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O dever da Administração Pública de indenizar o particular detentor do preço registrado à luz dos princípios norteadores da atividade administrativa

O dever da Administração Pública de indenizar o particular detentor do preço registrado à luz dos princípios norteadores da atividade administrativa

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Reflete-se sobre a possibilidade da Administração indenizar o particular que sofre prejuízo ao registrar preço em ata e a contratação ocorrer em quantidade ínfima em relação ao que previu o edital.

RESUMO: O presente artigo propõe uma reflexão sobre a possibilidade da Administração Pública indenizar o particular que registra o preço ofertado em um procedimento licitatório, em uma ata de registro de preço, quando as contratações decorrentes dessa ata são feitas em quantitativos ínfimos em relação ao que foi estabelecido no edital da respectiva licitação, pelo fato do ente público ter percebido que o planejamento para a compra do objeto do certame estava errado, inadequado ou que, por outro motivo qualquer, não havia mais a mesma demanda inicial para tal produto, acarretando prejuízos ao particular detentor do preço registrado.

Nesse contexto, o principal objetivo deste estudo é analisar os princípios norteadores da atividade administrativa, de acordo com o ordenamento jurídico vigente, justamente para determinar qual é a responsabilidade da Administração Pública perante o particular que se vê frustrado diante de uma contratação em uma quantidade ínfima lhe acarretando prejuízos comprovados. A presente reflexão ocorreu a partir da leitura do Decreto nº 7892/13, no qual se observa que o sistema de registro de preço foi criado apenas para situações previsíveis, nas quais só não é possível definir previamente e exatamente os quantitativos a serem demandados pela Administração. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica que considerou os ensinamentos de FILHO (2012), NIEBUHR (2012), JACOBY (2009) BINENBOJM (2006), entre outros, para concluir que se o particular for comprovadamente lesado deve a Administração Pública indenizá-lo pelos prejuízos que lhe foram causados, uma vez que terá ocorrido a violação dos princípios norteadores da atividade administrativa.

Palavras-chave: Registro de Preço. Indenização. Dever de Planejar. Quantitativos Ínfimos. Princípio da Confiança Legítima. Princípio da Boa Fé.


Introdução

O presente artigo científico tem como tema o dever da Administração Pública de indenizar o particular detentor do preço registrado à luz dos princípios norteadores da atividade administrativa, no sistema de registro de preço.

Nesta perspectiva, o questionamento que norteou este trabalho foi: Caso o ente público contrate quantitativos ínfimos do objeto da licitação em relação ao que foi pedido no edital, causando prejuízos ao particular detentor do preço registrado na ata de registro de preço, tal fato geraria o dever de indenizar por parte da Administração Pública?

Neste contexto, o principal objetivo deste estudo é analisar os princípios norteadores da atividade administrativa, de acordo com o ordenamento jurídico vigente para determinar qual é a responsabilidade da Administração Pública perante o particular que se vê frustrado diante de uma contratação em quantidades ínfimas do objeto da licitação em relação ao que foi estipulado no edital.

As reflexões aqui expostas ocorreram a partir da leitura do artigo 3º do Decreto nº 7892/13, no qual percebe-se que o sistema de registro de preço não foi criado para situações imprevisíveis que não podem ser planejadas pela Administração, mas sim para situações previsíveis nas quais só não é possível definir os quantitativos exatos da demanda. Ocorre que, qual seria o limite dessa imprevisibilidade dos quantitativos de um determinado produto? Pode a Administração estipular no edital uma demanda de 1000 itens e contratar apenas 100 itens, por exemplo? Esta análise é importante, tendo em vista que sempre é possível identificar quantidades aproximadas considerando o consumo anterior. Basta fazer um planejamento adequado. Portanto, seria razoável a Administração estipular 1000 itens no edital e ao final contratar apenas 100 itens? Tal comportamento não geraria prejuízos ao particular?

Dessa forma, pretende-se analisar se há responsabilidade da Administração Pública, uma vez que o preço do licitante para 1000 itens é um, e para 100 itens é outro, o que pode lhe acarretar prejuízos na economia de escala.

De acordo com Gabriela Verona Pérsio,

[...] é possível, sim, planejar as situações que autorizam a implantação do SRP, seja por meio do consumo anterior, controlando-se os resultados de contratos já celebrados, ou por planejamento estratégico integrado, com vistas ao atendimento de demandas necessárias ao alcance das metas da instituição. Observem que impossibilidade de estabelecer quantidades fixas de contratação, porque dependentes de condições futuras, não se confunde com impossibilidade de planejar a contratação. (PÉRSIO, 2013, p. 23)

Para embasar o estudo proposto, utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da leitura e análise de materiais já publicados na literatura.

Este artigo foi baseado nos ensinamentos de NIEBUHR (2012), FILHO (2012), JACOBY (2009), BINENBOJM (2006), PÉRSIO (2013).


Desenvolvimento

Registro de preço, segundo as lições de Joel de Menezes Niebuhr é:

[...] instrumento destinado à eficiência no gerenciamento dos processos de contratação pública, por meio do qual o vencedor da licitação assina ata de registro de preços, comprometendo-se a oferecer por preço unitário o objeto licitado, de acordo com as necessidades da Administração, dentro da quantidade prefixada no edital e dentro do prazo também fixado nele, que não pode ultrapassar um ano.

Sendo assim, ressalta-se, a Administração contrata com o detentor do melhor preço registrado se quiser, quando quiser (desde que dentro do prazo de validada da ata de registro de preço), e quanto quiser (desde que não ultrapasse o quantitativo fixado no edital).

Essa é, então, a essência do registro de preço.

No entanto, vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual princípios existem que norteiam a atividade administrativa.

O dever de boa fé da Administração Pública exige o respeito incondicional às regras do edital, inclusive a previsão da quantidade dos produtos que serão adquiridos do detentor do melhor preço registrado e, isto decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do já citado Estado Democrático de Direito. O princípio da segurança jurídica aparece, nesse caso, como o princípio de proteção à confiança.

Em um voto paradigma proferido no Recurso Extraordinário nº 598.099/MS, o Ministro Gilmar Mendes afirma que “[...] o tema da segurança jurídica é pedra angular do Estado de Direito sob a forma de proteção à confiança.”

Gustavo Binenbojm também se manifestou a esse respeito: “a vinculação do Poder Público à juridicidade importa não apenas a rígida observância das leis, mas também a proteção da segurança jurídica, entendida como a tutela da legítima confiança depositada pelos administrados nas condutas da Administração.” (BINENBOJM, 2006, p.190)

No entanto, as reflexões aqui propostas não ousam desfigurar a natureza do registro de preço inutilizando sua aplicação e finalidade. Apenas pretende impor limites à atuação da Administração Pública.

Claro está que uma das vantagens do registro de preço é justamente não obrigar a Administração a contratar todo o quantitativo previsto no edital da licitação, mas sim proporcionar a ela a possibilidade de definir um quantitativo maior do que realmente precisa para que, se necessário, ter o objeto a sua disposição.

A questão norteadora deste trabalho reside nesse ponto, uma vez que essa vantagem seria capaz de lhe conceder o direito de contratar quantitativos ínfimos, considerados os que foram estabelecidos no edital, sem lhe ser atribuída nenhuma responsabilidade, caso seja comprovado o prejuízo do particular?

Explico. No registro de preço o preço é cotado por unidade do objeto e não pela totalidade do quantitativo estabelecido no edital. Sendo assim, o preço que o licitante ofertaria para 1000 itens seria muito diferente do preço cotado para 100 itens.

Caso a Administração estabeleça 1000 itens no edital e contrate ao longo de um ano apenas 100 itens, esta quantidade é apenas 10% da expectativa que foi criada no licitante. Observa-se que tal conduta não está de acordo com o princípio da boa fé e da proteção à confiança citados acima, violando não só estes, mas o princípio da razoabilidade também, tendo em vista que não parece razoável a contratação de 10% do quantitativo previsto, o que poderia acarretar prejuízo à economia de escala do particular.

A presente reflexão não pretende estipular qual seria o limite mínimo de contratação para a Administração, mas entende que a atuação discricionária da Administração deve ser pautada pelo princípio da razoabilidade.

No Recurso Extraordinário nº 598.099/MS, a Ministra Carmem Lúcia tece algumas considerações sobre o poder discricionário da Administração:

[...] eu não acredito em poder discricionário na Administração, acho isso uma coisa velha, com todo respeito pelos que pensam que ainda existe, mas há algum tempo o direito não comporta mais esse tipo de atribuição. Como disse o Ministro Gilmar, entre a tal discricionariedade de outros tempos e o arbítrio, praticamente não há diferença. Acho que todo ato administrativo tem algum elemento de discricionariedade, o que é muito diferente de o administrador dispor de um poder discricionário.

Pondera-se que o Recurso Extraordinário aqui mencionado diz respeito ao direito de nomeação dos candidatos aprovados em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital, discorrendo a Ministra Carmem Lúcia em seu voto que o que ali estava sendo discutido, em sua opinião, “é um paralelo ao que se passa numa licitação em que se diz que ao licitante vencedor não se reconhece direito algum.”

Sendo assim, se a Administração publica um edital de licitação que será promovida sob a forma do registro de preço, é porque, imagina-se, que ela planejou suas necessidades.

O dever de planejar é corolário do princípio da eficiência, devendo ser cumprido adequadamente. O planejamento adequado é capaz de mostrar quais são as demandas da Administração de forma aproximada, impedindo que erros crassos de definição de quantitativos ocorram.

O acórdão do TCU nº 1233/2012, ressalta o dever de planejar: “19.16. 2.2.1. o planejamento da contratação é obrigatório, sendo obrigatória a realização dos devidos estudos técnicos preliminares (Lei 8.666/1993, art. 6º, inciso IX);”

De acordo com Gabriela Verona Pérsio:

[...] chega a ser imoral alegar impossibilidade de previsão de quantidades para fundamentar a realização de um SRP. Se assim fosse, a aquisição de todo e qualquer bem a ser consumido pela Administração Pública fugiria ao planejamento, porque dependeria das características do consumo futuro. Por outro lado, é perfeitamente admissível contratar esse objeto via SRP para propiciar uma aquisição mais consentânea com a realidade de consumo.

A respeito do princípio da moralidade, a Ministra Carmen Lúcia também se manifestou no Recurso Extraordinário nº 598.099/MS, afirmando que além do princípio da segurança jurídica há o direito subjetivo, nesse caso, do licitante à contratação. Afirmou, ainda, que esse direito subjetivo é embasado justamente no princípio da confiança, e mais, no princípio da moralidade, uma vez que está em jogo uma demonstração de ética por parte da Administração, ética com o licitante, ética com a sociedade. E completa:

A Administração tem que ser moral, ética em todos os seus comportamentos, e não acredito em uma democracia que não viva do princípio da confiança do cidadão na Administração. A não nomeação desmotivada é uma quebra da confiança. (RE nº 598.099/MS, STF)

No caso em tela, a não contratação desmotivada é uma quebra da confiança.

Este é outro ponto a ser destacado: a justificativa da Administração para contratar quantitativo ínfimo em relação ao que foi determinado no edital. Ora, a motivação é um dos elementos do ato administrativo. É preciso que ela seja expressa e suficiente.

O Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário nº 598.099/MS citou os vetores hermenêuticos que podem e devem justificar o fato da Administração não cumprir com o seu dever. Na situação discutida nesse trabalho, deve ser justificado o fato da Administração Pública não cumprir com o dever de ser razoável, contratando quantidade ínfima comparada a que foi pedida no edital.

Os referidos vetores são: fato superveniente ensejador de uma situação excepcional; situação imprevisível à época da publicação do edital; acontecimentos extraordinários e imprevisíveis graves, implicando onerosidade excessiva e a solução de não cumprir o dever de contratar de forma razoável deve ser extremamente necessária.

Sendo assim, caso a Administração decida que irá contratar bem menos do que previu, teria que justificar essa decisão, ou seja, teria que motivar o ato administrativo para que, inclusive, seja passível de controle pelo Poder Judiciário.

A motivação do ato é fundamental porque seria ela que iria garantir o controle pelo Poder Judiciário, o qual iria analisar se a justificativa é suficiente ou se houve violação dos princípios da boa fé, confiança, eficiência, razoabilidade e moralidade. Caso um desses princípios tenha sido violado e o prejuízo do particular licitante fosse comprovado, a Administração teria o dever de indenizar o prejuízo sofrido pelo particular.


Conclusão

Pelo exposto, observou-se que a Administração deve realizar um planejamento adequado de suas necessidades em obediência ao princípio da eficiência.

Desta forma, ao realizar licitação para registrar preços não haveria a possibilidade de contratar quantitativo ínfimo em relação ao que foi estipulado no edital, agindo de acordo com o princípio da razoabilidade e o princípio da confiança.

Deve ser ressaltado que esta postura da Administração não desvirtua os objetivos e a finalidade do sistema de registro de preço, apenas revela uma atuação de acordo com os princípios que regem o Estado Democrático de Direito que impõe limites para a atividade administrativa.

Por fim, este estudo concluiu que se houver violação de algum dos princípios norteadores da atividade administrativa, bem como, comprovação dos prejuízos sofridos pelo detentor do preço registrado quando a Administração contratar quantitativo ínfimo em relação ao que foi estipulado no edital, nasce imediatamente para o particular o direito de receber indenização pelo fato de ter sido violado o seu direito subjetivo a uma contratação em quantidades razoáveis.


REFERÊNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário nº 598.099/MS. Relator: MENDES, Gilmar. Publicado no DJe nº 189 de 03/10/2011. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+598099%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+598099%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/anqgoeq. Acessado em 13/02/2015.

FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012.

JACOBY, Jorge Ulisses. Sistema de Registro de Preços e Pregão Presencial e Eletrônico. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

JÚNIOR, Jessé Torres Pereira. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 8. ed. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Curitiba: Renovar, 2009.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

PÉRCIO, Gabriela Verona. Breves reflexões sobre o Sistema de Registro de Preços – Deveres e obrigações da Administração Pública para com o detentor do preço registrado. Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 227, p. 21-25, jan. 2013.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÓPEZ, Gerusa e Silva Castro. O dever da Administração Pública de indenizar o particular detentor do preço registrado à luz dos princípios norteadores da atividade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5198, 24 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40203. Acesso em: 25 abr. 2024.