico, era o econômico, o social.

Contudo, pode-se constatar que a própria definição do que é ser homem ou mulher se altera de acordo com as culturas, com os povos, com a região. Desmistifica-se a predestinação e a irrevogabilidade da sujeição feminina, por exemplo, quando se vislumbra em sociedades tribais, o espaço de atuação da mulher se assemelhando ao espaço do homem.

Diante disso, é possível averiguar que essa visão biologizante, conservadora, tradicional, trazida pelo direito, não considera que os papéis designados para o homem e a mulher, enquanto sexo varia no espaço temporal de acordo com as diferentes sociedades/grupos.

Sem sombra de sofismas, não se pode negar que há, ainda, a correlação entre o conceito de gênero, tal como conhecemos, e a biologia. Entendemos, por meio da criação de premissas advindas da própria vivência social, que, padrões concebidos são assim compreendidos como “naturais”, biológicos. Temos tendência a considerar natural o que é masculino e o feminino. Para nós, são evidências incontornáveis de ordem biológica. Daí porque a homossexualidade, por exemplo, passou a ser concebida na nossa tradição, pós o a advento do Cristianismo, como antinatural. 

Mas é preciso atentar para o fato de que as figuras de homem e mulher não se restringem absolutamente à condição do ser do macho e do ser da fêmea, mas ultrapassam bastante esses limites. São construções sociais e culturais de grande complexidade, modeladas, inclusive, por regras e códigos simbólicos, quase incompreensíveis, diga-se de passagem. De acordo com Mead (2009, p. 293), “o conhecimento de que as personalidades dos dois sexos são socialmente produzidas é compatível com todo programa que aspire a uma ordem social planejada”.

A diferença baseada no sexo nada mais é do que uma construção não só de cunho social, mas cultural e é a própria estratificação da sociedade que, por si, induz a dessemelhança de ambos os sexos. É nesse contexto que surgem os “inadaptados”, os inadequados. Assim,

na medida em que uma cultura é integrada e definida em seus objetivos, intransigente em suas preferências morais e espirituais, nesta medida condena alguns de seus membros – membros apenas por nascimento – a viver alheios a ela, na melhor das hipóteses em perplexidade e no pior dos casos numa rebelião que pode dar em loucura (MEAD, 2009, p. 278).

A divagação a respeito de gênero passa pela observação que fazemos das relações sociais, no trabalho, no lazer, na política, enfim, convivemos permanentemente com relações de dominação, com relações de poder. Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino definem-se um em função do outro. Esses perfis se constituem social, cultural e historicamente num tempo, espaço e cultura determinados. Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder. Desse modo,

a incorporação da categoria gênero serviu para desnaturalizar as diferenças percebidas entre homens e mulheres, apontando que é por meio dos significados culturais que uma determinada sociedade pensa e elabora suas classificações sobre a diferença sexual, assim como o próprio sexo, visto como da ordem da biologia, também é definido culturalmente (BUTLER, 2010, p. 105).

Em pouco tempo, o conceito de gênero foi apropriado pelo movimento feminista, - momento importante e inegável para o entendimento do que se tornou a discussão sobre gênero - e se transformou em uma importante ferramenta política, visando a igualdade nas relações entre mulheres e homens através da mudança de valores, de atitudes e comportamentos humanos e a derrubada das falsas fronteiras que nos demarcam em estereótipos crudelíssimos para os quais somos levados a acreditar desde pequenos.

 Na verdade, a formação histórica da categoria “gênero” está diretamente relacionada à adoção do termo pelas feministas americanas que almejavam uma forma de qualificar as diferenças presentes no sexo, antes trabalhadas nas academias como “questões de mulher” ou “estudos sobre mulher” e passam a usar a expressão no seu sentido literal “[...] como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos [...]” (SCOTT, 1996, p. 01).

Pois bem. O simples ato de anunciar no momento do nascimento: “é uma menina” ou “é um menino”, dá início ao processo de fazer desse ser um corpo feminino ou masculino, aponta Butler (2010). Esse ato, de caráter performativo, inaugura uma sequência de atos que vai constituir alguém como um sujeito de sexo e de gênero.

Então, os atos que constituem cada um de nós, enquanto sujeito de gênero, especificamente, serão exercidos e ratificados ao longo da vida e, portanto, sofrerão os impactos sociais que atuam, inexoravelmente, o tempo inteiro, quer queiramos, quer não.

Dissociar a maneira como o transexual se coloca e pratica cada um desses atos e como sua mente processa o gênero e os seus dissabores é impossível. O corpo e a mente estão juntos, ainda que, nesse caso, em oposta sintonia.

Reiterados estudos foram realizados visando mostrar que a mudança de sexo biológico de uma pessoa era mais fácil de fazer que alterar o sentimento de masculinidade ou feminilidade que esse indivíduo possuía. A esse sentimento, dá-se o nome de sexo psicológico. Os resultados revelaram, portanto, a clara autonomia da identidade psicológica em relação à anatomia fisiológica. Deve-se levar em consideração que o gênero ou a identidade psicológica do sujeito são regidos por um conjunto de fatores, quais sejam, sociais, culturais, familiares, que estão para além da anatomia fisiológica.

Por fim, o gênero é o quociente de aprendizagens que o indivíduo acumula, a partir de suas relações interpessoais, ao longo de suas experiências de vida dentro de um contexto histórico, político e social. É marca que o indivíduo carrega, de tal forma que se torna mais fácil modificar a configuração anatômica (sexo) de alguém do que sua configuração psicológica (gênero) e os transexuais, por si só, são a prova do confrontamento ao conceito puramente biológico do gênero.


3. O QUE É A IDENTIDADE DE GÊNERO?

Quando falamos em gênero, lato sensu, e da sua construção sociocultural, podemos recortar a identidade de gênero e essa é definida com base nos Princípios de Yogyakarta[5], responsável por traçar cânones e preceitos acerca da aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero e que visam fazer com que a orientação sexual e a identidade gênero sejam reconhecidamente essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa, não devendo, portanto, ser considerados motivos de discriminação ou abuso.

Os princípios de Yogyakarta foram apresentados perante a ONU (Organização das Nações Unidas) em 2007, por conta das violações perenes aos direitos humanos da população LGBT[6] que se registram ao redor do mundo, os quais definem a identidade de gênero como:

profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.

No que concerne à identidade e seus pormenores, podemos começar dizendo que desde sempre há a indução, o fomento às práticas tidas como “normais”, pautadas na heterossexualidade compulsória e na heteronormatividade[7]. A construção é advinda das claras referências a significados particulares representados nos brinquedos, nas falas, nas roupas.

A binariedade “masculino-feminino”, “azul-rosa” permeiam o consciente e o inconsciente desde sempre. Então, as crianças são “ensinadas” a compreender o comportamento regulado por máximas: “Não aja assim!”, “Se continuar fazendo isso, não se casará!”, “Meninas não brincam de carrinho!”, “Meninos não dançam, não rebolam!”, “Não quer ser homem como seu pai?”, e ai de quem não se adeque à disciplina imposta. Margareth Mead deixa claro em seu discurso que:

A coerção exercida com o fito de levar o indivíduo a comportar-se como membro de seu próprio sexo converte-se num dos instrumentos mais fortes com que a sociedade tenta moldar a criança em crescimento nas formas aceitas (MEAD 2009, p. 282).

Então, a aceitação se volta para a supressão daquelas tendências incompatíveis. Não se pode ser diferente! A sociedade se dá ao trabalho de classificar os indivíduos com um senso, ratificado pelo que o Estado dita quem são os aceitáveis e os não aceitáveis. Conclui-se que traços humanos foram socialmente especificados como atitudes e comportamentos de um único sexo, enquanto outros traços foram para o sexo oposto.

Sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.

A identidade de gênero é, portanto, o emaranhado de aspectos individuais que caracteriza o indivíduo. Está voltada para a maneira como o indivíduo se percebe, se sente, de forma macro (social) ou micro (individual), sendo que a concepção social poderá ser modificada de acordo com as transformações pessoais de cada um.

Será que existiriam os ditos “desviantes” se não houvesse sido construída a dicotomia de atitudes sexuais na sociedade? Não se pode conceber que identidades pareçam falhas de desenvolvimento pelo simples motivo de não adequarem-se à inteligibilidade cultural.

Em suma, tudo parte de uma pseudo-adequação egoísta a um comportamento previamente estipulado, que, por sua vez, se não for devidamente exercido, exclui os tidos como diferentes e inadaptados, como é o caso das transexuais.


4. A TRANSEXUALIDADE E A VISÃO PATOLOGIZANTE

Se “normalmente” gênero e sexo são harmônicos no indivíduo, o que ocorre na transexualidade é justamente um desacordo perturbador para o sujeito entre o seu gênero e o seu sexo. Esse desacordo promove problemas de diversas ordens para a vida desse sujeito.

O sexo psicológico, que é o sentimento de masculinidade ou feminilidade que o indivíduo possui, no caso dos transexuais, não coincide com o sexo biológico, pautado na genitália. Há uma incongruência entre o sexo atribuído na certidão de nascimento e a identidade psíquica de gênero do indivíduo e um desacordo com o que tido como normal, ou seja: o indivíduo identifica-se com o gênero oposto, gerando, inclusive, a rejeição do próprio corpo e o entendimento de que fora vítima de um “erro biológico”.

Segundo Maranhão Filho (2011), as pessoas 'trans', em maioria, podem ser consi­deradas sujeitos que vivenciam experiências entre gêneros. Por terem um gênero atribuído na gestação e/ou nascimento que não as con­templam (feminino/masculino) e pelo fato de se identificarem com o gênero distinto deste, vivenciam experiências entre gêneros. Estão entre o gênero de atribuição e o de identificação.

A concepção patologizante da identidade ‘trans’ é absurdamente inquietante. Desde a década de 70, do século passado, reivindica-se a despatologização da transexualidade e se busca a ratificação da ideia de que a identidade sexual é, em si, um preconceito limitador da liberdade individual.

Na atual classificação, qual seja, a CID[8] - 10 (1990),  em que se elaborou uma lista na seção dos "Transtornos de Comportamento e Personalidade em Adultos” e uma nova categoria de transtornos de identidade de gênero (F64), que inclui cinco diagnósticos: transexualismo (F64.0), travestismo de duplopapel (F64.1), transtorno de identidade de gênero na infância (F64.2), outros transtornos de identidade de gênero (F64.3) e transtorno de identidade de gênero não especificada (F64.4), o transexualismo (F64.0) é tido como “um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto com, ou inadequação, do próprio sexo anatômico e um desejo de fazer um tratamento hormonal e cirurgia para conseguir o corpo de alguém tão congruente quanto possível com o sexo preferido”.

Ressalte-se que o sufixo ‘ismo’, da palavra transexualismo, como atribui, erroneamente, a Organização Mundial de Saúde, refere-se à doença, à patologia. Não é transexualismo, haja vista não ser doença. Sobre transexualidade, dispõe Maria Helena Diniz, conforme exposto a seguir:

Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia do seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama jurídico-existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica [...] Sente que nasceu com o corpo errado, por isso, recusa totalmente o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o oposto ao que lhe foi imputado na certidão de nascimento, apesar de biologicamente não ser portador de qualquer anomalia. [...] Por tal razão, é preciso respeitá-lo como ser humano, não considerando a aparência física que provoca ou sua preferência sexual. Urge que se respeite sua dignidade, já que não foi favorecido pela sorte, sofrendo de perturbação de identidade sexual (DINIZ, 2011, p. 316).

A transexualidade é entendida, pela classe médica e por parte da doutrina jurídica, como um distúrbio de identidade de gênero ou disforia de gênero ou, ainda, perturbação de identidade de gênero (PIG), ou seja, como um transtorno psíquico, uma doença genética e incurável, provocada por defeito cromossômico ou fatores hormonais. E, ainda, acreditam que o mais acertado seria mudar a mente do transexual através da psicoterapia ou psicanálise, adequando-a aos seus atributos físicos.

Cabe suscitar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) encontra-se, atualmente, em processo de revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10, 1992), sendo que a publicação da CID-11 está prevista para 2015 e espera-se que haja uma uniformização entre a classificação da OMS e a classificação da DSM (Associação Americana de Psiquiatria), despatologizando a transexualidade.


5. AS TRANSEXUAIS E O RESPEITO À SUA IDENTIDADE DE GÊNERO

Como é cediço, as transexuais possuem uma identidade distinta da sua aparência anatômica. A partir da divergência entre a aparência e a identidade, passam à rejeição dos papéis que lhes foram atribuídos e a constituir uma história social e cultural em um corpo construído, tendo como referência uma identidade própria que, obviamente, independe de uma identificação civil. E partindo do pressuposto de que expõem o que não deveriam, tornam-se violadores de uma ordem pré-estabelecida regada a falsos moralismos e fincada em bases vis.

Quando passam a vivenciar uma identidade distinta de sua constituição anatômica, as transexuais angariam, de certa forma, o desinteresse da norma e o incômodo da sociedade, porque passam a subverter a lógica machista, base da construção societária patriarcal.

Logo, são tomados por atos que segregam e violentam. Os “inadaptados”, os “desviantes” são colocados à margem dos espaços coletivos ocupados, à margem dos mercados formais de trabalho e de formação acadêmica. A binariedade socialmente construída e amarrada e do que é masculino/feminino, o sujeitará, imediatamente, à rejeição, ao descaso, à discriminação e estarão as transexuais relegadas à infindável exclusão social e legal.

Carregam consigo um sentimento individual de identidade, por tê-la coerente com o gênero oposto. Clarividente que conviver com a incoerência entre o corpo e a mente deve ser doloroso e não se pode permitir que a dignidade da pessoa humana seja afrontada dessa forma, tendo em vista as frequentes aparições de mutilações genitais, autoextermínio, o ‘voltar-se contra o próprio corpo’ por não entendê-lo como seu.

As transexuais não têm a alternativa de se fazerem “invisíveis” por muito tempo, haja vista, experimentarem a identidade que possuem e serem, através do próprio corpo, a materialização da sua causa. Ela, diferentemente da própria orientação sexual, não pode ser escondida, ocultada. Não se guarda no armário! Eles trazem o estigma, o “desvio” no corpo, como uma marca.

Esse estigma faz com que elas passem, de certa forma, a confundir a própria percepção de si mesmos quando deglutem a reprodução dos padrões daqueles que os discriminam. Nesse sentido, Goffman discorre o seguinte:

Ainda pode perceber de maneira bastante correta que, não importa o que os outros admitam, eles na verdade não o aceitam e não estão dispostos a manter com ele um contato com “bases iguais”. Ademais, os padrões que ele incorporou da sociedade maior tornam-no imediatamente suscetível ao que os outros veem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser. A vergonha de torna uma possibilidade central, que surge quando o indivíduo percebe que um de sues próprios atributos é impuro e pode imaginar-se como um não-portador dele (GOFFMAN, 1988, p.14).

Então, se a identidade, por si só, já é suficiente para a vivência do gênero oposto, por que amarrá-los a uma identidade social que não lhes cabe?

Os indivíduos com identidade ‘trans’ fazem parte dos valores que devem ser acolhidos pelo princípio norteador da dignidade da pessoa humana. Isso não lhes pode ser negado! O que o Direito pode proporcionar, em alguma medida, servirá para minimizar a angústia e o constrangimento trazidos pela vivência da identidade de ‘trans’, permitindo que essas pessoas vivenciem o seu corpo, modificado ou não.

Não se pode viabilizar apenas alguns meios, como o nome social, e esperar que os Magistrados utilizem de malabarismo para permitir aquilo que o Direito, silente, já deveria permitir, não mais como mecanismos de exceção.

Não se trata de uma incoerência apenas, mas uma discordância que deve ser reconhecida. Partindo do pressuposto de que a experiência subjetiva do gênero é que deve prosperar, busquemos um Estado democrático que tenha como princípio básico a tolerância e que esteja sempre atento às multiplicidades.


REFERÊNCIAS

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguiar. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2010.

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, 8. ed. rev.,aum. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2011.

FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Elementos críticos do Direito de família. São Paulo: Renovar, 2013.

MEAD, Margareth, 1901-1978. Sexo e temperamento; [tradução Rosa Krausz]. São Paulo: Perspectiva, 2009.


Notas

[2] Referência ao termo transexual.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 192.

[4] O termo heterossexualidade compulsória foi criado pela feminista Adrinne Rich, em 1980, e aponta para o fato de que as mulheres são convencidas que casamento e a orientação sexual voltadas para os homens são inevitáveis. O homem é feito para a mulher e vice-versa, e todas as vivências fora disso são problematizadas.

[5] Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Para mais informações, ver: http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf.

[6] A sigla LGBT se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros. O uso do termo foi aprovado durante conferência realizada em Brasília, em 2008, e substituiu a sigla GLS (gays, lésbicas e bissexuais), utilizada até então para representar a diversidade sexual.

[7] A heteronormatividade se sustenta na ideia que ter um pênis significa ser másculo, isto é, no gênero como parte da natureza.

[8] CID: Classificação Internacional de Doença.



Informações sobre o texto

Essa publicação visa desmistificar a construção do Direito em bases tão biológicas e colocar a identidade de gênero do indivíduo transexual como um pressuposto para superar o hermetismo da ciência jurídica no que se refere às causas do público 'trans'.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Sasha. Transexuais: a superação da biologização como pressuposto para o respeito à identidade de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5223, 19 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39867. Acesso em: 20 abr. 2024.