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A audiência pública como instrumento a subsidiar a decisão jurídica

A audiência pública como instrumento a subsidiar a decisão jurídica

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Prática baseada na ação comunicativa de Jürgen Habermas, a audiência pública mostra-se um eficiente instrumento diante da falta de ação por parte do Legislativo e do Executivo e como garantidor e concretizador de direitos fundamentais.

INTRODUÇÃO

    É inegável que a humanidade vem impondo desafios ao homem que merecem reflexões e lugar de destaque nos diferentes fóruns de discussão. Estes desafios advém de uma nova leitura que é feita sobre os problemas a serem enfrentados no futuro e da necessidade de maior participação dos sujeitos envolvidos com a realidade em questão. Problemas ambientais, relacionados com relações de consumo ou outros enfrentados pela coletividade se somam aos vários outros feitos que se acumulam nos órgãos do Poder Judiciário. A marcha dos acontecimentos, somada à complexidade cada vez maior das demandas, exige do juiz um esforço demasiado para traduzir a realidade do litígio e um arcabouço de informações e provas para prestar a jurisdição.    Na atualidade, um dos artifícios mais utilizados pela jurisdição para oferecer maiores subsídios às decisões se consubstancia nas audiências públicas, comumente utilizadas nos parlamentos na discussão de proposições legislativas. A influência e a participação dos afetados pela decisão refletem a importância e também o nível de complexidade que as temáticas em discussão projetam no cotidiano. Na atualidade, o alemão Jürgen Habermas é a maior referência, em termos teóricos, acerca da presente abordagem e suas lições merecem ser discutidas para uma maior compreensão do tema. A teoria da ação comunicativa, e sua aplicação dentro de um Estado Democrático de Direito, ganham extrema força como instrumento de influência dos interessados na demanda, principalmente quando a complexidade das controvérsias exige do magistrado um conhecimento que vai além Direito. O debate em contraditório e a força persuasiva dos argumentos apresentados numa audiência pública levam a uma estabilidade e a uma satisfação com o provimento judicial produzido.

    Verifica-se no contexto atual que a utilização de audiências públicas pelo Poder Judiciário reflete um estado de paralisia dos demais poderes que demonstram inoperância na consecução de políticas públicas e produção legislativa (que atualmente mostra-se de baixa qualidade). Fenômeno que salta aos olhos, a judicialização da política é um problema a ser enfrentado pela jurisdição, o que leva, sob imperatividade desprovida de legitimidade, a utilização de instrumentos estranhos até pouco tempo. Esta realidade vivida demonstra que se vive um importante (para não dizer grave) momento de crise em que o papel dos poderes deve ser repensado com fito de aperfeiçoar a estrutura estatal para a real promoção de direitos e garantias fundamentais. Certamente, o debate promovido pelo agir comunicativo figura como ferramenta de grande valia num ambiente onde a tensão entre constitucionalismo e democracia se notabiliza.

    As audiências públicas estão presentes no cotidiano do Judiciário, principalmente no Supremo Tribunal Federal no exercício do controle de constitucionalidade, e merecem ressalvas e cuidados na sua utilização, sob pena de se ver os juízos se transformarem em verdadeiros balcões de reclamações ou ouvidorias. A participação dos diversos segmentos da sociedade enriquece os fundamentos, mas pode, de forma indevida, contaminar o decisor com argumentos que fogem da esfera jurídica e privilegiam a moral, os bons costumes, a religião ou a política. Procurar-se-á abordar alguns critérios importantes para que o juiz tenha subsídios fáticos para decidir, sem nunca se esquecer do seu papel de prestar a jurisdição e decidir dentro do Direito e exercendo um papel contramajoritário na consecução de direitos fundamentais, albergados na Constituição. O Poder Judiciário não pode legislar.

    O tema é relativamente novo para o Direito e as interlocuções não param por aqui. Busca-se com o presente trabalho analisar a importância das audiências públicas como subsídio para formação das decisões, notadamente nas demandas coletivas, o que denota a amplitude e riqueza do tema, que, certamente, não se esgota por aqui.


1. A CONJUNTURA ATUAL NO TOCANTE À REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO

Antecipadamente, é conveniente rememorar a caminhada que a humanidade empreendeu para concretizar vários direitos comuns nos dias de hoje, mas que há pouco tempo ainda não eram reconhecidos, em razão de diversas concepções que hoje tem grande aceitabilidade perante a humanidade. Por anos a anos a fio, o homem buscou a concretização da igualdade, direito tão elementar para o reconhecimento de um sujeito como ser humano. Esta foi uma luta (e ainda continua a ser) que marcou toda a idade contemporânea. Não era garantido ao homem traçar o seu destino. Há pouco mais de cinquenta anos, o mundo assistia aos horrores e às monstruosidades dos nazistas nos campos de concentração, que vitimaram milhões de judeus, negros, ciganos, homossexuais e outras minorias. A banalidade e o desprezo com o ser humano eram tão grandes que Hitler chegou a tratar as mortes nas câmaras de gás como assunto de ordem médica, fazendo menção a uma suposta eutanásia. Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica que imigrou para os Estados Unidos para fugir do nazismo, retrata com detalhes esta atrocidade:

A primeira câmara de gás foi construída em 1939, para implementar o decreto de Hitler datado de 1º de setembro daquele ano, que dizia que “as pessoas incuráveis devem receber uma morte misericordiosa”. (Foi provavelmente essa a origem “médica” da morte por gás que inspirou a surpreendente convicção do dr. Servatius de que a morte por gás devia ser considerada “assunto médico”.) A idéia em si era consideravelmente mais antiga. Já em 1935, Hitler havia dito ao médico-chefe do Reich, Gerhard Wagner, que “se a guerra viesse, ele englobaria e resolveria a questão da eutanásia, porque era mais fácil fazê-lo em tempo de guerra”. O decreto foi cumprido imediatamente no que dizia respeito aos doentes mentais, e entre dezembro de 1939 e agosto de 1941, cerca de 50 mil alemães foram mortos com monóxido de carbono em instituições cujas salas de execução eram disfarçadas exatamente como seriam depois em Auschwitz – como salas de duchas e banhos.1

O tratamento dispensado nestes casos era de descarte de uma matéria que era inservível. Considerava-se um determinado sujeito doente e consumava-se a sua execução. Execução esta gerada por atributos de ordem individual, subjetiva, ligados exclusivamente à personalidade do sujeito. Era absolutamente impensável nesses anos a possibilidade de garantia de direitos a essas minorias ou de representatividade ou participação nas decisões que afetassem a vida ou os interesses desses indivíduos. Em outro trecho da obra já mencionada, Hannah Arendt menciona dados numéricos acerca das execuções de judeus, pelos nazistas, no leste europeu, dado o grande número de judeus naquela parte da Europa:

O Leste era o cenário central do sofrimento judeu, terminal de horrores de todas as deportações, lugar de onde não havia escapatória e onde o número de sobreviventes raramente chegava a mais de 5%. O Leste, além disso, fora o centro da população judaica na Europa antes da guerra; mais de 3 milhões de judeus tinham vivido na Polônia, 260 mil nos Estados Bálticos, e mais de metade dos estimados 3 milhões de judeus russos na Rússia Branca, Ucrânia e Criméia. 2

Enfim, o que se narra acima é algo inaceitável nos dias atuais, mas ocorreram há pouco mais de meio século, lembrando, ainda que as atrocidades não se constituem peculiaridades do nazismo. Ditadores como Mussolini, Stalin e mais recentemente, na década de 1970, Idi Amin Dada, um sanguinário ditador de Uganda, na África. A humanidade já iniciou a caminhada, porém novos e desafiadores passos ainda necessitam ser dados.Com o fim da guerra, vislumbrou-se um novo mundo, uma nova sociedade, ainda com barreiras a serem transpostas, mas com avanços significativos. Os direitos humanos ganham relevo e a necessidade de promoção de estabilidade entra na pauta dos diferentes fóruns internacionais, apesar da bipolaridade entre as forças capitalistas e socialistas. Norberto Bobbio na sua obra clássica, A era dos direitos, relembra aspecto importante da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que merece ser destacada:

Não será inútil lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem começa afirmando que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, e que, a essas palavras, se associa direitamente a Carta da ONU, na qual, à declaração de que é necessário “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra”, segue-se logo depois a reafirmação da fé nos direitos fundamentais do homem. 3

Não se vislumbra a construção de um ambiente de paz e estabilidade sem a promoção de direitos básicos, inerentes a qualquer ser humano. Os desmandos dos regimes de exceção que propagaram o terror institucionalizado impediam o cidadão de opinar, de ditar o seu destino e de se contrapor ao status quo. A possibilidade de se ouvir o cidadão é mais um passo na construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Esta caminhada é lenta e ainda se verifica um discurso de lutas entre grupos em razão de etnia, por exemplo, como Habermas destaca:

Como mostra a história da formação das nações, com novas fronteiras para o Estado certamente também surgem outras minorias nacionais; e o problema não desaparece, a não ser à custa de “purificação étnica” – o que é injustificável do ponto de vista político moral. Com base no exemplo dos curdos, que vivem dispersos em cinco Estados diferentes, ou da Bósnia-Herzegovina, em que os grupos étnicos lutam impiedosamente entre si, pode-se demonstrar claramente a condição cindida do “direito” quando voltado à autodeterminação nacional. 4

A fim de alcançar outros direitos fundamentais, era necessária a concretização da igualdade. Igualdade esta que não se resume a um mero formalismo legal, mas que seja externado por meio de ações concretas, visando conferir espaço a todos e direito de voz. O jurista americano Ronald Dworkin trata do desprezo da igualdade pelos políticos em geram assim enfocando:

A igualdade é espécie ameaçada de extinção entre os ideais políticos. Até poucas décadas atrás, qualquer político que se declarasse liberal, ou mesmo de centro, acreditava que a verdadeira sociedade igualitária era, pelo menos, um ideal utópico. Atualmente, porém, até os políticos que se declaram de centro-esquerda rejeitam o próprio ideal da igualdade.

[...]

Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. 5

Com o fim da guerra fria e a consequente queda da bipolarização materializada pela queda do muro de Berlim, a humanidade mergulhou num rápido processo de reestruturação que merece ser analisado de maneira sumária para um melhor entendimento do contexto vivido a partir de premissas consideradas relevantes. Os avanços tecnológicos, revelados pelas comunicações em tempo real e construção de engenhos geradores de facilidades mudaram o panorama mundial, como retratado pelo sociólogo polonês Zygmund Bauman:

Hoje em dia estamos todos em movimento.[...]

No mundo em que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado. O espaço deixou de ser obstáculo – basta uma fração de segundo para conquistá-lo.

Não há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. 6

Não existem distâncias entre as pessoas. A interlocução é imediata, seja por meio de uma rede social, seja por meio de um artigo, uma mensagem de correio eletrônico ou qualquer outro meio moderno. Estas facilidades (fruto de um processo de globalização) aproximam o cidadão das grandes discussões e fomenta um verdadeiro debate que influi nas decisões. Aliado a estes aspectos, pode-se destacar a aceleração do consumismo movida por uma lógica de caráter eminentemente econômico. Bauman também explora os retrocessos da globalização de forma crítica:

Um dos efeitos mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A maior parte das ações belicosas dos dias de hoje, e das mais cruéis e sangrentas entre elas, são travadas por entidades não-estatais, que não se sujeitam a leis estatais ou quase estatais, nem às convenções internacionais. São simultaneamente o resultado e as causas auxiliares, porém poderosas, da erosão contínua da soberania do Estado e das permanentes condições de fronteira que prevalecem no espaço global “supra-estatal”. Os antagonismos intertribais vêm à tona graças ao enfraquecimento dos braços do Estado; no caso dos “novos Estados”, de braços que nunca tiveram tempo (ou permissão) para criar músculos. Uma vez iniciadas, as hostilidades tornam as incipientes ou arraigadas leis do Estado inaplicáveis e, para todos os fins práticos, nulas e inúteis. 7

O sociólogo polonês vê um enfraquecimento do Estado e certamente da sua soberania. Isto revela uma forte tendência da sociedade se organizar em arenas não institucionalizadas para deliberação de temas que preocupam o cidadão. A democracia como forma participativa do cidadão no processo de tomada de decisão ganha força e os meios a ela inerentes notabilizam-se, dentre eles a audiência pública que merece atenção do ponto de vista procedimental.Em debate travado na Academia Católica da Baviera, em Munique – Alemanha, em 2004, o então Cardeal Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, durante debate com Jürgen Habermas, expressou seu entendimento conjuntural:

Na fase de aceleração do desenvolvimento histórico em que nos encontramos hoje, destacam-se, a meu ver, sobretudo dois fatores marcantes de um processo que teve um início bastante lento: Por um lado, temos a formação de uma sociedade mundial em que as diversas potências políticas, econômicas e culturais passam a depender cada vez mais uma da outra, tendo contato mútuo e permeando-se cada vez mais nos diversos âmbitos. Por outro lado, temos o desenvolvimento das possibilidades do ser humano, do poder de criar e destruir que, superando tudo o que até hoje era habitual, levanta a questão do controle jurídico e moral do poder. 8

Percebe-se que não é um discurso puramente teológico, mas que discorre sobre algo relevante nos dias de hoje, feito por um intelectual teólogo, que apesar do forte dogmatismo pregado pelo catolicismo não deixa de pensar de maneira crítica.

Levando-se em consideração o aspecto ligado à utilização da audiência pública no exercício da jurisdição, o Supremo Tribunal Federal a cada momento vem se utilizando desse instrumento que é regulado no seu Regimento Interno para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral ou de interesse público relevante.9 Dentre as diversas audiências públicas realizadas pode-se destacar: pesquisas com células-tronco embrionárias, proibição do uso de amianto, Lei Seca e proibição da venda de bebidas alcoólicas nas proximidades de rodovias, políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino superior, interrupção de gravidez de feto anencéfalo, importação de pneus usados e judicialização do direito à saúde, dentre outras que já estão convocadas, mas ainda não realizadas.10

Portanto, a conjuntura que se apresenta é de mutabilidade rápida a exigir novas práticas nos processos de tomada de decisão, inclusive no que concerne à prestação jurisdicional. No Estado Democrático de Direito é extremamente salutar ouvir o afetado com uma determinada deliberação, sob pena de carência de legitimidade.


2. A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO DE HABERMAS COMO PRINCIPAL FERRAMENTA DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

        É imperioso destacar a importância da linguagem para o conhecimento científico a partir do século XX com os estudos de Wittgenstein e das contribuições de Martin Heidegger, Hans Georg Gadamer, dentre outros. Certas questões abordando a racionalidade no campo da filosofia já foram alvo dos estudos de Kant, no século XVIII, na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática. Com Habermas, a racionalidade é redesenhada, a partir de conceitos formulados por Max Weber, passando-se de uma racionalidade instrumental para uma racionalidade comunicativa.        Habermas, por meio da teoria do agir comunicativo, reordena o conceito de racionalidade. Max Weber faz uma leitura da evolução da velha sociedade europeia utilizando processos de racionalização e que constituem o primeiro passo para uma sociedade baseada no agir comunicativo nas suas discussões e no seu processo decisório, como se verifica hoje. Habermas discorre com propriedade acerca da teoria weberiana da racionalização:

Max Weber, entre os clássicos da sociologia, foi o único que rompeu com as premissas do pensamento histórico-filosófico e com as assunções fundamentais do evolucionismo, ao mesmo tempo que pretendeu ver a modernização da sociedade europeia arcaica como resultado de um processo de racionalização universal-histórico. Max Weber tornou processos de racionalização acessíveis a uma investigação empírica abrangente, sem, no entanto, direcionar sua interpretação de maneira empirista; com isso evitou que nos processos sociais de aprendizagem, desaparecessem justamente os aspectos da racionalidade. 11

        Percebe-se que a leitura que se pode fazer da racionalização de Max Weber tem um caráter eminentemente teleológico, arraigada de uma instrumentalidade que pudesse justificar os processos sociais para a concretização de determinados fins. O capitalismo que caracterizou a transição do século XIX para o século XX é marcado por duros questionamentos sobre o papel das classes sociais no contexto da época. Nunca é demais mencionar que neste período a histórica é marcada pela luta de classes, pelo declínio de concepções liberais e pelo surgimento de movimentos de cunho socialista.

        A racionalidade instrumental, de Max Weber, também recepcionada por Lukács na década de 1920, será criticada por Horkheimer e Adorno, da chamada Escola de Frankfurt. Todavia, é com Jürgen Habermas que a racionalidade deixa de ter um caráter meramente instrumental e ganha contornos de uma preocupação com a coletividade. O contexto social não se resume a um pequeno grupo de pessoas que se satisfazem de privilégios e regalias. Há várias pessoas afetadas com as decisões que traçam os rumos da sociedade em geral e que, portanto, merecem ser ouvidas. A ação comunicativa (ou agir comunicativo) é uma nova ferramenta para melhorar o cotidiano social. Neste sentido, pontua Walter Reese-Schäfer:

A Theorie des kommunikativen Handels ainda pode ser considerada a obra principal de Habermas. A idéia central é: a racionalidade econômica e burocrática do sistema penetra crescentemente nas esferas do mundo da vida, coloniza-as e leva, dessa forma, a perdas de liberdade e de sentido. O agir comunicativo deve contra-restar isso abrindo oportunidades de entendimento num sentido abrangente, não restritivo. Esse direcionamento de sua teoria baseia-se num fundamento da teoria da ação que diferencia entre agir teleológico, normativo e dramatúrgico e, de forma abrangente, acolhe o agir comunicativo orientado ao entendimento com suas pretensões inteligibilidade, verdade e correção normativa. 12

        É imperiosa a abordagem de alguns conceitos relacionados com a teoria habermasiana para uma melhor compreensão. Primeiramente, interessante mencionar o que seria aquilo que Habermas chama de mundo da vida. Do ponto de vista léxico parece algo muito prosaico, mas que se reveste de grande significado teórico, que confere um grau de complexidade conceitual e fenomenológica considerável. O mundo da vida pode ser entendido como toda carga de pré-compreensões, tradições e cultura social, relacionados num contexto não problematizado, o que é, segundo o próprio Habermas, um conceito complementar ao do agir comunicativo. 13 Assim, tomando por base uma visão procedimentalista, o mundo da vida injeta no agir comunicativo toda uma riqueza que favorece o grupo social no debate. O mundo da vida reporta ao conceito de consciência coletiva elaborado por Durkheim, não podendo ser utilizado em pesquisas empíricas.14 Acerca do conceito em comento leciona Rafael Lazzarotto Simioni:

“Mundo vivido”, segundo Habermas, é o pano de fundo da pré-compreensão, onde as coisas têm, “desde sempre”, um determinado significado não problematizado. Por isso que o “mundo vivido” complementa a ação comunicativa com um saber de fundo não problematizado e que, assim, pode facilitar o consenso racionalmente motivado a respeito da definição da situação. 15

        Habermas desenvolve o agir comunicativo utilizando-se também de três conceitos fundamentais: o agir teleológico, o agir fundado normas e o agir dramatúrgico.16 Realizando uma reflexão acerca do chamado agir teleológico, este já fora abordado por Aristóteles e sempre esteve norteando a filosofia da ação. O sujeito que age de forma teleológica busca a concretização de um dado propósito ou objetivo, utilizando-se de meios disponíveis, possibilitando uma decisão. Eis como o próprio Habermas desenvolve o agir teleológico:

O ator realiza um propósito ou ocasiona o início de um estado almejado, à medida que escolhe em dada situação meios auspiciosos, para então empregá-los de modo adequado. O conceito central é o da decisão entre diversas alternativas, voltada à realização de um propósito, derivada de máximas e apoiada em uma interpretação da situação.

O modelo teleológico do agir é ampliado a modelo estratégico quando pelo menos um ator que atua orientado a determinados fins revela-se capaz de integrar ao cálculo de êxito a expectativa de decisões. Esse modelo de ação é frequentemente interpretado de maneira utilitarista; aí se supõe que o ator escolhe e calcula os meios e fins segundo aspectos da maximização do proveito ou das expectativas de proveito. Esse modelo de ação, em economia, sociologia e psicologia social, está subjacente às abordagens vinculadas à decisão ou à teoria lúdica. 17

        Já um agir fundado em normas – agir normativo – não busca como referência o sujeito do ponto de vista individual, mas como integrante do grupo social a que pertence, que expressa, por meio de um arcabouço normativo, valores comuns e concretiza uma espécie de pacto. No grupo social um indivíduo espera um determinado comportamento de outro indivíduo tendo em vista o conteúdo normativo apresentado. Esta racionalidade normativa consubstanciada numa ação normativa gera um certo grau de estabilidade comportamental dos indivíduos dentro do grupo social. Rafael Lazzarotto Simioni retrata com clareza o agir normativo:

Alguém pode agir racionalmente seguindo, por exemplo, uma norma jurídica em vigor. E como é racional (faz sentido) agir conforme normas éticas, morais, jurídicas ou religiosas, essa racionalidade pode servir de justificativa em um eventual questionamento da conduta. Por exemplo, do mesmo modo que a resolução de um contrato pode ser justificada pelo inadimplemento da outra parte do negócio, também o homicídio pode ser justificado pela legítima defesa. Essa racionalidade normativa, portanto, é uma racionalidade presente nas ações sociais orientadas por normas. O ator, nesse contexto, ao mesmo tempo em que age, levanta a pretensão de que seu comportamento é correto em relação a normas reconhecidas como legítimas.18         A terceira abordagem feita por Habermas refere-se ao agir dramatúrgico, que não remete ao sujeito visto de forma individual, como na ação teleológica, nem como integrante de um grupo social, como na ação normativa. O agir dramatúrgico busca referência numa interlocução entre atores, para usar a expressão do próprio Habermas. O ator transparece uma imagem, uma impressão, enfim características de ordem puramente subjetiva. É desta maneira que o ator permite ou não ao outro interlocutor ter acesso ao mundo de sua subjetividade. Os traços representativos de uma ação dramatúrgica não são necessariamente espontâneos, mas orientados para a condução de uma interlocução. Mais uma vez colhemos os ensinamentos de Jürgen Habermas:

O conceito do agir dramatúrgico não se refere primeiramente ao ator solitário, nem ao membro de um grupo social, mas aos participantes de uma interação que constituem uns para os outros um público a cujos olhos eles se apresentam. O ator suscita em seu público uma determinada imagem, uma impressão de si mesmo, ao desvelar sua subjetividade em maior ou menor medida. Todo aquele que age pode controlar o acesso público à esfera de suas próprias intenções, pensamentos, posicionamentos, desejos, sentimentos, etc., à qual somente ele mesmo tem acesso privilegiado. No agir dramatúrgico, os partícipes fazem uso dessa circunstância e monitoram sua interação por meio da regulação do acesso recíproco à subjetividade própria. Portanto, o conceito central de autorrepresentação não significa um comportamento expressivo espontâneo, mas a estilização da expressão de vivências próprias, endereçada a espectadores. Esse modelo dramatúrgico de ação serve em primeira linha a descrições da interação fenomenologicamente orientadas; até o momento, porém, ele não foi elaborado a ponto de constituir uma abordagem teoricamente generalizante. 19

        Apresentados os conceitos de agir teleológico, normativo e dramatúrgico, de forma muito sintética, pois não cabe nesta reflexão falar de conceitos puramente teóricos da teoria harbermasiana, o agir comunicativo se dá pela concretização dos três tipos de ação levando-se em conta uma interação entre dois sujeitos que buscam entendimento (incluindo-se aí controvérsias) e não somente uma coordenação nas suas ações, vistas de forma isolada. Estes fundamentos teóricos que cercam a teoria da ação comunicativa são extremamente válidos diante da complexidade do mundo contemporâneo como já se explorou oportunamente. Vive-se atualmente num ambiente de diversidades, de multiculturalismo, cujos conflitos e demandas podem ser dirimidos por meio da ação comunicativa.

        O desenvolvimento do estudo de Jürgen Habermas não se resume somente à teoria da ação comunicativa. Todo este acervo teórico vem instrumentalizar a caminhada das sociedades no estabelecimento de novos rumos da história de dois séculos de constitucionalismo. Neste rumo, Habermas, utilizando-se do agir comunicativo, traça uma relação de tensão entre facticidade e validade20, que pode ser distinguida em três níveis21, dentre os quais se abordará somente o terceiro, vez que a temática em análise exige a sua compreensão. Mais uma vez é salutar o ensinamento de Rafael Lazzarotto Simioni:

Em um terceiro nível, a tensão entre faticidade e validade será examinada também no Estado de Direito. O Estado de Direito, como a organização do exercício do poder político, existe na faticidade do próprio direito positivo, ao mesmo tempo em que o exercício do poder político – faticizado na forma de direito positivo – fica constantemente submetido a pretensões de validade como condição de sua legitimidade social. No próprio poder político, portanto, há uma tensão entre faticidade e validade, vale dizer, entre a faticidade do poder político e a sua legitimidade segundo pretensões de validade. 22

        Também se faz necessário pontuar o que o próprio Habermas discorre sobre a tensão entre facticidade e validade levando-se em conta o contexto social.

Na teoria do direito, sociólogos, juristas e filósofos discutem sobre a determinação apropriada da relação entre facticidade e validade, chegando a premissas e estratégias de pesquisa diferentes. Por este motivo, eu desejo esclarecer preliminarmente as questões de uma teoria da sociedade nas quais se apoia o meu interesse na teoria do direito. A teoria do agir comunicativo tenta assimilar a tensão entre facticidade e validade.23

        Sob uma perspectiva pragmática, o Estado Democrático de Direito, paradigma que se notabiliza pela tensão entre facticidade e validade (constitucionalismo e democracia), procura privilegiar iniciativas cuja participação dos envolvidos seja enaltecida no processo de tomada de decisão. O caráter democrático não pode sobressair, sob pena de se transformar numa ditadura da maioria, alijando as minorias da participação social. Para tanto, o direito positivo, por meio da Constituição, faz um contraponto como meio garantidor de direitos fundamentais de maneira geral, englobando todos os indivíduos. Colhe-se, neste rumo, os ensinamentos de Alexandre Bahia:

A tensão entre facticidade e validade (já trabalhada acima) reaparece na função judicial em relação ao conteúdo das decisões, que precisam levar em conta, simultaneamente, a segurança jurídica (positividade do Direito) e a pretensão de decisões corretas (legitimidade). Por um lado o Direito estabiliza expectativas de comportamento e as impõe coercitivamente. Assim, as decisões judiciais devem restar consistentes com, isto é, tomar como pano de fundo “o marco da ordem jurídica vigente [...], [que é] o produto de todo um inabarcável tecido de decisões passadas do legislador e dos juízes, ou de tradições articuladas em termos de direito consuetudinário”.24

        O Direito não é um produto de uma discussão momentânea, cujo objetivo maior se resume à solução pontual de um problema. O Direito é fruto de uma construção histórica que se desenvolve em meio a inúmeros fatores, como a tradição, os costumes os erros e acertos de uma sociedade. Esta é proposta de Ronald Dworkin ao tratar da integridade no Direito:

O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. 25

        Nas audiências públicas fica notório uma espécie de exercício de influência nas decisões, ficando evidente uma espécie de “harmonia” entre facticidade e validade, gerada pelo exercício da ação comunicativa. A discussão de temas relevantes para uma sociedade traz ao ambiente de debate vários argumentos, são apresentados vários pontos de vista, defendidos interesses individuais onde se procura o consenso, dentro daquilo que Habermas chama de esfera pública, entendida como “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões”. 26 Nada mais intrínseco ao exercício da cidadania que a promoção e participação em audiências públicas e que este instrumento seja fonte de argumentos a serem fundamentais nas decisões que delineiam os rumos da sociedade e dos envolvidos na controvérsia.


3. A INÉRCIA DO LEGISLATIVO E CONSEQUENTE NECESSIDADE DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS PELO JUDICIÁRIO

    Percebe-se que as relações de Estado nos últimos anos são caracterizadas por uma crise de representatividade popular nos parlamentos e um consequente deslocamento das discussões políticas para o Poder Judiciário. A complexidade das relações entre os diferentes sujeitos e os interesses que ficam em evidência gera maiores responsabilidades para o Estado, o que demanda mudanças estruturais e políticas. No entanto, a presente abordagem irá se deter à realidade brasileira cujos traços característicos da chamada judicialização da política são notórios e o ativismo judicial cada dia mais evidente. O Poder Judiciário no Brasil nunca esteve tão em evidência, com julgamentos importantes e polêmicos acerca de matérias que não deveriam ser tratadas na esfera judicial, mas pela inércia e postura dos demais poderes acabam levando a jurisdição a exercer um papel diferente – concretizar políticas públicas. Várias são as causas suscitadas para este processo de judicialização. No entanto, pode se considerar que o fator econômico tem grande participação na geração da crise institucional. É importante destacar o que dispõe Dierle Nunes:

Vários autores apresentam razões desse processo de judicialização da política.

Para Cappelletti, seria fruto do agigantamento do Estado, promovido pelo modelo de Welfare (CAPPELLETTI, 1993, p. 34 e ss.). Para Garapon, como já dito, seria fruto do enfraquecimento do Estado em face das pressões do mercado (GARAPON, 2001, p. 26). Para Tate e Vallinder, seria causado pela queda do comunismo e da União Soviética, bem como pelo conseqüente reforço do papel norte-americano no contexto mundial, fato que conduziu a que técnicas de judicial review desse país fossem copiadas por outros (TATE, VALLINDER, 1995, p. 10). 27

    A fim de fomentar a crítica, pode-se afirmar que a representação parlamentar hoje existente, expressa anseios e aspirações de toda a população? Não há no Parlamento uma “maquiagem” ou “caricatura” do povo? A classe política brasileira está desacreditada e estes reflexos influenciam sobremaneira este processo de judicialização da política e consequente ativismo judicial. É interessante destacar o que dispõe Alexandre Bahia acerca desta crise que representatividade:

Se, de um lado, há um “excesso legislativo” no que toca às Emendas à Constituição e, de resto, às “reformas” infraconstitucionais com as que vêm ocorrendo com as reformas processuais, de outro há muito se critica o legislativo por sua “letargia” com o trato de alguns temas. O Legislativo insiste em se manter refratário em temas polêmicos e fraturantes; ainda não se deu conta de que, em uma democracia, tem papel de protagonista sobre as questões que afligem a sociedade. Os parlamentares têm de ter consciência de que representam “setores”, “partes” da comunidade – por isso são organizados em “partidos”; não são (nem devem ser) “neutros”. Ao contrário, devem se posicionar quando questões polêmicas são apresentadas.28

    O caminhar da história não para, a sociedade muda, novos costumes e paradigmas são absorvidos no seio social, mas o Estado se omite e se faz ausente e minorias são mitigadas de direitos fundamentais. Esta é uma realidade presente e que merece a reflexão do jurista sobre a legitimidade do Judiciário para dar efetividade a políticas públicas. A questão das políticas de saúde pública é emblemática. A falta de regulamentação da chamada “emenda 29” é algo que paralisa e inviabiliza a consecução de políticas de saúde através do Sistema Único de Saúde. Certamente o tema é vastíssimo, complexo e merece um debate de toda a sociedade envolvida, sejam profissionais de saúde, entidades civis, conselhos representativos de classes profissionais, etc. O avanço da medicina, com o advento de novos medicamentos e tratamentos, e consequentemente a elevação do custo do sistema, é algo indissociável da problemática, sendo, qualquer indivíduo (rico ou pobre) merecedor de uma prestação de serviço de qualidade, sem os riscos da ambição mercadológica que envolve planos de saúde, empresas prestadoras de serviços e profissionais da saúde. A mídia divulga constantemente a situação caótica de falta de leitos, filas quilométricas, falta de medicamentos nas farmácias e inúmeras ações com pedidos liminares deferidos para garantir a efetivação de um direito tão básico. Mais uma vez pontua Alexandre Bahia:

Por aqui temas “fraturantes” têm sido decididos pelo Poder Judiciário, livrando os órgãos propriamente políticos do ônus eleitoral de ter de assumira titularidade de certas decisões. Assim tem sido na Saúde, por exemplo, onde se tem visto milhares de ações em que se demanda judicialmente a concretização de prestações públicas. Uma boa parte destas parte de situações semelhantes: havendo uma lei dispondo que o SUS deve adquirir um certo remédio e disponibilizá-lo gratuitamente, cabe ao Executivo, isto é, à Administração Pública Federal, Estadual e/ou Municipal cumprir a lei. Procurado o medicamento, se o mesmo não se encontra disponível – e havendo persistente negação do cumprimento da lei, recorre o administrado ao Judiciário. 29

    Pode-se concluir que o Judiciário acaba assumindo um papel que não tem legitimidade, ou seja, executar políticas públicas. Sobre a judicialização da saúde, o Supremo Tribunal Federal promoveu uma audiência pública que se realizou nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, quando se discutiu: o acesso às prestações de saúde no Brasil – desafios ao Poder Judiciário; responsabilidade dos entes da federação e financiamento do SUS; gestão do SUS – legislação do SUS e universalidade do sistema; registro na ANVISA e protocolos e diretrizes terapêuticas do SUS; políticas públicas de saúde – integralidade do sistema; e assistência farmacêutica do SUS.30 Vê-se que os assuntos abordados tratam exatamente da execução de políticas voltadas para saúde, responsabilidades dos entes federados – o que parece ser assunto que envolve o pacto federativo, fomento financeiro advindo da repartição do bolo tributário, algo um tanto quanto estranho à jurisdição, mas amplamente tratado pelos tribunais, como o fez o Ministro Gilmar Mendes na Suspensão de Tutela Antecipada 175:

O Sistema Único de Saúde está baseado no financiamento público e na cobertura universal das ações de saúde. Dessa forma, para que o Estado possa garantir a manutenção do sistema, é necessário que se atente para a estabilidade dos gastos com a saúde e, consequentemente, para a captação de recursos. O financiamento do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 195, opera-se com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. A Emenda Constitucional n.º 29/2000, com vistas a dar maior estabilidade para os recursos de saúde, consolidou um mecanismo de cofinanciamento das políticas de saúde pelos entes da Federação.31

    Os fundamentos carreados ao voto transcendem o caso apresentado, cuja controvérsia envolve o fornecimento de um medicamento de alto custo, denominado Zavesca (Miglustat). Neste diapasão, toda uma argumentação de cunho eminentemente político traz para o Poder Judiciário uma reflexão que não se resume na garantia de direitos fundamentais, mas em execução de programas e políticas públicas. Seria salutar que a consecução das políticas e programas fosse conduzida pelo Executivo, que as discussões dos grandes temas de interesse nacional, que imprimem evolução na vida da sociedade, viesse do Poder Legislativo. Ao Poder Judiciário cabe o exercício de um papel contramajoritário, mas que merece uma contida reflexão, como assinala, mais uma vez, Alexandre Bahia:

À jurisdição é cobrado exercer essa função de proteção daqueles que não conseguem ser ouvidos nas arenas institucionais majoritárias (notadamente o Parlamento). Minorias devem poder buscar amparo no Judiciário para evitar o descumprimento da Constituição frente a maiorias (eventuais). Caso não haja esse mecanismo, a “democracia” (vontade da maioria) se transforma em “ditadura da maioria”.

Isso não retira o papel e a responsabilidade do Legislativo/Executivo. Ao contrário, revela que estes não têm conseguido dar respostas a contento às demandas. A judicialização de questões que de outra forma não seriam tratadas (ou decididas) pelo Estado-legislador/administrador apenas mostra que estes não têm atuado de forma adequada. No que toca ao Legislativo, lugar de excelência de discussão (e decisão) das questões políticas, sua posição refratária o impede de funcionar como “caixa de ressonância comunicativa”, [...]32

    Não somente o papel contramajoritário vem sendo exercido pelo Judiciário, mas vem funcionando como verdadeiro legislador (diante das decisões proferidas frente à violação de direitos) e como executor de políticas (dando concretude às suas decisões).

    Ademais, as demandas que chegam ao Judiciário envolvem, muitas vezes, inúmeros conflitos de interesses, geram consequências importantes para a comunidade (por exemplo, as atinentes ao direito ambiental) e demandam do magistrado um leque de argumentos para que a decisão seja realmente garantidora de direitos. A atualidade é marcada por casos envolvendo a chamada litigância de interesse público (questões fundiárias, de consumo, ambientais, de saúde, e outras) o que exige uma ampliação do enforque no que toca ao direito processual. 33

O que se busca no Estado Democrático de Direito é uma maior participação dos interessados na decisão judicial, o que exige a utilização de instrumentos eficazes e manifestação e debate. Merece apreço as colocações de Dierle Nunes:

Aqui se defende tal análise a partir do “processualismo constitucional democrático” que busca subsidiar uma concepção da processualização processual dos direitos não sob a ótica do protagonismo do juiz, mas do debate interdependente de todos os interessados na decisão, dentro de seus papéis, inclusive com potencial chamamento de órgãos governamentais com adequada expertise para participação (direita ou como amicus curiae) para viabilizar um quadro mais próximo do adequado dos potenciais efeitos decisórios. 34

    A audiência pública ganha, neste contexto, papel crucial de garantia e de concretização de direitos fundamentais. Uma determinada decisão judicial, que possa afetar a vida de vários sujeitos, merece ser cercada de um debate para que os envolvidos, direta ou indiretamente na demanda, possam exercer influência e participar, por meio do exercício da livre manifestação do contraditório, da formação do provimento. A exposição de razões e a busca do consenso através de instrumentos próprios para que os envolvidos opinem, argumentem e apresentem subsídios diversos que enriqueçam processo é fundamental. As decisões judiciais estão ganhando a cada dia um caráter cada vez mais político, diante da inércia dos demais poderes, o que impõe a adoção de novas práticas e de novos rumos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

        Constata-se através desta singela abordagem que novos rumos devem ser tomados pelo Direito para que seja verdadeiramente um sistema de estabilização de expectativas de comportamento. A complexidade da conjuntura atual que envolve interesses relevantes para toda coletividade, exige muito mais do que a simples aplicação do direito positivo. Exige o envolvimento de todos os interessados na controvérsia, o que impõe novas práticas para os processos, tanto legislativo, quanto judicial.

        O mundo globalizado fica evidente a constante mutabilidade das relações jurídicas, da tecnologia, das relações comerciais entre nações, das áreas de interesse e de influência de grandes potências em relação a áreas periféricas do planeta. Como consequência deste ambiente instável (ou inconstante), o Direito acaba por estar envolto numa crise, na qual vários conceitos, sedimentados ao longo de vários anos, começam a ser questionados. A visão patrimonialista de um capitalismo representativo de um poder hegemônico após a queda do muro de Berlim, inicia uma fase de questionamento. O Direito, que até então servia de sustentáculo a este sistema, passa a ser também um instrumento de garantia de valores conquistados ao longo de anos, resultado da evolução de democracia nos últimos tempos e da promoção dos direitos humanos. A voz que fala mais alto não é a do poder econômico ou das armas, mas do cidadão que opina em questões das mais simples, envolvendo um assunto relacionado com a sua comunidade, até grandes temas de repercussão nacional.

        A participação de qualquer interessado nas deliberações deve envolver mecanismos ligados ao discurso e que facilite a comunicação entre os interlocutores em prol do enriquecimento do debate e apresentação de maior número de argumentos. A teoria da ação comunicativa permite o uso de uma racionalidade que vai além de uma mera instrumentalidade (nos moldes de Max Weber), mas que aduz elementos que privilegiam o contexto social (agir normativo) e elementos de ordem interativa entre os atores que participam da interlocução. Levando-se em consideração o ambiente democrático, próprio para a participação dos indivíduos interessados, a audiência pública torna-se ferramenta importante, para não dizer indispensável, para condução dos rumos da sociedade. Assim, o Direito (produto de uma construção social) reveste-se de magnânima importância em virtude da sua função de estabilizar comportamentos.

        A crise da democracia representativa representa um grande ponto de inflexão, notadamente num contexto global caracterizado pela defesa de grandes interesses econômicos e corporativos. As representações parlamentares não expressam de forma real e verdadeira a vontade popular. Em meio a este quadro de inércia institucional, vários temas deixam de ser discutidos e direitos deixam de ser conquistados. Neste viés, a sociedade se vê obrigada a enxergar o Poder Judiciário como grande concretizador de direitos fundamentais e não o Legislativo, que deveria ser o porta-voz do povo ou o Executivo que deveria implementar ações voltadas a garantir estes mesmos direitos. Cresce de importância, portanto, o uso da audiência pública pelo Judiciário como forma de angariar maiores argumentos para imprimir maior qualidade na decisão, sendo questionável, todavia, sua legitimidade.

        Enfim, ao Poder Judiciário, neste novo milênio, é atribuída uma nova responsabilidade em virtude da inércia dos demais poderes, preocupados com questões de interesse de certos grupos que detém certa representatividade no Parlamento. A audiência pública serve como ferramenta a conferir uma maior e melhor argumentação sobre a matéria debatida e levada ao Judiciário. No exercício da sua competência, seja no controle abstrato ou incidental de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, de forma recorrente, já vem adotando esta prática, mostrando o importante papel político da Suprema Corte. No entanto, esta prática deve se vista com reservas, mas, certamente, audiência, sob o prisma instrumental, é um meio eficaz e coerente com o papel que o Judiciário vem adotando.


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